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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO COPPEAD DE ADMINISTRAÇÃO FELIPE BARAN VILLELA PEDRAS OS DESAFIOS DO CRESCIMENTO DO SETOR DE SAÚDE NO BRASIL Rio de Janeiro 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO COPPEAD DE ADMINISTRAÇÃO

FELIPE BARAN VILLELA PEDRAS

OS DESAFIOS DO CRESCIMENTO DO SETOR DE SAÚDE NO BRASIL

Rio de Janeiro

2015

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FELIPE BARAN VILLELA PEDRAS

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Administração,

Instituto Coppead de Administração, Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre em

Administração (M.Sc.).

Orientadora: Denise Lima Fleck, Ph.D.

Rio de Janeiro

2015

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FELIPE BARAN VILLELA PEDRAS

OS DESAFIOS DO CRESCIMENTO DO SETOR DE SAÚDE NO BRASIL

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Administração,

Instituto Coppead de Administração, Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre em

Administração (M.Sc.).

Aprovada em 26 de Fevereiro de 2015, por: _________________________________________________________________

Denise Lima Fleck, Ph.D (COPPEAD/UFRJ) - Orientadora

_________________________________________________________________ Cláudia Affonso Silva Araújo, D.Sc. (COPPEAD/UFRJ)

_________________________________________________________________ Tatiana Wargas de Faria Baptista, Ph.D (ENSP/Fiocruz)

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Ao povo brasileiro.

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RESUMO

O setor de saúde no Brasil apresenta bastante relevância na economia brasileira,

representando 9,0% do PIB do país em 2010 (WHO, 2013). Além disso, desde a

criação do Sistema Único de Saúde, pela Constituição de 1988, o Brasil passou a fazer

parte de um pequeno grupo de países que oferece serviços de saúde universais a toda

a população. No entanto, apesar do tamanho do setor, 93% dos brasileiros atribuem à

Saúde, pública e privada, notas que vão do péssimo ao regular (CFM, 2014). Neste

contexto, o presente estudo busca compreender, por meio de uma análise longitudinal,

como se deu o crescimento do setor de Saúde no Brasil, de modo a fazer um

diagnóstico do setor. Para tal, o referencial teórico utilizado foi os desafios do

crescimento e o arquétipo do sucesso e fracasso organizacional, propostos por Fleck

(2009). A análise sugere que o setor não foi capaz de lidar com o crescimento da

diversidade e, com isso, tendendo à fragmentação dos serviços de saúde e gerando

desconfiança e conflitos entre seus players.

Palavras-chave: Setor de Saúde; Serviços de Saúde; Crescimento; Desafios do

Crescimento Organizacional

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ABSTRACT

The Brazilian Health economy sector is very important in the Brazilian economy,

representing 9.0% of GDP in 2010 (WHO, 2013). In addition, since the creation of the

Brazilian National Health System (SUS) by the Brazilian Constitution in 1988, the

country became part of a small group of countries offering universal healthcare services

to the entire population. However, despite the sector’s size, 93% of Brazilians attach

scores ranging from poor to fair to both public and private healthcare services (CFM,

2014). In this context, this study aims to understand how was the Brazilian healthcare

sector’s growth through a longitudinal analysis of its history in order to make a diagnosis

of the sector. In order that, the theoretical framework used was the growth challenges

and the archetype of organizational success and failure proposed by Fleck (2009). The

analysis suggests that the industry was not able to deal with the growing diversity. As a

result, the healthcare sector experienced a fragmentation of its health services such as

mistrust and conflicts among its players.

Key words: Healthcare industry; Healthcare services; Growth; Challenges of

Organizational Growth

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LISTA DE FIGURAS

Figura 2-1 Combinação das Teorias de Ambiente .................................................... 25

Figura 2-2 Arquétipo do sucesso e fracasso organizacional .................................. 30

Figura 3-1 Cadeia de valor da saúde segundo Burns et al. ..................................... 36

Figura 3-2 Fluxos Financeiros na cadeia de valor da Saúde ................................... 37

Figura 3-3 Os players do Setor de Saúde no Brasil .................................................. 38

Figura 3-4 Planilha de Tratamento de Dados Primários ........................................... 43

Figura 3-5 Planilha de Análise de Dados Primários ................................................. 44

Figura 4-1 Ondas de descobertas de medicamentos ............................................... 77

Figura 4-2 Crescimento do número de hospitais públicos e privados no Brasil ... 88

Figura 4-3 Evolução do acesso e fontes de financiamento dos serviços de saúde

...................................................................................................................................... 104

Figura 4-4 Configuração institucional do SUS ........................................................ 107

Figura 4-5 Distribuição per capita dos Recursos Financeiros da Atenção Básica

em reais/hab/ano no Brasil entre 1998 e 2006 ......................................................... 110

Figura 5-1 Os players do setor de Saúde no Brasil ................................................ 115

Figura 5-2 Mortalidade proporcional segundo causas, para capitais de Estados.

Brasil, 1930 a 2004 ...................................................................................................... 120

Figura 5-3 Gastos per capita (em dólar) com saúde no brasil em comparação com

outros países com sistema universal de saúde....................................................... 131

Figura 5-4 Relação contratual entre os agentes do Sistema Suplementar de Saúde

no Brasil ...................................................................................................................... 154

Figura 5-5 Síntese do Desafio de Complexidade .................................................... 246

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LISTA DE QUADROS

Quadro 2-1 Quadro resumo dos desafios do crescimento organizacional ............. 21

Quadro 3-1 Perfil dos Entrevistados ........................................................................... 40

Quadro 4-1 Evolução das CAP's e dos IAP's ............................................................. 70

Quadro 4-2 Conferências Nacionais de Saúde .......................................................... 74

Quadro 4-3 Dicotomia entre serviços públicos de saúde e serviços

previdenciários de saúde ............................................................................................. 89

Quadro 4-4 Grupos e Propostas da Reforma Sanitária ........................................... 100

Quadro 5-1 Síntese do Desafio de Navegação do Ambiente .................................. 116

Quadro 5-2 Esgotamento Sanitária no Brasil em 2010 ............................................ 123

Quadro 5-3 Síntese dos Conflitos orioundos do Desafio da Diversidade entre os

Players do Setor de Saúde ........................................................................................ 179

Quadro 5-4 Relação das Especialidades Médicas Reconhecidas .......................... 184

Quadro 5-5 Relação das áreas de atuação médicas reconhecidas ........................ 185

Quadro 5-6 Gasto do Ministério da Saúde com atenção à saúde como proporção

(%) do gasto total do Ministério da Saúde, por componente, segundo ano. Brasil,

2004-2010 .................................................................................................................... 192

Quadro 5-7 Quadro Síntese das Deficiências relacionadas ao Desafio de

Provisionamento de Recursos Humanos no setor de Saúde no Brasil ................. 224

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 4-1 Leitos para internação públicos e privados no Brasil entre 1935 e 2009

........................................................................................................................................ 87

Gráfico 4-2: Número de Beneficiários de Planos de Saúde no Brasil ...................... 91

Gráfico 4-3: Distribuição da população brasileira entre rural e urbana ................... 94

Gráfico 5-1 Operadoras Médico-hospitalares em atividade no Brasil (2003-2014)

...................................................................................................................................... 126

Gráfico 5-2: Percentual de brasileiros com 25 anos ou mais e com 8 anos ou mais

de estudo ..................................................................................................................... 134

Gráfico 5-3: Ressarcimento das Operadoras de Plano de Saúde ao SUS ............. 162

Gráfico 5-4: Número de médicos por mil habitantes no Brasil, 1910 - 2010 ......... 186

Gráfico 5-5 Médicos contratados por mil habitantes, por região demográfica, 2013

...................................................................................................................................... 188

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AI – Ato Institucional

AIH – Autorização de Internação Hospitalar

AMS – Assistência Médico Sanitária

ANC – Assembleia Nacional Constituinte

ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar

ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária

CAP – Caixas de Aposentadoria e Pensão

CDS – Conselho de Desenvolvimento Social

Ceme – Central de Medicamentos

CFF – Conselho Federal de Farmácia

CFM – Conselho Federal de Medicina

CIB – Comissão Intergestores Bipartite

CIT – Comissão Intergestores Tripartite

CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas

CNRS – Comissão Nacional da Reforma Sanitária

CNS – Conferência Nacional de Saúde

CNS – Conselho Nacional de Saúde

Cofen – Conselho Federal de Enfermagem

Conasems – Conselho Nacional de Secretaria Municipais de Saúde

CONASP – Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária

Conass – Conselho Nacional de Secretários de Saúde

CPMF – Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira

CREMESP – Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo

DAB – Departamento de Atenção Básica

DATAPREV – Empresa de Processamento de Dados da Previdência Social

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DDT – Dicloro–Difenil–Tricloroetano

DGSP – Diretoria Geral de Saúde Pública

DNERu – Departamento Nacional de Endemias Rurais

DNS – Departamento Nacional de Saúde

DNSP – Departamento Nacional de Saúde Pública

ESF – Estratégia de Saúde da Família

FGTS – Fundo de Garantia por Tempo de Serviço

Fsesp – Fundação Serviço da Saúde Pública

FUNABEM – Fundação de Amparo e Bem–Estar do Menor

FUNASA – Fundação Nacional de Saúde

Funrural – Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural

IAP – Institutos de Aposentadoria e Pensões

IAPB – Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Bancários

IAPC – Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários

IAPE – Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Estivadores

Iapetec – Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Empregados em Transportes de

Cargas

Iapfesp – Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Ferroviários e Empregados em

Serviços Públicos

IAPM – Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Marítimos

IAPTC – Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Transportadores de Carga

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

Inamps – Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social

INPS – Instituto Nacional de Previdência Social

Ipase – Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Servidores do Estado

Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada

LBA – Legião Brasileira de Assistência

LOPS – Lei Orgânica da Previdência Social

MEC – Ministério da Educação

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MES – Ministério da Educação e Saúde

MESP – Ministério da Educação e Saúde Pública

MS – Ministério da Saúde

MTIC – Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio

NOB – Norma Operacional Básica

OMS – Organização Mundial da Saúde

ONU – Organização das Nações Unidas

OPAS – Organização Pan–Americana de Saúde

OS – Organização Social

OSCIP – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público

PAB – Piso de Atenção Básica

PACS – Programa de Agentes Comunitários de Saúde

PAIS – Programa das Ações Integradas de Saúde

Pasep – Programa de Formação de Patrimônio do Servidor Público

PIASS – Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento

PIS – Programa de Integração Social

POI – Programação e Orçamentação Integrada

Prorural – Programa de Assistência ao Trabalhador Rural

PSF – Programa de Saúde da Família

SALTE – Saúde, Alimentação, Transporte e Energia

Samdu – Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência

SAMHPS – Sistema de Assistência Médico-Hospitalar da Previdência Social

SAMPS – Serviço de Assistência Médica da Previdência Social

SESP – Serviço Especial de Saúde Pública

Sinpas – Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social

SISREG – Sistema de Regulação

SNS – Sistema Nacional de Saúde

SUDS – Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde

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SUS – Sistema Único de Saúde

US – Unidade de Serviço

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SUMÁRIO

1 Introdução ................................................................................................................ 17

1.1 Organização do trabalho ................................................................................... 18

2 Revisão Bibliográfica ................................................................................................ 20

2.1 Os desafios do crescimento organizacional ...................................................... 20

2.1.1 Empreendedorismo ..................................................................................... 22

2.1.2 Navegação no Ambiente Dinâmico ............................................................. 23

2.1.3 Gestão da Diversidade ................................................................................ 25

2.1.4 Provisionamento de Recursos Humanos .................................................... 26

2.1.5 Gestão da Complexidade ............................................................................ 28

2.1.6 Os desafios de crescimento e o arquétipo de autoperpetuação ................. 29

2.2 Gestão da Folga Organizacional ....................................................................... 33

3 Método ..................................................................................................................... 35

1. Pergunta da Pesquisa ........................................................................................... 35

3.1 Coleta de Dados ................................................................................................ 39

3.1.1 Dados secundários ..................................................................................... 39

3.1.2 Dados primários .......................................................................................... 39

3.2 Tratamento dos Dados ...................................................................................... 42

3.2.1 Dados secundários ..................................................................................... 42

3.2.2 Dados primários .......................................................................................... 42

3.3 Análise dos Dados ............................................................................................. 44

3.4 Limitações do Estudo ........................................................................................ 45

4 História da Saúde no Brasil ...................................................................................... 47

4.1 Antecedentes (1500-1808) ................................................................................ 47

4.1.1 Estrutura Pública Administrativa ................................................................. 48

4.1.2 Oferta na prestação de serviços ................................................................. 49

4.1.3 Avanços tecnológicos relativos ao Setor de Saúde .................................... 51

4.2 Fase 1 – O Sanitarismo (1808 – 1923) .............................................................. 53

4.2.1 Início dos serviços de saúde no Brasil ........................................................ 53

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4.2.2 Avanços tecnológicos relativos ao Setor de Saúde .................................... 56

4.2.3 Saúde Pública nas áreas urbanas .............................................................. 57

4.2.4 Marcha ao interior – descobrindo o Brasil ................................................... 62

4.3 Fase 3 - Saúde Previdenciária e Saúde Pública - Dicotomia na Saúde Brasileira

(1923-1988) ................................................................................................................. 65

4.3.1 Início da Previdência Social ........................................................................ 66

4.3.2 A Era Vargas ............................................................................................... 67

4.3.3 Saúde Pública ............................................................................................. 70

4.3.4 Avanços tecnológicos relativos ao Setor de Saúde .................................... 76

4.3.5 O mundo pós guerra: novas ideologias ganham espaço ............................ 79

4.3.6 Criação do Ministério da Saúde e a estrutura administrativa da Saúde ...... 83

4.3.7 O Movimento da Reforma Sanitária ............................................................ 91

4.4 Fase 4 - Sistema Único de Saúde e a Saúde Suplementar (1988- 2014) ....... 102

4.4.1 O processo de consolidação do SUS........................................................ 108

5 Análise ................................................................................................................... 114

5.1 Os Desafios de Crescimento do Setor de Saúde no Brasil ............................. 114

5.1.1 Desafio da Navegação no Ambiente ......................................................... 115

5.1.2 Desafio de Gestão da Diversidade ........................................................... 150

5.1.3 Desafio de Provisionamento de Recursos Humanos ................................ 181

5.1.4 Desafio de Gestão da Complexidade........................................................ 225

6 Conclusão .............................................................................................................. 248

7 Referência Bibliográfica ......................................................................................... 253

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1 Introdução

A saúde é intrínseca ao ser humano e, portanto, importante para todos. Além

disso, o setor econômico que gira em torno da necessidade de todos de manter a saúde

ocupa espaço significativo no PIB mundial e também, como não poderia deixar de ser,

no PIB brasileiro. Segundo o relatório World Health Statistics da Organização Mundial

de Saúde, o mundo gastou, em média, 6,5% do PIB global em saúde em 2010 e o

Brasil, por sua vez, teve gastos de 9,0% do seu Produto Interno Bruto (WHO, 2013).

Ao longo do tempo, o setor de saúde no Brasil passou por um processo de

crescimento, por meio do qual vivenciou transformações significativas. Seu início

começa ainda no período colonial, quando quase nenhuma estrutura física destinada

aos serviços de saúde existia e os profissionais de saúde pouco ou nenhum

conhecimento teórico e formal possuíam. Atualmente, o setor conta com profissionais

altamente qualificados e especializados, assim como com grandes hospitais de última

geração, com ampla infraestrutura e tecnologia de diagnóstico e tratamento.

Durante o seu processo de crescimento, um fator que se mostrou bastante

relevante foi o acesso aos serviços e saúde, que nem sempre foram disponíveis a toda

a população. Assim, um dos principais ícones deste processo foi a criação do Sistema

Único de Saúde, que visa a oferecer gratuitamente saúde integral e universal a todos os

brasileiros, algo então inédito no Brasil, apesar de já praticado em alguns outros países.

No entanto, apesar da importância e dimensão deste setor, em estudo realizado

pelo Conselho Federal de Medicina e pela Associação Paulista de Medicina, 93% dos

brasileiros atribuem à Saúde, pública e privada, notas que vão do péssimo ao regular,

indicando insatisfação com o atual sistema de saúde brasileiro (CFM, 2014). Além

disso, são frequentes as reportagens nos meios de comunicação de massa que

mostram situações chocantes relacionadas aos serviços de saúde oferecidos à

população.

Há quem defenda que mais recursos devam ser destinados para o setor de

Saúde, como, por exemplo, o movimento “Saúde Mais Dez”, que reivindica que pelo

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menos 10% dos recursos do orçamento do governo federal do Brasil sejam

direcionados para o Sistema Único de Saúde. No entanto, apesar das evidências de

subfinanciamento do setor, um outro fator relevante que parece influenciar o sucesso do

setor de Saúde no Brasil é a gestão dos recursos existentes no setor.

Assim, nasceu a motivação para o presente estudo, com o objetivo de identificar

quais os desafios enfrentados pelo setor de Saúde no Brasil para ter um crescimento

saudável, de modo a fazer um diagnóstico do setor. Para tal, será feita uma análise da

dos cinco desafios de crescimento (FLECK, 2009) a partir da história do setor de Saúde

no Brasil e da vivência de diferentes profissionais que dele participam ou participaram

ao longo de sua trajetória profissional.

1.1 Organização do trabalho

O presente estudo está estruturado em seis capítulos. O primeiro capítulo

apresenta o tema a ser tratado, a motivação do estudo e seu objetivo.

O segundo capítulo apresenta a revisão bibliográfica que guiará as análises dos

dados levantados na pesquisa desenvolvida. São definidos os conceitos dos cinco

desafios do crescimento, que compõem o arquétipo do crescimento (FLECK, 2009),

assim como o de folga organizacional. O capítulo 3 descreve o método utilizado para a

realização do estudo, indicando como foram feitas a coleta de dados, o processamento

destes dados e sua posterior análise.

O quarto capítulo descreve a história do setor de saúde no Brasil, destacando os

fatos relevantes que transformaram o setor desde o início da história do país, quando

ainda era uma colônia de Portugal, até os dias atuais. Por sua vez, o quinto capítulo

apresenta as análises realizadas a partir dos dados obtidos e com base na revisão de

literatura elaborada.

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Por fim, no sexto capítulo são apresentadas as conclusões do presente estudo,

assim como sugestões para futuros estudos.

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2 Revisão Bibliográfica

O modelo dos cinco desafios do crescimento e do arquétipo de autoperpetuação

(Fleck, 2009) foi desenvolvido para analisar se uma organização apresenta

características de crescimento sustentável, isto é, visa à sobrevivência de longo prazo.

Este modelo já foi utilizado para estudar diversas organizações, tais como General

Electric, Westinghouse Electric, VARIG, GERDAU, Fiat no Brasil, FioCruz, Embrapa

entre inúmeras outras.

Recentemente, o modelo foi utilizado para estudar, além de organizações,

setores da economia. O primeiro estudo de setor com o modelo de Fleck (2009) foi feito

por Fonseca (2013), que analisou a indústria editorial de livros no Brasil. Dando

seguimento a este novo tipo de objetivo de estudo, o presente trabalho buscará

compreender como se deu o crescimento do setor de Saúde no Brasil com base neste

modelo.

2.1 Os desafios do crescimento organizacional

Segundo Fleck (2009), o sucesso de longo prazo de uma organização está

diretamente ligado à sua capacidade de responder aos cinco desafios de crescimentos:

Empreendedorismo, Navegação no Ambiente Dinâmico, Gestão da Diversidade,

Provisionamento de Recursos Humanos e Gestão da Complexidade. De acordo com as

respostas a estes desafios, a organização tenderá a seguir dois tipos ideais que

representam, respectivamente, o sucesso e o fracasso organizacional, que são:

arquétipos da autoperpetuação e autodestruição (FLECK, 2009), conforme explícito no

Quadro 2-1.

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Sucesso organizacional de

longo prazo

(Autoperpetuação)

Fracasso organizacional

(Autodestruição)

Empreendedorismo

Estimular o

empreendedorismo

através da promoção de

iniciativas de expansão da

empresa que criem valor

de forma continuada e

previnam a empresa da

exposição excessiva ao

risco.

Baixo ou satisfatório (baixo

nível de ambição,

versatilidade, imaginação,

visão, julgamento e de

hailidade em levantar

fundos, levando a

movimentos motivados por

estratégias defensivas e

nulas).

Alto (alto nível de ambição,

versatilidade, imaginação,

visão, julgamento e de

hailidade em levantar fundos,

levando a movimentos

motivados por estratégias

produtivas e híbridas).

Navegação no

Ambiente Dinâmico

Relacionar-se

adequadamente com os

diversos stakeholders da

empresa almejando

assegurar captura de valor

e legitimidade

organizacional.

Passiva (monitoramento

incompleto e ineficiente do

ambiente, utilização

anacrônica ou inadequada

de estratégias de resposta:

manipular, anuir

comprometer-se, esquivar-

se ou resistir).

Ativa (monitoramento

compreensivo e contínuo do

ambiente, utilização precisa e

adequada de estratégias de

resposta: manipular, anuir

comprometer-se, esquivar-se

ou resistir).

Gestão da Diversidade

Conservar a integridade da

empresa face ao aumento

de rivalidade interna e de

conflitos organizacionais.

Fragmentação

(Incompetência no

desenvolvimento de

relacionamentos coesos e na

coordenação de

capacitações).

Integração (Competência no

desenvolvimento de

relacionamentos coesos e na

coordenação eficaz de

capacitações).

Provisionamento de

Recursos Humanos

Abastecer continuamente a

organização com a

quantidade necessária de

recursos humanos

qualificados.

Tardio (contratação "just-in-

time " ou depois de

confirmada a carência de

pessoal).

Antecipado (contratação de

pessoal como parte do

planejamento das ações da

organização).

Gestão da

Complexidade

Gerenciar questões de alta

complexidade e resolver

problemas relacionados ao

aumento de complexidade

tendo em vista anular

riscos a existência da

empresa.

Ad hoc (capacidade de

resolução de problemas não

sistematizada, voltada para

buscas rápidas e simplistas

por soluções. Inibe o

aprendizado e a criação de

processos preventivos).

Sistemático (capacidade de

resolução de problemas

baseada em buscas por

soluções abrangentes e de

forma sistemática. Fomenta o

aprendizado e a criação de

processos preventivos).

Pólos de Respostas ao Desafio

Descrição do DesafioNatureza do Desafio

Quadro 2-1 Quadro resumo dos desafios do crescimento organizacional

Fonte: Fleck (2009)

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2.1.1 Empreendedorismo

O desafio do empreendedorismo se faz presente desde o princípio de qualquer

organização, pois todas são fruto de algum ímpeto empreendedor. Além da

necessidade do ímpeto inicial de empreendedorismo, essa dimensão se mantém ao

longo da existência da organização, mostrando-se necessário identificar do que este

ímpeto é composto (FLECK, 2009).

Segundo Fleck (2009), o empreendedorismo consiste na intenção de a

organização se expandir, o que compreende a disposição da organização em assumir

alguns riscos, buscar meios para reduzir seus riscos e ainda continuar se expandindo

(PENROSE, 1980). Este processo requer a aplicação de serviços empreendedores de

Penrose (1990) – versatilidade, capacidade de levantar recursos financeiros, ambição e

julgamento, conforme segue.

Versatilidade: Relaciona-se com a capacidade de o empreendedor visualizar e

imaginar novas possibilidades para o seu negócio, ampliando as possibilidades de a

empresa crescer. Desta forma, segundo a autora, esse serviço permite ao

empreendedor utilizar-se de criatividade para, por exemplo, mudar os produtos e

serviços oferecidos para a organização de modo a garantir a sobrevivência e seu

crescimento.

Capacidade de levantar recursos financeiros: Segundo a autora, o principal

fator para que uma organização consiga obter financiamento é a confiança que o

empreendedor transmite aos financiadores. Desta forma, este serviço empreendedor

poderia amenizar a dificuldade que as novas, pequenas e pouco conhecidas empresas

de obterem o financiamento necessário para eu crescimento.

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Ambição: Segundo a autora, a ambição se divide em dois tipos possíveis:

product-minded e empire-minded. O primeiro tem uma visão focada no produto

oferecido pela organização, sempre buscando ampliar e aprimorá-lo, identificando este

como o melhor caminho para o lucro. Alguns exemplos típicos de um empreendedor

com ambição deste tipo podem ser buscar melhorias de qualidade, reduções de custo,

novas tecnologias aplicáveis e expandir mercados melhorando os serviços.

Por sua vez, o empreendedor com ambição empire-minded costuma ter uma

postura mais agressiva, com uma visão voltada para expandir a firma por meio de

aquisição ou eliminação de competidores, muitas vezes colecionando firmas e

expandindo cada vez mais o escopo de seu império.

Julgamento: Segundo a autora, capacidade de julgamento do empreendedor

está diretamente ligada à capacidade de a organização coletar informações que

embasem a percepção de riscos e incertezas do empreendedor na tomada de decisão.

Além disso, há fatores relacionados diretamente ao indivíduo empreendedor, como, por

exemplo, sua imaginação, o seu bom senso e a sua autoconfiança.

A partir da prestação destes serviços, a organização tenderá a se expandir, o

que gera novas possibilidades para o crescimento e criação de valor. Porém, Fleck

(2009) indica que, se os serviços forem apenas parcialmente prestados, haverá uma

falha na promoção de mecanismos de reforço de expansão. Chandler (1977), por sua

vez, destaca dois tipos de expansão de uma empresa, a produtiva e a defensiva. Na

primeira, a organização busca economias de escala, escopo e/ou velocidade,

aumentando as chances de manter um crescimento contínuo, quando comparada à

expansão defensiva, que busca reduzir as incertezas e proteger os negócios já

existentes da companhia.

2.1.2 Navegação no Ambiente Dinâmico

O desafio de navegação no ambiente está relacionado à capacidade de a

organização lidar de forma bem-sucedida com as diferentes pressões externas,

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conseguindo capturar valor e manter sua legitimidade (FLECK, 2009). Segundo Fleck

(2009), enquanto o desafio de empreendedorismo está ligado diretamente à criação de

valor, o desafio de navegação no ambiente está relacionado à sua capacidade de

captura de valor (LEPAK; SMITH; TAYLOR, 2007).

Assim, de acordo com Fleck (2009), para ser bem-sucedida, a organização deve

realizar uma varredura regular das pressões do ambiente, assim como o uso tempestivo

e adequado de todas as estratégias disponíveis (OLIVER, 1991), de modo a moldar o

ambiente, neutralizar as pressões e se adaptar às situações que estão acima de sua

alçada. Caso contrário, segundo a autora, importantes oportunidades de captura de

valor poderão ser perdidas, a empresa poderá enfraquecer sua capacidade de

promover e reagir a mudanças, além de não estar vigilante às ameaças à sua

legitimidade organizacional, comprometendo a sua capacidade de sobrevivência da

organização (FLECK, 2009).

Vale ressaltar ainda que existem três dimensões em que se pode analisar o

ambiente: Ambiente de Tarefas ou Negócios, Ambiente Institucional e Ambiente Natural

(FLECK, 2011). O primeiro se refere à competição entre os players que fazem parte do

ambiente, onde se pode avaliar a criação e a captura de valor. O ambiente institucional

se refere à regulação e regulamentação aplicada sobre a organização, isto é, as leis e

regras que regem e definem o ambiente da organização. Por fim, o ambiente natural

consiste no espaço físico em que a organização está inserida, isto é, se refere às

condições naturais que influenciam o ambiente da organização.

Adicionalmente, Fleck (2009) destaca um segundo eixo de análise, em que se

avaliam as condições do ambiente, em função da pressão exercida sobre a

organização. Nesta análise, pode-se destacar três tipos de ambientes: piedoso,

desafiador e inóspito. O ambiente piedoso é generoso e compassivo, o que pode

incorrer em um comodismo da organização. Devido à baixa pressão do ambiente

externo, a empresa não é punida devido a fragilidades como ineficiência e falta de

inovação, permitindo a prolongação de deficiências na organização e a deixando

despreparada para uma mudança no ambiente.

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Figura 2-1 Combinação das Teorias de Ambiente

Por sua vez, o ambiente desafiador impõe um alto nível de competição para a

organização. Desta forma, apenas as organizações eficientes e capazes de antecipar e

responder às pressões utilizando-se de diversas estratégias (OLIVER, 1991) irão

sobreviver. De acordo com Lepak, Smith e Taylor (2007), um ambiente de incertezas e

cenários competitivos e dinâmicos tende a fomentar a inovação nas organizações,

principalmente quando são geridas por gestores empreendedores.

Por fim, o ambiente inóspito é caracterizado por situações extremamente

desafiadoras para o sucesso organizacional. Neste ambiente, a organização enfrenta

grandes restrições a criar e capturar valor (FLECK, 2009). Como exemplo, pode-se citar

países em guerra, bloqueios de mercado ou um ambiente de desconfiança institucional.

Assim, pode-se sintetizar os tipos de ambiente e suas possíveis suas

classificações, conforme segue na Figura 2-1.

Fonte: Fleck (2011)

2.1.3 Gestão da Diversidade

O desafio da diversidade relaciona-se com a capacidade de a organização

manter sua integridade apesar do crescimento de diversidade, ou seja, gerir a força de

trabalho cada vez mais diferente entre si, trabalhando em diferentes processos, lidando

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com novos e diferentes stakeholders, em diferentes mercados, com produtos e

tecnologias, entre outros (FLECK, 2009). Segundo a autora, com o crescimento da

diversidade, surgem oportunidades para a organização, porém, também passam a

existir maiores ameaças à manutenção da integridade da organização em função de

conflitos e rivalidades, colocando em risco sua longevidade.

Chandler (1977) afirma que, utilizando-se o processo de padronização, isto é,

com baixa diversidade, a organização obtém ganhos de escala, escopo e agilidade. Por

outro lado, Barney (1997) aponta que recursos raros e valiosos são oriundos de

condições históricas únicas, o que tornaria o processo de imitá-los difícil e custoso, ou

seja, a diversidade pode trazer ganhos para a organização.

Fleck (2011) ressalta duas formas diferentes que as organizações utilizam-se

para lidar com a diversidade. Uma delas consiste em a organização estimular a

autonomia entre suas partes e se abster de promover trocas entre suas unidades. O

outro tipo de resposta ao desafio de gestão da diversidade consiste em tornar a

organização mais simples, o que compreende na padronização de processos e rotinas,

foco em algumas capacidades e implantação de sistemas de informação que

homogeneízem as ações e aquilo com que os gerentes estão preocupados.

Assim, para que a organização não se fragmente, não é necessário que a

organização elimine as suas formas de diversidade, pelo contrário, faz-se necessário o

desenvolvimento de capacidades gerenciais que consigam coordenar o crescimento da

diversidade, de modo a utilizar-se dos elementos de diversidade de maneira construtiva

para o fomento da integração organizacional (FLECK, 2009). Caso esta capacidade da

organização de gerenciar o crescimento da diversidade não seja satisfatória, seus

membros tenderão a relutar em cooperar uns com os outros, o que pode levar à

fragmentação organizacional (FLECK, 2009).

2.1.4 Provisionamento de Recursos Humanos

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Segundo Fleck (2009), o desafio de Provisionamento de Recursos Humanos

relaciona-se com a capacidade de a organização manter um quadro de funcionários

qualificados para suas atividades. Desta forma, torna-se imprescindível antecipar

necessidades como a formação, a retenção, o desenvolvimento e a renovação de

recursos humanos (FLECK, 2009).

Desta maneira, de acordo com Fleck (2011), faz-se necessário dimensionar

adequadamente a quantidade de funcionários, uma vez que uma avaliação

subdimensionada no número de trabalhadores gera estresse excessivo e reduz a

qualidade do trabalho e uma avaliação superdimensionada deste número gera

ineficiências.

Além da quantidade de funcionários, segundo Fleck (2011), para o saudável

crescimento da organização, mostra-se importante também a correta distribuição de

funções entre os profissionais, visando a recursos humanos com habilidades

complementares e sinérgicas (FLECK, 2009). De acordo com a autora, a atribuição de

atividades pouco desafiantes a profissionais altamente qualificados gera frustações e

desmotivação. Ainda, atribuir atividades que ultrapassam a qualificação do profissional

que irá assumi-las pode comprometer a qualidade da execução da atividade, além de

também poder causar desmotivação e frustação (FLECK, 2011).

Sendo assim, uma resposta antecipada da organização a este desafio indica que

a organização é capaz de estabelecer um planejamento de modo a suprir suas

necessidades de recursos humanos, tanto em quantidade quanto em qualificação. Por

sua vez, um provisionamento tardio pode enfraquecer a integridade da organização,

como, por exemplo, o baixo provisionamento de recursos humanos capacitados em

gestão no momento adequado (FLECK, 2009).

Além disso, Penrose (1959) ressalta a importância de os recursos humanos de

uma organização trabalharem juntos há algum tempo para que se aumente o

entrosamento entre a equipe, principalmente quando se trata de recursos de nível

gerencial, o que indica a importância de uma resposta positiva ao desafio, uma vez que

o provisionamento tardio não permite este tempo para o aumento do entrosamento.

Além disso, ainda segundo Penrose (1959), o provisionamento de recursos humanos de

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nível gerencial é fundamental quando se considera o crescimento da organização, uma

vez que a equipe gerencial não pode ser reposta rapidamente, o que poderia limitar seu

crescimento, caso não houvesse um provisionamento antecipado.

Penrose (1959) ainda destaca que os serviços produtivos disponíveis nos

recursos da organização têm uma correlação positiva com o conhecimento da firma.

Desta forma, quanto maior o conhecimento sobre os recursos disponíveis da

organização, maiores serão as possibilidades de serviços produtivos extraídos destes

recursos que, em função disso, se tornam mais valiosos. Ainda segundo a autora, este

conhecimento está essencialmente nas pessoas que trabalham na organização e que,

por isso, o nível de capacitação, a heterogeneidade e a manutenção de talentos pela

organização é fundamental para uma boa geração de serviços produtivos (PENROSE,

1959).

2.1.5 Gestão da Complexidade

Segundo Fleck (2009), o aumento do desafio da complexidade se dá em função

do crescimento do número de variáveis interdependentes dos problemas a serem

resolvidos pela organização. Segundo a autora, o desafio da complexidade está

relacionado a todos os outros desafios, uma vez que, a capacidade de responder a este

desafio afeta a capacidade de resposta aos demais.

Segundo Selznick (1957), devido a este aumento da complexidade da

organização, passa a ser fundamental a implementação de processos sistemáticos de

tomada de decisão, uma vez que julgamentos embasados em análises parciais podem

ameaçar a integridade da organização. Desta forma, faz-se necessário um processo

sistemático de coleta de dados, análise, tomada de decisão e implementação, o que

permite que a organização consiga buscar soluções e aprender para responder aos

demais desafios (FLECK, 2009).

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De acordo com a autora, existem dois tipos de resposta a este desafio. Uma

baixa capacidade de resposta ao aumento da complexidade é evidenciada pela tomada

de soluções ad hoc, isto é, com foco no curto prazo, buscando soluções rápidas e

simples, o que prejudica o aprendizado organizacional e coloca em risco a

sustentabilidade do negócio.

Por outro lado, o tipo de resposta bem-sucedida a este desafio caracteriza-se por

soluções sistemáticas e abrangentes, buscando o aprendizado contínuo e contribuindo

para as capacitações necessárias que a organização precisa desenvolver para lidar

com os demais desafios (FLECK, 2009).

2.1.6 Os desafios de crescimento e o arquétipo de autoperpetuação

Segundo Fleck (2009), o sucesso ou fracasso organizacional está ligado à

habilidade ou inabilidade da organização de lidar com os cinco desafios do crescimento.

Desta forma, as respostas da organização aos cinco desafios podem orientá-la para a

autoperpetuação ou para a autodestruição, dois tipos ideais, podendo haver gradações

nesta escala para cada um dos desafios. Assim, quanto mais capacidades a

organização desenvolver e utilizar, mais próxima do polo de autoperpetuação ela estará

e maiores serão suas chances de atingir o sucesso organizacional (FLECK, 2009)

Os cinco desafios de crescimento estão interconectados entre si e agem sobre a

organização de modo a movimentá-la para o modelo de autoperpetuação, quando há

respostas positivas aos desafios de crescimento, ou de autodestruição, quando as

respostas não são satisfatórias. A Figura 2-2 indica as relações entre os desafios, assim

como suas condições necessárias que a organização avance para a autoperpetuação.

Conforme pode-se verificar, o sucesso no longo prazo depende da capacidade de a

organização manter processos de crescimento e renovação que proporcionem a

integridade organizacional.

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Figura 2-2 Arquétipo do sucesso e fracasso organizacional

Fonte: Fleck (2009)

O modelo representado na Figura 2-2 tem suas etapas numeradas de 1 a 8.

Segundo o modelo, existem duas condições necessárias para o sucesso organizacional

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de longo prazo: a renovação continuada por meio do crescimento organizacional e a

preservação da integridade organizacional.

Segundo Penrose (1959), a indivisibilidade dos recursos faz com que uma

organização não consiga sempre adequar perfeitamente a sua necessidade de recursos

aos recursos disponíveis. Desta forma, passa a haver uma folga de recursos que,

segundo a autora, acaba por estimular o crescimento da organização, já que esta folga

tenderá a ser utilizada para aumentar a eficiência operacional, o que levará à criação de

uma nova folga. Uma vez que volte a haver folga, o processo recomeça, levando à

propensão ao crescimento contínuo (CHANDLER, 1997) e, desta forma, à renovação

(Fleck, 2009).

Desta forma, para que a organização atinja uma renovação por meio de um

crescimento contínuo, faz-se necessário responder bem a dois desafios:

empreendedorismo e navegação no ambiente dinâmico. Isto ocorre porque, conforme

destacado por Penrose (1980), a ausência de serviços empreendedores, a organização

não terá capacidade de crescer, renovar-se e, consequentemente, criar valor em uma

base contínua.

Caso não responda adequadamente ao desafio de navegação no ambiente

dinâmico, a organização falhará em realizar um diagnóstico regular do ambiente, moldá-

lo quando for possível, neutralizar as pressões e ajustar às novas situações quando

necessário, o que a levará à incapacidade de capturar valor no ambiente. Assim, não

sendo capaz de criar e/ou capturar valor no ambiente, a firma terá uma baixa folga

financeira, prejudicando o seu sucesso de longo prazo.

Segundo Fleck (2009), a integridade organizacional pode ser ameaçada por

diversos fatores, como má gestão da rivalidade, baixa cooperação, habilidades fracas

de coordenação, formulação e implementação de estratégias com avaliações

incompletas da situação e um mau recrutamento. Desta forma, a integridade

organizacional está diretamente ligada ao desenvolvimento de capacitações para

responder a dois desafios do crescimento: gestão da diversidade e provisionamento de

recursos humanos.

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A gestão da diversidade está diretamente ligada à integridade organizacional,

uma vez que uma baixa gestão deste desafio faz com a organização não consiga

administrar os conflitos e as rivalidades existentes e, como consequência, ela tenderá a

se fragmentar. Por sua vez, a integridade organizacional depende de um bom

provisionamento de recursos humanos, pois as relações levam tempo para

desenvolverem (PENROSE, 1980). Um exemplo pode ser quando pessoas recém-

contratadas são requisitadas para assumir posições competitivas na organização em

que elas pouco conhecem. Desta forma, estas pessoas tenderão a contratar pessoas

com as quais já trabalharam, o que pode gerar a criar de coalizões de pessoas que não

se misturam devidamente com as pessoas que já trabalhavam na organização, gerando

uma ameaça para a sua integridade.

Por sua vez, o desafio da gestão da complexidade está relacionado a todos os

demais desafios, uma vez que são necessários processos sistemáticos para ter uma

boa resposta a estes desafios. Na ausência de processos sistemáticos de solução de

problemas, a empresa, cedo ou tarde, ficará exposta demasiadamente a riscos de

negócios, poderá perder legitimidade, falhará em prover recursos humanos qualificados

e em neutralizar as pressões para fragmentação (FLECK, 2009).

Por fim, vale ressaltar que a renovação por meio de crescimento contínuo gera

pressão sobre os desafios de gestão de diversidade e provisionamento de recursos

humanos, uma vez que a expansão pode requerer nova gestão e novos ou melhores

mecanismos de coordenação e integração. Por sua vez, a preservação da integralidade

organizacional também pressiona os desafios de empreendedorismo e de navegação,

uma vez que, para manter sua integralidade, uma organização com maior diversidade e

com mais recursos humanos necessita de uma folga maior para gerar oportunidades de

carreira para seus funcionários e está compatível com a variedade e quantidade de

stakeholders. Sendo assim, gera-se uma pressão para se aumentar o valor criado

(empreendedorismo) e o valor capturado (navegação).

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2.2 Gestão da Folga Organizacional

Conforme explícito no arquétipo de sucesso e fracasso organizacional (FLECK,

2009), a folga é um fator chave para que a organização atinja o sucesso de longo

prazo. No entanto, ainda segundo Penrose (1959), caso a folga organizacional não seja

utilizada, a organização pode estar incorrendo em um desperdício, uma vez que há

recursos excedentes sem uso produtivo. Assim, se for mal gerida, a folga pode ser vista

como sinônimo de desperdício, incompetência e ociosidade por parte dos gerentes

(NOHRIA & GULATI, 1997).

Da mesma forma, Bourgeois (1981) considera que a folga deve ser algo explícito

e consciente por parte do gestor, pois, caso contrário, seria sinônimo de desperdício.

Segundo Bourgeois (1981), a folga consiste nos recursos extras que a organização

possui disponíveis para poder realizar ajustes em sua estratégia em função de

mudanças no ambiente externo.

Segundo Cyert & March (1963), a folga organizacional pode ser utilizada como

uma forma de resolução de conflitos dentro de uma organização, uma vez que, em

função de uma disputa por recursos, as partes que reivindicam poderiam ser atendidas

em sua plenitude. Em contrapartida, Fleck (2009) alerta que a existência de folga pode

gerar conflitos em função da disputa política que pode surgir durante o processo de

decisão de sua alocação.

Em seu estudo, Barbosa (2014) organizou os tipos de folga existentes na

literatura. Segundo o autor, são seis os tipos de folga: financeira, relacional,

operacional, de recursos humanos, de tempo e inovativa. No presente estudo, os tipos

de folga mais relevantes são: financeira, operacional, de recursos humanos e de tempo.

Sendo assim, segue a definição destes tipos de folga, segundo Barbosa (2014):

Folga Financeira: Refere-se aos recursos financeiros que excedem o mínimo

necessário para a operação da organização. Podem ser consideradas folga financeira a

capacidade de a firma comprar outros tipos de recursos, o caixa disponível pela

organização e a sua capacidade de obter novos financiamentos.

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Folga Operacional: Consiste nos recursos físicos de produção que excedem à

capacidade de produção necessária para se atender à demanda. Desta forma, podem

ser considerados como folga operacional os recursos excedentes de estoques,

matérias-primas, capacidade ociosa de máquinas e equipamentos.

Folga de Recursos Humanos: Está relacionada à quantidade de profissionais

disponíveis além do necessário para a operação da organização e, também, à

capacidade da qualificação e conhecimento acumulado dos profissionais acima do

utilizado.

Folga de Tempo: Consiste na disponibilidade de tempo além do necessário à

realização das atividades necessárias à operação da organização.

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3 Método

1. Pergunta da Pesquisa

Fleck (2010) analisa o processo de pesquisa de dissertação e elabora que o

estudo se baseia em quatro pilares: pergunta de pesquisa, referencial teórico, objeto de

pesquisa e método.

Neste sentido, o objeto de pesquisa foi definido como o setor de Saúde no Brasil,

desde o descobrimento do Brasil. Mais especificamente, o presente estudo irá

considerar, para fins de análise, os serviços de saúde, definidos como o exercício

legitimado da medicina, odontologia e outras atividades com o objetivo de preservar ou

restaurar a saúde da população (SINGER, CAMPOS & OLIVEIRA, 1988 apud Zucchi,

Nero & Malik). Desta forma, o presente estudo não apresenta um enfoque no segmento

industrial do setor, isto é, na produção de materiais, medicamentos e equipamentos,

mas na sua aplicação nos serviços de saúde.

Para tal, utilizou-se o modelo de Burns et al. (2002) e o modelo de Pedroso

(2010) como base para desenvolver o modelo do setor a ser analisado. No modelo de

Burns et al. (2002), elaborado para descrever o setor de Saúde dos Estados Unidos,

verifica-se a cadeia de valor em saúde com pagadores, intermediários financeiros,

provedores, compradores e fabricantes, conforme explicitado na Figura 3-1.

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Figura 3-1 Cadeia de valor da saúde segundo Burns et al.

Fonte: Burns et al. (2002)

Segundo Burns et al. (2002), os fluxos financeiro e de inovação caminham em

sentidos opostos. Enquanto o financeiro segue da esquerda para a direita, ou seja, dos

pagadores até os fabricantes, o fluxo de inovação segue dos fabricantes até os

pagadores. Desta forma, estes fluxos se encontram no meio da cadeia, isto é, nos

provedores, que são os responsáveis por avaliarem quais inovações serão utilizadas,

dada a limitação financeira existente.

Apesar de fundamental para a construção do modelo a ser utilizado no presente

estudo, o modelo de Burns et al. (2002) apresenta limitações. Uma delas é não

considerar os laboratórios de diagnóstico como um dos provedores de serviço no

sistema. Outro player que não é considerado neste modelo são os centros de pesquisa

e de ensino, responsáveis por grande parte da inovação do setor, além daquela oriunda

dos fabricantes, apontados no modelo.

Pedroso (2010) detalha a sua visão do setor de Saúde no Brasil em alguns

modelos. Um destes modelos trata dos fluxos financeiros na cadeia de valor da Saúde,

pelo qual Pedroso (2010) entra em mais detalhes no que se refere aos players e os

processos de financiamento do setor de saúde, conforme pode-se constatar na Figura

3-2.

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De acordo com o autor, o mercado financeiro da saúde trata do financiamento do

setor, realizado diretamente pelo governo, empregadores e indivíduos e indiretamente

pelo pagamento de impostos. Além disso, há o mercado de oferta e operações de

saúde, o mercado de consumo de saúde e o mercado de conhecimento em saúde.

Ainda de acordo com o modelo, esses quatro mercados são regulados por quatro

conjuntos de políticas e regras: financiamento de saúde por exemplo, o orçamento

público destinado à saúde; alocação dos recursos da saúde, ou seja, a distribuição dos

recursos já destinados ao setor; utilização dos recursos da saúde, por exemplo,

políticas de vacinação do sistema público e regras de utilização do sistema de saúde

suplementar; e políticas de monetização do conhecimento em saúde, como por

exemplo regras de patentes e propriedade intelectual.

Figura 3-2 Fluxos Financeiros na cadeia de valor da Saúde

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Figura 3-3 Os players do Setor de Saúde no Brasil

Fonte: Pedroso (2010)

Desta forma, com base nos modelos de Burns (2002) e de Pedroso (2010), foi

desenvolvido um modelo para melhor definição do objeto de estudo, conforme indica a

Figura 3-3. Sendo assim, a análise do presente estudo terá como enfoque as seções de

Prestação de Serviços e de Consumo e Financiamento, mas ainda considerando os

demais players que compõem o setor de Saúde no Brasil.

Vale ressaltar que há interseção entre Estabelecimentos de Serviços de

Tratamento e Estabelecimentos de Serviços de Diagnósticos, uma vez que muitas

organizações oferecem ambos os serviços. No entanto, como há laboratórios

especializados em serviços de diagnóstico, estes players foram separados para melhor

compreensão do modelo.

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Uma vez definido o objeto de estudo, estabeleceu-se a pergunta de pesquisa.

Assim, o presente estudo visa a responder à seguinte pergunta, cujo objetivo consiste

em estabelecer um diagnóstico sobre o setor de Saúde no Brasil:

Como se deu o crescimento do setor de Saúde no Brasil, ao longo de sua

existência?

Por fim, de modo a responder à pergunta de pesquisa, o referencial teórico

utilizado foi o arquétipo de sucesso e fracasso organizacional e os cinco desafios do

crescimento (FLECK, 2009).

3.1 Coleta de Dados

3.1.1 Dados secundários

A coleta de dados se dividiu em duas etapas. A primeira consistiu em uma

pesquisa em livros, revistas especializadas, artigos, leis brasileiras, para a elaboração

dos fatos em ordem cronológica com confiança e fidedignidade, que consistem na

história do setor Saúde no Brasil, descrita no capítulo 4. Além disso, buscou-se dados

do setor a partir de relatórios da Organização Mundial de Saúde (OMS), da

Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), do Ministério da Saúde, do Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do Instituto de Pesquisa Econômica e

Aplicada (Ipea), da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e do banco de

dados DataSUS, que serviram para melhor compreensão do setor e base para algumas

análises.

3.1.2 Dados primários

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A segunda etapa consistiu em entrevistas em profundidade com diversos

profissionais que trabalham no setor de Saúde do Brasil para coletar fatos a partir de

suas experiências, assim como suas visões e opiniões quanto à pergunta central do

presente estudo: “Como se deu o crescimento do setor de Saúde no Brasil, ao longo de

sua existência?”

Buscou-se entrevistar profissionais com diferentes vivências no setor, de modo a

se obter uma visão holística, a partir de pontos de vista dos diferentes stakeholders que

atuam no setor. Desta forma, o Quadro 3-1 mostra o perfil dos entrevistados.

Quadro 3-1 Perfil dos Entrevistados

Entrevistado Funções de destaque Instituições de trabalho Duração da entrevista

1 Plantonista Hospital público; Forças Armadas 1h 10min

2 Plantonista;

Medicina diagnóstica Hospital público;

Hospital particular 1h 24min

3 Medicina;

Coordenador de CTI; Hospitais Públicos 56min

4 Odontologia Hospital público de alta complexidade;

Consultório particular 59min

5 Empresário Distribuidora de materiais hospitalares 2h

6 Médico gastroenterologista;

Médico do trabalho;

Policlínica municipalizada; Consultório particular;

Empresa pública 2h 2min

7 Medicina;

Chefe de equipe; Diretora de hospital

Hospital público; Forças Armadas

1h 45min

8

Medicina; Chefe de equipe;

Supervisor médico; Interventor

Ministério da Saúde; Hospital público;

Consultório particular 53min

9 Medicina homeopática; Perito em medicina do

trabalho

Hospital público federal; INSS

52min

10

Enfermeiro com especialização;

Professor; Diretor de hospital;

Ministério da Saúde; Universidade pública estadual;

Hospital público federal; Hospital particular

3h 34min

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11 Coordenador de farmácia;

Professor de graduação Hospital municipal;

Universidade particular 1h 57min

12 Medicina pediátrica;

Conselheiro da Unimed; Professor

Hospital público; Operadora de Planos de Saúde;

Universidade pública; Consultório particular

1h 46min

13

Coordenadora de MBA em Saúde;

Professora; Conselheira de Associação

Universidade Federal; Associação Empresarial de Saúde em

nível estadual 58min

14 Médico cardiologista;

Dono de hospital Hospital particular 1h 30min

15 Medicina diagnóstica;

Empresário; Presidente

Laboratório de Diagnóstico 1h 13min

16 Medicina;

Consultor especializado; Operadora de Planos de Saúde; Secretaria Municipal de Saúde

1h 02min

17 Presidente;

Vice-presidente

Fabricante de materiais e equipamentos médico-hospitalares;

Empresa privada de prestação de serviços de Saúde

1h 01min

18 Professor;

Empresário

Universidade Federal; Empresa privada de prestação de

serviços de Saúde 50min

19 Medicina;

Coordenador de divisão; Perícia médica

Forças Armadas; Hospital Universitário da UFRJ;

Hospitais Públicos 1h 20min

20 Consultor especializado Secretaria Municipal de Saúde 34min

21 Empresário Empresa privada de prestação de

serviços de Saúde 1h 08min

22 Presidente;

Diretor de Gestão; Professor

Federação Mundial de Hospitais; Confederação Nacional de Saúde;

ANS; Escola Médica Carlos Chagas

1h 12min

23 Vice-presidente Operadora de Planos de Saúde 48min

24 Medicina; Secretário;

Chief Medical Officer;

Secretaria Estadual de Saúde; Hospitais Públicos;

Empresa privada de prestação de serviços de Saúde;

Corpo de Bombeiros; Forças Armadas;

1h 08min

25 Medicina; Presidente

Diretor

Associação Empresarial de Saúde em nível nacional;

Associação Nacional de Saúde Suplementar

48min

26 Medicina

Presidente Academia Nacional de Medicina;

Hospital Público 51min

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As entrevistas foram elaboradas com perguntas abertas e roteiro

semiestruturado, que permitiram aos entrevistados discorrer sobre os temas que

considerassem mais relevantes. Assim, as entrevistas tiveram como orientação principal

as seguintes perguntas: “Conte sua história no setor Saúde.”, “Quais os desafios que

você enfrentou e enfrenta no setor Saúde”, “O que você acha que deveria mudar no

sistema de saúde do Brasil?” e “O que você acha que não deveria mudar no sistema de

saúde do Brasil?”. Adicionalmente, para aproveitar com maior precisão as experiências

dos entrevistados, em alguns momentos foram pedidos exemplos do que era relatado,

para tornar o relato mais concreto e aumentar a clareza sobre o que era discorrido.

3.2 Tratamento dos Dados

3.2.1 Dados secundários

Para a elaboração do histórico do setor, as informações obtidas nas fontes

secundárias foram organizadas de acordo com a estratégia de temporal bracketing

(LANGLEY, 1999), ou seja, a história foi dividida em períodos, de tal maneira que há

uma certa continuidade de fatos dentro de cada período e uma descontinuidade entre

eles. Assim, a partir de marcos que separam cada período, a história do setor ficou

dividida em três fases, acrescidas dos Antecedentes, sendo elas: Antecedentes (1500 a

1808) – Brasil Colônia; Fase 1 (1808 a 1923) – “Sanitarismo”; Fase 2 (1923 a 1988) –

Saúde Previdenciária e Saúde Pública – Dicotomia na Saúde Brasileira; Fase 3 (1988 a

2014) – O Sistema Único de Saúde: Saúde um direito de todos e dever do Estado.

3.2.2 Dados primários

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Figura 3-4 Planilha de Tratamento de Dados Primários

As entrevistas foram integralmente transcritas. Após a transcrição, cada

entrevista foi lida e analisada, de tal forma que foram separados os trechos que

indicavam evidências desafios diferentes, sempre organizados por entrevistado. Depois

de todos os trechos separados, eles foram relidos para confirmar que não havia

duplicidade de evidência de um mesmo desafio e se, de fato, havia uma evidência de

um desafio no trecho. Quando houve casos de duplicidades, os trechos foram

agregados e, nos que tange aos trechos que não demonstravam evidências de

desafios, eles foram realocados como contextualização de outros trechos, como

soluções indicadas pelos entrevistados ou eliminados da planilha. Ademais, a partir da

releitura de cada trecho, foi marcado em negrito a parte que mais claramente destacava

o desafio apresentado pelo entrevistado.

Adicionalmente, aproveitou-se as soluções sugeridas espontaneamente pelos

próprios entrevistados para os desafios por eles apresentados, colocando-as ao lado de

seu respectivo desafio. Ainda, vale ressaltar que, como forma de organização do autor,

os trechos indicados foram iluminados em cores diferentes no arquivo da transcrição e,

na planilha, foram indicadas as páginas que continham e as cores de cada trecho.

Desta maneira, foi elaborada a Figura 3-4, que ilustra parcialmente o tratamento dos

dados contidos nas transcrições.

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Figura 3-5 Planilha de Análise de Dados Primários

3.3 Análise dos Dados

Os dados secundários foram utilizados para a elaboração do histórico do setor,

de acordo com a estratégia de temporal bracketing (LANGLEY, 1999). Por sua vez, os

dados primários serviram para elaboração da planilha com os trechos das transcrições

das entrevistas destacados e separados por desafios. Os desafios foram organizados e

classificados de acordo com a teoria levantada no referencial teórico, de modo a facilitar

a posterior análise. Assim, a Figura 3-5 ilustra parcialmente como a planilha foi

elaborada.

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3.4 Limitações do Estudo

O presente estudo apresenta limitações no que se refere à abrangência do

objeto de estudo, conforme explicado no subcapítulo “3.1 Pergunta da Pesquisa”. Além

disso, o presente estudo apresenta limitações no que tange à região geográfica do perfil

dos entrevistados, a distribuição de tipos profissionais de saúde entre os entrevistados

e quanto a uma potencial subjetividade dos relatos.

Devido a limitações da pesquisa e do pesquisador, todas as entrevistas foram

realizadas com moradores da cidade do Rio de Janeiro, a exceção de uma, realizada

por meio conferência virtual com o entrevistado localizado na cidade de São Paulo. Em

função disto, a maior parte dos entrevistados tem experiência principalmente no Estado

do Rio de Janeiro, o que pode fazer com que a visão descrita nas entrevistas, em geral,

refira-se mais à realidade deste estado, podendo distanciar-se de características

específicas de outras regiões do país. Apesar desta limitação, vale ressaltar que foram

entrevistados alguns profissionais que ocupam ou ocuparam cargos relevantes em nível

nacional, como a presidência da Academia Nacional de Medicina e a diretoria de gestão

da Agência Nacional de Saúde Suplementar.

Outro ponto relevante no que diz respeito à limitação do estudo está relacionado

à profissão dos entrevistados. Dos 26 entrevistados, 19 são formados em medicina, 1

em enfermagem, 1 em odontologia, 1 em farmácia e os 4 restantes em profissões não

relacionadas diretamente à área da saúde, o que pode trazer, em algum nível,

homogeneidade da visão dos entrevistados. No entanto, apesar da maioria de médicos,

os entrevistados com esta formação apresentam bastante variedade em suas

experiências, no que se refere às especialidades profissionais, ao trabalho em unidades

de saúde públicas e/ou privadas, à atuação na área de coordenação de equipes de

profissionais, à atuação na área da gestão de hospitais e/ou atividades relacionadas ao

planejamento do setor, no Ministério da Saúde e em Secretarias de Saúde, além de

atuação empreendedora, montando negócios na área de saúde.

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Por fim, no que se refere à subjetividade dos relatos, que potencialmente pode

enfraquecer a relevância dos dados levantados, vale ressaltar todos os fatos descritos

pelos entrevistados que puderam ser confirmados por meio de outras fontes o foram.

Ainda assim, como parte dos relatos descreve experiências vividas pelos profissionais,

este tipo de trecho não pôde ser averiguado. Porém, apesar da limitação, vale

relembrar e destacar que todas as entrevistas foram feitas sob um ambiente em que o

entrevistado tinha liberdade plena para expressar sua visão e relatar suas experiências,

não havendo razão para vieses nos discursos.

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4 História da Saúde no Brasil

O presente estudo sobre a história da saúde no Brasil está organizado em 4

fases, de modo a facilitar a compreensão de sua evolução e facilitar a posterior análise.

O período dos Antecedentes do setor de Saúde vai de 1500 a 1808 e contém o período

em que o Brasil ainda é colônia de Portugal, com pouca oferta de profissionais

qualificados para os serviços de saúde. A segunda fase, de 1808 a 1923, período em

que o Brasil enfrenta graves epidemias e aumenta-se o foco em políticas públicas de

saúde para resolver questões sanitárias. A terceira fase, que inicia-se com a

promulgação da Eloy Chaves de 1923, caracteriza-se por uma dicotomia do acesso aos

serviços de saúde no país, dividido entre os que tinham acesso à medicina

previdenciária e os que dependiam da saúde pública e das instituições filantrópicas

para ter acesso a serviços de saúde. A quarta fase, iniciada em 1988 e que se estende

até os dias atuais caracteriza-se pela construção e consolidação do SUS, que marca

uma nova era da saúde no Brasil, pois oferece atendimento universal e integral à toda

população.

4.1 Antecedentes (1500-1808)

Nos primeiros três séculos da história do Brasil, as artes de curar, como eram

denominados os serviços de saúde, eram exercidas em grande parte por diversos

profissionais dotados exclusivamente de conhecimentos práticos e pouca distinção

destes havia em relação aos profissionais mais qualificados, como os médicos, também

chamados de físicos, os cirurgiões e os boticários que, em ordem decrescente

estabeleciam uma hierarquia no status de profissionais de saúde.

Além de os profissionais atuarem com poucas bases científicas, fazendo uso de

misticismo para realizar as curas, constata-se que o poder público, neste período, limita-

se a um papel fiscalizador, não oferecendo serviços de saúde à população. Por estes

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dois motivos, que, combinados, evidenciam a inexistência de uma racionalidade médica

predominante, o período de 1500 a 1808 é considerado como Antecedentes do setor de

Saúde no Brasil, que terá o seu início apenas a partir da chegada da Família Real ao

Brasil.

4.1.1 Estrutura Pública Administrativa

O primeiro fato relacionado ao sistema de saúde brasileiro é proveniente de uma

decisão oriunda de Portugal, quando, em 1521, o então rei Dom Manoel baixou um

regimento que estabeleceu a divisão de funções entre as duas maiores autoridades da

saúde no Reino e em seus domínios: o físico-mor e o cirurgião-mor. A fisicatura-mor

funcionaria como um tribunal relativo às questões de saúde e o físico-mor, sua

autoridade máxima, seria o juiz (EDLER, 2010). A ele caberia a função de determinar a

concessão de licença para o exercício das artes de curar e fiscalização das atividades

do boticário e das boticas, o que incluía a qualidade e os preços dos medicamentos

(CABRAL, 2014a). Ao Cirurgião-Mor, autoridade máxima em cirurgia do Reino, caberia

a atribuição de fiscalização das artes físicas e cirúrgicas (EDLER, 2010; CABRAL,

2014a). Neste mesmo regimento, foi estabelecido que, nas províncias e domínios do

Reino, o que incluía o Brasil, delegados comissários e juízes comissários serviriam

como extensão do poder do físico-mor e do cirurgião-mor, possuindo a autoridade de

aplicar multas e outras penalidades em casos de infração (EDLER, 2010; CABRAL,

2014a).

Ainda, o físico-mor e seus comissários assumiram a função de aplicação de

testes práticos para avaliação da concessão da licença das artes de curar. No caso dos

comissários, eles aplicavam os testes em suas localidades e seus resultados eram

enviados ao físico-mor. Vale ressaltar que, na ausência de um físico examinador para a

avaliação, os praticantes das artes de curar deveriam enviar uma carta ao físico-mor

com atestado das câmaras locais que comprovasse o seu saber e sua experiência

(EDLER, 2010). Segundo Cabral (2014b), as câmaras municipais funcionavam como

base local da administração portuguesa e começaram a ser criadas no Brasil em 1532,

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quando a primeira foi instalada na Vila de São Vicente, na região de Santos, no estado

de São Paulo.

Adicionalmente, criada em 1526, a Provedoria-mor, por meio do Provedor-mor,

era o primeiro esforço de Portugal para uma organização sanitária do reino. Suas

ações, diferentemente do físico-mor e do cirurgião-mor, focavam na profilaxia da cidade

como um todo e consistiam principalmente de prevenção e combate a epidemias, à

salubridade da cidade, às quarentenas de doentes, fiscalização dos gêneros

alimentícios e fiscalização dos portos (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012; CABRAL, 2014c).

A partir de 1688, a jurisdição do provedor-mor passou a incluir também os domínios do

Reino, o que incluía o Brasil (CABRAL, 2014c).

Uma mudança significativa nesta estrutura administrativa do reino só ocorreria

posteriormente em 1782, quando foi criada em Portugal pela D. Maria I a Junta do

Protomedicato, conselho formado por sete deputados, que substituiu os cargos de

físico-mor e cirurgião-mor, centralizando suas atribuições em um mesmo órgão. Desta

forma, a concessão de licenças para a prática das artes de curar e o controle sobre a

venda de medicamentos passaram a ser responsabilidades da Junta do Protomedicato

(CABRAL, 2014a; FUNASA, 2004; MIRANDA, 1998).

Sendo assim, no que tange às ações públicas de saúde, o papel do governo no

período colonial se restringia à regulamentação das artes de curar, por meio de licenças

expedidas por tribunais portugueses a partir de comprovação de experiência

(ESCOREL & TEIXEIRA, 2012) e a um papel fiscalizador em relação à limpeza e à

higiene das cidades e à inspeção sanitária dos portos (MIRANDA, 1998).

4.1.2 Oferta na prestação de serviços

Durante este período contido entre o descobrimento do Brasil e a chegada da

família real, os médicos eram poucos, formados fora do Brasil e localizavam-se

principalmente nas regiões de maior densidade populacional, oferecendo um serviço

para a alta camada da população (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012). Ao médico cabia a

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tarefa de diagnosticar, prescrever e acompanhar o tratamento do paciente a partir de

conhecimentos extraídos de textos canônicos escritos em latim (EDLER, 2010). No

entanto, apesar de ocuparem o topo da hierarquia no que tange à assistência à saúde,

a falta de conhecimentos científicos quanto à origem e tratamento das doenças gerava

dificuldade quanto à confiabilidade em suas decisões. Assim, era comum a família e

amigos do doente proporem mudanças no tratamento ou indicarem outro prático, que

julgassem mais adequado, demonstrando que o saber popular muitas vezes prevalecia

sobre o conhecimento erudito dos médicos (EDLER, 2010).

Abaixo dos médicos, os cirurgiões ocupavam o segundo lugar na hierarquia dos

profissionais de saúde à época. Esta profissão começou a se formar com bases

científicas no século XVI, na Europa, a partir de Ambroise Paré, considerado o pai da

cirurgia moderna, e aumentou sua relevância devido à utilização cada vez mais comum

de armas de fogo e canhões em batalhas (MELO, 1989). Além disso, o homem

renascentista da época, dedicado aos estudos das formas humanas para as artes e

ciências, desenvolveu grandes avanços no entendimento de anatomia, que serviram de

suporte aos conhecimentos dos cirurgiões, dos quais pode se destacar o estudo sobre

o corpo humano de Leonardo Da Vinci (MELO, 1989). Aos cirurgiões, cabia as tarefas

relacionadas aos trabalhos manuais, considerados inferiores aos do médico, que

exigiam o uso de ferramentas e materiais como ferros, lancetas, tesouras, escalpelos,

cautérios e agulhas, e suas atribuições se restringiam a sangrias, à aplicação de

ventosas e à cura de feridas e fraturas (EDLER, 2010).

O terceiro profissional de destaque neste período colonial era o boticário. Em

suas boticas, os boticários vendiam medicamentos, em sua maioria importados, e a eles

era atribuído o papel de prensar e misturar as drogas receitadas pelos médicos. No

entanto, vale ressaltar que esta divisão de funções, na prática da colônia do Brasil, não

era uma realidade absoluta. Em muitos casos, o próprio boticário emitia a receita para o

tratamento ou vendia remédios a pedido de curandeiros (MARQUES, 1999;

POLIGNANO, 2001).

Assim, apesar de haver regulação para os profissionais de saúde no Brasil

colônia à semelhança de Portugal, em 1789, o Vice-Rei D. Luiz de Vasconcelos,

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afirmou em uma carta que havia apenas quatro médicos no Brasil (VASCONCELLOS,

1950). Devido à escassez dos profissionais de saúde mais renomados como médicos e

cirurgiões, outros atores, que consistiam no que Vasconcellos (1950) denominou de

curandeirismo especializado, surgiam para atender à demanda da prestação de

serviços de saúde no país, como barbeiros, entendidos, sangradores, curiosos,

raizeiros, rezadores (SANTOS FILHO, 1991 apud PERILLO, 2006). Escorel & Teixeira

(2012) ainda adicionam as parteiras e os aplicadores de ventosas como profissionais

das artes de curar da época.

Para aqueles que não conseguiam pagar os serviços dos profissionais de saúde

à época, restavam os atendimentos provenientes de caridade de origem religiosa dos

hospitais das Santas Casas de Misericórdia, fundadas desde o princípio da colonização

nas regiões mais populosas do país, e que ofereciam serviços precários (EDLER, 2010;

MIRANDA, 1998). A primeira é datada de 1543, denominada Santa Casa da

Misericórdia de Santos, foi fundada na Vila de São Vicente por Braz Cubas e é o mais

antigo hospital do Brasil (IVAMOTO, 1998).

4.1.3 Avanços tecnológicos relativos ao Setor de Saúde

A partir do século XVI, o desenvolvimento das ciências durante o período

Renascentista marca o início da separação entre o médico e os truques e superstições

da medicina medieval (MELO, 1989). O conhecimento passa a se espalhar rapidamente

devido à invenção da prensa de Gutenberg, no século anterior, e diversos avanços

tecnológicos marcam os séculos seguintes. No século XVII, o primeiro microscópio é

desenvolvido, permitindo aos cientistas estudos mais detalhados do corpo humano,

como a identificação dos corpos sanguíneos e dos espermatozoides (MELO, 1989).

Ainda no século XVII, Francisco Redi contestou a teoria até então aceita da

geração espontânea, teoria de que a vida se origina da matéria não viva, por meio de

um experimento em que isolou uma porção de carne do ambiente externo que, por

estarem bem conservadas, não apresentou surgimento de larvas. William Harvey, por

sua vez, desenvolveu um trabalho sobre a circulação sanguínea que se tornou um

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marco na medicina, já que identificou que o sangue circula pelo corpo em um sistema

fechado. Com esses avanços do conhecimento na área, em 1666, a primeira transfusão

de sangue foi realizada na França, em que o sangue de um cordeiro foi injetado em um

paciente da corte francesa que, apesar de uma melhora imediata, não sobreviveu à

cirurgia (MELO, 1989).

No século XVIII, inicia-se na Europa a tendência à especialização médica e,

neste contexto, a formação do cirurgião começou a ser formalizada, tendo como fato

marcante a fundação da Academia Real de Cirurgia em 1731 na França. A partir deste

momento, o barbeiro começou a ter sua profissão cada vez mais restrita e, aos poucos,

passaram a ser impedidos de atuar na Europa, sendo a França o primeiro país a proibir

sua atuação (MELO, 1989). John Hunter, renomado cirurgião, desenvolveu uma técnica

que poupou milhares de amputações a partir de então, quando descobriu que um

princípio de aneurisma (dilatação do vaso sanguíneo devido ao enfraquecimento das

paredes do vaso) poderia ser tratado por uma simples ligadura proximal em vez da

solução, até então aplicada, de amputação (MELO, 1989).

Em 1796, o médico britânico Edward Jenner realizou um experimento que daria

origem às vacinas. Ele inoculou um material retirado da pústula de uma leiteira

portadora da varíola bovina em um menino. Posteriormente, Jenner inoculou

diretamente o vírus da varíola no menino, que não desenvolveu a doença e, após

algumas semanas, aplicou novamente o vírus no garoto, que ainda se mostrou imune.

Devido a este experimento, foi inventada a primeira vacina do mundo e, poucos anos

depois, ocorreu a primeira vacinação em massa, nos Estados Unidos, onde cerca de

seis mil pessoas foram vacinadas contra a varíola (MELO, 1989).

No fim do século XVIII, a medicina também vislumbrou avanços na área da

saúde mental. Nesta época, Philippe Pinel mudou a forma como pacientes com

perturbações mentais eram tratados ao convencer seus colegas contemporâneos de

que doenças mentais eram causadas por alterações patológicas do cérebro e não por

efeitos sobrenaturais, libertando os doentes de correntes e maus tratos, que passaram

a ser tratados, como pacientes (MELO, 1989).

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Apesar de avanços nos conhecimentos científicos e desenvolvimentos de

algumas tecnologias no mundo, até o século XVIII os tratamentos de saúde ainda se

baseavam em soluções rudimentares, como evacuação de flegma por meio de

sangrias, laxativos eméticos, banhos, flebotomia (incisão praticada na veia como

objetos diversos), purgas e aplicações de ventosas. No entanto, novos tipos de

tratamentos surgiam, como o início da eletroterapia para tratar a paralisia e o

desenvolvimento da química e da botânica, esta última potencializada com novas

plantas descobertas nas américas (MELO, 1989).

4.2 Fase 1 – O Sanitarismo (1808 – 1923)

4.2.1 Início dos serviços de saúde no Brasil

A partir da chegada da família real no Brasil, em 1808, houve a necessidade de

se estabelecer uma estrutura mais desenvolvida de assistência à saúde, de modo a

atender melhor à corte. Desta forma, neste período são criadas instituições e órgãos

com vistas à formação de profissionais em saúde e busca de controle sanitário nas

cidades brasileiras.

Assim, no dia 18 de fevereiro de 1808, o rei Dom João VI inaugurou a Escola de

Cirurgia no antigo Real Hospital Militar da cidade de Salvador, a primeira instituição de

ensino de saúde do Brasil (VASCONCELLOS, 1950). Após seguir viagem para o Rio de

Janeiro, ainda no mesmo ano, inaugurou a Escola Anatômica e Cirúrgica no Rio de

Janeiro (VASCONCELLOS, 1950), anexa ao Real Hospital Militar (POLIGNANO, 2001).

Em 1813 e 1815, respectivamente, as duas instituições se transformariam em Colégios

Médicos-Cirúrgicos, com o acréscimo de disciplinas. Em 1826, quatro anos após da

independência do Brasil, esses colégios conseguiriam o direito de conceder diplomas

de médicos aos estudantes, não dependendo mais da Fisicatura portuguesa e, em três

de outubro de 1832, seriam transformados nas primeiras faculdades de medicina do

Brasil (VASCONCELLOS, 1950; MIRANDA, 1998)

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Além das escolas de cirurgia, o Príncipe Regente D. João decretou em 21 de

maio de 1808 a criação da Botica Real Militar, com a função de prover os remédios

necessários aos enfermos (CABRAL, 2014d). Em 1810, seu nome mudaria para

Laboratório Farmacêutico e seria o local para aulas práticas da matéria de Farmácia da

escola de medicina do Rio de Janeiro (CABRAL, 2014d).

Além disso, foi abolida a Junta Protomedicato e foram restabelecidas as

primeiras instâncias de saúde pública, a Fisicatura-mor e a Provedoria-mor de Saúde,

ambas dirigidas pelo físico-mor, assim como a Cirurgia-mor, desta vez com sede no

Brasil. Adicionalmente, a partir de 1810, foi determinado que os comissários do físico-

mor deveriam ser médicos formados em Coimbra ou outra universidade que poderia vir

a ser criada no reino (CABRAL, 2014a)

Em 1811, devido à importância social e econômica assumida pela varíola no

Brasil, foi fundada a Junta Vacínica da Corte, com o objetivo de difundir e conservar a

vacina antivariólica (SILVEIRA & MARQUES, 2011). Tal Junta demonstrou uma atuação

irregular e pouco expressiva, o que a levaria a ser transformada, já em 1846, em

Instituto Vacínico do Império com o objetivo da reorganização dos serviços de

vacinação (SILVEIRA & MARQUES, 2011), além de assumir funções de determinação

de procedimentos e fiscalização da vacinação (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

A partir da Independência do Brasil em 1822, iniciou-se um processo de

mudança no país que buscou substituir as responsabilidades das instituições

portuguesas por brasileiras, que culminou alguns anos depois no fim da fisicatura-mor

(ESCOREL & TEIXEIRA, 2012). Assim, em 30 de agosto de 1828, esta mudança foi

determinada pela lei de Municipalização dos Serviços de Saúde, que transferiu as

responsabilidades do Físico-Mor, do Cirurgião-Mor e de seus Delegados às juntas

municipais e à justiça ordinária (FUNASA, 2004; Cabral, 2014a). Ainda como

desencadeamento deste processo, em 1828, foi criada a Inspeção do Porto do Rio de

Janeiro, subordinada ao Senado da Câmara (FUNASA, 2004), assumindo a atribuição

de fiscalização do porto, que antes cabia à Provedoria-Mor.

Assim, em um contexto em que as decisões públicas quanto à saúde estavam

sob a responsabilidade de vereadores não-médicos e que os serviços de atenção à

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saúde estavam sendo realizados, na prática, em sua maioria, por profissionais de saúde

de conhecimento não erudito, como sangradores e curandeiros, foi fundada a

Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro em 1829 (VASCONCELLOS, 1950;

MIRANDA, 1998). Seu intuito era o de debater temas técnicos de medicina e aumentar

a participação dos médicos perante o Império em questões de saúde pública e

sanitárias (PERILLO, 2006), combatendo o que se chamava à época de higiene

“desmedicalizada” (GALVÃO, 2009).

Esta sociedade teve significativa influência na transformação dos cursos de

medicina em 1832, quando da criação das faculdades de medicina do Rio de Janeiro e

da Bahia (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012). Em 1835, seu nome mudou para Academia

Imperial de Medicina, que passou a receber verbas do tesouro público e prestar

serviços de consultoria em saúde pública ao governo (PERILLO, 2006).

Ainda por influência da Sociedade de Medicina, é instalada a Polícia Médica, sob

controle das câmaras municipais e com o objetivo de regulação das condições

sanitárias. O conceito de polícia médica é oriundo da Alemanha do século XVIII e seu

auge se deve a Johann Peter Frank, que entendia que o médico deve zelar pela saúde

da comunidade e, assim, assumir funções de administrador público, por meio do

controle de estatísticas de saúde da população e da higiene (MIRANDA, 1998). No

entanto, em parte devido à falta de uma organização do poder público, a polícia médica

não foi capaz de aprofundar e difundir o saber médico sobre higiene pública, de tal

modo que esta iniciativa fracassou (GALVÃO, 2009).

Em meados do século XIX, o quadro sanitário do país se mostrava em estado de

degradação, com surtos de varíola e a ocorrência da primeira epidemia de febre

amarela. Desta forma, em 1849, o governo monta uma comissão de higiene, que em

1851 se transformou na Junta Central de Higiene Pública (PERILLO, 2006). Esta junta

assumiu a coordenação das atividades de polícia sanitária, vacinação antivariólica e

fiscalização do exercício da medicina, que eram efetuadas pelas provedorias de saúde

das províncias, além de incorporar em seu organograma a Inspetoria de Saúde Portos

(ESCOREL & TEIXEIRA, 2012). Segundo Perillo (2006), a Junta foi criada devido à

demora da Academia Imperial de Medicina em perceber a gravidade da situação de

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saúde pública à época, o que levou a instituição ao descrédito até a mudança do nome

para Academia Nacional de Medicina, com a proclamação da república em 1889.

Por meio da Junta Central de Higiene Pública, a administração pública passou a

desempenhar maior controle regulatório sobre a saúde e uma das medidas adotadas foi

proibição da veiculação de anúncios de remédios com fórmulas desconhecidas, como,

por exemplo, ervas utilizadas por curandeiros. Porém, na prática, ainda eram comuns

inúmeros anúncios que prometiam curas infalíveis e a utilização de remédios populares

era amplamente difundida entre aqueles que não podiam pagar os caros remédios

importados oferecidos nas boticas (EDLER, 2010; GONÇALVES, 2008).

4.2.2 Avanços tecnológicos relativos ao Setor de Saúde

O século XIX enfrentou muitas mudanças de paradigmas e avanços científicos

que tornaram o conhecimento sobre a natureza humana cada vez mais distante do

misticismo. Em 1859, a teoria da evolução das espécies por meio da seleção natural de

Charles Darwin gerou grande impacto na comunidade científica mundial e foi de

encontro à teoria do criacionismo, até então aceita. Em 1865, Mendel, considerado o

pai da genética, apresentou seus estudos sobre a genética das plantas, que ofereciam

uma explicação científica para a hereditariedade (MELO, 1989).

Mais diretamente no que tange à assistência à saúde, Rudolf Virchow

revolucionou as explicações quanto às causas das patologias. Por cerca de 2000 anos,

a explicação mais aceita era a proveniente da Teoria Humoral, que atribuía as causas

das doenças ao desequilíbrio de humores do corpo. Virchow, contestou a Teoria

Humoral com seu estudo em que identificou que o corpo é uma comunidade de células

e com sua teoria de que as doenças eram originárias de alterações dessas células

(MELO, 1989).

Outra grande revolução no conhecimento científico médico à época veio de

Pasteur, que em 1861 derrubou definitivamente a teoria da geração espontânea por

meio do seu experimento com o balão de vidro chamado pescoço de cisne, que provou

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que a vida se origina apenas de um ser vivo preexistente. Além disso, Pasteur

desenvolveu a teoria microbial, que atribuía aos microrganismos as causas de muitas

doenças, já que eles seriam seus agentes patogênicos. Isto permitiu a busca de

soluções específicas no modo de combater cada doença, o que levou ao

desenvolvimento de novas vacinas, além da vacina contra a varíola já existente, como a

vacina contra a raiva, desenvolvida pelo próprio Pasteur em 1886. Para desenvolver

suas pesquisas, ele fundou em 1888 o Instituto Pasteur, no qual, posteriormente,

médicos brasileiros como Oswaldo Cruz se formariam (MELO, 1989).

Neste contexto de crescimento do conhecimento técnico científico sobre o corpo

humano, a partir de 1870 observa-se uma intensificação na perseguição aos

curandeiros no Brasil, que ainda continuavam praticando suas artes de curar (EDLER,

2010). Associações médicas prestigiadas reivindicavam o monopólio da assistência de

saúde aos médicos, considerando as práticas populares como fraude e charlatanismo

(ESCOREL & TEIXEIRA, 2012). Assim, em 1890, o novo Código Penal brasileiro,

elaborado após a Proclamação da República em 1989, criminalizou as práticas

religiosas e de magia como forma de cura de moléstias e a profissão de curandeiro

passou a ser oficialmente proibida (EDLER, 2010). Melo (1989) acrescenta que, ao final

do século XIX, o médico se viu livre do dogmatismo e da metafísica, já que seu

conhecimento agora estava baseado em princípios científicos sólidos e ele dispunha de

uma grande variedade de instrumentos e drogas para os tratamentos.

4.2.3 Saúde Pública nas áreas urbanas

Em 1886, devido ao desenvolvimento urbano das cidades que cresciam a um

ritmo acelerado e ao aumento do ingresso de mão de obra para a agricultura cafeeira,

houve necessidade de um maior empenho na administração de saúde pública. Além

disso, a situação sanitária no país continuava precária, o que levou a uma reforma nos

serviços sanitários do Império (GALVÃO, 2009). Assim, a Junta Central de Higiene

Pública foi extinta, dando lugar ao então criado Conselho Superior de Saúde Pública,

que teria atribuições normativas e seria composto pela Inspetoria Geral de Higiene,

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responsável pela higiene terrestre, e a Inspetoria de Saúde dos Portos, responsável

pela manutenção das condições higiênicas dos portos (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

Vale acrescentar que a Inspetoria Geral de Higiene incorporou as funções do Instituto

Vacínico, que foi desmantelado (SILVEIRA & MARQUES, 2011).

Em 15 de novembro de 1889, foi proclamada a República no Brasil, dando fim ao

imperialismo, o que gerou uma nova conformação na estrutura administrativa de saúde

pública. De acordo com o arranjo federativo estabelecido na República, os poderes

locais seriam responsáveis pelas ações de saúde e, ao governo federal, ficaria a

responsabilidade de fiscalização dos portos e auxílio aos estados em caso de

necessidade (FIGUEIRA, 2005). Assim, em 1896, foi criada a Diretoria Geral de Saúde

Pública (DGSP), órgão federal, que assumiu atribuições da direção dos serviços

sanitários dos portos, fiscalização do exercício da medicina e farmácia, estudos sobre

doenças infecciosas, organização de estatísticas demográficas-sanitárias e auxílio aos

estados em momentos epidêmicos, caso houvesse solicitação dos governos locais

(ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

No final do século XIX e início do século XX, a então capital do Brasil, Rio de

Janeiro, assim como outras grandes cidades, ainda apresentavam um quadro caótico

de saúde pública. As doenças que mais assolavam a população brasileira eram a

varíola, a febre amarela e a peste bubônica (PONTE, 2010a). Neste período, a ação do

Estado ainda se limitava ao combate das epidemias já alastradas, principalmente por

meio do isolamento dos enfermos, e a algumas medidas organizadoras da cidade,

fiscalizando habitações populares e venda de alimentos e de bebidas alcoólicas. À

época, a assistência à saúde da população ainda era assumida, em sua maioria, pelas

casas de filantropia (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

Este quadro de situação sanitária precária não era relevante apenas no que diz

respeito especificamente à saúde da população, mas também adquiria uma importância

de nível econômico. Nesta época, a economia do país era baseada na exportação de

produtos agrícolas, principalmente o café, que eram escoados por meio dos portos.

Devido à situação sanitária das grandes cidades brasileiras, os navios responsáveis

pelo transporte de mercadorias passaram a se recusar a aportar nos principais portos

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brasileiros, do Rio de Janeiro e de Santos, para não arriscarem a saúde da tripulação,

inviabilizando o comércio e a principal atividade econômica do país. (ESCOREL &

TEIXEIRA, 2012)

Além disso, ainda em 1888, havia sido abolida a escravidão no Brasil, o que

gerou necessidade de mão de obra para os produtores agrícolas. Este fato, somado à

ideologia de que a população brasileira, formada em sua maioria por negros recém

libertos e mestiços pobres, desnutridos e sem educação básica, necessitava ser

“esbranquiçada”, para que pudesse ser “aprimorada”, aumentou ainda mais a demanda

por mão de obra estrangeira e, com isso, intensificou-se a importância de se apresentar

uma boa imagem do país ao exterior (PONTE, 2010a).

Nesta conjuntura, segundo Ponte (2010a), a medicina estava passando por um

processo de institucionalização, graças à criação de cursos e de reconhecimento por

parte do Estado. Deste modo, começava a surgir o consenso de que a medicina deveria

ser mais atuante na sociedade, assumindo um caráter preventivo, que se concretizava

por meio da saúde pública. É neste momento que, segundo Ponte (2010a), começa a

se desenhar uma dicotomia quanto à forma de assistência à saúde. Até então, a

medicina e os cuidados de saúde eram prioritariamente individuais e curativos, ou seja,

o paciente era atendido devido a sua demanda pessoal e apenas em caso de moléstia.

A partir deste período, a atuação sobre o “corpo social”, isto é, sobre toda a sociedade,

e medidas preventivas começam a ser levadas em consideração (PONTE, 2010a).

Neste período, a atividade agrícola do país estava concentrada em São Paulo,

que também sofria com constantes epidemias. Apesar de o arranjo federativo prever

auxílio do governo central nestes casos, segundo Escorel & Teixeira (2012), havia

limitação e frequente recusa de repasses financeiros do governo central ao estado para

ajuda nas questões relativas à saúde. Deste modo, o estado de São Paulo buscou

desenvolver um sistema de saúde próprio para resolver as questões sanitárias, com

recursos oriundos da pujança econômica da atividade cafeeira (ESCOREL & TEIXEIRA,

2012).

Tal sistema era composto pelo Serviço Sanitário do Estado de São Paulo, criado

em 1892, que passou a coordenar e fiscalizar as atividades fora da capital e atuar

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diretamente em casos de epidemias. Sua principal instância era a Diretoria de Higiene,

responsável pelo cumprimento das posturas e normas sanitárias, determinadas pelo

Código de Posturas Municipais de 1886 e reafirmadas pela primeira lei paulista na era

republicana voltada ao tema, de 1891 (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

Além disso, o sistema contava com um conjunto de laboratórios: o Laboratório

Bacteriológico, responsável pelo diagnóstico de doenças epidêmicas; o Laboratório

Químico e Farmacêutico que supria o Serviço Geral de Desinfecção do Serviço

Sanitário com as substâncias químicas necessárias às desinfecções domiciliares; e o

Laboratório de Análises Químicas e Bromatológicas, que fiscalizava a venda de

alimentos (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

O sistema de saúde de São Paulo também contava com os hospitais de

isolamento, para onde eram destinados os enfermos das epidemias, com o objetivo

principal de evitar o alastramento da doença, enquanto a ênfase nos cuidados médicos

e de cura eram secundários. Além disso, havia o Serviço Geral de Desinfecção, que

colocava em prática do Código Sanitário por meio dos inspetores sanitários (ESCOREL

& TEIXEIRA, 2012).

Ainda no estado de São Paulo, em 1899, a população no litoral de Santos, se

depara com uma nova doença, até então desconhecida no Brasil. Para investigar as

causas dessa doença, são enviados os médicos Adolfo Lutz e Vital Brazil, pelo estado

de São Paulo, e Oswaldo Cruz, pela União, além de um quarto médico, Emílio Ribas,

que acompanhava os trabalhados na posição de diretor do Serviço Sanitário de São

Paulo (BENCHIMOL & TEIXEIRA, 1993 apud PONTE, 2010a).

As investigações levaram à identificação da doença como sendo a peste

bubônica, também conhecida como peste negra, que havia assolado a Europa com

milhões de mortes no passado. Por tal diagnóstico implicar em consequências graves e

exigir medidas impopulares a serem tomadas pelos governantes locais, como a

aplicação de quarentenas, foi exigido que laboratórios europeus também dessem seus

pareceres, que vieram a confirmar o resultado. Esse fato demonstra o nível de

atualização em que estavam estes médicos brasileiros, já que o agente causador da

peste bubônica havia sido identificado e seu soro desenvolvido por Alexandre Yersin,

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discípulo de Pasteur, em 1894, apenas poucos anos antes de a doença chegar ao

Brasil (PONTE, 2010a).

No entanto, apesar da identificação da doença em um período em que já havia

sido desenvolvido o soro, as autoridades brasileiras se deparam com uma dificuldade

operacional para seu controle, já que apenas o Instituto Pasteur, na França, produzia o

soro. Com isso, em 1900, com o risco iminente de uma epidemia de peste bubônica, foi

criado o Instituto Soroterápico Federal, posteriormente denominado de Instituto

Oswaldo Cruz pelo governo federal e o Instituto Butantan pelo governo de São Paulo,

com o objetivo de produzir vacinas e soros para combate das doenças epidêmicas

(ESCOREL & TEIXEIRA, 2012; PONTE, 2010a). Posteriormente, o Instituto Butantan

especializou-se na produção de soros contra mordidas de animais peçonhentos, sob a

direção do médico Vital Brazil (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

Em se tratando da capital do país, Rio de Janeiro, em 1902, para contornar a

situação precária da saúde pública, o prefeito Pereira Passos, nomeado pelo então

presidente Rodrigues Alves, tinha como carro-chefe de proposta de governo a

modernização da cidade. Em sua gestão, Pereira Passos promoveu uma grande

reforma urbanística, na qual abriu e alargou ruas e demoliu cortiços, de modo a torná-la

mais moderna e higiênica. Neste processo, diversas moradias populares consideradas

insalubres e em desacordo com o projeto da nova cidade foram desapropriadas e

demolidas (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

Além disso, buscando colocar um fim no ciclo de epidemias que assolavam a

cidade, Pereira Passos nomeou Oswaldo Cruz em 1903 como diretor do Departamento

Geral de Saúde Pública. Formado pelo Instituto Pasteur, suas medidas eram baseadas

na busca e neutralização do agente causal das doenças, por meio da eliminação de

seus vetores (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012). No entanto, havia aqueles que, em

oposição às ações de Oswaldo Cruz, defendiam que os recursos não deveriam servir

para eliminação de ratos e mosquitos, que compõem a cadeia de transmissão da peste

bubônica e da febre amarela respectivamente, mas deveriam ser destinados a leitos e

outros serviços de saúde, isto é, em ações curativas, o que evidenciava a dicotomia de

visões que surgia na época (PONTE, 2010a).

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Com Oswaldo Cruz na liderança das decisões de saúde pública, a atuação do

governo para controlar as epidemias se deu por meio do modelo sanitarista

campanhista, operacionalizada pelos guardas sanitários. Entre as atividades

autorizadas aos guardas sanitários, estavam a de adentrarem os domicílios da

população em prol da higienização e, se necessário, queimar seus pertences

considerados contaminados, o que gerou grande descontentamento da população

(POLIGNANO, 2001; PONTE, 2010a).

Ainda, à postura rigorosa do governo ao combate aos vetores, somava-se a falta

de um paralelo em educação e conscientização da população quanto à importância e

necessidade de tais medidas. Neste contexto, a aprovação da Lei da Vacina

Obrigatória, em 1904, que tornou a vacinação contra a varíola compulsória a todos, foi o

estopim para desencadear a Revolta da Vacina. A capital do país ficou em estado de

sítio devido à rebelião do povo, que quebrava lojas e virava bondes em protesto, além

de montar barricadas para combates. Nestas condições, o governo recuou e revogou a

lei (PONTE, 2010a).

Após alguns dias de revolta, o movimento foi reprimido pelas forças do governo e

a vacinação foi retomada. Por sua vez, a política campanhista, que gerou resultados

positivos para a saúde pública, manteve-se predominante por mais algum tempo e, a

partir principalmente da década de 1940, iria passar a ser aplicada no interior do país,

buscando eliminar os causadores e vetores das doenças que acometiam o homem

sertanejo (PONTE, 2010b). Ainda, as contribuições de Oswaldo Cruz, na direção do

DGSP, para a saúde brasileira também incluem a implantação do registro demográfico,

que permitiu conhecer com mais detalhes a população a ser atendida, a introdução do

laboratório como auxiliar de diagnóstico – que cresceria durante século seguinte e se

tornaria uma importante indústria dentro do setor – e a fabricação organizada de

produtos profiláticos para uso em massa (POLIGNANO, 2001).

4.2.4 Marcha ao interior – descobrindo o Brasil

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No início do século XX, havia duas visões opostas, no que se refere ao homem

do campo, em debate pelos intelectuais, que viviam nas áreas urbanas e principalmente

na capital, Rio de Janeiro. Uma das correntes de pensamento era a do racismo

científico, que defendia que o brasileiro, devido a sua mistura do negro, índio e branco,

era um povo biologicamente fraco e comprometido. Outra surgia por meio dos textos de

Euclides da Cunha, principalmente pelo seu livro Os Sertões, de 1902, em que retrata o

sertanejo como um homem forte, capaz de sobreviver ao ambiente hostil do interior

(PONTE, 2010b; ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

No entanto, ambas as visões seriam contrariadas a partir das expedições

científicas realizadas por sanitaristas e organizadas pelo Instituto Oswaldo Cruz ao

interior do país entre 1912 e 1917, das quais se destacam três médicos, sendo eles:

Arthur Neiva, Belisário Penna e Carlos Chagas. Nestas expedições, os sanitaristas

constataram que o homem do interior era, de fato, enfraquecido, mas que a verdadeira

causa para o enfraquecimento da população brasileira do interior eram as doenças que

lhe afligiam (PONTE 2010b; ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

Em um momento em que ocorria a primeira guerra mundial, quando se exaltava

o nacionalismo e havia o clamor de levante à luta, Miguel Pereira, professor da

faculdade de medicina e membro da Academia Nacional de Medicina, declarou que

Brasil era um imenso hospital e que grande parte da população seria incapaz de se

levantar para a guerra, por estar acometida por doenças. Assim, à época, formava-se o

consenso de que o atraso brasileiro em relação às economias desenvolvidas não era

fruto do clima tropical ou da composição racial do povo, mas da perda de produtividade

gerada pelas endemias e da falta de atuação do Estado na saúde da população

(PONTE & FALLEIROS, 2010; ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

Nestas expedições, uma das principais doenças que acometiam o homem do

interior foi descoberta por Carlos Chagas. Batizada de doença de chagas, era

transmitida pelo inseto barbeiro, que se desenvolvia com facilidade nas casas de pau a

pique, moradia popular comum do interior do país, retrato oposto da modernização

experimentada na capital. A partir das expedições de Penna, estimou-se que cerca de

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15% da população do Brasil, ou seja, cerca de 3 milhões de pessoas, estavam

contaminados com a doença de chagas (KROPF & LIMA, 2010).

Monteiro Lobato, com seu livro Problema Vital e com seu personagem Jeca Tatu

que representava o homem sertanejo doente e sem energia para o trabalho, defendeu

as ideias oriundas do sanitarismo como solução para o desenvolvimento do país

(KROPF & LIMA, 2010). Assim, em um período carregado de críticas dos sanitaristas à

ausência do Estado no interior do Brasil, Belisário Penna escreveu o livro Saneamento

do Brasil, que serviu de base para a fundação da Liga Pró-Saneamento do Brasil, em

1918.

A Liga Pró-Saneamento do Brasil era composta por médicos sanitaristas e

defendia a atuação mais intensa do governo na saúde, inclusive no interior do país, até

então não contemplado pelas políticas públicas de saúde (ESCOREL & TEIXEIRA,

2012). Na visão dos líderes da Liga, como Belisário Penna, Arthur Neiva e Miguel

Pereira, era fundamental e urgente a criação de um órgão que atuasse em nível federal,

de modo a uniformizar as políticas sanitárias públicas, até então descentralizadas e sob

decisão de oligarquias locais. Segundo eles, pouco adiantava um município tomar

ações efetivas de saúde pública, se suas vizinhanças não promovessem a prevenção e

o combate aos transmissores das doenças, colocando em risco inclusive as cidades

próximas que atuavam adequadamente (PONTE, 2010c).

A ideia da criação de um órgão central encontrou resistência principalmente por

parte das oligarquias locais, que temiam perder parte de seu poder, caso houvesse

maior concentração das decisões pelo governo federal. No entanto, em 1918, com a

chegada da gripe espanhola no Brasil, que logo se tornou uma epidemia, evidenciou-se

a necessidade de maior controle e coordenação da questão sanitária no país (PONTE,

2010c).

O verdadeiro objetivo da Liga Pró-Saneamento, sob a direção de Belisário

Penna, era o de se criar um Ministério da Saúde, o que não foi alcançado à época. No

entanto, em 1920, em substituição ao DGSP, foi criado o Departamento Nacional de

Saúde Pública (DNSP), ainda vinculado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores,

que aumentou a abrangência das ações públicas de saúde para o interior, por meio do

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Serviço de Profilaxia Rural (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012). Outra instituição que

contribuiu para avanços na prevenção e combate de doenças no campo foi a Fundação

Rockfeller, instituição filantrópica americana que buscava controlar doenças

transmissíveis em diversos países e, no Brasil, assumiu o combate da febre amarela

nas regiões Norte e Nordeste (PONTE, 2010d; ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

O DNSP teve como seu primeiro diretor o médico Carlos Chagas, também no

comando do Instituto Oswaldo Cruz à época. Chagas, enquanto esteve à frente do

DNSP até 1926, introduziu a propaganda e educação sanitária como ações de saúde,

inovando em relação ao modelo campanhista fiscal e policial. (POLIGNANO, 2001).

Ademais, foi responsável pela implantação da Reforma Carlos Chagas, que

estabeleceu um novo regulamento, separando a organização da saúde em saúde

pública e previdência social (MACHADO, 2012), determinando oficialmente a dicotomia

que configuraria a saúde no Brasil nas décadas seguintes e durante quase todo o

século XX.

4.3 Fase 3 - Saúde Previdenciária e Saúde Pública - Dicotomia na

Saúde Brasileira (1923-1988)

Até o início da década de 1920, a assistência médica no Brasil era oferecida por

iniciativa privada, seja por meio de instituições filantrópicas ou pela compra direta de

serviços dos profissionais de saúde. Porém, neste período, o cenário começa a se

modificar nos centros urbanos, devido ao início da previdência social. A década de 1920

demonstrou uma mudança de foco no que tange às políticas de saúde pública, quando

o apelo social deixa de centrar-se na figura do sertanejo e passa a vigorar com maior

ênfase no operário urbano. A população brasileira, cada vez mais, migra para as

cidades, que, no final da década, já condensavam 20% dos habitantes do país

(ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

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Com o surgimento da previdência social, as décadas seguintes do século XX

serão marcadas por uma crescente dicotomia de acesso a serviços médicos, com parte

da população beneficiada pela medicina previdenciária e outra dependente as ações

públicas de saúde e de ações filantrópicas. No que se refere às ações públicas de

saúde, vale destacar que o Estado brasileiro, que passou a tomar uma postura mais

ativa perante a saúde pública a partir do século XX, concentrou, até a primeira metade

do século, seus esforços nas doenças infectocontagiosas, que ameaçam a ordem

econômica do país. Desta forma, as doenças crônico-degenerativas, em sua imensa

maioria, não foram alvo de ações de ordem pública, mas apenas dos serviços da

medicina previdenciária (PONTE, 2010e).

4.3.1 Início da Previdência Social

Em 1923, foi promulgada a Lei Eloy Chaves, proposta pelo deputado paulista

homônimo e sancionada pelo então presidente Artur Bernardes, que instituiu as

primeiras Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAP’s), voltadas para os trabalhadores

das companhias ferroviárias. As CAP’s eram entidades autônomas e semipúblicas,

organizadas pela empresa e seus empregados e administradas por um grupo de

empregados e empregadores, eleitos por voto. Por sua vez, a presença do poder

público poderia ser requisitada em caso de conflitos entre funcionário e caixa

(ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

O objetivo das CAP’s era proporcionar aos empregados direitos como o de

aposentadoria, de indenizações em casos de invalidez ou morte, quando os benefícios

se destinariam aos seus dependentes, e de serviços de assistência médica. O

financiamento do sistema era proveniente de contribuição de parte do salário dos

próprios trabalhadores e de parte do faturamento bruto das empresas, o que, na prática,

tornava o financiamento indiretamente oriundos de seus clientes, uma vez que os

custos eram repassados a eles (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

O modelo das CAP’s foi o primeiro passo para a implantação de um sistema de

previdência social no Brasil e formalizava a dicotomia que começava a se configurar na

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saúde no país. De um lado, o trabalhador assalariado contemplado pelos serviços

médicos previdenciários e, do outro, aqueles que não tinham acesso a tais serviços e

dependiam das ações públicas de saúde por parte governo (PONTE, 2010e; ESCOREL

& TEIXEIRA, 2012).

Apesar de gerar tal divisão, os modelos de previdência social mostram-se de

grande importância e um marco para o crescimento do acesso à saúde no Brasil, tendo

em vista que eles oferecem assistência à saúde do trabalhador assalariado, permitindo

a inclusão de uma parcela da população antes não contemplada pelos serviços

médicos. Desta forma, em 1930, quando Getulio Vargas assumiu o poder, havia 47

CAP’s, com 142.464 funcionários ativos, 8.000 aposentados e 7.013 pensionistas,

demonstrando o tamanho e importância que o sistema já havia atingido até então

(ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

4.3.2 A Era Vargas

No final da década de 1920, a política “café com leite”, que até então vigorava,

alternando o poder entre as oligarquias de latifundiários de São Paulo e de Minas

Gerais, já vinha perdendo força política. Parte da diminuição da influência das

oligarquias deveu-se às constantes crises de superprodução de café, que eram

compensadas com a compra do excesso pelo governo, o que gerava grande

descontentamento de grupos não beneficiados com esta política. Além disso, a

atividade industrial ganhava cada vez mais força econômica e, com isso, influência

política. Assim, com a crise econômica mundial de 1929 e consequente queda abrupta

dos preços do café no mercado internacional, as oligarquias rurais sofrem um

enfraquecimento de poder, culminando no golpe de 1930 (ESCOREL & TEIXEIRA,

2012).

Com o golpe, Getúlio Vargas, apoiado por gaúchos e paraibanos, assume o

poder e, no início de sua gestão, busca conciliar os interesses dos principais grupos da

época, como os militares, que queriam uma maior centralização das ações do Estado;

os setores oligárquicos que defendiam a manutenção da autonomia estadual; e os

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industriais, que queriam maior promoção da infraestrutura industrial e diretrizes

econômicas que não favorecessem apenas aos agricultores (ESCOREL & TEIXEIRA,

2012).

Vargas, durante seu governo (1930-1945), buscou expandir os serviços de saúde

como um todo, mas principalmente aqueles ofertados ao trabalhador urbano, por meio

da medicina previdenciária. Assim, a partir de 1933, o presidente Getulio Vargas

começou um processo de reestruturação do sistema previdenciário, de modo que as

CAP’s passaram a ser gradualmente substituídas pelos Institutos de Aposentadoria e

Pensões (IAP’s) (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

Diferentemente das CAP’s, que se organizavam por empresas, os IAP’s eram

autarquias que se estruturavam por classes de trabalhadores. Outro fator que, na teoria,

diferenciava os IAP’s das CAP’s se refere a sua forma de financiamento, que consistia

de um modelo tripartite, por meio do qual, além das contribuições dos funcionários e

das empresas, também haveria a contribuição de recursos provenientes do Estado. No

entanto, esta terceira participação, na prática, não existiu (REIS, 2010; ESCOREL &

TEIXEIRA, 2012).

Com o estabelecimento dos IAP’s, os sindicatos dos trabalhadores passaram a

assumir um papel de grande relevância na busca de direitos e benefícios para os

trabalhadores junto ao governo federal, representado pela figura de Vargas como “pai

dos pobres”. Isto pode ser verificado pela lei de sindicalização de 1931, segundo a qual

os sindicatos eram considerados órgãos consultivos e técnicos de mediação entre

Estado e classe de trabalhadores, em vez de serem considerados órgãos de

representação de interesses. Ademais, para poderem existir, os sindicatos deveriam ser

reconhecidos oficialmente pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC),

criado no mesmo ano (REIS, 2010).

Além disso, o governo de Vargas estimulava que cada sindicato buscasse

negociação junto ao MTIC de maneira individual, o que gerava competição entre os

sindicatos pelos benefícios oferecidos pelo Estado e um clima de corporativismo

estratificado por classe trabalhadora, além de criar uma relação de dependência do

Estado (VIANNA, 2000). Ainda, devido ao processo individual de negociação de cada

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sindicato junto ao MTIC, cada IAP possuía uma legislação própria, o que tornava o

sistema bastante complexo, devido à grande diversidade de leis e normais operacionais

(PONTE & FALLEIROS, 2010).

Nestas condições, não havia uniformidade entre os IAP’s, já que cada um

apresentava as suas especificidades de serviços e benefícios, assim como as

exigências e critérios para sua concessão, o que estimulava ainda mais a competição

sindical e o corporativismo, uma vez que os benefícios dos IAP’s eram anunciados

como conquistas das categorias de trabalhadores (VIANNA, 2000).

Ainda no que tange os direitos sociais dos trabalhadores, vale ressaltar que,

durante o governo Vargas (1930-1945), houve muitos avanços das leis trabalhistas, que

perduram até os dias de hoje, como a determinação da jornada de trabalho de oito

horas e a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), que ofereceram proteção social ao

trabalhador (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012). Desta forma, os trabalhadores formais

passaram a usufruir de melhores condições de trabalho e, consequentemente, passou a

haver menores riscos à saúde devido ao exercício do ofício (REIS, 2010).

Desta forma, a estrutura do sistema previdenciário se manteve com a

coexistência das CAP’s e dos IAP’s até 1960, quando as últimas CAP’s, de ferroviários,

se uniram ao IAP da categoria. Posteriormente, em 1966, já no período do regime

militar, os IAP’s seriam unidos, com a criação do Instituto Nacional de Previdência

Social (INPS), o que será abordado mais adiante. O Quadro 4-1 demonstra a evolução

das CAP’s e dos IAP’s até a unificação.

Ano Fatos e Eventos (órgãos previdenciários criados e unidos)

1923 Caixas de Aposentadorias e Pensões para ferroviários

1926 Funcionavam 33 Caixas organizadas por empresa

1930 Funcionavam 47 Caixas organizadas por empresa, cobrindo 140 mil

segurados

1931 Instituto de Previdência para funcionários da União (regime próprio)

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1932 Funcionavam 140 Caixas organizadas por empresa, cobrindo 190 mil

segurados ativos, dez mil aposentados e nove mil pensionistas

1933 Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Marítimos (IAPM)

1934 Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Bancários (IAPB)

Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários (IAPC)

1936 Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (IAPI)

1938

Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Transportadores de Carga

(IAPTC)

Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Estivadores (IAPE)

Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Servidores do Estado (Ipase)

1945 Três milhões de segurados ativos, 159 mil aposentados, 170 mil

dependentes

1948

Seis IAP's e trinta CAP's

Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Empregados em Transportes de

Cargas (Iapetec) - fusão do IAPE com o IAPTC

1960

Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Ferroviários e Empregados em

Serviços Públicos (Iapfesp) - unificação das trinta CAP's de ferroviários

remanescentes - abrangendo cinco milhões de segurados, entre os quais

quatro milhões de contribuintes ativos (7,3% da população brasileira)

1964 Unificação de todos os IAP's no Instituto Nacional de Previdência Social

(INPS), a exceção do Ipase

Quadro 4-1 Evolução das CAP's e dos IAP's

Fonte: Escorel & Teixeira (2012)

4.3.3 Saúde Pública

À parte do sistema previdenciário, no que refere às ações públicas de saúde,

Getúlio Vargas avançou na concretização da antiga aspiração da Liga Pró-Saneamento.

Em 1930, como uma das primeiras ações de seu governo, Vargas unificou o

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Departamento Nacional de Saúde Pública e o Departamento Nacional de Educação,

que se transformaram no Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP), o que fazia

parte da diretriz do novo governo, de criar um Estado forte e com uma burocracia

central capaz de coordenar as ações das administrações locais (ESCOREL &

TEIXEIRA, 2012).

Neste período, em que a assistência previdenciária avançava, regulada pelo

MTIC, estabeleceu-se a chamada “cidadania regulada”, conceito que se refere à

sociedade em que os direitos civis eram garantidos apenas àqueles que trabalhavam

em ocupações reconhecidas e definidas por lei, sendo a carteira de trabalho e o

pertencimento a um sindicato os definidores formais desta garantia aos direitos. Porém,

sem acesso ao sistema previdenciário, grande parte da população, como os

trabalhadores rurais, domésticos e ocupantes de cargos não previstos em lei eram

considerados pré-cidadãos, com direitos restritos e, por isso, ainda dependiam dos

serviços públicos de saúde, regidos pelo MESP (SANTOS, 1987).

Neste âmbito, o MESP buscava consolidar uma estrutura de serviços de saúde

que pudesse atender à população brasileira, tanto a presente nas cidades, mas que não

tinha acesso aos serviços previdenciários, isto é, aqueles não pertenciam a nenhuma

CAP ou IAP, quanto a maior parte da população, dispersa pelas áreas rurais do país.

Assim, se mostrava necessária a presença do governo federal nas áreas remotas e

esta política se alinhava com o projeto de uma nova nação, pretendido pelo governo

varguista (FONSECA, 2010).

No entanto, nos primeiros anos de atuação do MESP, houve pouco consenso em

relação a que decisões seriam tomadas para orientar a estrutura dos serviços de saúde

que se consolidaria. Com isso, constata-se que os primeiros anos do ministério foram

marcados por constantes trocas de presidentes, que foram três em quatro anos, e,

consequentemente, por uma manutenção das ações promovidas pelo antigo DNSP.

Somente a partir de 1934, com a promulgação de uma nova constituição e, portanto,

quando Vargas se torna um presidente constituído e o governo passa a ter maior

estabilidade para administrar, é interrompida a inércia que estagnava sobre a saúde

pública (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

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Neste ano, Gustavo Capanema assume a presidência do MESP e realiza uma

reforma que buscará cumprir o objetivo de alcançar todo o país com ações de saúde.

Tal reforma irá montar uma rede articulada de serviços, com centralização normativa, já

que o poder central criaria as normas e os regulamentos para padronização dos

serviços e ficaria responsável por sua coordenação, e descentralização executiva, que

ficaria sob responsabilidade dos estados. À frente da condução do processo destas

significativas mudanças na estrutura da saúde pública estava João de Barros Barreto,

que, em 1937, assumiu a diretoria do Departamento Nacional de Saúde (DNS), principal

setor do ministério responsável pela saúde, e se mostrou importante para a condução e

continuidade das determinações estabelecidas pela reforma (FONSECA, 2010).

A Reforma Capanema, idealizada em 1935 e iniciada em 1937, dividiu-se em

duas principais mudanças. A primeira foi institucional, guiada pela racionalidade

administrativa e fortalecimento do poder central, com a reestruturação do MESP,

transformando-o no Ministério da Educação e Saúde (MES). Foi ampliado o

Departamento Nacional de Saúde, que passou a se chamar Departamento Nacional de

Saúde e Assistência Médico-Social, sob o qual foram inauguradas novas diretorias.

Este departamento passou a coordenar os departamentos estaduais de saúde, que

assumiriam as atividades realizadas pelos municípios, que, por sua vez, não teriam

participação na administração e na prestação dos serviços de saúde (FONSECA, 2010;

ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

A segunda mudança significativa gerada pela reforma caracterizou-se pela

criação dos Serviços Nacionais, que seguiam a lógica campanhista do combate a

doenças específicas. Em 1937 e 1939, respectivamente, surgiram o Serviço Nacional

da Febre Amarela e o Serviço Nacional da Malária do Nordeste, ambos em parceria

com a Fundação Rockfeller. Em 1941, seriam criados os Serviços Nacionais de Saúde,

sendo eles da peste, da tuberculose, do câncer, da lepra, de doenças mentais, de

educação sanitária, de fiscalização da medicina, de saúde dos portos, de bioestatística

e de água e esgotos (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012). Assim, o Brasil foi dividido em oito

regiões, cada uma contendo uma Delegacia Federal de Saúde, de modo a facilitar a

colaboração dos serviços locais com os federais e intensificar a presença do governo

central na saúde do interior do país (HOCHMAN, 2005).

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Além disso, foram criadas as Conferências Nacionais de Saúde (CNS’s), com o

intuito de unir, em nível nacional, todos os estados para a busca de soluções técnicas e

administrativas e permitir controle do governo federal para utilizar recursos financeiros

de maneira equânime entre os estados (HOCHMAN, 2005). A primeira CNS ocorreu em

1941, com a proposta de debater a organização sanitária estatal, a ampliação e

sistematização das campanhas sanitárias, o desenvolvimento de serviços básicos de

saneamento, entre outras (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012). Tais conferências ainda se

mostrariam de grande importância na congregação dos diversos atores relacionados à

saúde e evolução do pensamento sobre saúde no Brasil, com destaque para a 8ª CNS

em 1986, na qual se debateu as bases para construção do Sistema Único de Saúde. O

quadro 4-2 resume as Conferências Nacionais de Saúde que já ocorreram e demonstra

a evolução do debate em saúde no Brasil.

Conferência

Nacional de

Saúde

Ano Temas

1ª 1941 Defesa sanitária, assistência social, proteção da

maternidade, infância e adolescência

2ª 1950 Higiene e segurança do trabalho e prevenção da saúde a

trabalhadores e gestantes

Criação do

Ministério da

Saúde

1953 -

3ª 1963 Proposta inicial de descentralização de saúde

4ª 1967 Recursos humanos necessários às demandas da saúde no

país

5ª 1975

Elaboração de uma política nacional de saúde.

Implementação do Sistema Nacional de Saúde; Programa

de Saúde Materno-infantil; Sistema Nacional de Vigilância

6ª 1977 Controle das grandes endemias e interiorização dos

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serviços

7ª 1980

Implantação e desenvolvimento de serviços básicos de

saúde - Prev Saúde. Extensão das ações de saúde por

meio dos serviços básicos

8ª 1986

Marco da Reforma Sanitária. Saúde com Direitos;

Reformulação do Sistema Nacional de Saúde e

Financiamento Setorial

Constituição

Federal 1988

Saúde definida como um "direito de todos e dever do

Estado"

9ª 1992 Descentralizando e democratizando o conhecimento.

Municipalização é o caminho.

10ª 1996 Construindo um modelo de atenção à saúde para a

qualidade de vida

11ª 2000 Efetivando o SUS: acesso, qualidade e humanização na

atenção à saúde com controle social

12ª 2003

Conferência Sérgio Arouca. Saúde: um direito de todos e

um dever do Estado. A saúde que temos, o SUS que

queremos

13ª 2007 Saúde e qualidade de vida: política de Estado e

desenvolvimento

14ª 2011 Todos usam o SUS! SUS na Seguridade Social – Política

Pública, Patrimônio do Povo Brasileiro

Quadro 4-2 Conferências Nacionais de Saúde

Fontes: CCMS – Centro Cultural do Ministério da Saúde. Disponível em: http://www.ccms.saude.gov.br/sus20anos/mostra2009/aconstituicao.html

CNS – Conselho Nacional de Saúde. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/14cns/historias.html

Outro ponto necessário para tornar efetiva a reforma refere-se ao grande

investimento em formação e especialização de profissionais da saúde pública que iriam

atuar em todo o país, por meio da criação de cursos de especialização, tais como

médico sanitarista, médico clínico, técnico de laboratório, dentista, veterinário,

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enfermeira e guarda sanitário. Além disso, para a admissão em cargos públicos, foi

instituída a exigência de concurso público. Desta forma, por meio da ênfase na técnica,

o governo central de Vargas fortalecia a gestão burocrática e buscava combater a

ingerência na saúde pública, inclusive quando proveniente de interesses políticos locais

(FONSECA, 2010; ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

As políticas de saúde adotadas no Brasil, além de fazerem parte do projeto do

novo governo, também seguiam os temas e diretrizes presentes nos fóruns

internacionais da época, que expunham ideias principalmente defendidas e aplicadas

nos Estados Unidos, por meio da Oficina Sanitária Pan-Americana, como era

denominada a atual Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) (FONSECA, 2010),

que, posteriormente, veio a ser incorporada à Organização Mundial da Saúde (OMS),

organismo ligado à Organização das Nações Unidas (ONU).

Assim, com a influência dos congressos internacionais e dando seguimento ao

plano de interiorização das ações de saúde no Brasil, foi criado em 1942, dentro do

Ministério de Educação e Saúde, o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP)

(HOCHMAN, 2005). O objetivo inicial do SESP era combater a malária e a febre

amarela, de modo a oferecer melhores condições de trabalho aos seringueiros que

extraíam borracha na Amazônia e mineradores do Programa Rio Doce, em Minas

Gerais e Espírito Santo, e do Programa do Mica, na região de Goiás (CAMPOS, 2006).

Em pouco tempo, o órgão expandiu suas atividades para diversos estados das

regiões Norte e Nordeste (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012). Suas ações se voltaram para

o treinamento e qualificação profissional de técnicos e especialistas na área de saúde e

a educação sanitária. Além disso, também buscou-se a criação de uma rede integrada

de serviços, que se concretizaram na construção e administração de escolas de

enfermagem, hospitais, centros e postos de saúde, sistemas de água e esgoto, além de

normatização de técnicas e procedimentos (CAMPOS, 2006; FONSECA, 2010).

O SESP foi financiado pelo Brasil e pelos Estados Unidos, por meio da Fundação

Rockfeller, interessados na borracha e nos minérios durante o período da segunda

guerra mundial. Segundo Campos (2006), apenas na região do Rio Doce o projeto

transcendeu os objetivos bélicos, gerando uma infraestrutura sanitária importante, isto

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é, um legado que posteriormente foi aproveitado pelos municípios. Porém, à parte da

infraestrutura, segundo Fonseca (2010), o SESP deixou um legado de formação de

técnicos e especialistas, além de um modelo de prestação de serviços. Posteriormente,

em 1960, o SESP se transformaria em Fundação Serviço da Saúde Pública (Fsesp), o

que permitiria expansão geográfica de suas atividades (GONZAGA, 2009).

Ao fim do governo de Getulio Vargas (1930-1945), é válido estabelecer uma

síntese parcial referente ao período, pois nele foram definidas as bases do sistema de

saúde do Brasil que se manteriam essencialmente inalteradas pelas décadas seguintes.

O modelo estabelecido mantinha a dicotomia dos serviços de saúde no país, que se

dividiam em medicina previdenciária, que experimentou um grande crescimento no

período, e em saúde pública, que avançou para o interior do país. Além disso, foram

identificadas as necessidades mais urgentes do setor, como a de se investir na

formação e especialização dos profissionais de saúde e implantadas as estratégias

coordenadas para gestão da saúde no Brasil, por meio de um sistema centralizado de

normas e controle de execução. Este modelo centralizador, em que não havia

participação do município nas políticas públicas de saúde, só seria questionado durante

a década de 1950, quando a participação nas políticas públicas de saúde começaria a

ser vista como um elemento integrante do sistema democrático (FONSECA, 2010).

4.3.4 Avanços tecnológicos relativos ao Setor de Saúde

Internacionalmente, este período é marcado pelo pós-segunda guerra mundial,

terminada em 1945, quando o mundo passou a se dividir politicamente entre as duas

nações vitoriosas, os Estados Unidos, com o sistema capitalista, e a União Soviética,

com o sistema socialista. Porém, graças aos esforços de guerra, estimulados e

motivados durante o conflito para se obter a vitória, houve alguns avanços tecnológicos

e científicos consideráveis.

Durante a década de 1940, a penicilina, que havia sido descoberta em 1928 por

Alexander Fleming, passou a ser amplamente utilizada como substância antibiótica

durante a guerra. A penicilina foi o primeiro antibiótico produzido em escala industrial,

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marcando uma nova era na medicina, a era dos antibióticos, por meio dos quais foi

possível reduzir significativamente o número de mortes por infecção (MELO, 1989;

PIRES-ALVES & FALLEIROS, 2010). A Figura 4-1 evidencia a evolução das

descobertas dos principais tipos de medicamentos.

Figura 4-1 Ondas de descobertas de medicamentos

Fonte: (Guimarães & Vianna, 1994)

Na década de 1950, Jonas Salk e Albert Sabin desenvolveram a primeira vacina

capaz de prevenir uma doença causada por um vírus, o da poliomielite. Isto só foi

possível graças à invenção do microscópio eletrônico na década de 1930, que permitiu

a observação dos vírus, não visíveis por meio dos microscópios óticos (MELO, 1989;

PIRES-ALVES & FALLEIROS, 2010).

Houve também avanços na área química que deram subsídios à saúde. O

Dicloro-Difenil-Tricloroetano (DDT), cujas propriedades como inseticida foram definidas

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em 1939, foi largamente utilizado para combater doenças tropicais (PIRES-ALVES &

FALLEIROS, 2010). Na década de 1950, a Organização Pan-Americana de Saúde e a

Organização Mundial de Saúde passaram a promover campanhas para a erradicação

da malária, que incluíam a utilização do DDT, também usado no Brasil com estes fins

(ESCOREL & TEIXEIRA, 2012; PIRES-ALVES & FALLEIROS, 2010).

Outra alteração que começa a se configurar neste período é o aumento da

inserção da tecnologia no diagnóstico e tratamento médicos. A assistência médica

começou a centrar-se na estrutura do hospital, equipado com aparelhos e

equipamentos intensivos e tecnologia, que, paralelamente, estimularam o conhecimento

e a prática médica tornarem-se cada vez mais especializados (PIRES-ALVES &

FALLEIROS, 2010). Em 1940, o ultrassom foi utilizado pela primeira vez na medicina

diagnóstica (SANTOS, AMARAL & TACON, 2012). Em 1971, foi desenvolvida a

tomografia computadorizada que permite mil tonalidades de cinza, contra as quatro do

recurso utilizado até então, o raio-X (PADUAN, 2000). Pouco depois, em 1975, a

ressonância magnética passou a ser aplicada na medicina diagnóstica, permitindo

maiores detalhes que a tomografia e sem a necessidade de aplicação de radiação

(PADUAN, 2000)

Entre os avanços tecnológicos da primeira metade do século XX, pode-se

destacar os aparelhos de diagnóstico baseado em ondas de raio X, descobertas em

1895 e que inauguraram o diagnóstico por imagem, oferecendo ao médico a maior

compreensão clínica do paciente. Outro equipamento é eletrocardiógrafo, que

possibilitou o exame de eletrocardiograma, de grande importância para a análise de

doenças cardíacas. Ainda, no que tange ao trabalho do cirurgião, o desenvolvimento de

diversas técnicas e aparelhos e equipamentos passaram a permitir cirurgias de grande

impacto, que antes não eram possíveis (MELO, 1989).

Segundo Melo (1989), até o início do século XX, o médico utilizava-se de seu

conhecimento individual e, munido de uma gama de produtos farmacêuticos que

cabiam em sua maleta, diagnosticava e tratava o paciente. A partir da metade do

século, o médico passa a fazer parte de uma equipe multidisciplinar de especialistas e

técnicos que trabalham em hospitais com infraestrutura de laboratórios, bancos de

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sangue, tecido e órgãos e uma ampla diversidade de produtos farmacêuticos

disponíveis. Assim, o hospital, que até então era destinado aos indigentes que não

podiam pagar a consulta do médico, passou a ser o centro que reúne os profissionais

de saúde para os tratamentos de alta complexidade.

4.3.5 O mundo pós guerra: novas ideologias ganham espaço

Retomando ao que tange à saúde previdenciária, após a queda do governo

Vargas, o modelo de seguro social, aos poucos, cedeu lugar ao modelo de seguridade

social, que, diferentemente do primeiro, parte do princípio de que o Estado possui

obrigações natas para com todos os cidadãos e não somente aos contribuintes, o que

determina a ele uma intervenção ativa na questão social (OLIVEIRA & TEIXEIRA,

1986). Esta mudança tinha como inspiração ideológica o Plano Beveridge, estabelecido

na Inglaterra durante o pós-segunda guerra mundial, que proporcionava aposentadoria

universal e a criação de um Serviço Nacional de Saúde disponível a toda população,

financiado com recursos fiscais (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012). Tal sistema criado na

Inglaterra se mostrou uma inovação em sistemas de saúde, já que, pela primeira vez,

um país oferecia a toda sua população acesso universal aos serviços de saúde,

característica que marcará o Sistema Único de Saúde, criado décadas depois no Brasil.

Neste contexto, em 1945, há um novo aumento da cobertura dos serviços de

saúde no Brasil, já que os inativos e pensionistas passaram a ser incorporados à

assistência médica previdenciária, além dos ativos e dos dependentes. Além disso, a

constituição de 1946 impôs, como escopo dos serviços de previdência, as assistências

sanitária, hospitalar e médica ao trabalhador e à gestante. Desta forma, consolidou-se a

assistência médica como uma atribuição previdenciária para todos os institutos

(ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

Com a tendência que se seguia e a nova constituição, durante as décadas de 40

e 50, os IAP’s investiram significativamente na assistência médico-hospitalar,

desenvolvendo redes próprias de assistência com grandes e modernos hospitais

públicos e iniciando a configuração de assistência à saúde centrada no hospital,

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conhecido como modelo hospitalocêntrico. Segundo Escorel & Teixeira (2012), até

1948, havia cinco hospitais pertencentes aos IAP’s, passando para nove em 1950, vinte

e oito em 1966 e, em 1978, eram trinta e dois os hospitais próprios do sistema

previdenciário.

Assim, devido aos crescentes gastos com a assistência médico-hospitalar pelos

IAP’s, alguns deles alteraram os regulamentos de modo a elevar o limite permitido a

este tipo de gasto. Além disso, o governo do então presidente Gaspar Dutra (1946-

1951) pressionou o único instituto que ainda não oferecia serviços de saúde, o IAPI

(Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários) a fazê-lo, o que ocorreu,

depois de alguma resistência, em 1950, por meio da compra de serviços de terceiros

(ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

Ademais, em 1949, os Institutos de Aposentadoria e Pensões e Caixas de

Aposentadoria e Pensão se uniram para criar o Serviço de Assistência Médica

Domiciliar de Urgência (Samdu), vinculado à previdência social do trabalhador, mas que

não se limitaria aos segurados. Segundo Mercadante et al. (2002), esse serviço foi uma

grande evolução na assistência à saúde devido a três fatores: a instauração de

atendimento médico domiciliar no setor público, o que antes era exclusividade da

iniciativa privada; financiamento consorciado entre todos os IAP’s, que até então agiam

separadamente; e, principalmente, atendimento universal à população, apesar de

oferecer atendimento apenas em casos de urgência para aqueles que não pertenciam

ao sistema previdenciário.

Nos anos seguintes, outros avanços ocorreram no sentido de ampliar e unificar

os serviços de saúde ofertados pelos IAP’s e CAP’s. Em 1951, os serviços de combate

à tuberculose foram compulsoriamente unificados no sistema previdenciário, enquanto

os de outras doenças com risco à sociedade tiveram sua unificação facultativa. No ano

seguinte, por meio de decreto, as CAP’s passaram a ser obrigadas a oferecer

assistência médica a partos normais (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

Em 1954, foi aprovado o Regulamento Geral dos Institutos de Aposentadoria e

Pensões, que uniformizou a todos os IAP’s as conquistas alcançadas, até então,

individualmente por cada instituto. Ainda, em 1955, foi criado o Serviço de Assistência

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Médica da Previdência Social (SAMPS), um serviço comum a todos os IAP’s que

ampliava a oferta de hospitais e ambulatórios para a assistência médica (ESCOREL &

TEIXEIRA, 2012; REIS, 2010).

Já em 1960, foi promulgada a Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS), que

uniformizou os benefícios e direitos dos segurados de todos os IAP’s no padrão dos

melhores institutos, elevando o nível geral dos serviços. Além disso, a lei determinou

mudanças na estrutura de financiamento do sistema previdenciário. Todos os

trabalhadores passariam a pagar o valor de 8%, que era a maior quantia paga à época,

e as empresas desembolsariam quantia igual à dos funcionários, significando um

aumento do valor arrecadado, que, porém, costumava ser sonegado (ESCOREL &

TEIXEIRA, 2012). Outra mudança se refere ao Estado, que oficialmente deixaria de

participar do modelo tripartite, mesmo que, na prática, ele já não assumisse a

responsabilidade deste encargo, e seria responsável apenas pelos gastos de

administração e pessoal, o que representaria cerca de 14% dos gastos totais do

sistema nos anos seguintes (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

Vale ressaltar que, segundo Pires-Alves & Falleiros (2010), o avanço tecnológico

dos hospitais, experimentado neste período, gerava um distanciamento ainda maior

daqueles que não tinham acesso à medicina curativa, restrita aos contribuintes da

previdência, e os que podiam se beneficiar de tais desenvolvimentos. Neste contexto,

ainda no período pós-segunda guerra, novas ideologias oriundas principalmente dos

Estados Unidos surgiam e atribuíam importância cada vez maior aos municípios e à

própria sociedade como atores integrantes na promoção da saúde, tais como a

medicina preventiva, a medicina comunitária e a medicina social.

A medicina preventiva criava um contraponto à escalada de custos que a

medicina curativa, centrada no hospital, estava enfrentando. Este aumento de custos

devia-se, em grande parte, à introdução de novas tecnologias, que exigiam mais tempo

de formação dos profissionais, a compra de equipamentos e a manutenção de mão de

obra para tarefas auxiliares. Já a medicina comunitária preconizava a participação de

recursos e mão de obra locais, a ser qualificada por meio de rápidos treinamentos, para

controle e gestão dos serviços de saúde. Por sua vez, a medicina social agregava à

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área da saúde os conhecimentos sobre a estrutura social e condições de vida da

população para compreensão da sua situação de saúde e definição de políticas que

valorizassem o indivíduo e a coletividade (PIRES-ALVES & FALLEIROS, 2010). Estas

novas correntes de pensamento ganharão força no Brasil principalmente a partir da

década de 1980 e servirão de base teórica para a Reforma Sanitária, que levará ao

desenvolvimento do Sistema Único de Saúde (ESCOREL E TEIXEIRA, 2012;

BAPTISTA, 1996).

No Brasil, a década de 1950 é marcada pela ideologia de desenvolvimentismo,

com a eleição e volta de Vargas ao poder em 1951, com fortes investimentos em

infraestrutura e a implementação do Plano SALTE (Saúde, Alimentação, Transporte e

Energia), que fora concebido ainda no governo anterior, de Gaspar Dutra. Apesar

destes investimentos, Escorel & Teixeira (2012) destacam que, dos 34 hospitais

construídos no Vale do São Francisco, que abrange parte da região Nordeste e de

Minas Gerais, apenas quatro se mantinham ativos após dez anos de construção,

enquanto outros funcionavam como escolas e a maioria já perecia devido à falta de

conservação.

Neste contexto, com lideranças como o médico Mário Magalhães e o

parasitologista Samuel Pessoa, a corrente de pensamento do sanitarismo

desenvolvimentista começava a se propagar. Na visão dessa corrente de pensamento,

existia uma forte relação entre desenvolvimento econômico e saúde. Além disso, seus

ideólogos criticavam a organização dos serviços de saúde pública por ser verticalizada

e orientada por doenças e, por fim, defendiam a participação dos municípios na

organização destes serviços. Este movimento ganhava força, tendo seu ápice em 1963,

na III Conferência Nacional de Saúde (FONSECA, 2010).

No entanto, as aspirações de reformas quanto à descentralização das políticas

de saúde foram cerceadas devido ao golpe militar de 1964, que assumiu o poder no

Brasil e estabeleceu a manutenção da centralização nas decisões (FONSECA, 2010).

Assim, a busca da descentralização das decisões e dos serviços de saúde só seria

retomada na década de 1980, culminando com a criação do Sistema Único de Saúde,

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que também traria avanços no que tange à oferta de serviços de assistência médica a

toda população, conforme será abordado à frente.

4.3.6 Criação do Ministério da Saúde e a estrutura administrativa da Saúde

Porém, ainda no contexto de questionamentos quanto à atuação, estrutura e

função do Estado na saúde da década de 1950, era debatida a possibilidade da criação

de um Ministério da Saúde (MS). À época, havia posicionamentos distintos sobre a

estrutura de saúde que o Estado deveria assumir. Enquanto alguns defendiam a

unificação dos serviços de previdência e de saúde pública sob a régia de um mesmo

ministério, outros defendiam a manutenção da segregação (PONTE, 2010f).

Assim, após alguns anos de debate, em 1953, o Ministério da Educação e Saúde

foi desmembrado em Ministério da Saúde e Ministério da Educação. No entanto, a

criação do novo ministério não significou mudanças significativas nas políticas de saúde

que vinham sendo executadas (POLIGNANO, 2001; PERILLO, 2006; PONTE, 2010F;

ESCOREL & TEIXEIRA, 2012), já que a medicina previdenciária ficou regida pelo então

criado Ministério da Previdência, fruto da separação do antigo MTIC, cuja outra parte se

tornou o Ministério do Trabalho (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

Após a criação do Ministério da Saúde, o debate girou em torno das atribuições

do novo ministério. O primeiro ministro da saúde do Brasil, Miguel Couto Filho, defendia

que o Estado deveria levar à população rural, não contemplada pela medicina

previdenciária, os serviços de assistência médica, em vez de o poder público atuar

apenas no combate a endemias e epidemias. No entanto, tal proposta não foi levada à

frente e a atuação do ministério manteve-se inalterada em relação à proposta do antigo

Departamento Nacional de Saúde (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012).

Ainda no que diz respeito à estrutura institucional do Ministério da Saúde, em

1956, no governo de Juscelino Kubistchek (1956-1961), foi criado o Departamento

Nacional de Endemias Rurais (DNERu), que unificou a coordenação de todos os órgãos

de combate e controle de doenças específicas, que eram 15 à época. No entanto, a

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tentativa de unificar as ações de erradicação de doenças em um só órgão, cuja

administração até então era separada por tipo de moléstia, não foi bem sucedida, já

que, apesar de extintas as coordenadorias, os técnicos e gestores ainda mantiveram,

em grande parte, suas rotinas separadas (ESCOREL, 2000).

Além disso, no mesmo período em que o DNERu atuava, isto é, nas décadas de

50 e 60, o SESP expandia seus serviços com uma administração isolada, sem

cooperação de trabalhos e intercâmbios de funcionários. Devido à inexistência de uma

coordenação que gerisse ambos os órgãos, muitas de suas medidas eram superpostas

(ESCOREL & TEIXEIRA, 2012), gerando ineficiência no sistema. Apesar da falta de

sincronia e sinergia, em 1958 foi criado um plano que levaria, anos mais tarde, à

erradicação da varíola no Brasil (ESCOREL & TEIXEIRA, 2012), sendo esta a primeira

doença totalmente erradicada pela humanidade, segundo declaração da OMS de 1980.

Após a renúncia do sucessor de Juscelino Kubistchek, Jânio Quadros, em 1961,

que ficou menos de um ano na presidência, houve um período conturbado em que os

militares buscaram impedir a assunção de seu vice João Goulart à presidência,

decretando estado de sítio. Com os eventos que se sucederam, João Goulart assumiu a

presidência (1961-1964) sob a forma do então aprovado regime parlamentarista, que

seria retomado ao regime presidencialista por meio de um plebiscito em 1963. No

entanto, em março de 1964, houve o golpe militar, que resultou na tomada do Poder

Executivo pelos militares, que se estenderiam no governo até 1985 (ESCOREL &

TEIXEIRA, 2012).

Com o início do regime militar no Brasil, há uma mudança geral no contexto

político brasileiro, em que, progressivamente, o poder executivo, comandado pelos

militares, passou a suprimir os demais poderes e a oposição política. Os militares

comandaram o país por meio de Atos Institucionais (AI’s), que ampliaram os poderes do

executivo e centralizaram o poder, tornando as eleições para presidente e

governadores indireta, acrescido de os prefeitos serem indicados pelos governadores

(ESCOREL, 2012).

Na economia, o Brasil vivia o chamado “milagre econômico”, em que, por meio

da facilidade de acesso ao capital estrangeiro em um período do mundo em que não

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havia crise, o PIB cresceu a cerca de 10% ao ano do período de 1967 a 1973. Isto

ocorreu em parte, porque o Brasil buscou alterar sua economia, antes baseada em

importações, para uma economia baseada em exportações, que quadruplicaram neste

período. No entanto, devido à primeira crise do petróleo em 1973, a estratégia de

exportações do governo ficou comprometida e não houve sustentabilidade no

crescimento da economia brasileira. Ademais, apesar do forte crescimento percebido no

período do milagre econômico, também houve um aumento da concentração de renda

no país, sendo o discurso do governo o de “esperar o bolo crescer para depois dividir”

(ESCOREL, 2012).

No que tange às políticas sociais, seguiu-se a tendência de uniformização e

ampliação da cobertura da assistência previdenciária. Em 1966, foi criado o Instituto

Nacional de Previdência Social (INPS), que unificou todos os IAP’s, com exceção do

Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado (Ipase). Desta forma,

houve uma centralização administrativa e financeira do sistema previdenciário, assim

como uma padronização dos benefícios para os trabalhadores segurados (ESCOREL,

2012).

Nesta nova configuração administrativa, o Estado se eximia por completo da

participação do financiamento do sistema previdenciário, cuja capitalização se reverteu

para novos mecanismos de arrecadação compulsória, como o Fundo de Garantia por

Tempo de Serviço (FGTS), criado em 1967, o Programa de Integração Social (PIS) e o

Programa de Formação de Patrimônio do Servidor Público (Pasep), esses últimos

criados em 1970 (ESCOREL, 2012).

Assim, os anos seguintes à criação do INPS se caracterizam por um alargamento

da cobertura dos serviços de saúde da previdência. Em 1967, os acidentes de trabalho

foram incluídos no escopo das ações previdenciárias. Em 1971, foram criados o

Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (Prorural) e o Fundo de Assistência ao

Trabalhador Rural (Funrural), levando pela primeira vez os serviços previdenciários aos

trabalhadores rurais. Em 1972, as empregadas domésticas foram incorporadas à

cobertura e, no ano seguinte, foi a vez dos trabalhadores autônomos (ESCOREL,

2012).

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Desta forma, o sistema de saúde previdenciário à época se caracterizava por três

segmentos dos serviços: o Ipase, para os servidores do Estado; o INPS, para

trabalhadores urbanos; e o Funrural para trabalhadores rurais. Além disso, aqueles que

não participavam do sistema de previdência social poderiam acessar a atenção à saúde

em centros e postos de saúde pública, caso se encaixassem no perfil dos programas

governamentais existentes (materno-infantil, controle da tuberculose, da hanseníase,

etc); ainda, a filantropia em Santas Casas e consultórios e clínicas privadas também se

mostravam opções alternativas (ESCOREL, 2012).

Além disso, vale destacar que, em algumas cidades do Brasil, principalmente Rio

de Janeiro e São Paulo, o poder público, ao longo da história destas cidades, criou uma

infraestrutura de hospitais públicos que atuava de forma independente à previdência e

atendia a todos. Como exemplo, pode-se citar o Hospital das Clínicas de São Paulo, o

Hospital São Paulo, o Hospital Souza Aguiar, Hospital Miguel Couto, entre outros, além

dos hospitais públicos universitários existentes em diversas cidades do Brasil, que

serviam como hospitais de ensino e pesquisa, mas que também atendiam à população

como um todo.

4.3.6.1 Oferta de serviços de saúde privados

A partir da unificação dos IAP’s por meio da criação do INPS e alargamento da

cobertura previdenciária ocorrida neste período, todos os trabalhadores com carteira

assinada passaram a fazer parte do sistema previdenciário. Assim, houve a

necessidade de aumento da oferta de serviços, de modo a suprir a demanda por

serviços de saúde. O modelo adotado foi o mesmo do extinto Instituto de Aposentadoria

e Pensões dos Industriários (IAPI), isto é, por meio da contratação de serviços privados

(POLIGNANO, 2001; PERILLO, 2006; ESCOREL, 2012). Este modelo foi corroborado

pelas constituições de 1967 e 1969, que preconizavam os ministérios como órgãos

prioritariamente normativos, em vez de executivos. Assim, com essa estratégia de

contratação de serviços de saúde prestados por terceiros, foi estimulado o crescimento

de uma rede privada de serviços médicos e laboratoriais (ESCOREL, 2012). O Gráfico

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4-1 mostra a evolução do número de leitos públicos e privados no Brasil, indicando um

crescimento a partir de meados da década de 60.

Gráfico 4-1 Leitos para internação públicos e privados no Brasil entre 1935 e 2009

Fonte: 1935-1971:Público e privado na política de assistência à saúde no Brasil (MENICUCCI, 2007)

1976-2009: Estatísticas de Saúde – Assistência Médico Sanitária (AMS – IBGE);

Ainda, a Figura 4-2 evidencia a evolução do número de hospitais no Brasil,

público e privados.

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Fonte: Estatísticas do século XX – IBGE

A rede privada fornecedora de serviços de saúde para a previdência era

credenciada e remunerada por Unidades de Serviço (US’s), o que tornava o sistema

frágil no que tange às facilidades de corrupção e ingerência. Uma vez que as tabelas de

preços dos pagamentos pelos serviços médicos eram baixas, pacientes e

procedimentos eram inventados para gerar pagamentos inapropriados e procedimentos

mais caros eram priorizados em detrimento dos mais baratos também aplicáveis, como,

por exemplo, a priorização do parto por cesariana ao parto normal (ESCOREL, 2012).

O Quadro 4-3 resume como funcionavam os serviços de saúde, evidenciando a

dicotomia entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Previdência e Assistência

Social.

Figura 4-2 Crescimento do número de hospitais públicos e privados no Brasil

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Quadro 4-3 Dicotomia entre serviços públicos de saúde e serviços previdenciários de saúde

Fonte: (Piola et al., 2009)

Adicionalmente, à época, se iniciava e expandia a modalidade de plano de

saúde. Este modelo trata-se de um convênio em que a empresa negocia diretamente

com operadoras de planos de saúde e, assim, à época, a empresa passava assumir a

responsabilidade da saúde de seus funcionários sem o intermédio da previdência

social, o que permitia à empresa a isenção da contribuição ao INPS. Assim, cresceu o

número de organizações que ofereciam este serviço, assim como os tipos de

modalidade de convênio, como as medicinas de grupo, as cooperativas médicas e,

posteriormente, as seguradoras (BAHIA & SCHEFFER, 2012).

As de medicina de grupo são originalmente empresas com fins lucrativos e que

iniciaram suas atividades a partir de empreendimentos de pequenos grupos de

médicos. A partir dos anos de 1980, começaram a diversificar suas atividades de

convênio para benefícios como vale-alimentação e para área de ensino, além de

comprarem ou criarem suas próprias seguradoras. Algumas de maior porte também

iniciaram outros negócios na área da saúde como construção, reforma e aquisição e

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administração de unidades hospitalares, ambulatoriais e laboratoriais, além de

transporte e cuidados domiciliares de pacientes (BAHIA & SCHEFFER, 2012).

As cooperativas médicas, também conhecidas como Unimeds, surgiram

inicialmente em oposição às empresas de medicinas de grupo, configurando-se como

empresas sem fins lucrativos. Seus fundadores buscavam preservar a autonomia dos

médicos, que percebiam as medicinas de grupo como uma ameaça de assalariamento

e dependência. As Unimeds vivenciaram uma forte expansão, principalmente em

cidades do interior de médio e pequeno portes. A partir das décadas de 80 e 90, essas

empresas se distanciaram cada vez mais do princípio de não lucratividade, abrindo

seguradoras e empresas de créditos, além de uma holding, a Unimed Participações,

para gerir o grupo (MENICUCCI, 2007; BAHIA & SCHEFFER, 2012).

As seguradoras passaram a oferecer convênios de saúde principalmente a partir

da promulgação legal de 1989 da Superintendência de Seguros Privados (Susep) que

permitiu o referenciamento de serviços de saúde, separadamente do serviço típico das

seguradoras de reembolso financeiro. Desde então, tais empresas, que são ou não

vinculadas a grandes bancos, vêm crescendo sua participação no mercado de planos

de saúde e aumentando sua base de clientes (BAHIA & SCHEFFER, 2012).

O Gráfico 4-2 mostra o aumento do número de beneficiários de planos de saúde

no Brasil, assim como a parcela da população coberta por plano de saúde.

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Gráfico 4-2: Número de Beneficiários de Planos de Saúde no Brasil

Fonte: ANS (2014). Disponível em <http://www.ans.gov.br/>

4.3.7 O Movimento da Reforma Sanitária

No que se refere à saúde pública, a partir da intensificação do programa de

erradicação da varíola em 1967, lançado inicialmente pela OMS em 1959 e

reestruturado em 1965, o Brasil começava a desenvolver sua estrutura de vacinação

para todo o território nacional. Assim, em 1969, foi criada a Superintendência de

Campanhas da Saúde Pública (Sucam), por meio da fusão entre o DNERu e os

programas de campanhas de varíola e malária (FONSECA, 2001; PONTE, 2010g). Este

órgão agia com a estratégia do sanitarismo campanhista, por meio dos guardas

sanitários, buscando controlar e erradicar doenças endêmicas. Posteriormente, em

1990, a Sucam seria unida com a Fundação Serviço de Saúde Pública (Fsesp),

organização oriunda do SESP, e ambos se transformariam na Fundação Nacional de

Saúde (Funasa) (ESCOREL, 2012).

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Devido aos bons resultados das campanhas de vacinação e ao estímulo da

tendência internacional de promover a vacinação, foi criada em 1971 a autarquia de

Central de Medicamentos (Ceme), que daria apoio à produção de medicamentos e

vacinas e, posteriormente, daria suporte ao desenvolvimento do Programa Nacional de

Imunizações, criado em 1973. Este programa teve grande destaque com a

implementação da estratégia dos Dias Nacionais de Vacinação, que se mostraram

bastante eficazes no combate às doenças, em especial na campanha iniciada em 1980

contra a poliomielite, erradicada no Brasil em 1989 (PONTE, 2010g; CCMS, 2009).

Ainda, com o movimento de estímulo à imunização, houve uma revitalização no

Instituto Oswaldo Cruz, com a criação do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos

Bio-Manguinhos em 1976. Além disso, com o episódio de 1981, em que constatou-se

contaminação das vacinas contra poliomielite importadas da Iugoslávia, foi criado o

Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde em (INCQS) da Fiocruz para

assegurar a qualidade e segurança das vacinas e foi lançado o Programa de Auto-

Suficiência Nacional de Imunobiológicos (Pasni), em 1985, que estimulou a produção

nacional de imunizadores (PONTE, 2010g).

Em 1974, o general Ernesto Geisel assume o poder e seu governo (1974-1979),

no âmbito político, apesar de algumas ações mais radicais de minorias militares, é

marcado por um abrandamento do poder ditatorial e uma busca da volta do

estabelecimento de mediações para com a sociedade civil, no sentido de se iniciar o

processo de abertura política e, assim, de redemocratização (BAPTISTA, 1996;

ESCOREL, 2012). Desta forma, algumas medidas foram tomadas, como o fim da

censura prévia nos grandes meios de comunicação e o restabelecimento do habeas

corpus para presos de crimes políticos. Este processo de volta à democracia seria feito

gradualmente, com grande controle do Estado, de modo a não arriscar a ordem imposta

pelos militares (REIS, 2010b; ESCOREL, 2012).

Ainda, a abertura ocorrida neste período iria propiciar um fortalecimento de um

movimento que resgatava as ideologias oriundas das teorias de medicina preventiva,

medicina comunitária e medicina social. Este movimento ficou conhecido como Reforma

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Sanitária e terá papel fundamental na construção do Sistema Único de Saúde

(BAPTISTA, 1996; REIS, 2010b; ESCOREL, 2012).

No âmbito econômico, a partir de 1974, o Brasil deixava de viver os anos do

milagre econômico e passava a enfrentar situações como aumento da inflação,

diminuição do poder aquisitivo dos salários, diminuição da atividade produtiva e

crescimento da dívida externa (ESCOREL, 2012). Assim, para legitimar o governo

militar em um período de crise econômica, com alta inflação e achatamento de salários,

o governo Geisel, diferentemente de seus antecessores, não prioriza apenas o

desenvolvimento econômico e institucional, mas passa a adotar medidas também no

âmbito do desenvolvimento social (BAPTISTA, 1996; ESCOREL, 2012).

Além disso, para buscar resolver a crise financeira e estimular a economia, cujo

ritmo de crescimento diminuía após o período do milagre econômico, o governo Geisel

lançou, no final de 1974, o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND). Este plano,

no âmbito da área da saúde, fortaleceu a divisão já existente entre saúde pública,

comandada pelo Ministério da Saúde, e assistência previdenciária, que passaria a ser

conduzida pelo então criado Ministério de Previdência e Assistência Social (MPAS)

(BAPTISTA, 1996; ESCOREL, 2012).

Ademais, o governo Geisel, assim como seus antecessores, priorizou a estrutura

de medicina curativa do MPAS, baseada em hospitalização, fazendo com que a

situação sanitária se tornasse mais precária. Tal fato pode ser percebido com a

ocorrência de uma epidemia de meningite e aumento dos índices de mortalidade infantil

em São Paulo, em um período de rápido crescimento da população das cidades devido

à migração das áreas rurais, o que gerou críticas ao governo (ESCOREL, 2012;

PONTE, 2010g). O Gráfico 4-3 exibe a proporção das populações rural e urbana no

Brasil a partir de meados do século XX.

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Gráfico 4-3: Distribuição da população brasileira entre rural e urbana

Fonte: Ipea (2014). Disponível em <http://www.ipea.gov.br/portal/>

Assim, dentro do MPAS, foram criadas algumas reformas institucionais que

proporcionaram o crescimento da cobertura e da oferta de serviços de saúde, das quais

se destacam os convênios MEC/MPAS a partir de 1974, o Plano de Pronta Ação (PPA)

em 1974, o Conselho de Desenvolvimento Social (CDS) em 1974, o Fundo de Apoio ao

Desenvolvimento Social (FAS) em 1974, e o Sistema Nacional de Previdência e

Assistência Social (Sinpas), em 1977.

Os convênios firmados entre o Ministério da Educação e Cultura (MEC) e o

MPAS, sendo o primeiro assinado em 1974, alteraram a relação entre os hospitais de

ensino médico e a previdência social. Até então, a assistência social contratava os

serviços dos hospitais universitários da mesma maneira que os privados, por meio das

unidades de serviço (US). A partir dos novos acordos, foi criada a modalidade de

convênio global, com o intuito de integrar os hospitais de ensino aos programas de

assistência médica da previdência social (ESCOREL, 2012).

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Ainda em 1974, foi lançado o Plano de Pronta Ação, capitalizado com recursos

do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social. Este plano tinha como objetivo

universalizar o atendimento médico, especialmente o atendimento emergencial, que

seria financiado pelo governo, tanto na rede pública quanto na rede privada,

independentemente do vínculo previdenciário do paciente. Desta forma, houve um

crescimento nas três linhas de relacionamento da previdência social, isto é, os serviços

hospitalares e ambulatoriais próprios, os serviços contratados de hospitais e médicos

credenciados e os serviços conveniados com empresas, sindicatos, universidades,

prefeituras e governos estaduais (ESCOREL, 2012).

O Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social, por sua vez, foi criado para

financiar os programas e projetos da área social tanto públicos quanto privados, tendo

estes recursos sido alocados principalmente nas áreas de saúde e educação. Tal

financiamento se caracterizava por ser a fundo perdido ou com taxas subsidiadas pelo

governo e eram oriundos principalmente da Loteria Esportiva. Desta forma, o FAS

serviu majoritariamente para construção e compra de equipamentos de hospitais

privados, dando suporte a um expressivo crescimento da rede de serviços de saúde

(MANSUR, 2001; PONTE, 2010h; ESCOREL, 2012).

O Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (Sinpas), por sua vez,

seguia a fórmula racionalizadora e constituía-se de três institutos, sendo eles o Instituto

Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), criado em 1978 para

administrar melhor o sistema que crescia e se tornava mais complexo; o INPS,

responsável pela destinação dos benefícios; e o Iapas, que assumiu o controle

financeiro (BAPTISTA, 1996; ESCOREL, 2012).

Além disso, ainda sob o comando do Sinpas, estavam duas fundações, sendo

elas a Legião Brasileira de Assistência (LBA), criada em 1942 e vinculada à previdência

em 1977, e a Fundação de Amparo e Bem-Estar do Menor (FUNABEM). Ademais, o

Sinpas englobava a autarquia Central de Medicamentos (Ceme) e a Empresa de

Processamento de Dados da Previdência Social (DATAPREV), que representou uma

modernização da administração previdenciária, pois conseguiu evidenciar fraudes e

bloquear parte das contas hospitalares, (ESCOREL, 2012).

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A partir da V Conferência Nacional de Saúde, ocorrida em 1975, o Ministério da

Saúde buscou aumentar a cobertura de atuação, difundindo os programas de saúde

tradicionais e estendendo suas ações a áreas rurais. Assim, fora do escopo do MPAS,

foram criados o Sistema Nacional de Saúde (SNS), em 1975, e o Programa de

Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS), em 1976 (BAPTISTA, 1996;

ESCOREL, 2012). O PIASS tinha como diretrizes a organização de uma estrutura

básica de saúde em municípios com até 20.000 habitantes, por meio de profissionais de

nível auxiliar da própria comunidade (PUGIN & NASCIMENTO, 1996) e conseguiu

abranger os serviços básicos de saúde para dez estados da região Nordeste

(ESCOREL, 2012).

Além disso, o Sistema Nacional de Saúde (SNS), apresentado na V CNS, tinha

como objetivo organizar e estabelecer as competências dos diferentes órgãos, das três

esferas de poder, nacional, estadual e municipal, no âmbito da saúde. No nível federal,

ao Ministério da Saúde ficou atribuída a responsabilidade da elaboração de uma política

nacional de saúde e de planos de proteção à saúde, coordenação da vigilância

epidemiológica em todo o país, entre outras (PUGIN & NASCIMENTO, 1996).

Junto a outras reponsabilidades, o Ministério da Previdência e Assistência Social

assumiu a formulação e coordenação nacional de planos de assistência médica

individual; fiscalização dos serviços médicos contratados; normatização, em conjunto

com o Ministério da Saúde, desses serviços prestados; e distribuição gratuita ou

subvencionada de medicamentos à população. O Ministério da Educação encarregou-

se da formação e habilitação de profissionais do setor da saúde, o Ministério do

Trabalho assumiu atividades relacionadas à higiene e segurança no trabalho e o

Ministério do Interior responsabilizou-se por desenvolver o saneamento ambiental e

básico (PUGIN & NASCIMENTO, 1996).

O Conselho de Desenvolvimento Social (CDS) assumiu a responsabilidade de

comandar a articulação dos ministérios no que tange à área social, conforme

determinado pelo plano do SNS. Além disso, o CDS também desempenhou um papel

importante quanto à regulamentação das aplicações dos recursos do FAS (BAPTISTA,

1996; ESCOREL, 2012). Assim, nesta conjuntura, segundo Baptista (1996), pode-se

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afirmar que, pela primeira vez, o Brasil vivenciava a possibilidade de estruturação de

uma política nacional de saúde, organizada por meio do Sistema Nacional de Saúde.

No final da década de 1970 e durante a década de 1980, a crise econômica

brasileira se agravou. Por sua vez, o sistema previdenciário também enfrentava

dificuldades financeiras, devido a um crescente déficit anual de suas contas. A crise

previdenciária não se limitava aos recursos financeiros, mas também era de cunho

ideológico, já que a assistência médica estava atrelada à contribuição do trabalhador,

deixando de lado aqueles que não possuíam vínculo formal de trabalho, além de

ocorrer também no âmbito político-institucional, devido às falhas na prestação da

assistência e no controle dos recursos. Neste contexto, o movimento reformista

avançava e se estruturava cada vez mais (BAPTISTA, 1996).

No âmbito internacional, o principal fórum mundial responsável pela

disseminação e busca do atingimento da meta de saúde para todos até o ano de 2000

foi a Conferência Internacional de Atenção Primária à Saúde, que renuiu, em 1978, 134

países dos cinco continentes. Nesta conferência, criticou-se o modelo hospitalocêntrico

intensivo em tecnologia e verticalizado por doença e se definiu a Atenção Primária

como a estratégia fundamental para se alcançar a meta proposta (PIRES-ALVES,

2010). A própria Declaração da Alma-Ata definiu o que é atenção primária à saúde,

também conhecida como atenção básica à saúde, como segue:

“Os cuidados primários de saúde são cuidados

essenciais de saúde baseados em métodos

e tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentadas e

socialmente aceitáveis, colocadas ao alcance universal de

indivíduos e famílias da comunidade, mediante sua plena

participação e a um custo que a comunidade e o país possam

manter em cada fase de seu desenvolvimento, no espírito de

autoconfiança e autodeterminação. Fazem parte integrante tanto

do sistema de saúde do país, do qual constituem a função

central e o foco principal, quanto do desenvolvimento social e

econômico global da comunidade. Representam o primeiro nível

de contato dos indivíduos, da família e da comunidade com o

sistema nacional de saúde, pelo qual os cuidados de saúde são

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levados o mais proximamente possível aos lugares onde

pessoas vivem e trabalham, e constituem o primeiro elemento de

um continuado processo de assistência à saúde.” (WHO,

1978)

Neste contexto, em 1979, no primeiro ano do governo do presidente general

Figueiredo (1979-1985), houve o I Simpósio sobre Política Nacional de Saúde da

Câmara dos Deputados. Neste evento, as principais propostas da Reforma Sanitária

foram apresentadas e debatidas, como a descentralização, a regionalização, a relação

público-privado, a universalização, a integração, a unificação e a hierarquização

(BAPTISTA, 1996).

Assim, este simpósio serviu de base para a discussão da VII CNS, ocorrida em

1980, que disseminou em nível nacional o debate sobre a implantação de um sistema

de saúde universal, que seria operacionalizado pelo Prev-Saúde, proposto nesta

conferência. No entanto, o Prev-Saúde, planejado para ser administrado pelo Ministério

da Saúde e pelo Ministério da Previdência e Assistência Social e que consistiria em

uma ampliação do PIASS, tendo como meta o alcance da saúde para todos até o ano

2000, em acordo com os fóruns internacionais da época, nunca saiu do papel

(BAPTISTA, 1996).

Apesar de o Prev-Saúde não ter se verificado na prática, o debate sobre uma

reforma no sistema de saúde progrediu e, com isso, medidas relacionadas a uma

melhor estruturação do sistema de saúde foram implementadas nos anos seguintes.

Em 1981, foi criado o Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária

(CONASP) com o objetivo de reorganizar a atenção médica, realocar recursos,

combater fraudes e conter custos (POLIGNANO, 2001; GRIGÓRIO, 2002; ESCOREL,

2012).

Desta forma, o CONASP realizou um diagnóstico da situação do sistema social

no país. Foram identificadas algumas distorções como a baixa integração entre os

diversos prestadores de serviços de saúde, inadequação dos serviços à realidade,

recursos financeiros insuficientes e mal planejados e prioridade a serviços contratados,

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que foram constatados como superproduzidos. Em suma, tal relatório definia a rede de

saúde administrada pelo Inamps como ineficiente, desintegrada e complexa

(BAPTISTA, 1996). Assim, a partir desta verificação, o CONASP, em 1982, elaborou um

plano de propostas para a reestruturação do sistema, do qual se destacam o Programa

das Ações Integradas de Saúde (PAIS), a Programação e Orçamentação Integrada

(POI) e o Sistema de Assistência Médico-Hospitalar da Previdência Social (SAMHPS)

(BAPTISTA, 1996; GRIGÓRIO, 2002).

Em 1983, com o Programa de Ações Integradas de Saúde (PAIS), inicia-se o

processo de universalização da assistência médica no Brasil, por meio da integração e

racionalização dos serviços de saúde, com uma convergência ministerial entre

Ministério da Saúde e Ministério da Previdência e Assistência Social. Isto ocorria, pois

os serviços médicos das prefeituras, sob a régia do Ministério da Saúde, passariam a

ter o atendimento à toda população e financiado pelo Inamps, órgão integrante do

Ministério da Previdência e Assistência Social (BAPTISTA, 1996). Com o PAIS, as

diretrizes de universalização, acessibilidade, descentralização e integralidade e

participação comunitária do movimento da Reforma Sanitária começam a ocupar os

espaços institucionais e prevalecerem durante o processo de redemocratização do país

(FALLEIROS & LIMA, 2010).

A Programação e Orçamentação Integrada (POI) consistiu em um conjunto de

mecanismos com o objetivo de programar e orçamentar os recursos destinados à

saúde. Assim, buscava-se integrar a política de recursos do Inamps com os serviços

prestados por estados e municípios. Por sua vez, o Sistema de Assistência Médico-

Hospitalar da Previdência Social (SAMHPS) alterava a forma de contratação dos

serviços hospitalares, deixando de se efetuarem por Unidade de Serviço (US) e

passando a ser por Autorização de Internação Hospitalar (AIH), isto é, conjuntos de

procedimentos agregados (BAPTISTA, 1996; ESCOREL, 2012).

Durante o governo de Figueiredo (1979-1985), o Brasil experimentou uma

transição negociada para a democracia. Neste período, ocorreu o movimento de ampla

mobilização popular das “Diretas já”, que exigia a democracia de volta e a escolha

direta do presidente por meio de voto popular. Neste contexto, em 1985, Tancredo

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Neves assume a presidência da república por votos indiretos como primeiro presidente

civil desde o período de governo militar. No âmbito da saúde, sua proposta alinhava- se

com os princípios da Reforma Sanitária, como a universalização do acesso à saúde, a

unificação do setor, ainda dividido em saúde pública e saúde previdenciária, e a

descentralização político-administrativa, com maior controle social (BAPTISTA, 1996).

Neste período, verifica-se uma acentuação da polarização ideológica entre os

“reformistas da saúde” e os “reformistas da previdência”. Os primeiros estavam

alinhados com a proposta da Reforma Sanitária e defendiam que o Inamps fosse

incorporado ao Ministério da Saúde, formando um novo Ministério da Saúde que

passaria a assumir tanto as funções médico-assistenciais quanto as de saúde coletiva.

Os últimos, apesar de concordarem com a proposição da universalização, entendiam

que esta deveria ser alcançada por meio serviços previdenciários, a partir de uma

unificação “por baixo” destes serviços, assim como uma modernização da máquina

previdenciária, de modo a atingir maior agilidade e eficiência na atuação do Inamps

(BAPTISTA, 1996). Assim, o Quadro 4-4 demonstra os grupos existentes à época que

debatiam a reforma e seus respectivos pontos de vista (BAPTISTA, 1997).

Quadro 4-4 Grupos e Propostas da Reforma Sanitária

Grupos/Propostas Dirigentes do

MPAS

Reformistas da

Previdência

(maioria Inamps)

Reformistas da

Saúde

1. Universalizar a

assistência

Não. A

assistência deve

ser restrita aos

previdenciários.

Sim. Todos têm

direito à saúde.

Sim. Saúde é

direito de todos e

dever do Estado.

2. Unificar o setor

saúde - Ministério

Único

Não. Saúde e

Previdência

mantém

organizações

Sim, mas

gradativamente. A

reforma deve ser

“de baixo para

Sim, reforma “pelo

alto”, com a

transferência

imediata do

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101

separadas. cima”, sem a

incorporação

imediata do

Inamps.

Inamps para a

saúde.

3. Descentralizar

as ações

Sim. Como forma

de

operacionalizar e

racionalizar o

sistema.

Sim. Estratégia de

racionalização do

sistema e de

unificação.

Sim. Estratégia

para unificação do

sistema.

4. Integrar níveis

de ação

Sim.

Racionalização.

Sim. Racionaliza e

unifica.

Sim. Estratégia

para unificação.

5. Integralidade da

assistência.

Não. A

assistência à

saúde é

oferecida aos

previdenciários

conforme regras

já existentes.

Sim. Em todos os

níveis.

Sim, em todos os

níveis de

assistência.

Fonte: Baptista (1997)

Neste contexto de embate ideológico, por pressão dos reformistas da saúde, foi

convocada uma nova Conferência Nacional de Saúde. Assim, em 1986, houve a VIII

Conferência Nacional de Saúde que, pela primeira vez, contou com a participação de

usuários do sistema de saúde e grupos sociais de variados segmentos, totalizando

cerca de cinco mil pessoas. Como resultado final da conferência, houve a reformulação

do Sistema Nacional de Saúde, que passaria a se constituir de um Sistema Único de

Saúde, já que os serviços de saúde previdenciários seriam separados das demais

funções da previdência social e seriam integrados ao novo sistema universal de saúde,

sob o comando do Ministério da Saúde (BAPTISTA, 1996).

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A VIII CNS foi um marco de grandes alterações na estrutura da saúde do país, já

que foi aprovada a unificação do sistema de saúde brasileiro, foi ampliado o conceito de

saúde, determinado como “direito do cidadão e dever do Estado”, e foram elaboradas

novas bases de financiamento do sistema, além da criação de instâncias institucionais

de participação social (BAPTISTA, 1996; ESCOREL, 2012).

Como principais desdobramentos da VIII CNS, houve a criação da Comissão

Nacional da Reforma Sanitária (CNRS), que elaboraria mais detalhadamente as

propostas discutidas na conferência com o objetivo final de apresentá-las à Assembleia

Nacional Constituinte (ANC), de modo a compor o texto que definiria a política de saúde

na nova constituição de 1988 (BAPTISTA, 1996; ESCOREL, 2012). Assim, o relatório

final da VIII CNS configura-se na sistematização do movimento da Reforma Sanitária

(PAIM, 2008).

Como parte do processo de transição e unificação do sistema de saúde, em

1987 foram criados o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), que

serviria como uma “ponte” entre o sistema da época e o futuro Sistema Único de Saúde

(SUS), constituído na legislação de 1988 e implementado em 1990, durante o governo

de Fernando Collor, por meio da Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90) e da Lei

Complementar 8142/90 (BAPTISTA, 1997; ESCOREL, 2012).

4.4 Fase 4 - Sistema Único de Saúde e a Saúde Suplementar (1988-

2014)

Em 1988, é promulgada a nova constituição, que estabelece criação de um

Sistema Único de Saúde (SUS), que é efetivamente criado a partir da sua

regulamentação definida pelas Leis Orgânicas da Saúde de 1990. Com a implantação

do SUS, a cobertura de saúde à população vivencia um grande salto de crescimento,

tendo em vista que não mais havia necessidade de um vínculo de trabalho para se

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obter acesso aos serviços de assistência públicos (NORONHA, LIMA & MACHADO,

2012; POLIGNANO, 2001).

Para atender à demanda, o SUS foi definido em sua concepção não somente

pelos serviços públicos de saúde, mas também por serviços complementares, que

poderiam vir a ser contratados da iniciativa privada, isto é, oriundos do Sistema de

Saúde Suplementar (NORONHA, LIMA & MACHADO, 2012). Assim, toda a população

brasileira passou a ter acesso aos serviços do SUS, gratuitos e financiados por

recursos fiscais e pelo Sistema Suplementar, contratados diretamente ou por meio de

convênios com planos de saúde.

A Figura 4-3 demonstra a evolução do acesso aos serviços de saúde e

respectivas formas de financiamento. Vale destacar que o eixo referente aos Serviços

gratuitos por meio de filantropia está em cor gradiente, pois, segundo Girardi et al.

(2001), os hospitais filantrópicos nunca deixaram de cobrar daqueles que podiam pagar.

Adicionalmente, a partir do século XX, o hospital filantrópico deixa de ser um prestador

essencialmente assistencial, ligado à religiosidade, que focava prioritariamente na cura

espiritual, e passa a ser uma instituição médico hospitalar, em alguns casos, com

tecnologia de ponta. Vale destacar ainda que, segundo a Lei 12.101 de 2009, para ser

considerado um hospital filantrópico, além de a instituição dever ser sem fins lucrativos,

60% ou mais da prestação de seus serviços devem ser feitos por meio do SUS.

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Figura 4-3 Evolução do acesso e fontes de financiamento dos serviços de saúde

As bases de funcionamento do SUS são construídas em cima de seus princípios

e diretrizes, que estão definidos em três documentos oficiais: a Constituição Federal de

1988, que define a saúde, como um elo integrante da seguridade social, junto com a

previdência social e a assistência social; a Lei 8.080 de 19 de setembro de 1990,

também chamada de Lei Orgânica da Saúde, que determina a organização e regulação

das ações e serviços de saúde; e a Lei 8.142 de 28 de dezembro de 1990, que dispõe

sobre o formato da participação popular no SUS e a as transferências

intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde (MATTA, 2010).

Nos anos seguintes, o SUS passou por um processo de implementação e

consolidação. Desta forma, algumas modificações em sua estrutura operacional

ocorreram, porém sem alteração de sua base ideológica. O Sistema Único de Saúde é

construído a partir de cinco princípios constitucionais definidos na Constituição de 1988,

oriundos do movimento da Reforma Sanitária e da VIII Conferência Nacional de Saúde.

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Os princípios que estruturam e orientam o SUS são: a universalidade, a integralidade, a

equidade, a descentralização e a participação popular (MATTA, 2010).

A Universalidade como princípio do Sistema Único de Saúde está explícita na

Constituição de 1988 pelos dizeres “a saúde é um direito de todos e um dever do

Estado”. Desta forma, entende-se que o acesso à atenção e à assistência à saúde não

está vinculada a nenhum tipo de pré-requisito ou exigência. Tal princípio rompe

diretamente com o sistema dicotômico visualizado até então no Brasil, em que parte da

população tinha acesso a serviços médicos por meio da previdência social, enquanto

outros dependiam de políticas de saúde pública, em geral limitadas a ações de saúde

coletiva e a programadas específicos, e dos serviços oriundos de filantropia (MATTA,

2010; NORONHA, LIMA & MACHADO, 2012).

A Equidade determina que nenhum tipo de discriminação, como cor, gênero,

religião ou renda, pode ser aplicada no acesso aos serviços de saúde. Desta forma, as

técnicas empregadas e o acesso do usuário devem ser baseadas exclusivamente em

aspectos apenas relacionados à saúde, não podendo haver nenhum outro tipo de

critério para a tomada de decisão (NORONHA, LIMA & MACHADO, 2012).

A integralidade prevê que as ações e serviços de saúde devem ser contínuos e

envolver todos os tipos de atenção, desde da preventiva até a curativa, desde a

individual até a coletiva e desde a de baixa complexidade até a de alta complexidade.

Desta forma, os gestores do SUS, de todos os níveis do poder executivo, devem buscar

a integração entre esses tipos de ações, com prioridade às ações preventivas, mas sem

prejuízo das ações assistenciais. Este princípio também representa grande impacto no

sentido de alterar a herança da dicotomia que existiu por muitas décadas do século XX

entre a assistência médica previdenciária, essencialmente individual e curativa, e as

ações de saúde pública, de cunho prioritariamente coletivo e preventivo (MATTA, 2010;

NORONHA, LIMA & MACHADO, 2012).

A regionalização e hierarquização preveem que os serviços do SUS serão

oferecidos por meio de uma rede de atenção à saúde, distribuída geograficamente, mas

com um comando único, para cada esfera de poder, municipal, estadual e federal. Além

disso, cada região deve ter os seus perfis populacional, epidemiológico e social

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mapeados, de modo que os serviços de saúde atendam às necessidades de cada

região. Além disso, os serviços assistenciais de saúde se categorizam em nível básico,

que consiste em procedimentos mais simples e frequentes, e em níveis mais

complexos, para procedimentos menos frequentes e mais onerosos, que exijam

profissionais especializados e maior intensidade de aplicação de tecnologias (MATTA,

2010; NORONHA, LIMA & MACHADO, 2012).

A Descentralização determina que o sistema contará com uma distribuição do

poder político, das responsabilidades e dos recursos, prioritariamente para os estados e

municípios, fazendo com que a esfera federal repasse a maior parte dos recursos a

eles, em vez de aplica-los diretamente na prestação de serviços. Cada esfera conta

com seu órgão diretor específico, sendo a União com o Ministério da Saúde; os estados

e Distrito Federal as secretarias estaduais de saúde ou órgão equivalente; e os

municípios com as secretarias municipais de saúde (MATTA, 2010).

Adicionalmente, ainda no que tange a estrutura de descentralização do SUS, são

determinadas as instâncias responsáveis pela representação, monitoramento e

pactuação política e administrativa nas três esferas administrativas, que são: Conselho

Nacional de Secretaria Municipais de Saúde (Conasems), Conselho Nacional de

Secretários de Saúde (Conass), Comissão Intergestores Bipartite (CIB), responsável

por estabelecer pactos entre municípios e estados, e Comissão Intergestores Tripartite

(CIT), que estabelece pactos entre as três esferas do poder, além das Comissões de

Gestores Regionais, também chamadas de Colegiados de Gestão Regional (MATTA,

2010; NORONHA, LIMA & MACHADO, 2012).

Ainda, como forma de fiscalização do sistema, existem o Conselho Nacional de

Saúde (CNS) e os Conselhos de Saúde municipais e estaduais. O Conselho Nacional

de Saúde é composto por 48 conselheiros, dos quais metade são representantes de

entidades e dos movimentos sociais de usuários do SUS e a outra metade são

membros representantes de entidades de profissionais de saúde. O CNS é responsável

por propor, deliberar, monitorar e avaliar políticas e o plano de saúde adotados nas três

esferas de governo. Ademais, há 26 conselhos estaduais, um conselho do Distrito

Federal e 5.562 conselhos municipais de saúde, que são responsáveis pelo controle

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das políticas de saúde e também contam com a participação da sociedade (CCMS,

2009). Desta forma, a participação popular no processo decisório é um caráter que

reforça a descentralização e a democracia.

Deste modo, a formação institucional do SUS se configura conforme explicita a

Figura 4-4.

Figura 4-4 Configuração institucional do SUS

Fonte: Noronha, Lima & Machado (2012)

No que se refere à prestação de serviços, operacionalmente, o sistema de

atendimento do SUS funciona, preferencialmente, com o ingresso do usuário por meio

do nível básico de atenção, representados, por exemplo, pelos agentes comunitários de

saúde, equipes do Programa Saúde da Família e postos de saúde. De acordo com o

princípio de integralidade, para casos que exijam maior nível de complexidade no

atendimento, os profissionais da atenção básica irão encaminhar o paciente a centros

especializados e adequadamente equipados para o atendimento, por meio de um

sistema de referência. Após o tratamento e estabilização do quadro clínico, se

necessário, o paciente é reencaminhado para um centro de menor complexidade para

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acompanhamento e continuidade do tratamento, por meio do sistema de

contrarreferência.

Apesar do princípio de descentralização do SUS, ou seja, de priorização da

prestação dos serviços de saúde aos municípios, é frequente que municípios pequenos

não possuam centros de média e alta complexidade, como hospitais, por exemplo, que

demandam altos custos de construção e manutenção. Desta forma, é prática comum

que municípios pequenos estabeleçam entre si um consórcio, de modo que aqueles

que não ofereçam alguns serviços especializados e de maior complexidade

encaminhem seus cidadãos que necessitem de atendimento para municípios próximos

que ofereçam tais serviços, que são financiados pelo consórcio (MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 1997).

4.4.1 O processo de consolidação do SUS

Nos anos seguintes a sua criação, o SUS sofreria algumas mudanças visando a

uma consolidação do sistema e, principalmente, do princípio de descentralização. Isto

ocorreu por meio das Normas Operacionais Básicas (NOB’s), das quais se destacam as

NOB 01/91, de 1991, a NOB 01/93 de 1993 e a NOB 01/96 de 1996 e, posteriormente,

pelos Pactos pela Saúde de 2006.

A NOB 01/91, alterou a forma dos repasses financeiros do governo federal aos

estados e municípios. Até então, os repasses eram automáticos e baseados em cinco

variáveis: população, perfil epidemiológico e demográfico, capacidade instalada,

complexidade da rede de prestação de serviços de saúde e contrapartida financeira.

Apesar disso, na prática, o critério da população prevalecia (MANSUR, 2001). Com a

NOB 01/91, esses repasses passaram a ocorrer em função da produção de serviços de

saúde, isto é, por procedimento (MANSUR, 2001).

A NOB 01/93, alterou a forma de gestão do sistema, instituindo as Comissões

Intergestores Tripartite (CIT) e Intergestores Bipartite (CIB), além de estabelecer três

possibilidades de gestão para estados e municípios: incipiente, parcial ou semiplena, de

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acordo com o nível organizacional e de comprometimento com SUS e estabelecendo

níveis progressivos de transferência de responsabilidades e autonomia de gestão

(MANSUR, 2001).

Por sua vez, a NOB 01/96 alterou novamente os modelos de gestão, substituindo

os anteriores por dois novos: Gestão Plena de Atenção Básica, por meio do qual o

município passaria a se responsabilizar pela assistência básica prestadas tanto por

unidades próprias quanto por provedores contratados; e Gestão Plena do Sistema

Municipal, em que o município seria totalmente responsável pelos serviços

ambulatoriais e hospitalares, inclusive quanto ao valor de cada procedimento e outras

questões relacionadas ao pagamento de serviços (MANSUR, 2001), elevando ainda

mais o grau de autonomia dos gestores municipais do SUS.

Além disso, a NOB 01/96 também modificou a forma do repasse financeiro do

governo federal aos estados e municípios, que passou a ser por meio do então criado

Piso de Atenção Básica (PAB), que define um valor fixo per capita a ser repassado,

visando à melhor distribuição dos recursos da União (MANSUR, 2001; BRASIL, 2006).

Segundo Piola (1998), antes do PAB, havia discrepâncias significativas do repasse

federal a municípios, já que, em 1996, 70% do total de municípios do Brasil havia

recebido menos de R$10,00 per capita para custear as ações básicas de saúde e,

destes, metade havia recebido menos de R$4,99, enquanto os outros 30% dos

municípios receberam de R$10,00 a R$18,00.

Ainda, ficou determinado que podem ser acrescidos valores ao PAB em função

de programas governamentais de atenção básica, como Programa de Agentes

Comunitários de Saúde (PACS); Programa de Saúde da Família (PSF); Assistência

Farmacêutica básica; Programa de combate as Carências Nutricionais; ações básicas

de vigilância sanitária; ações básicas de vigilância epidemiológica e ambiental, sem que

haja acúmulo dos valores na existência de programas com estratégias semelhantes

(POLIGNANO, 2001) e obedecendo a um teto máximo (MANSUR, 2001; BRASIL,

2006).

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A Figura 4-5 mostra a evolução de 1998 a 2006 da distribuição de recursos

financeiros da Atenção Básica pelo Brasil, evidenciando uma intensificação da

descentralização das decisões de sua aplicação.

Figura 4-5 Distribuição per capita dos Recursos Financeiros da Atenção Básica em reais/hab/ano no Brasil entre 1998 e 2006

Fonte: DATASUS (2014)

O Programa Saúde da Família foi criado em 1994 e surgiu como uma evolução

da experiência bem sucedida, na região Nordeste, do Programa de Agentes

Comunitários de Saúde, criado em 1991 e que reduziu os indicadores de mortalidade

materna e infantil. Este programa tinha como objetivo expandir a cobertura dos serviços

de saúde para áreas com população de baixa renda, delimitadas pelo Mapa da Fome

do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) (PONTE et al. 2010).

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A partir de 1996, o Programa da Saúde da Família passou a ser adotado não

apenas como um programa, mas como uma estratégia capaz de alterar o modelo

assistencial do país em acordo com os princípios do SUS, denominando-se Estratégia

de Saúde da Família (ESF). Assim, as equipes de saúde da família que

operacionalizariam a estratégia foram definidas como responsáveis uma área

geográfica que contém de três mil a quatro mil habitantes (PORTARIA Nº 648, 2006) e

a equipe mínima é formada por um médico generalista, um enfermeiro, um auxiliar ou

técnico de enfermagem e agentes comunitários de saúde. Ainda, cada equipe é

composta por até doze agentes comunitários de saúde e cada um é responsável por

acompanhar de 100 a 250 famílias, com o limite de 750 pessoas (PORTARIA Nº 2.027,

2011).

No que tange à formação do agente comunitário de saúde, segundo Ponte et al.

(2010), ainda há desafios na sua profissionalização. Segundo a Lei 11.350 de 2006, é

requisitado a conclusão do ensino fundamental para a formação como ACS. Esta

mesma lei ainda consolida a profissão, submetendo-a ao regime da CLT e exige

concurso público para a admissão destes profissionais. Até maio de 2003, apenas

23,3% dos 170.423 agentes tinham vínculo de trabalho regido pela CLT. Segundo

dados do Departamento de Atenção Básica (DAB) do Ministério da Saúde, em abril de

2014 havia 326.093 agentes credenciados, que cobrem 64,82% da população

brasileira.

Devido a dificuldades de financiamento do SUS, principalmente depois da

desvinculação com o Inamps em 1993, foi criado, em 1997, um novo imposto, a

Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), com o intuito de

assegurar recursos financeiros para a Saúde. Este imposto era provisório e tinha como

principal objetivo consolidar a estruturação do SUS em sua fase inicial.

No entanto, os recursos adicionais a serem obtidos pela CPMF não se

concretizaram, já que o orçamento da União para a saúde foi diminuído na mesma

proporção dos novos recursos do imposto (PERILLO, 2006; POLIGNANO, 2001). Além

da diminuição da destinação dos recursos do orçamento da União, os recursos da

CPMF não foram integralmente destinados à saúde, sendo direcionados para outras

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áreas, gerando uma diminuição do financiamento total do SUS (POLIGNANO, 2001). O

relato de um dos entrevistados descreve como este processo ocorreu.

Eu fui diretora administrativa do hospital do Andaraí no período de 95 a 97, o Adib Jatene foi embora e que foi outra coisa, né. O Adib Jatene nessa época tinha feito um planejamento para fazer a implantação, resolver a situação SUS e deixar resolvido assim: a estrutura, o recurso humano e a logística, depois era continuidade. Para isso o Ministério do Planejamento disse que não tinha dinheiro, porque o custo era altíssimo e como ia fazer isso? Tudo tinha que andar exatamente assim paulatinamente, arrumar a estrutura. Aí já rolou a história da CPMF, e o que culminou a saída do Jatene do Ministério da Saúde, foi porque, quando ele fez a proposta para o congresso e tudo mais, todo mundo achou maravilhoso: “Ó, maravilhoso!” e era um tempo, era por um tempo. Era um empréstimo que a própria população, a sociedade estava fazendo para botar um sistema de saúde decente, que era o retorno para ela mesma. Só que quando essas planilhas vão ao congresso, os deputados veem aquilo, aí “os zoião” cresceu: "Não, isso é muito dinheiro para a Saúde", aí começa a “brigaiada” e tudo mais. Conclusão: ele disse que se não fosse o dinheiro todo... Ele tem até o livro escrito, ele mandou para o diretor do hospital, que era diretora administrativa, ele mandou de presente. (...) Ele conta essa história e ele diz o seguinte: “se o dinheiro não for, toda a planilha que eu elaborei é para fazer o SUS acontecer, daí em diante, depois que tiver tudo organizado, tiver material, recursos humanos, estrutura...” está certo. O congresso não deixou passar, desse bolo ele fatiou e apenas 30% desse valor, que eu já nem me recordo agora, seria revertido para o sistema de saúde. Isso fez com que Jatene renunciasse ao Ministério da Saúde. Ele disse que se não fosse a proposta dele, ele também não aceitaria, porque ele sabia que não ia dar certo. Daí ele renunciou e não foi mesmo e a gente ficou pagando CPMF pelo tempo X, essa história toda e o SUS continuou do jeito que está. E, cada vez mais, ele era fatiado. Porque não foi mesmo, 30% já ia para a previdência social, o outro tanto ia... Isso sem contar os desvios de dinheiro que teve, da própria previdência social. Hoje temos o maior rombo aí na previdência social por conta do dinheiro que foi desviado. A ponte Rio-Niterói mesmo foi construída pelo Mário Andreoza com o dinheiro de lá e nunca o governo repôs. E por aí vai. (ENTREVISTADO#10)

Por outro lado, um avanço no que se refere ao financiamento do sistema público

de saúde no Brasil ocorreu em 2000, quando foi aprovada a Emenda Constitucional

número 29, que impõe valores mínimos a serem destinados para a Saúde por estados e

municípios. Com a emenda, os estados devem destinar ao menos 12% de seus

recursos orçamentários para o setor e, por sua vez, os munícipios 15% (BRASIL, 2000).

Apesar desse avanço, apenas em 2011, quando foi sancionada a lei que regulamenta a

emenda, é que os seus benefícios foram mais eficazes, uma vez que foram vedados

gastos que não eram diretamente ligados à saúde, mas que entravam no cálculo dos

estados e municípios para o atingimento da meta mínima.

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No que tange à regulamentação do sistema de Saúde, em 1999 foi criada a

Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), vinculada ao Ministério da Saúde,

com o objetivo de exercer o controle sanitário de produtos e serviços, como

medicamentos, alimentos, cosméticos e serviços de saúde. Além disso, também

vinculada ao Ministério da Saúde, em 2000, foi criada a Agência Nacional de Saúde

Suplementar (ANS), com a função de regular as operadoras de planos de saúde e

normatizar as ações relacionadas aos prestadores de serviços da saúde suplementar.

Como continuação do processo de consolidação do SUS, em 2006, foram

lançados os Pactos pela Saúde, que se dividem em três: pela Gestão, pela Vida e em

Defesa do SUS. Os Pactos pela Gestão do SUS estabelecem as responsabilidades de

cada ente federado de maneira clara, fortalecendo a gestão compartilhada do SUS.

Assim, este Pacto promove a descentralização radical para estados e municípios,

reitera a participação e controle social e define diretrizes para o sistema de

financiamento público (BRASIL, 2006).

Os Pactos pela Vida consistem em um compromisso entre os gestores do SUS

em relação a prioridades que impactam a saúde da população brasileira e devem ser

definidos por meio de metas nacionais, estaduais, regionais ou municipais. São seis as

prioridades: saúde do idoso; controle do câncer de colo de útero e de mama; redução

da mortalidade infantil e materna; fortalecimento da capacidade de respostas às

doenças emergentes e endemias, com ênfase na dengue, hanseníase, tuberculose,

malária e influenza; promoção da saúde; e fortalecimento da atenção básica (BRASIL,

2006).

Por sua vez, os Pactos em Defesa do SUS definem duas diretrizes principais:

“expressar os compromissos entre os gestores do SUS com a consolidação do

processo da Reforma Sanitária Brasileira, explicitada na defesa dos princípios do

Sistema Único de Saúde e que se encontram pactuados e inscritos na Constituição” e

“desenvolver e articular ações, no seu âmbito de competência e em conjunto com os

demais gestores, que visem a qualificar e assegurar o Sistema Único de Saúde como

política pública” (BRASIL, 2006).

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5 Análise

A partir dos dados primários e secundários recolhidos, foram identificados os

fatores que se relacionam aos desafios do crescimento do setor de Saúde e como estes

desafios se comportaram ao longo das quatro fases. Vale destacar que não foram

identificados dados o suficiente para se analisar o desafio de Empreendedorismo do

setor de Saúde no Brasil.

5.1 Os Desafios de Crescimento do Setor de Saúde no Brasil

Conforme explicitado no capítulo de Método, o setor de Saúde, no presente

estudo, foi representado conforme a Figura 5-1. Desta forma, considera-se que há

fatores oriundos de fontes externas ao setor de Saúde, o que consiste no Ambiente do

setor. Um player que está relacionado ao setor de Saúde, mas que não pertence a ele é

o Estado brasileiro, que é uma das fontes de recursos mais importantes para o setor,

uma vez que financia o Sistema Único de Saúde.

Adicionalmente, apesar de depender das ações do setor de Saúde, o surgimento

de doenças, relevantes em algumas fases do setor, será considerado um desafio a ser

enfrentado oriundo do ambiente natural, uma vez que a origem da existência das

doenças não está situada no setor de Saúde do Brasil.

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Figura 5-1 Os players do setor de Saúde no Brasil

5.1.1 Desafio da Navegação no Ambiente

5.1.1.1 Desafio da Navegação no Ambiente por Player

O Quadro 5-1 tem o objetivo de sintetizar como se deu a evolução do ambiente

do setor de Saúde no Brasil, discriminando os ambientes de tarefas, institucional e

natural, classificando-os como piedoso, desafiador ou inóspito, ao longo dos quatro

períodos do setor, para os três tipos de players que se evidenciaram como os mais

relevantes: prestadores de serviços privados de saúde, prestadores de serviços

públicos de saúde e operadoras de planos de saúde.

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Quadro 5-1 Síntese do Desafio de Navegação do Ambiente

*Após a criação da ANS, em 2000.

Durante o período dos antecedentes do setor de Saúde no Brasil, o principal

desafio de navegação no ambiente consistia nas ações de prevenção a doenças. Como

resposta a este desafio, a Coroa portuguesa estabeleceu a Provedoria-mor, que focava

suas ações na profilaxia da cidade como um todo e consistiam principalmente de

prevenção e combate a epidemias, à salubridade da cidade, às quarentenas de

doentes, fiscalização dos gêneros alimentícios e fiscalização dos portos. Apesar da

existência desta instância, não foram encontradas evidências, nesta fase, de que o

setor conseguia conter a proliferação de doenças no país, o que o caracteriza como

inóspito.

Ainda durante o período dos antecedentes do setor, no que se refere ao

ambiente institucional, constata-se que havia um sistema de regulação aplicado pelo

governo português. Para controlar a prestação de serviços de saúde à época, que se

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dava em grande parte pelos profissionais das artes de curar, a Coroa portuguesa

estabeleceu a Fisicatura-mor que, com auxílio de seus comissários, era responsável por

conceder a licença para a prática de ações de saúde. Em casos infração, a fisicatura

tinha o poder de aplicar multas e outras penalidades. No entanto, há evidências de que,

apesar da regulação existente, havia baixa fiscalização sobre os serviços de saúde,

tornando o ambiente institucional um ambiente piedoso.

Adicionalmente, o ambiente de tarefas era caracterizado por profissionais das

artes de curar, que praticavam seus serviços sob pagamento, e por hospitais

filantrópicos, que atendiam àqueles que não eram capazes de pagar. A necessidade de

atendimento por parte dos pacientes fazia com que mesmo os profissionais sem

qualificação formal ou conhecimento teórico tivessem demanda para seus serviços, com

baixa distinção em relação aos profissionais com maior qualificação, como os físicos,

que eram poucos. Desta forma, pode-se considerar que o ambiente de tarefas era

piedoso.

No entanto, a partir da primeira fase do setor, a profissão de médico passou a

ganhar maior legitimidade, com a criação das faculdades médicas do Rio de Janeiro e

da Bahia e, principalmente, a partir da criação da Academia Imperial de Medicina. Desta

forma, o ambiente de tarefas se tornou desafiador, principalmente para aqueles que não

contavam com conhecimentos teóricos e qualificações, uma vez que o médico passou a

se tornar referência no que diz respeito aos assuntos de saúde.

Adicionalmente, o ambiente institucional deixou de ser piedoso e passou a ser

um ambiente desafiador. Isto ocorreu devido à chegada da Família Real ao Brasil, que

reestruturou os órgãos fiscalizadores, que passaram a atuar com maior ênfase do que

anteriormente. Como exemplo desta mudança, destaca-se a dissolução da Junta

Protomedicato e o reestabelecimento da Fisicatura-mor, da Cirurgia-mor e da

Provedoria-mor, que passaram a ter sede no Brasil. No final da primeira fase, a

proibição em 1890 da atuação dos profissionais que praticavam o curandeirismo é mais

um exemplo de que o ambiente institucional deixou de ser piedoso.

Também na Fase 1, foram identificadas diversas evidências de que o setor de

Saúde no Brasil ainda não era capaz de lidar adequadamente com as pressões

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externas do ambiente natural. Marcadamente, o setor apresentava com dificuldades de

controlar as epidemias, responsáveis pela morte de parte significativa da população e

por transformar as principais cidades brasileiras em locais considerados insalubres,

afugentando inclusive turistas e mão de obra estrangeiros, além de prejudicar o

comércio internacional, base da economia à época, uma vez que os navios de comércio

recusavam-se a aportar no Brasil.

Ainda nesta fase, parece haver o aprimoramento de respostas ativas ao desafio

de navegação no ambiente, uma vez que o poder público passou a buscar o

monitoramento do ambiente, de modo a prevenir epidemias e problemas de saúde.

Evidências desse tipo de resposta podem ser identificadas na criação da Junta Vacínica

da Corte, em 1811, e do estabelecimento, ainda na primeira metade do século XIX, da

polícia médica, para controle das condições sanitárias.

Porém, apesar de haver tentativas de respostas às pressões do ambiente

natural, essas iniciativas não foram bem-sucedidas. Em 1846, houve reconhecimento

do poder público de que a Junta Vacínica não estava desempenhando bons resultados,

o que fez com que o órgão fosse reformulado e transformado no Instituto Vacínico do

Império. Por sua vez, a polícia médica não conseguiu aprofundar e difundir o

conhecimento sobre as questões medico-sanitárias no país, não moldando com

sucesso o ambiente por praticamente toda a Fase 1, uma vez que até o início do século

XX, ocorreram diversas epidemias, como a de febre amarela, a de varíola, a de peste

bubônica.

Apenas no final do período da primeira fase, no início do século XX, quando

houve a Reforma Pereira Passos no Rio de Janeiro e quando Oswaldo Cruz assumiu a

diretoria do Departamento Geral de Saúde Pública, o ambiente insalubre no Brasil

começa a ser controlado com sucesso nas cidades. Com uma visão do estado da arte

sobre saúde pública à época, Oswaldo Cruz combateu os vetores das doenças, o que

gerou resultados expressivos.

No que se refere ao meio rural do Brasil, as expedições científicas realizadas

entre 1912 e 1917 constataram que a ausência de ações de saúde do Estado no interior

do país permitia que parte significativa da população fosse acometida por inúmeras

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doenças, gerando quadros de endemias. Desta forma, verifica-se que, apesar de

avanços conquistados em zonas urbanas no que tange à navegação do ambiente

natural, apenas na segunda fase é que o Brasil irá conseguir moldar o quadro sanitário

do país, de modo a reduzir a manifestação de doenças infectocontagiosas, o que

caracteriza o ambiente natural como inóspito no período da primeira fase.

Durante a segunda fase da Saúde no Brasil, o setor obteve grandes avanços no

que tange à navegação no ambiente natural, uma vez que foram estabelecidos órgãos

de controle sanitário e campanhas de prevenção contra doenças. Algumas das

principais iniciativas deste período foram o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP),

os Serviços Nacionais de Saúde e a criação do Ministério da Saúde, que passou a ser

responsável pelas ações de saúde coletiva no país. A partir da década de 1970, o

Programa Nacional de Imunizações também ajudou o setor de Saúde no Brasil a

combater a proliferação de doenças infectocontagiosas, por meio de campanhas de

vacinação em massa.

Desta forma, verifica-se que, durante a segunda fase do setor, houve respostas

ativas no que se refere ao desafio da navegação no ambiente natural, de modo que as

doenças infectocontagiosas, que assolaram a população durante a primeira fase,

passaram a diminuir seu índice de mortalidade no país. A Figura 5-2 demonstra a

queda proporcional dos óbitos causados pelas doenças infecciosas e parasitárias no

Brasil.

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Figura 5-2 Mortalidade proporcional segundo causas, para capitais de Estados. Brasil, 1930 a 2004

Fonte: Malta, Cezario & Moura (2006)

No entanto, conforme ainda demonstra a Figura 5-2, houve um crescimento

relativo da proporção de mortes causadas por doenças crônicas no Brasil, isto é, as

doenças do aparelho respiratório, do aparelho circulatório e as neoplasias (cânceres),

que se tornaram as principais causas de morte no país, junto com as causas externas

(acidentes e violências). Assim, verifica-se que o setor, apesar de ter moldado com

sucesso a ameaça das doenças infectocontagiosas, ainda não foi capaz de resolver a

ameaça proveniente das doenças crônicas, uma vez que este índice cresceu durante a

terceira fase e continua elevado durante o período da quarta fase do setor, sugerindo

um crescimento também no número absoluto de pessoas com esses tipos de doenças,

tendo em vista que a população cresceu.

Neste sentido, o relato a seguir indica a mudança do perfil epidemiológico, assim

como a alteração das principais doenças causadoras de morte no Brasil.

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E aí, a gente vai começar a se defrontar com o quê? Com a evolução da tecnologia, com a maior sobrevida que a população ganha. Por que, o que aconteceu? A sociedade como um todo, no Brasil e no mundo, teve um ganho de ter uma sobrevida maior, mas tem um autor francês que diz o seguinte: “a Saúde não tem preço, mas a medicina tem um custo”. E, do outro lado, essa sobrevida, esse ganho, porque todos nós queremos viver mais, né. Pelo menos aqui a gente sabe o que está acontecendo. Em contrapartida, isso levou ao Estado, que era o Brasil ou os outros países, que você já deve ter ouvido falar, a se defrontar com um novo momento. Primeiro: uma mudança epidemiológica dessa sociedade. As pessoas viviam menos, você tinha uma incidência de doenças infectocontagiosas, então as pessoas morriam por infecções, etc. E, com a mudança desse perfil, das pessoas viverem mais, elas passam a viver em um novo perfil epidemiológico, que são as doenças degenerativas. Surge a hipertensão, o diabetes, a obesidade e, a partir daí, desse tripé, as doenças cardiovasculares, as doenças neurológicas e essas pessoas, que viviam em média 60 anos passam a viver em média agora 80 anos, já se começa a pensar em pessoas centenárias. Esse perfil epidemiológico, para o Sistema de Saúde, ele tem uma importância muito grande. (...) Pelo seguinte, Felipe, olha só. Vamos tentar fazer dois tempos aqui, olha aqui. As pessoas viviam aqui até 60 anos. Agora está se vivendo até 75. E aqui já está se falando em 85, 90. Então, aqui você tinha doenças infectocontagiosas, hoje o Brasil está com a malária controlada, a própria aids é controlada, poliomielite é controlada, aquelas doenças infantis são controladas, a mortalidade infantil diminuiu. Programas em que se atuou e se preparou. Aqui, começam as doenças degenerativas, essas que eu te disse, obesidade, hipertensão, diabetes, cardiovasculares, neurológicas. E aí, a forma com que você tem de construir serviços de saúde, treinar profissionais, preparar a sociedade é uma aqui. Aqui já é outra. A qualificação profissional é diferente, o tipo de estruturas hospitalares é diferente, o foco é diferente. Você começa a ter que desenvolver mais o que se chama de atenção básica de saúde, os programas de prevenção. Então, muda. E aqui? Você vai ter que se preparar para pessoas de longevidade. Aqui mexe, inclusive, com a arquitetura desde a sua casa até a construção de um hospital. Isso aqui, esse perfil, você tem um perfil para um financiamento. Aqui, você tem outro e aqui terá outro. Robert ***, que foi Prêmio Nobel da Economia, ele diz o seguinte: “a Saúde deixou de ser um tema assistencial, então atender, social, que envolve a sociedade, para ser um tema econômico”. Esse é o tripé hoje onde se finca a sociedade, os sistemas de saúde. Por quê? Porque eles interferem na economia dos países. (ENTREVISTADO#22)

No entanto, ainda no que tange à prevenção de doenças, em muitos casos, o

poder público parece falhar ao estabelecer um bom serviço de proteção à saúde da

população, o pode ser verificado na questão do saneamento básico no Brasil. Um dos

entrevistados ressalta a precariedade do sistema de filtragem da água em uma cidade

brasileira e a consequência disso no hospital da cidade.

Então tem isso e falta de investimento absurda em estação de tratamento. Se quiser... em estação de tratamento de esgoto, se quiser eu te mostro a foto do tratamento da cidade de Areal. Eu fui lá. Po, utilizam espuma de colchão velho para filtrar a água. E depois fica com metade da cidade

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com diarreia, tomando remédio, soroperamida dentro do hospital de referência, que é muito mais caro. E o pessoal vai culpar quem? “Ah, vamos culpar os fazendeiros que eles tão poluindo a água.” Ué gente, se eu urinar na água, a água está poluída. A estação não tem capacidade de limpar. (ENTREVISTADO#02)

Além da qualidade do sistema de esgoto existente em algumas cidades do país,

vale ressaltar que, segundo o IBGE, até 2010, apenas 64,54% da população brasileira

tinha acesso a esgotamento. Vale destacar que, até 2010, em 18 das 27 unidades

federativas, menos das 50% da população tinha acesso a esgotamento sanitário,

conforme demonstra o Quando 5-2.

Unidade da Federação Região Geográfica População com serviço de esgoto

sanitário (%)

São Paulo Sudeste 90,74

Distrito Federal Centro-Oeste 87,87

Rio de Janeiro Sudeste 85,30

Minas Gerais Sudeste 77,49

Santa Catarina Sul 75,59

Rio Grande do Sul Sul 73,59

Espírito Santo Sudeste 72,90

Paraná Sul 64,16

Pernambuco Nordeste 53,31

Bahia Nordeste 49,58

Sergipe Nordeste 48,93

Paraíba Nordeste 47,93

Goiás Centro-Oeste 47,84

Rio Grande do Norte Nordeste 44,15

Roraima Norte 42,26

Ceará Nordeste 42,23

Amazonas Norte 40,24

Mato Grosso do Sul Centro-Oeste 37,68

Mato Grosso Centro-Oeste 35,40

Acre Norte 33,54

Alagoas Nordeste 31,29

Pará Norte 29,15

Piauí Nordeste 28,65

Tocantins Norte 28,22

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Maranhão Nordeste 25,08

Amapá Norte 22,30

Rondônia Norte 22,18

TOTAL 64,54

Quadro 5-2 Esgotamento Sanitária no Brasil em 2010

Fonte: IBGE/Censos Demográficos 1991, 2000 e 2010

Assim, pode ser considerado que o ambiente natural, tanto para a segunda fase

quanto para a terceira fase do setor de Saúde no Brasil, caracteriza-se como um

ambiente desafiador, uma vez que o setor ainda busca realizar os investimentos

necessários para conter as doenças infecciosas e parasitárias e, simultaneamente,

busca reduzir o crescimento das doenças crônicas.

Por sua vez, o crescimento acelerado da previdência social, principalmente no

que se refere aos Institutos de Aposentadoria e Pensões durante a Era Vargas,

demonstrou uma competição entre as categorias profissionais, que buscavam oferecer

os melhores serviços e benefícios, quando comparadas às demais. No entanto, apesar

desta disputa, o ambiente de tarefas para os prestadores de serviços públicos era

piedoso, uma vez que a sua demanda por serviços era garantida pela categoria

profissional vinculada ao prestador e o seu financiamento se dava por contribuição

mensal.

Por outro lado, constata-se que, durante a segunda fase do setor, houve um

crescimento significativo da quantidade de unidades privadas de saúde e no número de

médicos formados no Brasil. Neste contexto, pode-se considerar que o ambiente de

tarefas para os prestadores de serviços privados de saúde era um ambiente desafiador,

em função da crescente competição.

Ademais, no que se refere ao ambiente institucional, quando se trata da segunda

fase do setor, quando os Institutos de Aposentadoria e Pensão foram formados, durante

o governo Vargas, havia a necessidade de negociação direta com o Ministério do

Trabalho, Indústria e Comércio para que os benefícios dos IAP’s fossem consolidados,

gerando regras únicas e exclusivas para cada um. Além disso, ao longo da segunda

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fase, o Estado modificou gradativamente a regulação sobre os IAP’s e as CAP’s, de

modo que estes passassem a, cada vez mais, oferecer serviços de saúde mais

abrangentes e completos, o que caracteriza o ambiente institucional como desafiador

para os prestadores de serviços públicos de saúde.

Ainda, por se tratar de um setor da economia com características únicas, isto é,

que lida diretamente com a vida das pessoas, os prestadores de serviços de saúde no

Brasil enfrentam, durante as Fases 2 e 3 do setor, um ambiente institucional desafiador,

em que há regulação de secretarias de saúde nas três esferas do poder, além dos

conselhos de categorias profissionais, que regulam a atuação dos profissionais de

saúde.

Por outro lado, sob a ótica das operadoras de planos de saúde o ambiente

institucional pode ser considerado piedoso durante a Fase 2. As medicinas de grupo,

cooperativas médicas e seguradoras de saúde navegaram em um ambiente sem

regulação por parte do governo durante o período da segunda fase, uma vez que não

havia agência reguladora nesta época, que só seria criada durante a Fase 3.

Além disso, para este grupo de empresas, pode-se considerar que o ambiente de

tarefas também era um ambiente piedoso. A alta taxa de juros praticada no Brasil,

combinada com o modelo de negócios das operadoras de planos de saúde, que

recebem antecipadamente a mensalidade do cliente para, posteriormente, realizar o

pagamento aos prestadores de serviços, permitiu altos lucros financeiros para as

operadoras, sem que, para isso, necessitassem buscar eficiência operacional. O relato

a seguir descreve esta situação com precisão.

Porque, o que que acontece? Neste momento, você, que tinha naqueles idos de 80, 90, até 94, onde a inflação era muito alta, você tinha aplicações financeiras que eram muito elevadas, você não tinha uma profissionalização, do ponto de vista de que você precisasse gerenciar essa carteira no sentido do mutualismo assim, muitos pagam para poucos usarem e alguns usam muito. Você tinha que ter a noção disso daí. Só que o dinheiro aplicado e, com os prazos de pagamento que eram bastante dilatados naquela época, com contratos que eram bastante leoninos, eu diria assim. E não era a Unimed, mas o mercado como um todo. Você tinha carências imensas, né. Você conseguia ter contraprestações bastante vantajosas em relação ao tempo do pagamento do serviço prestado. Então, você tinha uma receita financeira que compensava isso. No momento que a Agência entra e vem o plano real em 94, que estabiliza a economia, você

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começa a ter necessidade de toda essa profissionalização assim "agora, nós precisamos ter resultados operacionais e não mais financeiros como era". Então ali é um grande demarcador, em 94, com a famosa URV, quando veio a deflação, e depois quando vem a Agência... Vem a lei em 99 e a criação da Agência em 98/99 e você marca exatamente todo um processo de necessidade de uma profissionalização muito grande, porque você começou a separar quem queria trabalhar com saúde de forma profissional e quem eram alguns aproveitadores daquele mercado naquela época. Ali você separou um grande número de empresas... Você teve a saída de um grande número de empresas, porque a Agência teve que fazer coisas boas e por outro lado ela hoje é um grande dificultador para a sobrevivência de um grande número de empresas, neste momento. (ENTREVISTADO#23)

No trecho de entrevista acima, pode-se constatar que outro fato, ocorrido na

terceira fase do setor, alterou significativamente o ambiente institucional para as

operadoras de planos de saúde. A criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar,

com o objetivo de regulamentar a atuação das operadoras de planos de saúde e da

prestação de serviços privados de saúde no país, implicou em novas regras para as

operadoras de planos de saúde. No entanto, nem todas as operadoras de planos de

saúde conseguiram se adaptar ao novo ambiente institucional. O Gráfico 5-1 demonstra

o declínio do número de operadoras de planos privados de saúde no Brasil, indicando

que o ambiente institucional desafiador, a partir da regulação, levou ao fechamento de

diversas empresas.

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Gráfico 5-1 Operadoras Médico-hospitalares em atividade no Brasil (2003-2014)

Fonte: ANS – Disponível em http://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/dados-gerais. Acesso em 28 jan. 2015

Ademais, vale ressaltar que, desde a sua criação, a agência reguladora tem

buscado proteger o ente mais fraco das relações do setor suplementar de saúde, que é

o conveniado. No entanto, há evidências de que as regras aplicadas pela ANS são

muito mais rígidas para os planos individuais, ou seja, de pessoa física, justamente com

o intuito de proteger o cidadão. Apesar de ser uma diretriz razoável, ela parece estar

gerando uma distorção que culmina na cessão da oferta de planos para pessoas físicas

pelas operadoras. Desta forma, na prática, a única maneira de se adquirir um plano de

saúde é por meio da contratação de planos coletivos.

Esta situação foi relatada em uma reportagem especial do programa de televisão

Fantástico (G1, 2014). Na reportagem, é destacado que, devido às regras rígidas

impostas pela ANS aos planos individuais e consequente cessão da venda destes

planos, os corretores de seguro têm burlado as regras impostas, com ou sem a

consciência do cliente, e têm incluído os novos conveniados nos planos coletivos.

Este tipo de distorção, segundo a reportagem, pode ser feita de duas formas.

Uma delas ocorre pela vinculação do cliente a um sindicato ou entidade de classe, de

modo que ele possa ser incluído em um plano coletivo por adesão, o que, formalmente,

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implicaria na introdução de mais um player a intermediar a relação entre o conveniado e

a operadora. Vale ressaltar que a mesma reportagem destacou que, atualmente, as

operadoras de planos de saúde não têm mais vendido diretamente planos para novos

clientes e passaram a contratar uma administradora terceirizada para tal. A outra

maneira é abrir um CNPJ no nome do cliente, de modo que ele esteja apto a contratar

um plano coletivo empresarial. O entrevistado a seguir ressalta a dificuldade de se

contratar planos individuais atualmente.

(...) mas é por isso que tem que ter bom senso e tem que ter regulamentação, para poder... E flexibilizar. Hoje você, pessoa física tem um plano de saúde, você não consegue. Está errado! Você não consegue, porque ele não quer vender, porque é ferro para as operadoras. Então, alguma coisa está errada, concorda? (...) Não seria bom se, em vez de 25% das pessoas tivessem plano de saúde fosse 50%, não ia desonerar o público? Então vamos criar regras, cobrar das operadoras, mas flexibilizar. Ninguém quer vender plano de saúde, alguma coisa está errada. (...) Eu acho que a ANS hoje, de novo, não estou defendendo operadora, não é porque eu sou amigo do *nome*. Eu acho que tem um viés muito... Não marcou uma consulta em uma semana, tem multa de 80 mil reais. Vai marcar no SUS! É claro que e as operadoras também abusam para não deixar marcar para também economizar, mas a consulta, às vezes, o cara não precisa. O cara vai no centro médico, ”o que é que tem hoje aí?”. “Ah, hoje tem endócrino”. “Então, marca”. “Ah, hoje não tem endócrino”. “Tem o quê?”. “Tem dermato”.”Então, marca”. Ou seja, não é assim, cara. Então, eu estou falando, nem 8 nem 80. Nem 8 nem 80. Aí, a mensalidade... Então, as operadoras todas estão... Se o setor quebrar é um retrocesso tremendo, tremendo. (ENTREVISTADO#15)

Ademais, o relato a seguir indica com clareza o processo de regulamentação que

ocorreu e que levou à baixa disponibilidade de planos de saúde individuais.

Olha, têm duas realidades: uma que a ANS fala que ela veio para regulamentar e para proteger o mercado. A realidade é que, na fase inicial, a ANS veio muito mais no sentido de entrar no mercado, se fazer presente no mercado e começou a criar uma série de regras muito complicadas para o mercado, que era um mercado que era livre antes e, de repente, teve que se adaptar a essas regras. Regras muito rígidas, algumas muito complicadas, algumas que não tinham muito a ver com o objetivo final da ANS, mas que tinha interferência direta na operação das empresas. (...) Por exemplo, ela começou a criar uma série de regras de restrição ao plano individual. Restrição no sentido de que ela queria proteger o usuário, então uma série de imposições, que fez com que as operadoras parassem de comercializar plano individual. Então, a ANS teve que aprender também qual seria a sua vocação dentro desse mercado e ela aprendeu ao longo desses anos. Ela hoje está muito mais focada, muito mais bem direcionada do que estava no início. Mas, nesse período em que ela aprendeu, ela atrapalhou muito o mercado. Eu vejo muito dessa forma. (...) O foco da ANS hoje é, basicamente, regulamentar o mercado de tal modo a garantir aos segurados os benefícios. É basicamente isso aí. Agora, veja

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bem, se você pegar, por exemplo, o equivalente da ANS nos Estados Unidos, o americano é mais pragmático do que nós brasileiros, então o que eles fazem? Eles criam mecanismos de garantir financeiramente as operadoras, que nada mais são do que seguradoras especializadas. Então eles garantem a liquidez e o porte das operadoras lá, porque com isso eles estão garantindo os segurados. Aqui no Brasil, eles entraram muito não só nessa parte de garantir a liquidez das operadoras, mas entraram até nas regras de atendimento. Então, o médico é obrigado atender aos pacientes, a operadora é obrigada notificar o segurado toda vez que muda o médico, uma série de pequenas regras que, de alguma forma, dificultam muito a operação do plano individual, porque ela não pode entrar no coletivo, porque o coletivo é o contrato de pessoas jurídicas, o individual ou não. Então, no sentido de proteger o segurado individual, ela criou um conjunto grande de amarras que fizeram com que operadoras desistissem de comercializar o plano individual. Hoje você tem poucas operadoras que fazem isso. (ENTREVISTADO#16)

Ainda no que se refere ao ambiente institucional, na terceira fase, devido à

criação do SUS, o setor público de saúde passou a necessitar de um maior

financiamento por parte do governo, uma vez que os serviços de saúde se tornaram

universais e integrais. Apesar desta necessidade, percebe-se uma baixa captura de

valor no ambiente, que está diretamente relacionada à legislação.

Uma vez que, pela Constituição de 1988, o SUS assumiria tudo o que fosse

referente à saúde pública no Brasil, em 1993, o Inamps é completamente desvinculado

do setor de Saúde. Assim, a partir de então, o setor deixou de receber recursos

financeiros oriundos da previdência, o que reduziu a folga financeira do setor. Como

solução para o subfinanciamento do setor, foi criado um imposto provisório, a CPMF,

com o intuito de estruturar o SUS em seus primeiros anos de existência. No entanto,

conforme descrito no histórico do setor, os recursos provenientes deste novo imposto

não foram totalmente destinados ao setor de Saúde, que manteve-se com falta de folga

financeira. O relato a seguir de um dos entrevistados ressalta a baixa capacidade de

financiamento do setor por parte dos poderes públicos, demonstrando reduzida captura

de valor do setor no ambiente.

(...) e, em segundo lugar, é obvio, em 30 anos, você podou muito o sistema de financiamento do setor público e também do privado. O setor público, na minha opinião, ele piorou, porque, apesar dele ter criado um conjunto grande de novas alternativas, o Estado brasileiro, cada vez mais, ele se alijou do financiamento do setor público. Se você pega nas grandes economias mundiais, as 10 maiores economias mundiais, a OCDE... as

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10 maiores economias mundiais, só em 2, o setor público é menor que o setor privado, sob o ponto de vista de financiamento: os Estados Unidos, que faz sentido e o Brasil, que não faz nenhum sentido. Nós temos 50 milhões de pessoas com financiamento privado de saúde e 150 que dependem do setor público. Como é que pode um país com 150 milhões de pessoas ter o Estado brasileiro, o governo federal, participando com 1,9% do PIB do investimento que faz em saúde ao ano? O Brasil, a despesa de saúde ao ano é 9,2% do PIB, desses 9.2%, 47% é investimento público e 53% é investimento privado. Isso, em qualquer outro país do mundo, é ao contrário, 70% é investimento público e, quando você vai para esse financiamento público, que é divido em federal, estadual e municipal, você vai ver que o Estado brasileiro cada vez mais ele está se alijando, ele está passando para ponta da linha, ele está passando para os municípios e está passando para os estados. Como nós temos o sistema federativo absolutamente descontrolado, onde o governo federal capta, recolhe a maior parte das receitas e faz uma redistribuição que não é uma distribuição justa, a priori, vai fazer que municípios em vez de gastarem com demanda, a emenda constitucional 29, 15% que o município deveria gastar, tem município gastando 20, 25, 30, o que é um absurdo, porque esses municípios... por que eles estão gastando isso? Eles estão investindo em assistência médica e me parece injusto que um município invista em assistência médica. Você tem que investir em promoção de saúde, em prevenção de saúde, através de programas ambulatoriais, PSF [Programa de Saúde da Família], etc e tal... Não tem que fazer um município ter que fazer um hospital, contratar médico e tal, eu acho que é temerário e um custo muito alto, o hospital é complicado, não é. (...) Bom, e mesmo assim, quando você fala de financiamento privado em nosso país, em grande linha, a gente investe 420 bilhões. 240 bilhões é o setor privado, 180 bilhões é o setor público, dentro desse conjunto de investimento dentro do setor privado, plano de saúde está em torno de 110 bilhões e o out of pocket, que é o dinheiro que você tira do bolso, que eu tiro do bolso, exatamente para pagar medicações, que não são cobertos no nosso país... *** incorpora medicação, incorpora *** para pagar consultas que não são cobertas, os exames que irão demorar demais, ou no SUS ou no plano de saúde, o cidadão brasileiro vai gastar em torno de 130 bilhões. O grande financiamento do sistema de saúde brasileiro é feito pelo cidadão brasileiro. Então, eu diria para você que o público, na minha opinião, ele deteriorou, já o setor privado, você, hoje, graças a uma regulamentação que eu acho muito positiva que é a 9656, com o crescimento econômico, com a criação da Agência Nacional de Saúde [Suplementar (ANS)], a [Lei] 9961, do ano de 2000, você, de alguma forma, passou a ter o mercado mais estruturado, mais organizado. (ENTREVISTADO#25)

Assim, com o objetivo de tentar solucionar a crônica falta de recursos no setor de

Saúde, foi aprovada, em 2000, a Emenda Constitucional 29, que impõe que um mínimo

de 15% e de 12% dos orçamentos de municípios e estados, respectivamente, sejam

destinados à Saúde. Porém, apenas em 2011 esta emenda foi regulamentada, de modo

que passou-se evitar a contabilização referente a esse percentual mínimo de gastos

que pouco ou nada se referiam à saúde. Um dos entrevistados destaca essa distorção

na destinação dos recursos em um relato que aborda, de maneira abrangente, a pouca

estruturação de fontes de recursos para o setor de Saúde.

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Com a constituição de 1988, feita a reforma sanitária cria-se o sistema único de

saúde, onde todo brasileiro passa a ter o direito à saúde e você junta todo esse esquema de saúde dentro do guarda -chuva do SUS. Uma coisa que eu vejo, um grande problema, é que foi a elaboração de um sistema de saúde dos sonhos, só que esqueceram de financiá-lo ou de pensar em mecanismos de financiamento e essa afirmação, hoje, cada vez mais, ela está aí em voga, em função de você ficar mendigando CPMF’s da vida, mecanismos paralelos ou transversos de financiamento da saúde, dos quais eu sou completamente contra. Eu não acredito que é através de mais imposto que você vai resolver a saúde e sim de priorização. Todos os países que tem o sistema universal de saúde como o SUS, eles aplicam no mínimo 7 a 8% do PIB em saúde, quando você soma o privado a média dá de 10 a 11%, não estou citando os Estados Unidos, que não tem um sistema único de saúde, agora com o ObamaCare, você vai tentar incluir 30 milhões de pessoas que estavam foram, mas principalmente estamos falando de Inglaterra, França, Holanda, Bélgica, os escandinavos estão fora dessa curva, estão muito distantes, até mesmo o Chile, e no Brasil, hoje, o famoso 300, 400 dólares per capta/ano, é inviável você remunerar, financiar adequadamente esse sistema de saúde, com tantos problemas. Quando a gente fala que a França coloca 8,5% do PIB em saúde, a gente está falando de uma população muito mais saudável que a população brasileira, uma população com muito menos doenças e agravos que a população brasileira e se eles investem tanto mais... e aí, você tem uma grande contradição. Hoje, tudo que é gasto em saúde perto de 53% é saúde suplementar para 25% da população e 47% é público para tomar conta de 75%, não 75%, mas bem mais, porque, se você for pensar que a saúde suplementar praticamente não paga transplante, o financiamento de transplante, 94% é totalmente público, não paga campanha de imunização, quem paga imunização de 100% dos brasileiros é o setor público, não paga as ações de vigilância sanitária, quem paga as ações todas de vigilância, 100% é o setor público. Então, você tem um desequilíbrio significativo e eu não quero nem que você olhe para o setor público, olha para o setor privado, hoje nós temos uma excelência de saúde suplementar ou uma qualidade muito boa de saúde suplementar? Com certeza não. Então, das duas, uma: ou eles são muito incompetentes que, com 3 vezes mais dinheiro, com 3 vezes mais recurso, conseguem entregar uma saúde um pouco melhor do que a pública, mas o que é melhor é com certeza incomparável uma com a outra, pelo volume de recursos que eles têm eles tinham que ser muito melhor do que o público e não é isso que a gente encontra na saúde suplementar, salvo raras exceções. (...) O desafio do financiamento é um desafio gravíssimo, você imaginar que você vai conseguir resolver a saúde pública, eu uso o benchmarking com o que existe, eu não estou dizendo que custa mais não, eu estou provando que custa mais, que, se esses outros países onde nós temos... vamos para o Chile, vamos para a Argentina, vamos para o México, para você não dizer que eu estou indo para a Europa, esses caras botam U$ 1000 per capta ano para a saúde pública, ou seja, nossa população, com a mesma carga de doença, países em desenvolvimento... como é que bota 300? Porque, efetivamente, não parece uma prioridade, a nível federal. A nível federal, porque o estado e município, de alguma maneira, depois da regulamentação da emenda 29 ficaram com 15 ou 12% e tiramos todos os penduricalhos que estavam. “Nego” dizia que construir uma ponte era saúde, “porque ambulância passa por essa ponte.” Valia tudo. Então, a regulamentação ajudou muito a separar o joio do trigo, mas ela não foi para o federal. Aonde os impostos arrecadados, Felipe? (...) Principalmente no federal. O recurso está lá. O pacto federativo tem que ser rediscutido. Estamos falando de reforma muito mais ampla, reforma tributária para rediscutir o pacto federativo. (...) E a segunda coisa que eu faria era garantir um investimento mínimo do governo federal na área de saúde. E aí não estou falando novos impostos, estou falando de priorização, trabalhar com 10% da receita líquida, 10% do PIB nominal, a gente veria qual seria esse parâmetro, mas que garantisse um investimento mínimo que não seria de curto prazo, seria ao longo prazo, “vamos passar de 300 para 400 dólares per capita em um ano, de 400 para 500”, que fosse uma coisa gradativa, até porque nós não teremos players para receber esse dinheiro novo. (ENTREVISTADO#24)

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Figura 5-3 Gastos per capita (em dólar) com saúde no brasil em comparação com outros países com sistema universal de saúde

O relato acima também destaca que a Emenda Constitucional 29 não impôs

nenhum tipo de obrigatoriedade de gasto mínimo em saúde como percentual do

orçamento do governo federal, que retém a maior parte dos impostos recolhidos no

país. A regra atualmente vigente determina que o total destinado à saúde no Orçamento

Geral da União é o valor do ano anterior, acrescido da variação do PIB. Vale ressaltar

ainda que existe um movimento que defende e pressiona a destinação de um mínimo

de 10% dos recursos federais para a Saúde, denominado Saúde Mais Dez, do qual

fazem parte diversas entidades representativas do setor.

Adicionalmente, vale ressaltar que o Brasil é um dos poucos países do mundo

que oferecem um sistema de saúde público universal a sua população. Portanto, faz-se

útil uma comparação dos gastos em saúde no Brasil com os demais países que

oferecem um sistema universal. A Figura 5-3 compara os gatos per capita em dólar do

Brasil e demais países com sistema universal e ainda discrimina estes gastos entre

públicos e privados.

Fonte: BRASIL, Tribunal de Contas da União (2012)

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Pode-se perceber que, além de o Brasil ser um dos países com sistema universal

de saúde que menos gasta em saúde per capita, a proporção entre gastos públicos e

privados destoa dos demais. Todos os países com sistema universal de saúde, à

exceção do Brasil, têm a maior parte dos gastos em saúde oriundos de fontes públicas,

o que se justifica, uma vez que, devido ao acesso universal, os gastos com saúde são

elevados. Desta forma, pode-se concluir que o SUS é subfinanciado, quando

comparado aos outros países que também possuem um sistema universal. Como

consequência, o ambiente institucional para os prestadores de serviços públicos de

saúde, que são integralmente remunerados pela tabela do SUS, torna-se inóspito.

No que tange ao ambiente de tarefas para os prestadores de serviços privados,

foi constatado que eles navegam em um ambiente piedoso durante as Fases 2 e 3.

Durante a Fase 2, o Estado brasileiro ofereceu financiamentos a fundo perdido ou a

juros subsidiados por meio do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social, o que

permitiu que muitas empresas surgissem na área de saúde, devido a este ambiente

piedoso.

Ainda, o ambiente para os prestadores privados de serviços de saúde também

pode ser considerado piedoso devido à característica de ser um setor cujos principais

players são empresas de origem familiar, cujos gestores não estão devidamente

preparados para enfrentar um ambiente de maior competitividade. Neste sentido, segue

o relato de um dos entrevistados que aponta a baixa competição no setor atualmente,

mas alerta para a recente mudança que vem ocorrendo no ambiente.

Porque esse setor é um setor familiar, agora que entrou um novo ator que não é familiar. (...) Então, Unimed, hoje, já nem é mais um grande ator, mas grupo D’or e grupo Amil. O grupo Dor é o *nome* e os filhos, não divide sociedade com ninguém. A Amil, o *nome* vendeu a Amil para um grupo americano, ele ficou com alguns hospitais, comprou 7 hospitais em Lisboa e adjacências, 7 (...). A Amil, hoje, é um grupo norte-americano, mas o resto todo da saúde, o resto todo da saúde, se você olhar, eu posso te dizer hospital por hospital, privado, quais são as participações societárias. 100% familiar e essas pessoas da família já estiveram na Coppead, dificilmente, você encontra uma pessoa com visão como o *nome*, que é o ex-aluno nosso (...). Ele é que está mandando os médicos que não pertencem à família dele. Porque, de um modo

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geral... o *nome* tem essa visão estratégica, que sua empresa precisa crescer, que está crescendo (...) Mas o *nome* percebe, mas muitos poucos outros percebem, pouquíssimos percebem que é preciso capacitar não só o pessoal da família, até porque nem sempre são os melhores, mas também outros níveis gerenciais, nível gerencial mesmo, mas que seja profissional. (...) Se a gente for fazer um trabalho hoje, um levantamento, hoje, na grande maioria dos hospitais, você vai ter um parâmetro direitinho: 20% o pessoal entende, 80% não vai sobreviver se houver uma verdadeira competição. Não vai viver, não vai sobreviver se houver competição. E esse grupo americano, que está entrando, acho que vai balançar muito o coreto (...) (ENTREVISTADO#13)

Além disso, em função do artigo 199 § 3º da Constituição de 1988, reforçado

pelo artigo 23 da Lei 8.080/1990, é proibida a participação direta ou indireta de

empresas ou de capitais estrangeiros na assistência à saúde. Desta forma, diminui-se a

capacidade de entrada de players estrangeiros no setor de Saúde no Brasil, o que torna

o ambiente de tarefas para os prestadores de serviços privados um ambiente piedoso.

Nesta linha, o relato de um entrevistado destaca a questão da baixa competição no

mercado de prestação de serviços, principalmente em função da proibição de

investimentos estrangeiros no setor, que reduz o número de competidores.

(...) aí eu te pergunto, você que é da área de administração, quais são os setores hoje no Brasil que é proibido capital de estrangeiro? (...) Basicamente é único, a aviação, um percentual, que eles botam debêntures conversíveis, e a mídia. Eu estou falando contra mim, contra o meu patrimônio, porque nós somos o maior grupo privado do Brasil e, teoricamente, para gente não interessa a abertura de capital, não tem concorrência, mas o Brasil precisa da abertura de capital, nós precisamos da concorrência, nós precisamos de investimento, nós precisamos justamente pensar fora da caixa, fazer parcerias público-privadas. (ENTREVISTADO#24)

5.1.1.2 Desafio de Navegação no Ambiente do Setor de Saúde no Brasil

Além da análise de navegação no ambiente para os principais players

pertencentes ao setor de Saúde no Brasil feita anteriormente, é possível analisar como

o setor como um todo navegou em seu ambiente ao longo de sua história. Para tal, esta

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análise será feita em função de quatro fatores externos que influenciam o setor de

Saúde: tecnológico, educacional, cultural e social.

Fatores Educacionais

O fator educacional se mostra de fundamental relevância para o bom

funcionamento do setor de Saúde. Uma vez que a responsabilidade da saúde da

população não se resume às ações curativas realizadas pelos profissionais de saúde, a

prática da prevenção mostra-se ímpar para o bom desempenho do setor. Desta forma,

o fator educacional do ambiente abrange dois principais aspectos externos ao setor: a

capacidade de a população prevenir-se de doenças com base em conhecimentos

adquiridos e de seguir adequadamente os tratamentos indicados pelos profissionais de

saúde; e a qualificação do profissional de saúde em função do ambiente educacional

existente no país.

Assim, no que se referente ao fator educacional, pode-se destacar que o Brasil,

apesar de ter melhorado alguns indicadores, como o percentual da população 25 anos

ou mais e 8 ou mais anos de estudo, conforme exposto no Gráfico 5-2, ainda há um

grande desafio para melhorar a educação no país. Neste sentido, o setor de Saúde tem

que lidar com dificuldades tais como a baixa qualificação de alguns profissionais e

dificuldade da população de ter conhecimentos básicos para que auxiliem sua saúde,

resultado de uma educação básica de baixa qualidade.

Gráfico 5-2: Percentual de brasileiros com 25 anos ou mais e com 8 anos ou mais de estudo

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Fonte: Fonseca (2013)

A baixa qualidade do ensino básico afeta diretamente a qualidade da formação

dos profissionais de saúde que se formam, em todos os níveis, do básico ao superior. O

relato a seguir confirma a dificuldade enfrentada pelo setor oriunda da educação básica

do país.

Eu tenho colocado assim, não é específico da saúde, mas nós temos 2 grandes desafios: um é da educação, que impacta diretamente a qualificação das pessoas aqui e as raízes disso começam lá embaixo, fazendo um pouquinho de propaganda para o Eduardo Campos, a melhor frase que eu ouvi dele que é uma bandeira excepcional é que: “Quando o filho do rico e do pobre, do trabalhador e do empresário, político estiver estudando na mesma escola, esse é o Brasil que nós queremos”, a educação pública precisa de uma revolução, não é mais dinheiro, não é uma questão intelectual, acadêmica, é uma questão de valorizar realmente a educação. Todos os países, a Alemanha, Coréia, Japão, a própria China, esse é um grande investimento, entre aspas, que você tem que fazer, não colocar dinheiro, ainda mais que a gente sabe que colocar dinheiro aqui, some, mais dinheiro e a gestão também não existe. (ENTREVISTADO#17)

O relato a seguir evidencia o desafio de navegação do setor de Saúde no

ambiente brasileiro, ressaltando o ponto da educação precária que leva a uma baixa

produtividade, combinado com a dificuldade de capturar recursos financeiros no

ambiente. Como resposta, algumas empresas do setor são obrigadas a investir por

conta própria na qualificação de seus profissionais.

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Agora, o desafio é como ajustar meu modelo de negócio, para aquilo que eu acho que é o que vai me permitir ser liderança e sobreviver ao mesmo tempo. Que você tem esse problema, né, você tem que crescer e crescer ao mesmo tempo, você está brigando pelas 2 pontas, a gente tem um sistema que... como temos um país que tem pouco recurso financeiro, a gente tem um problema gravíssimo que, além de ser um país com pouco recurso, tem muita corrupção, pouca infraestrutura e pouca educação. Então, em um país que você tem menos recurso, você teria que ser mais eficiente e produtivo e aí você esbarra na falta de infraestrutura, em uma educação ineficiente e uma falta de profissionais de alta qualidade, que a ferramenta que você teria para compensar a falta de dinheiro, seria aumento e produtividade e você tem muita dificuldade em fazer, porque o país não investe nem em infraestrutura e nem em educação e acaba que quem quer fazer isso acaba tendo que desenvolver um programa de formação própria, é o que a gente faz. Além disso, temos um instituto de educação e pesquisa, que hoje é uma OSCIP [Organização da Sociedade Civil de Interesse Público], que hoje é reconhecido com OSCIP pelo governo e ele e voltado só para área de educação e pesquisa. (...) Porque o que acontece é o seguinte: se você às vezes opta pelas pessoas, você, às vezes, tem que sacrificar o lucro e, em um país que as margens são pequenas, esse limite é sutil. Hoje em dia, a gente investe praticamente tudo que a gente ganha, então qualquer situação em que a minha situação financeira caia, ou eu tenho que parar de investir em coisas que eu acredito que são o futuro, educação, pesquisa... (...) Ou eu corro o risco de trabalhar no limite de sustentabilidade muito arriscado. (...) Poderia quebrar. Isso é uma decisão super difícil. Eu, até hoje, sempre, felizmente, só escolhi uma que foi ser sustentável e trabalhar... porque a gente tem um instituto de educação que nós colocamos um dinheiro, a gente gasta uma fortuna de dinheiro por mês só em educação e pesquisa, coisa que, provavelmente, outros grupos botariam no bolso como lucro, entendeu? (ENTREVISTADO#21)

O relato de um dos entrevistados, professor de uma universidade, releva que os

alunos de curso superior em saúde apresentam dificuldades básicas no aprendizado,

que geram consequências no exercício de suas funções no trabalho, o que pode

prejudicar o paciente, em função de erros de procedimentos.

(...) quando eu trabalhava na assistência, eu digo assim: “quantas crianças eu salvei, hein.” Tenho grandes amigos médicos, eu digo assim "Lembra que furada você deu porque você não tomou conta dos seus estagiários, seus residentes? Se eu desse a medicação naquela dosagem a criança poderia ter morrido, sabia?", é verdade. Eu chegava, conferia, porque eu sabia que tinha um monte de residente, um monte de estagiário e tinha meu também, de enfermagem, eu conferia as continhas todas, para ver peso, não sei o quê. Sempre tinha alguma coisa errada, era antibiótico errado, na época a gente usava muito a Micacina, podia romper tímpano, tanto de adulto como em excesso. Nem o médico ficava ressentido e nem eu, porque era outra coisa, era uma questão de educação também, cada um se respeitando e se fazer respeitar dentro daquilo que faz. Acho que hoje isso é meio complicado e eu boto um pouco de responsabilidade disso na área da formação, falta de compromisso também na área de formação. E fiquei quase 10 anos fora da UERJ, só no Ministério, cedida. Aí voltei, volto para onde? Quero voltar para a área que sempre administrei e sei "mas tá bom, mas só tem vaga no internato, 9º período",

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“tudo bem, não importa de ir pra hospital não. Não vou saber punsionar uma veia de novo, não vou ter habilidade, mas se eu treinar eu vou conseguir.” Primeira turma, aí eu voltava para a escola ali na Pedro Ernesto, de 7 ao meio dia, daí ia para a escola. Eu perguntava aos professores, meus colegas de departamento: "me explica como o sujeito chega ao 9º período e ele não tem noção do que é limpo, do que é sujo e do que é esterilizado". Eu fiz uma pergunta para ele e ele foi contar nos dedos quantas horas eram. Como essa pessoa chega no 9º período e vai se formar. "Ah, mas ele aqui, as notas dele na prova...”, falei: “a nota dele pode ser boa na prova, mas desde o 5º período que ele está indo fazer estágio no hospital e só no 9º que eu chego e vejo isso? Como é isso?” Falei: “Comigo ele não vai passar.” Pronto, já aprontei a confusão na faculdade e ele não se formou. Digo que falta compromisso com o ensino, tantos outros professores lá, amigos meus: "não é possível, XXX, você é psicóloga, tão exigente!” “pois é, né XXX, mas como vou ser a carrasca?", "Não, mas eu faço questão de ser a carrasca". Não é questão de ser a carrasca, é a minha responsabilidade, meu compromisso com um sujeito que estou botando no mercado de trabalho, que, amanhã, sou eu quem estou lá precisando dele. Aí foi uma confusão e ele não se formou, a família compareceu, ele trancou a matrícula e ficou um semestre sem ir, voltou no outro e ele caiu comigo de novo, porque eu era a única que estava no nono período. Eu falei: "não quero fazer a avaliação dele sozinha, quero 3 professores comigo porque não vou ser a carrasca de novo não". Falei "tem 3 disciplinas envolvidas" no estágio, administração, assistência e ética. "Esses 3, cada dia um professor desses vai ficar com ele lá". Eu sou de administração, mas eu sei assistência, quem dá ética sabe assistência. Então vai lá ver e vai avaliar. Assim foi. Aí foi reprovado de novo. Ele tinha um déficit, não sei como eles falavam que ele tirava 10 na prova, porque no internato não tem prova escrita, é o dia a dia, avaliação dia a dia. Mas para mim ele tinha um déficit cognitivo, não era possível ele não ter uma deficiência cognitiva, porque: "fulano, o paciente por quem você está responsável vai fazer uma tomografia, você sabe que horas...”, eu já sabia, já tinha visto tudo. "Sabe que horas vai fazer a tomografia?", "ah, não sei", "então vai ver". Ele já tinha que saber, já está saindo. A primeira coisa quando ele chega, ele tem que pegar o prontuário, ver, ver a prescrição do paciente e começar ali a vida. Ele foi ver, falei assim "você sabe que ele tem que fazer um jejum, tem que fazer umas restrições de ingesta", aí ele disse "ah, é?" Eu falei "É. Então, se ele vai fazer o exame as 11 horas, a partir de que horas ele tem que ficar que não pode se alimentar?” “ih...” Eu falei: “Tem um protocolo lá, você não viu?”, "não”, "então vá ver..." “4 horas antes do exame” Aí eu falei: “É? Então a partir de que horas ele tem que ficar sem comer nada?", "ah... 11 horas, 10...”, contava nos dedos, eu falei "acertou, né, contando nos dedos quem não acerta?", 10 horas da manhã estava ele lá com o comprimido para dar ao sujeito. Ele não podia tomar. (...) Porque tinha que beber água e ele ia fazer o exame. Tudo era suspenso, nessas 4 horas, só se fosse uma emergência. Então, eu acho que muitas coisas, falta compromisso mesmo com o corpo docente. Sou meio abusada e digo assim: corpo docente que fez minha formação e de tantos outros professores que estão por lá e tantos que conheço por aí também, contemporâneos, não existe mais. A massa de que eles foram feitos não existe mais. (ENTREVISTADO#10)

O relato de um dos entrevistados evidencia o desafio de navegar em um

ambiente em que a população tem uma educação de baixa qualidade. No relato a

seguir, o paciente apresenta dificuldades de compreender como se seguir com o

tratamento recomendado em função de desconhecer o que seria mililitro.

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Então assim, a minha área é saúde, mas a educação é primordial, porque aqui chegam mães que não sabem o que é “ml”. Você fala assim: “Você vai dar o amoxil (antibiótico)”, isso desde que eu entrei, “5ml, de 8 em 8 horas”. Agora até tem despertador, o celular tem despertador, mas antigamente, quando era de 8h em 8h, a mãe não vai acordar à noite, ela não tem despertador, né. Então assim, a pessoa: “ml? O que que é isso?” Então assim, que educação é essa que a gente está dando para as pessoas, que ela já é mãe com 17, 18 anos, faltou prevenção, né, para não engravidar na adolescência e não sabe o que é “ml”. Aí eu vou explicar para ela o que é “ml”? Não, a educação tinha que ter explicado isso. Então, a saúde está atrelada à educação, então a gente precisa de muito investimento em educação também. (ENTREVISTADO#04)

Ainda, outro entrevistado destaca que o curso de graduação em medicina

apresenta dificuldades, em termos de qualidade do corpo discente. No trecho a seguir,

o entrevistado indica que cabe ao aluno assegurar a qualidade da sua formação em

medicina.

Referente a este aspecto, pode-se destacar que os cursos de medicina têm um

regime de aprovação em suas disciplinas diferente dos demais cursos de graduação.

Nos cursos de graduação em geral, os alunos são aprovados por um sistema de

créditos, em que, para se formarem, devem ter um somatório mínimo de créditos, que

são obtidos pela aprovação das disciplinas. Neste sistema, os alunos podem ser

reprovados em disciplinas específicas e têm a obrigação de repeti-las caso sejam

obrigatórias ou, pelo menos, realizar outra disciplina com o mesmo número de créditos,

caso a disciplina que reprovou não seja obrigatória para o seu curso.

Por sua vez, os cursos de medicina são organizados em turmas anuais, em que

o aluno ingressa com a sua turma e tem a expectativa de se formar com aquela mesma

turma. Por este motivo, pode haver, por parte dos professores, uma tendência de evitar

reprovações de alunos, uma vez que ele se deslocaria da turma a qual pertence, tendo

que repetir todas as disciplinas referentes àquele ano da graduação. Desta forma,

pode-se considerar que, potencialmente, há uma maior benevolência para com alunos

com baixo rendimento nos cursos de medicina quando comparado a outros cursos,

conforme destacou o entrevistado.

Tá, vamos lá, tem a pública e tem a privada. O que a pública tem de viés bom: os melhores alunos tendem a ir para lá, porque são os que mais estudaram e é muito difícil de passar, então você já deixa enviesado. A infraestrutura delas tende a ser muito pior, faltar

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coisa, etc. No final das contas, o que eu vejo é: eu conheço médicos ruins da UFRJ e da UFF e da Souza [Marques] e da Gama, da Estácio. Conheço médicos muito bons, excelentes da UFRJ e da UFF e da Souza e da Estácio. Então vai muito de você. (...) UFRJ. Vai muito de você, do seu interesse próprio e, claro que se a pessoa for com estímulo, dos seus amigos a sua volta, se é um bando de vagabundo, se é um bando de nerd, se é um bando de cachaceiro, entendeu? (...) Depende se ele foi dar plantão fora, se foi para congresso, se foi buscar conhecimento fora, se foi fazer estágio, fazer intercâmbio, isso tudo a universidade pode até te ajudar a ter, sabe, mas... é o tipo da coisa: tem que querer. Se não quiser... você pode fazer a faculdade nas coxas e ser um médico muito ruinzinho, fraquinho. Pode, você passa, acaba passando. Não tem essa cultura, igual à da engenharia, que é de reprovar todo mundo. (...) Não tem. No geral, todo mundo passa. Não é essa p* de reprovar metade, todo mundo abaixo de 5. Não... (...) É... Às vezes eu acho que poderia ter um pouquinho mais de rigor em algumas coisas. (ENTREVISTADO#01)

Fatores Culturais

Por sua vez, o fator cultural abrange os hábitos e costumes da população, que

podem facilitar ou dificultar a prestação de serviços do setor de Saúde, criando um

ambiente melhor ou pior para as respostas aos demais desafios. Neste âmbito, o fator

cultural aborda hábitos como a rotina da população em realizar exames preventivos, de

modo a permitir diagnósticos precoces, que facilitam tratamentos; a forma como a

população costuma buscar os serviços de saúde, isto é, se busca uma unidade de

saúde de nível de complexidade adequado ao problema de saúde que apresenta ou

não, otimizando ou desregulando a qualificação e especialização da prestação de

serviços em função da demanda de saúde; e os hábitos de vida das pessoas que

influenciam diretamente a sua saúde, como alimentação e a prática de atividades

físicas.

No que se refere ao fator cultural, um ponto identificado nas declarações dos

entrevistados que faz parte da cultura do povo brasileiro é a tendência de, em caso de

necessidade médica, buscar primeiramente a emergência hospitalar. Esta tendência

gera dificuldades no que se refere à demanda dos serviços em função de sua oferta,

uma vez que, de acordo com a determinação do SUS, a porta de entrada do sistema de

saúde deve ser pela atenção primária e, em caso de necessidade, haver o

encaminhamento para centros secundários e terciários.

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Desta forma, casos simples que poderiam ser resolvidos em centros de baixa ou

média complexidade acabam ocupando a oferta de serviços nas emergências dos

hospitais, que estão preparadas para atender casos de alta complexidade, gerando

uma ineficiência na prestação do serviço. Além da ineficiência de destinar um recurso

especializado e altamente equipado para resolver casos simples, há uma redução da

folga operacional do sistema, uma vez que a demanda por casos simples é maior do

que a demanda por casos complexos, gerando superlotação das emergências

hospitalares.

Em função da superlotação, o relato do entrevistado a seguir ainda destaca que

os pacientes que não apresentam situações de emergência são atendidos com menor

atenção do que os pacientes com casos mais graves, gerando uma insatisfação por

parte do paciente.

Tem um outro fator também que é um fator que eu diria... Não é de educação não, mas é de herança educacional que é o seguinte: existe o mau hábito, no Brasil, de que a pessoa, quando está doente, vai ao hospital. Ela não devia ir ao hospital, devia ir ao ambulatório, devia ir ao médico, devia ir ao consultório e não no hospital, consequentemente, os hospitais estão sempre superlotados. Então é um outro fator que precisaria ser melhorado, seria educar as pessoas para irem ao lugar certo na hora que precisa. (...) A pessoa saber onde ela deve ir, que tipo de recurso ela deve recorrer dependendo do tipo de doença que ele tenha, dependendo do tipo de queixa que ele tenha. Então não tem sentido um cara com dor de cabeça ir para uma emergência no hospital. Ele tem que ir para um consultório, ele tem que ir para uma atenção básica. Então esse tipo de coisa vem fundamentalmente da educação precária, a pessoa acha que, no hospital, vai ser mais bem atendido e não vai, pelo contrário, vai ser mais mal atendido, porque ele tem só uma dor de cabeça enquanto tem gente morrendo. Então o médico que está lá de plantão, ele dá muito mais importância, muito mais atenção, àquele que está morrendo do que o cara que está com dor de cabeça. Então, ele é mal atendido, inclusive, por causa disso. (...) E aí acontece isso que eu te falei. É verdade, isso é um fator. Ele vai demorar seis meses para ser atendido no consultório, ele vai ao hospital e vai ser atendido na hora, mas ele vai ser mal atendido, porque foi isso que eu te falei. E, muitas vezes, ele acaba sendo mal atendido, a doença dele se agrava e ele, mais tarde, vai ser um doente muito mais caro. (ENTREVISTADO#16)

Ainda, o entrevistado a seguir evidencia com clareza que existe uma demanda

por serviços de emergência mal direcionada.

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E direcionar melhor o atendimento também, porque as pessoas correm muito para a emergência, até hoje, qualquer coisa que tem, corre muito para a emergência. Sufoca a emergência de bobagem. Mas eles querem número também, eles não querem qualidade na emergência, a emergência fica sufocada, faz fila de pessoas lá: “tem que ter um pronto atendimento.” Pronto atendimento... mas não é um hospital de emergência, hospital de emergência é outra coisa. Mas toda vez que fala em hospital de emergência tem uma fila de pessoas lá que querem atestado, que vem lá com gripe, dor de barriga, diarreia, sei lá o que, isso não é emergência, isso era para estar na rede básica. As demandas são mal direcionadas. (ENTREVISTADO#06)

No trecho a seguir, existe o mesmo tipo de percepção para o caso de um

hospital privado.

Eu trabalhei no Miguel Couto, eu atendia toda a Rocinha, atendia o Vidigal, você não pegou a Praia do Pinto, você não pegou a Catacumba, que eram enormes favelas. E nós dormíamos à noite, não havia movimento. O único movimento um pouco maior na emergência era no sábado de manhã, de resto, com frequência, você via, já começava, pessoas que não queriam pegar uma filazinha no ambulatório e vinham para a emergência. Hoje, você vê as emergências lotadas. É uma distorção completa. Eu vejo aqui, 90% não é emergência. Mas vem na emergência. Até porque os planos de saúde não pagam a consulta, mas são obrigados a pagar a emergência. Então, seria toda a distorção que aparece em relação a isso. Eu acho é que é uma falta de uma visão profunda realmente do que seja uma atividade médica, com todas as suas características, com todos os seus momentos, de modo que possa fazer com a comissão, assim que eu vejo. (...) Cirurgias desnecessárias, internações desnecessárias, medicações desnecessárias, exames desnecessários, fica assim, falta hospital, falta isso e falta aquilo, porque o que tem de coisas desnecessárias é uma barbaridade. (ENTREVISTADO#14)

Outro entrevistado ressalta que a população não tem o hábito de realizar

acompanhamentos rotineiro com profissionais de saúde, de tal modo que evitem o

aparecimento ou o agravamento de algum problema de saúde, como segue.

Um ponto que eu falei assim por alto que eu acho que é interessante voltar é essa questão da responsabilidade do paciente também pela questão da saúde. Em outros países a gente vê uma coisa muito diferente do que a gente vê no Brasil, o indivíduo usa o sistema de saúde de uma forma mais responsável. No Brasil, acredito, em função da própria política que a gente vive que tem um cunho muito assistencialista, que a gente tem

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que dar tudo de graça para todo mundo e a gente dá de graça e o indivíduo não é cobrado das suas responsabilidades, isso acaba gerando um desequilíbrio muito grande nessa questão das contas, porque a utilização é exagerada. Se você olhar estatisticamente uma determinada população, enquanto aquela população deveria usar determinado serviço você vê que a gente acaba usando muito mais do que é necessário e aliado que essa utilização exagerada não está associada a uma qualidade adequada, ela acaba sendo uma utilização exagerada, sem uma resolução adequada e isso vira um círculo vicioso, porque o indivíduo não resolve o problema dele e volta a utilizar de forma exagerada (...) Eu vou dar um exemplo meu, atendi um paciente no ambulatório... Eu faço ambulatório de atenção primária, só atendo crianças de 0 a 3 anos, que nasceram na maternidade do meu hospital, mas eventualmente você atende crianças que vem de outros hospitais em função da dificuldade que elas têm de encontrar esse tipo de atendimento. A gente ali não está querendo consultar pacientes doentes. A gente está fazendo consulta de medicina preventiva que é a policultura, onde a gente faz acompanhamento da questão da imunização, da alimentação, do crescimento e desenvolvimento. E aí, resumindo, eu atendi uma criança, bebezinho de 20 dias, mais ou menos, que foi a um serviço de pronto atendimento público com uma queixa banal e que o médico falou "isso não é para ser atendido aqui, isso é para ser atendido num ambulatório". A mãe virou para mim quando entrou no consultório "por que a senhora está aqui?” “Eu fui...", me contou essa história "ele falou que era para ser atendida num ambulatório, mas o que é esse tal de ambulatório?". Ela não sabe que existem serviços para que o filho dela possa ser acompanhado, sem estar doente, e ali ela ser educada para a saúde, ali ela se preparar para cuidar do filho dela e ela ir menos ao serviço de emergência e o filho dela adoecer menos, porque esse tipo de atendimento não dá ibope. (ENTREVISTADO#12)

Outro ponto que vem tornando a navegação do setor no ambiente cada vez mais

desafiadora ainda no que tange ao fator cultural é a mudança de hábitos da população.

Devido ao estilo de vida urbano, as pessoas têm adquiridos hábitos de praticar poucos

exercícios físicos e, em função do trabalho e da falta de tempo disponível para dedicar-

se a uma alimentação mais balanceada, as pessoas têm aumentado o consumo de

alimentos industrializados e dos chamados fast food. Desta forma, principalmente no

que se refere à terceira fase, a demanda por serviços de saúde aumenta em função das

doenças que surgem com os novos hábitos da população e que levam ao sedentarismo

e à obesidade.

Em 2012, pela primeira vez na história do Brasil mais de 50% da população

estava acima do peso. Além disso, de 2006 a 2012, o percentual de pessoas com

diabetes saltou de 5,3% para 7,4% da população, um percentual de 40%. Como

consequência da mudança de hábitos e aumento da incidência de doenças

relacionadas a essas mudanças, o governo federal passou a distribuir gratuitamente,

por meio do programa Saúde Não Tem Preço, remédios para tratamento de

hipertensão, diabetes e asma, o que fez com que o número de beneficiados por

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distribuição gratuita de medicamentos saísse de 300 mil para 1,7 milhão entre 2011 e

2013 (PORTAL BRASIL, 2013), evidenciando o crescimento no desafio de navegação

no ambiente em função do fator cultural.

Fatores Tecnológicos

Os fatores tecnológicos mostram-se de grande relevância para o crescimento do

setor de saúde. Graças a avanços de tecnologias, o setor pôde desenvolver máquinas,

equipamentos e novas técnicas de diagnóstico e tratamentos que permitiram maior

eficiência e eficácia no desempenho do setor. Assim, este fator inclui aspectos como a

abrangência da oferta de novas tecnologias pelo setor, isto é, a se oferta ocorreu de

maneira generalizada ou pontual; os desafios enfrentados por aqueles que buscam o

estado da arte em tecnologia do setor, como o desafio de provisionamento de recursos

humanos qualificados e especializados para operarem as novas tecnologias; e as

dificuldades de captura de valor em função da tecnologia, tanto na utilização de

equipamentos modernos ainda não reconhecidos pelas fontes de financiamento do

setor, quanto pela obsolescência de equipamentos que, apesar de não pertencerem ao

estado da arte em tecnologia, continuam sendo eficazes e, por vezes, apresentam

menor custo de operação do que equipamentos mais modernos, que tornam o

funcionamento do setor mais custoso.

No que tange ao fator tecnológico, pode-se perceber que o setor de Saúde no

Brasil, ao longo de sua história, experimentou um avanço tecnológico significativo, que

aprimorou a prestação de serviços de saúde. No entanto, pode-se identificar, no

discurso de alguns entrevistados, que a captura de valor relacionada ao fator

tecnológico, isto é, a capacidade de o setor absorver tecnologias que tornassem a

prestação de serviços mais eficaz, deu-se de maneira pontual, fazendo com que

existam ilhas de excelência ou regiões com maior oferta de serviços com alta

tecnologia, conforme segue.

Então, a gente, na radioterapia, trabalha com máquina de última geração, eu tenho que treinar a pessoa da última geração ou então esse cara não sabe mexer na

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máquina de ponta, ele sabe mexer na máquina simples, porque o que acontece? O serviço público hoje não tem recurso financeiro na maioria dos lugares, você tem algumas ilhas que funcionam, não é uma política de governo, é uma ilha, uma pessoa ou outra, por algum motivo, ou algum lugar, mas não é uma estratégia ampla. (ENTREVISTADO#21)

O que acontece com a medicina como um todo, a medicina como um todo vai se perdendo em qualidade e a gente vai criando as ilhas: “ah, o hospital tal...” O Fantástico é fantástico no sentido de dar as notícias "tal avanço da medicina", mas aonde está aquele avanço da medicina? Está numa ilha, está na USP, está no Albert Einstein e só. No geral da medicina aquilo não vai existir nem daqui a 10, 20, 30 anos. (ENTREVISTADO#12)

Agora, por outro lado, há hospitais que são de excelência, o INTO, por exemplo, é um. Eu tenho o filho de um colega que faz questão de não sair do Hospital dos Servidores do Estado porque ele tem uma educação, como é que fala... Ele é preceptor de residentes, ensina e ele aprende no hospital e ele diz que não quer sair de lá apesar de ser uma pessoa muito bem capacitada. (...) Eu acho que quando é urgência, agora eu estou no achismo, não tenho certeza não, mas a pessoa realmente é melhor atendida sim. Eu tenho até que me lembrar de um familiar meu, que teve um infarto e foi muito bem atendido numa unidade dessas da UPA. Ele foi internado num hospital de Botafogo, excelente hospital, sabe, operou dois ou três meses depois, mas foi bem atendido sim. Mas esse tipo de atendimento bom não me parece próximo do universal, parece sempre excepcional. Quando a gente lembra de um fato excepcional é porque é excepcional. (ENTREVISTADO#08)

Além de haver captura de valor quanto ao fator tecnológico de maneira pontual

em alguns centros de excelência no país, parece haver uma má distribuição dos

prestadores de serviços com alta capacidade tecnológica, de tal maneira que a

população passa a ter dificuldade de acesso a eles.

Eu te pergunto, você sabe quantas tomografias existem no bairro de Realengo? Você não sabe. Nem você e nem a maioria da população e, possivelmente, nem o próprio Estado sabe que não tem nenhuma tomografia em Realengo. As tomografias estão todas aqui na zona sul do Rio de Janeiro e algumas em poucos lugares espalhados. Então, o cara que mora em Realengo, tem lá não sei quantas mil pessoas em Realengo, ele tem que pegar 2, 3 ônibus para vir aqui fazer, olha o desperdício de tempo, o cara sai de lá do inferno... Aí concentra tudo aqui, porque aqui tem mais acesso, mais facilidade, quando você devia ter uma regulação sanitária, o agente, a autoridade

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sanitária deveria falar: "eu só vou conceder o direito de alvará para ressonância magnética em Campo Grande, Realengo e Madureira porque não tem nenhuma lá, não adianta você querer montar aqui em Botafogo, Copacabana, Ipanema, que eu não vou autorizar". A autoridade sanitária que é o secretário de saúde tem que ter autoridade para definir esse mapa estratégico de ocupação. (...) E no privado. Como, no privado, você não pode ter isso, então: “eu te dou incentivo para você colocar lá”, “ou não dou o alvará para aqui, que já está cheio, ou eu te dou incentivo.” “Qual tipo de incentivo?” “Desonero você tributariamente, crio uma linha de incentivo para você ir para uma região que esteja com um maior vazio sanitário. Não existem políticas públicas inteligentes de incentivos tributários ou de qualquer natureza para que você instale equipamentos, embarque tecnologia, invista em estrutura de atenção em regiões carentes, porque... O dinheiro busca o dinheiro, se aqui é concentrado, é porque aqui as pessoas usam mais, tem mais plano de saúde, aí nego coloca aqui e não coloca lá. (ENTREVISTADO#18)

Ainda, um dos entrevistados ressalta a experiência de sua empresa no que se

refere ao fator tecnológico. Segundo ele, existem dificuldades relacionadas à captura de

valor, quando se está lidando com tecnologia de ponta, uma vez que as operadoras de

planos de saúde, em alguns casos, não reconhecem que uma tecnologia mais

sofisticada deve ser melhor remunerada do que uma que não é de ponta. Desta forma,

ele vivencia a dificuldade de ser líder em tecnologia, que é sua visão de longo prazo, e,

ainda assim, fazer o negócio ter viabilidade econômica no presente.

Essa dificuldade é porque você, às vezes, tem que escolher em maximizar a qualidade do que você entrega versus você maximizar o retorno. Um exemplo prático, a gente hoje é a maior experiência na melhor tecnologia de radioterapia no país, em 4 anos a gente saiu de começar a radioterapia no Rio, mudar a história da radioterapia no Rio e ser uma referência nacional, e ser a maior experiência nacional na melhor tecnologia que existe no mundo hoje, é nossa. A gente tem mais que Einstein, que o Sírio, todo mundo, muito mais. Porque que a gente faz isso? Como é que o pessoal decide a remuneração? Existem critérios hoje que você sabe que, se você fizer melhor tecnologia, a chance de você não lesar tecidos saudáveis e deixar a vida da pessoa melhor no longo prazo é muito maior, embora ainda não tenha um estudo científico comprovando para cada doença. O que a gente faz? Eu posso fazer uma técnica mais simples e que é a que eu negociei com a operadora, porque ela não aceita me pagar a técnica mais sofisticada, porque eu ainda não tenho um estudo científico para aquilo, hoje a operadora usa isso como um artifício para não pagar, mas eu sei que a chance daquilo ali ser muito melhor para o doente é gigante, até porque, a experiência que a gente tem é essa. E, hoje, uma das pesquisas que a gente faz é documentar isso. Eu poderia usar a técnica mais simples, ter mais doentes e ganhar mais dinheiro. Eu uso a técnica mais sofisticada, vejo menos doente, ganho menos dinheiro, mas, em compensação, eu dou melhor para o doente, entendeu a escolha como que é? (ENTREVISTADO#21)

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Outro entrevistado ressalta a mesma dificuldade em relação à capacidade de

capturar recursos financeiros no ambiente em função do avanço de tecnologia.

Vou te dar um exemplo, que você vai entender o que eu estou querendo dizer da minha área especificamente. Eu comecei, eu tinha 2 raios x, olha o mix que eu tinha, 2 ultrassons, 1 TC [tomógrafo computadorizado], 1 RM [ressonância magnética], 1 mamógrafo e 1 densitometria óssea. Esse era o meu mix (...) Estamos em 2014, quase 20 anos depois. Quantos raios x você acha que eu tenho? Eu cresci! Eu tinha 500 metros quadrados, hoje eu tenho 2.500 metros quadrados. É o que a gente chama de uma mega unidade. (...) Qual que é a realidade? Raios X: 2. Eu vou te explicar depois. (...) Ultrassom: ultrassom deve ter uns 10 (...) TC: 1... 2... TC tem 4. Ressonância 9. Mamografia 3, Densitometria 2. Aí você fala: “por que esse mix?”. Eu vejo o seguinte: há 10 anos, eu fazia 15 mil raio x por mês. Aí eu falei “p*, raios x, os planos de saúde congelaram o preço, é de 20 anos atrás, então o raio x continua... Aumentaram um pouquinho. Custava 20 reais, hoje me pagam 30. Eu falei “eu não sei fazer conta, mas acho que isso dá prejuízo”. (...) Eu estava ganhando 20, eu tinha que cobrar pelo menos 45. Eu falei “O quê? Eu estou pagando 25 reais para fazer um exame? (...) Falei “eu vou jogar isso aqui para 10 e depois para 5”. Aí, meus irmãos: “mas se você jogar isso aqui, diminuir, você vai perder nos outros métodos, você vai perder onde você tem gordura, onde você ganha dinheiro. Você ganha dinheiro na Ressonância e na Tomografia, você vai perder...”. Eu falei “cara, eu vou correr o risco”. (...) Banquei. (...) E a ressonância, o que aconteceu? Continuou fazendo, foi crescendo, foi crescendo, crescendo. Isso aqui [ressonância magnética] eu tenho margem, cara, nisso aqui eu ganho dinheiro. Isso aqui [raio-x] eu perco. Aí sabe o que acontece? Você vai para o ortopedista (...), com uma dor na coluna, uma dor, o cara está achando que é hérnia? O que o cara poderia pedir? Um raio-x. “Vai lá e faz só um raio-x”. (...) o que o médico vai pedir? (...) Ressonância. Quem é que está sendo prejudicado? (...) É um ganha-ganha ou é um perde-perde? (...) eu vou dar muito mais informação para o paciente. Não tem radiação, vou dar mais informação. Mas não precisava. (...) Então, para o sistema é um perde-perde. (...) E chega a ser prejudicial, porque tomografia, você tem teu filho com sinusite, ou com suspeita de pneumonia. “Cara, faz um raio X, radiação pequenininha, exame barato”. O que os médicos estão pedindo? Tomografia. Então, eu faço um monte de tomografia que eu não precisava fazer, cara. De novo, é um perde-perde. Aí eu chego lá para o pessoal de operadoras planos de saúde: “vem cá cara, me paga, não precisa pagar 20 não, me paga 40 que eu vou comprar mais raio x”. (...) Aí sabe o que o cara fala? “Não! Você tem gordura na ressonância, você ganha dinheiro na ressonância”. Aí, para aumentar 40, ele vai querer me tirar, ao invés de pagar 500 na ressonância, vai querer me pagar 460, tá entendendo? Ou seja, é de uma esquizofrenia, entendeu?

Um entrevistado ainda destaca a dificuldade de ter que lidar com equipamentos

cada vez mais tecnológicos, que requerem, em função disso, profissionais

especializados capacitados para lidar com cada equipamento especificamente.

Segundo o entrevistado, havendo falha no manuseio ou manutenção do equipamento,

pode ocorrer erros que coloquem a vida do paciente em risco, conforme segue no

depoimento a seguir.

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Para você ver como isso é grave, quanto mais sofisticada a máquina, mais chance de erro você tem. Outro exemplo, que é prescrição eletrônica, como que era antigamente? O prontuário vai para o farmacêutico, ele dilui e aplica. Como que é hoje? Você entra no prontuário eletrônico, depende daquele prontuário funcionar direito, você depende da atualização do software, você depende da rede, você depende do dado ser colocado certo, você tem que ter checagem de dados, você tem uma complexidade enorme e é super lento. A chance de você ter erro só aumenta. Você vai trazer uma complexidade para o sistema e se você não trouxer uma gestão de complexidade, vira um inferno. Então, quanto mais você traz complexidade, teoricamente, em função de tecnologia e formação, se você não trouxer, ao mesmo tempo, gestão da complexidade, você só tem problema, entendeu? Então, hoje, por exemplo, com essas máquinas novas de radioterapia, como que elas funcionam? São lâminas, o software fala com a máquina, tem um campo desse tamanho e um monte de lâminas e as lâminas correm e o software faz uma programação para você ter um tratamento bem preciso, essas lâminas vão correndo e só passa uns filetizinhos de radiação e eles vão nos lugares certinhos e você consegue ser muito mais preciso e dá uma dose alta e proteger o tecido do lado, isso é um avanço enorme, porque você consegue tratar a pessoa com menos efeito colateral, com o grande benefício disso é você não irradiar o tecido normal, senão você lesa o tecido normal, mas esse software é faz as lâminas se falaram, ele faz elas irem se abrindo e fechando dentro de um determinado planejamento que você fez. Nos Estados Unidos, morreram várias pessoas porque o software não falou com a máquina, em vez de ele ter as lâminas correndo, ele irradiou com o campo aberto, saiu radiação direto, matou um monte de gente, entendeu? (...) E aí, quando eu vejo um cara que não sabe instalar o software, eu fico desesperado. (...) Pode matar o cara, pode matar o cara. O meu problema hoje na oncologia, tanto o remédio quanto a radioterapia mata a pessoa, se errar, mata a pessoa. Teve um caso em um hospital aqui do Rio de Janeiro eles irradiaram uma criança que estava tendo uma leucemia, ela já tinha feito o tratamento com a clínica, essa doença já tinha sumido, ela só estava indo lá para o exame consolidar, só para tentar evitar que a doença voltasse, fizeram a dose errada, deram 10 vezes a dose na criança, na cabeça dela, mataram a criança. (...) O sistema de saúde é uma das maiores inseguranças que existe na face da Terra. Teve um estudo que foi publicado em 2000, 99/2000, um estudo de medicina americana, eles fizeram o estudo em duas cidades americanas, uma era a Utah e a outra Nova Iorque, esse foi um negócio que foi assim, uma tempestade na saúde, os caras viram o seguinte: baseados nos dados de Utah e Nova Iorque, eles projetaram que o número de pessoas que morriam nos Estados Unidos, só nos hospitais americanos, por erro, variava de 50 a 100 mil pessoas por ano. O pessoal da Fiocruz fez uma coisa parecida com o Brasil, chegou em 200 mil pessoas morrendo por ano no SUS só por erro médico. O sistema de saúde é umas das coisas mais inseguras que você possa imaginar na sua vida. Vou te dar um paralelo: esse número, no Brasil, é a mesma coisa que 3 aviões da Ponte Aérea caindo todo dia, imagina como você ia viajar se 3 aviões caíssem por dia. (ENTREVISTADO#21)

Fatores Sociais

Os fatores sociais se referem a aspectos gerais da sociedade, como a

localização em que a população vive, isto é, em zonas urbanas ou em zonas rurais, o

que influencia diretamente as ações de prevenção que devem ser tomadas pelo setor

de Saúde; e a segurança da população e dos profissionais de saúde, uma vez que a

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baixa segurança da população tende a aumentar a demanda por serviços de saúde em

função de ferimentos e a baixa segurança dos profissionais de saúde em seus locais de

trabalho pode inviabilizar a prestação de serviços pelo profissional naquele local. Ainda,

vale ressaltar que o fator educacional, que poderia ser considerado um fator social, foi

destacado e analisado à parte anteriormente neste subcapítulo em função da sua

importância ímpar para o setor de Saúde.

No que se refere ao fator social, durante a Fase 1 do setor, o crescimento das

áreas urbanas se mostrou um desafio a ser navegado, uma vez que, com a

concentração populacional, muitas vezes em ambientes com baixa higiene, a

proliferação de doenças infectocontagiosas era facilitada. Esta situação só foi resolvida

a partir da chegada de Oswaldo Cruz à diretoria do Departamento Geral de Saúde

Pública, quando foram feitas reformas urbanas e a prevenção passou a ser

administrada por meio do combate aos vetores das doenças.

Adicionalmente, neste período ainda, verifica-se o isolamento população rural

das ações de saúde pública e dos atendimentos hospitalares. Apenas no final da Fase

1, os governantes e intelectuais do país tomaram conhecimento da situação de saúde

precária que o homem do campo vivia. No entanto, apesar de passarem a saber desta

situação, ações efetivas de prevenção e combate às doenças do campo só seriam

tomadas em escala nacional a partir da Fase 2, por meio da criação do SESP, do

DNERu e auxílio da Fundação Rockfeller.

Neste contexto, ainda na Fase 3, a navegação referente a este fator ainda se

mostra desafiadora, uma vez que faz-se necessário levar atendimento de saúde à

população dispersa geograficamente. Para resolver este desafio, o governo federal

lançou o programa Mais Médicos, mas que ainda teve outra dificuldade no que tange ao

fator social, a língua original da maior parte dos médicos contratados pelo programa,

que não é a língua portuguesa. Além disso, compreender as especificidades de

doenças típicas de cada região mostra-se ainda um obstáculo maior para o sucesso do

programa.

Outro desafio relacionado à navegação do setor de Saúde no ambiente ligado ao

fator social é a segurança do trabalhador de saúde. Segundo as determinações do

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programa de Saúde da Família do SUS, o profissional de saúde deve visitar a

população em seu domicílio. No entanto, em função da falta de segurança pública em

algumas regiões, havendo casos extremos em que certas regiões são dominadas por

facções e não pelo poder público, o profissional de saúde sente-se amedrontado de

realizar sua função conforme o sistema foi desenhado.

Exatamente, você ter os degraus, é perfeito, a teoria é muito bonita de ser estudada, de ser ler, priorizaria muito a atenção básica, que é o que todo mundo precisa, e você deixaria de encher os hospitais. O hospital já é um atendimento terciário, o primário seria tudo nas clínicas das famílias, mas o governo dá seus nós. É muito difícil. (...) você chegando lá tem que ir pra clínica da família que tem que dar conta de não sei de quantos atendimentos, você tem que fazer atendimento em comunidade, dá medo, se você entrar em uma comunidade da Santa Cruz, vai entrar na “Rola” [comunidade de Santa Cruz], fica até pesado, teoricamente você tem que ir lá, ver se o paciente está deitado, acamado. Bom? É, mas a realidade não ajuda, você vai se expondo, é muito amedrontador. (ENTREVISTADO#09)

Ainda no que tange aos problemas sociais que influenciam a navegação do

ambiente do setor, um entrevistado relatou uma experiência própria em sua trajetória

profissional em que teve de trocar de local de trabalho, em função de uma ameaça

recebida.

Porque é muito desgastante, tudo muito moroso, tudo muito ameaçador. Eu recebia ameaça no Andaraí diariamente, eu não tinha hora de chegar, tinha hora para sair, às vezes eu chegava e tinha presente em cima da minha mesa e eu tinha que chamar a polícia para ver o que era, porque tinha ameaça de bomba. Porque quando você não entra no sistema paralelo que está alocado nesse sistema de saúde, é muito complicado. (...) Eu tinha trabalhado com esse médico que era o “Neiva”, cirurgião, ele era plantonista na emergência do Andaraí e eu trabalhava na emergência também. Aí, quando ele assumiu a direção eu não estava mais na emergência, eu já estava trabalhando à noite no centro de tratamento de queimados, porque eu me indispus, me senti ameaçada por policial dentro da emergência, porque eu não conversava. Eu dizia assim, eles levavam as pessoas lá e ficavam dentro da sala de fuzil, de arma: "ih, não bota soro nele, isso tem que morrer mesmo, porque é um traste", eu botava eles para fora da sala "saiam daqui, sua porta é dali para fora, se quisesse que ele morresse, não trariam aqui. Aqui você não manda nada". Assim foi. Um belo dia culminou com uma história com esse amigo dele, que ele estava de plantão e eu estava também e, no final de semana, às vezes eu fazia supervisão no hospital inteiro. Os responsáveis pelo hospital, tinha enfermeiro, tinha tudo, mas era o chefe da equipe da emergência e a enfermeira responsável pelo plantão. Eu era responsável pelo plantão. Era hábito da gente passar em todas as unidades e ver como estavam os pacientes, os mais graves pelo menos, a gente

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tinha que resolver as encrencas. Chego lá no 13º, centro cirúrgico, passei, olhei no rol e vi 3 policiais e o Andaraí, um lado dele dá de frente para o morro. Fui lá no centro cirúrgico, olhei o mapa, vi se estava completo, se tinha alguma coisa faltando, voltei e eles estavam lá. Parei e conversei com eles: "bom dia, vocês estão fazendo o que aqui?", estavam de binóculos: "ah, nós estamos observando o movimento do morro", "mas quem autorizou a entrada de vocês?", "mas a gente não precisa", "precisa, aqui é um setor público, mas a gente precisa saber quem está dentro do hospital", aí falei "sou fulana e o fulano está lá embaixo na emergência. Nós dois hoje somos responsáveis. Então, eu pediria a vocês, que vocês fossem lá embaixo e se apresentassem ao chefe de equipe". “Ah, tá bom.” Fui descendo, a emergência é lá embaixo: "Eaí, doutor ***, tudo bem?” “Ah, tudo bem, nada de anormal, só chegando gente, não sei o quê” :Tem 3 caras assim, assim, assim", “Onde??” Ele era militar. Eu falei: “Lá em cima” “Vamos lá” Chegamos lá em cima, aí ele botou os caras para descer: "aqui vocês não ficam, senão eu dou ordem de prisão para vocês”, os caras foram embora. Ele fez um comunicado para a direção do hospital, que era o amigo dele e o amigo dele fez para o 6º Batalhão e nós assinamos, ele assinou e eu assinei. Passou não sei quanto tempo, e eu já enfrentava os caras lá... Aí, um dia o sujeito bateu nas minhas costas, aí eu falei assim: “O que o senhor deseja?” "a senhora não se lembra de mim não?", "não", "ah, é assim mesmo, quem bate esquece, mas quem apanha não esquece. A senhora se lembra daquele dia lá em cima?", "sim, o que tem?", "pois é, eu e meus amigos ficamos uma semana detidos, mas é assim mesmo, um dia da caça e outro dia do caçador, a gente sabe que a senhora trabalha aqui, a hora que entra e a hora que sai", aí eu falei assim: "está sabendo muito hein", aí ele: "é, pior vai ser o dia que aparecer com a boca cheia de formiga". Saí depois fui lá e falei "Gente, o que é boca cheia de formiga?", tinha um auxiliar de enfermagem que tinha uns 2 metros de altura: "Boca cheia de formiga, tia? Você não sabe? Vão te matar e te jogar no valão, aí você fica cheia de formiga", aí eu falei: “O quê?! Não quero graça com esses caras não", aí pedi para me transferirem para o centro de tratamento de queimados, que era a única vaga que tinha e eu não queria trabalhar, vou ter que me transferir para noite, aí eu fui para lá. (ENTREVISTADO#10)

5.1.2 Desafio de Gestão da Diversidade

Nos antecedentes do setor, foram verificados alguns avanços significativos em

descobertas científicas, como, por exemplo, a descoberta das vacinas, que puderam

oferecer uma prevenção maior a doenças, além do desenvolvimento de alguns tipos de

procedimentos cirúrgicos. Outro crescimento verificado no período anterior à primeira

fase foi a diversidade de profissionais que ofereciam serviços de cura, já que havia

diversos tipos de profissionais com conhecimento prático atuando no setor. No entanto,

apesar do crescimento da diversidade neste período, não há dados suficientes para

avaliar como o setor respondeu ao crescimento deste desafio.

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No entanto, ao longo da primeira fase, o diagnóstico e tratamento de doenças

começou a ser exclusividade do médico, cuja profissão passou a ganhar maior

legitimidade. Em parte, essa legitimidade se deve à continuidade dos avanços

científicos, que afastaram cada vez mais a medicina, baseada em conhecimentos

técnicos e comprovados cientificamente, do misticismo e curandeirismo, sem bases

científicas. Sendo assim, na primeira fase, em 1890, o novo código penal brasileiro

proibiu a prática do curandeirismo, implicando em uma diminuição da variedade de

profissionais de saúde à época.

Em 1889, com a declaração da República, foi decidido que os poderes locais

seriam responsáveis pelas ações de saúde e que o poder central iria auxiliar em casos

de epidemias. No entanto, foi verificado que o governo central recorrentemente

recusava ou limitava os repasses financeiros ao estado de São Paulo, onde estava

concentrada a atividade econômica da época, baseada na agricultura. Desta forma, o

estado teve que investir em uma estrutura de saúde própria, à parte do resto do país,

com órgãos e regras próprias, o que evidenciava uma fragmentação do setor de Saúde

neste período. Um exemplo que marca essa fragmentação é a criação, no mesmo ano,

do Instituto Soroterápico Federal, no Rio de Janeiro, e Instituto Butantan, em São Paulo.

Ambos os institutos tinham o mesmo objetivo, o de produzir soros e vacinas para

combater as doenças epidêmicas.

Vale ressaltar que, ainda no final da primeira fase, há evidência de mais um traço

de fragmentação no setor de saúde. A partir das expedições científicas ao interior do

país, foi constatado que os esforços feitos individualmente pelos municípios para

combater os transmissores das doenças tinham pouco efeito, uma vez que, não

havendo uma integração dos esforços na região de entorno, isto é, os municípios

vizinhos não buscando também a prevenção, aquele município que implicou um esforço

também seria acometido pelos transmissores, que migrariam de um município para

outro.

Apenas em 1918, com a chegada da gripe espanhola no Brasil, é que a Diretoria

Geral de Saúde Pública foi reorganizada na Diretoria Nacional de Saúde Pública, que

buscaria maior organização da estrutura sanitária no interior do país, isto é, maior

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interação dos serviços. No entanto, conforme será exposto mais à frente, esta

integração não foi bem-sucedida, uma vez que durante toda a segunda fase, haveria

pouca ou nenhuma sinergia entre os órgãos responsáveis pela prevenção no interior do

país.

Uma fragmentação no setor que marca todo o período da segunda fase é a

dicotomia na prestação de serviços. De um lado, o poder público efetuava ações

preventivas e de saúde coletiva, organizadas pelo Ministério da Saúde, criado no

período contido nesta fase. Do outro, a saúde previdenciária oferecia uma estrutura de

medicina curativa e saúde individual, a partir da construção de manutenção de grandes

hospitais, disponíveis apenas para aqueles que contribuíam com a previdência.

Ainda, dentro da saúde previdenciária, verifica-se também uma fragmentação. O

sistema previdenciário foi criado de maneira fragmentada, com iniciativas isoladas por

parte de algumas empresas. Posteriormente, durante a presidência de Getulio Vargas,

os serviços previdenciários foram unificados por categorias de profissionais. Apesar

deste esforço de integração, por muitas décadas, houve uma fragmentação formal do

acesso aos serviços de saúde, em que apenas os conveniados daquela categoria

poderiam ter acesso aos serviços oferecidos por ela.

Assim, por muitos anos, cada categoria esforçava-se para oferecer melhores

serviços de maneira completamente independente das demais estruturas de saúde

montadas pelos outros sindicatos. Ademais, o próprio governo à época estimulava esta

desintegração entre as categorias, uma vez que os sindicatos tinham que negociar

individualmente junto ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio quais seriam os

benefícios e as regras de funcionamento do seu respectivo Instituto de Aposentadoria e

Pensão, o que gerava traços de rivalidade entre eles.

Nestas condições, na segunda fase, houve o surgimento e crescimento do

número de Caixas de Aposentadorias e Pensões e de Institutos de Aposentadoria e

Pensão, cada um representando uma parcela dos trabalhadores e oferecendo um

conjunto único de opções de prestadores de serviços e regras de funcionamento. Tal

situação evidencia que havia uma grande fragmentação e um crescimento da

diversidade neste período.

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Devido à implantação do Plano Beveridge na Inglaterra, a partir da década de 40,

iniciou-se uma mudança de mentalidade, que passou a atribuir ao Estado maior

responsabilidade sobre a saúde da população. Desta forma, no Brasil, o Estado passou

a regulamentar os IAP’s com o intuito de ampliar a cobertura e os serviços de saúde,

tendência que levou, paulatinamente, aos IAP’s buscarem sinergias entre seus

serviços. Em 1949, os Institutos se uniram para oferecer um serviço de assistência

domiciliar, o que se mostrou a primeira união destes órgãos que, até então, agiam de

forma completamente independente uns dos outros. Em 1955, a criação do Serviço de

Assistência Médica da Previdência Social, serviço comum a todos os IAP’s é outro

exemplo da tendência de lenta união e, em 1966, a unificação dos IAP’s em INPS reduz

a fragmentação formal no acesso aos serviços de saúde entre as classes trabalhadoras

existente até então, além de ampliar a oferta dos serviços aos trabalhadores com

carteira assinada e que, até então, não pertenciam a um sindicato com IAP.

No que tange aos serviços públicos de saúde, a segunda fase também

demonstra uma fragmentação das ações do setor. A Reforma Capanema, iniciada em

1937, centralizou as decisões do Ministério de Educação e Saúde e ampliou os serviços

de saúde às regiões rurais, por meio dos Serviços Nacionais de Saúde. No entanto,

esses serviços foram administrados de maneira isolada, havendo uma coordenadoria

para cada tipo de doença. Apesar da unificação desses serviços, em 1956, com a

criação do DNERu, não houve real união da gestão, uma vez que, na prática, ainda o

controle separado.

Ademais, em 1942, foi criado o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), do

governo brasileiro em parceria com a Fundação Rockfeller, com o objetivo de controlar

a malária e a febre amarela nas regiões de extração de minérios e de borracha. O

SESP cresceu e expandiu seus serviços de maneira independente dos demais Serviços

Nacionais de Saúde. Mesmo quando houve a união destes últimos, com a criação do

DNERu, o então SESP, já transformado em Fsesp, continuou atuando de maneira

autônoma, isto é, sem uma coordenação única que estabelecesse o aproveitamento de

sinergias entre os dois órgãos, que atuavam com o mesmo propósito. Uma união

destes órgãos só seria efetivada em 1990, o conjunto se transformaria na Fundação

Nacional de Saúde (Funasa).

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Adicionalmente, na segunda fase, houve um novo aumento de diversidade e,

consequentemente, da complexidade, quando surgiram, principalmente a partir da

década de 1960, a modalidade de convênio de plano de saúde. Esta possibilidade de

financiamento criada aumentou um player na cadeia do setor, conforme pode-se

verificar na Figura 5-4.

Figura 5-4 Relação contratual entre os agentes do Sistema Suplementar de Saúde no Brasil

Fonte: (ARAUJO, 2005)

Além disso, as medicinas de grupo se mostraram uma nova forma de os médicos

se unirem, de modo a prestarem seus serviços, sem terem que se submeter a valores

de remuneração impostos pelas operadas de planos de saúde. Vale ressaltar que

relação entre as operadoras de planos de saúde e os médicos será um dos pontos de

intensos conflitos, principalmente a partir da terceira fase.

Outro fator que elevou o nível de diversidade existente no setor de Saúde foi a

introdução de novas tecnologias. Enquanto que, nos períodos anteriores, esse avanço

ocorria de maneira pouco acelerada e com poucas mudanças significativas, durante a

Fase 2, o setor experimentou diversas novidades, que mudaram significativamente a

forma de prestar os serviços em saúde. Neste sentido, o Entrevistado#09 destaca a

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mudança ocorrida na relação médico-paciente, devido à inserção de novas tecnologias

no processo de diagnóstico e de terapia, ocorrido na segunda fase.

Vinha de movimento mesmo porque, o que foi acontecendo? Muito estudo, muito desenvolvimento tecnológico. Então a tecnologia dominava, a medicina anteriormente você não só escutava o paciente, como você examinava o paciente. Com a evolução tecnológica, observou que você fazia com as mãos, que é apalpar, ver as funcionalidades do pulmão, por exemplo, você substituiria por um raio x, por uma tomografia, mais tarde por ultrassonografia, foi observando pelos meios tecnológicos, e a medicina clínica pura foi perdendo terreno. Tem um lado muito positivo, existem várias doenças que não eram diagnosticadas que passaram a ser, um exemplo clássico é a endometriose, tinham mulheres com dores, era uma menstruação muito intensa e ninguém sabia o porquê, achavam que era assim mesmo e a partir do advento da ultrassonografia e dos outros exames, começou a descobrir que era um problema físico que existia, justificando aquilo. Então foi isso que levou, a tecnologia começou a ser vista, todo mundo entusiasmado com os avanços tecnológicos. (ENTREVISTADO#09)

Ainda durante a Fase 2, houve uma diversificação grande das ideologias sobre o

papel da medicina e como ela deveria ser aplicada. Desta forma, criou-se um embate,

gerando alguns grupos que entraram em conflito, principalmente durante o movimento

da Reforma Sanitária, em que alguns grupos defendiam que os serviços de Saúde

deveriam ser prestados apenas pelo setor público, enquanto outros defendiam a

participação do setor privado também. Neste sentido, segue o relato de um dos

entrevistados.

Quando eu comecei a trabalhar, o sistema era mais ideológico, você tinha um embate de forças muito grande, entre o chamado setor público e o setor privado. O setor privado ele era mais ignorante mesmo, sob o ponto de vista da chamada questão ideológica. Então, era um embate ideológico muito pesado dos 2 lados, de um lado o sanitarismo levado as suas últimas consequências: “o privado tem que sumir, tem que desaparecer, o nosso sistema de saúde não pode ter a menor exceção, ele tem que ser tudo estatal e não público, setor estatal” e, do outro lado, o setor privado, ele tinha um pouco daquela visão que na época chamava de capitalismo selvagem, pouco compromisso, muita visão de resultado financeiro e aqueles que, de alguma forma, vinham e traziam inovações, eles, de alguma forma, eram desumanizados. (...) Então, isso, naquele momento, acirrou muito os ânimos. Hoje eu já vejo uma situação mais distinta, já se reconhece a necessidade de você trazer a gestão privada para o setor público. O setor público de alguma forma já se acostumou com algumas iniciativas focadas na terceirização de gestão, não estou dizendo que não haja críticas, ainda existe, por exemplo, pessoas como a professora (*nome*), que é do Rio de Janeiro e você conhece,

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que tem uma visão muito ideológica, vamos dizer assim, uma pessoa que acredita naquilo de uma forma muito positiva e trabalha, conhece e faz, eu acho que isso é sempre importante que a gente faça, que possa ter um debate como esse. Então, assim, eu digo para você que a principal mudança foi essa, de ambiente. (ENTREVISTADO#25)

Apesar da união dos serviços públicos de saúde no SUS, o setor de saúde,

durante a terceira fase, continua a enfrentar uma fragmentação generalizada. Esta falta

de interação abrange diversos stakeholders e acaba por gerar uma sensação de

desconfiança e conflito entre praticamente todos os players do setor. O relato a seguir

evidencia com clareza a falta de confiança entre os players do setor de saúde e ainda

aborda a baixa mensuração existente neste setor como uma das causas para a falta de

confiança.

A primeira providência que a gente deveria estar, todos, buscando é construir uma relação de confiança. O John Nash, que era um matemático que ganhou o prêmio Nobel e que foi inspirador do filme “Uma mente brilhante”, ele escreveu a teoria dos jogos e ele ganhou o prêmio Nobel quando ele escreveu a teoria do equilíbrio dos jogos e não a teoria dos jogos, que já tinha sido escrita, mas a teoria do equilíbrio dos jogos. E ele demonstrou, matematicamente, por uma equação, que, quando todo mundo quer ganhar às custas do outro, no final do ciclo, da conta, todos perdem. Então, no sistema de saúde brasileiro, há uma desconfiança monumental de todo mundo, um desconfia do outro, ninguém confia em ninguém, está entendendo. Então, a primeira coisa que eu imagino que a gente pudesse estar fazendo para construir uma relação de confiança é quebrar essa relação de desconfiança que existe, senão todo mundo perde. O plano de saúde glosa você, porque acha que você está roubando, você já sabe que o plano de saúde vai te glosar, então você aumenta o seu faturamento com fraude, para poder cobrir a glosa, o paciente tem a carteirinha dele e dá para empregada para fazer uma ressonância magnética no nome dela e esse ciclo não fecha, a conta não fecha no final, todo mundo paga mais, todo mundo se dá mal, todo mundo. Isso não sou eu que estou dizendo, quem disse foi o John Nash, que provou e ganhou um prêmio Nobel: quando todo mundo quer enganar todo mundo, no final, todo mundo perde. Então, como é que se constrói uma relação de confiança? (...) Então, só tem uma maneira de você conferir as coisas no sistema de saúde, é se você tiver a informação para ser conferida. Então, o primeiro desafio, eu volto ao tema outra vez, é recorrente nele, nós temos que medir tudo, você está entendendo, processo de qualidade de medição. Eu tenho que medir tudo para poder demonstrar que eu fiz corretamente aquilo que eu estou cobrando e o plano de saúde vai confiar na minha informação, mas ele vai conferir de vez em quando para ver se eu realmente estou cobrando aquilo que eu estou informando, que eu estou fazendo, entendeu. Eu tenho que construir essa relação de confiança, eu tenho que abrir... eu sei que é difícil a gente construir uma relação de confiança quando o mundo não é regulado pela moralidade, o mundo é regulado pela economia. Então, a gente tem que saber que as pessoas vão estar de olho é na economia, onde é está a grana, onde está o dinheiro: “por que você está me cobrando isso?” e tudo mais. Então, você tem que estar muito seguro de que você está fazendo um procedimento, ou está investindo em uma

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tomografia... Por que o que acontece hoje é o seguinte, você nunca sabe se o Estado está investindo em um tomógrafo, porque é para o comissionamento que um político da x, y, z está ganhando ou se é por real necessidade daquela população. Como é que você vai...? Você não tem nada medido, ninguém tem um controle sanitário do Estado, no Rio e nem Brasil. (ENTREVISTADO#18)

Uma das evidências de fragmentação no setor pode ser verificada a partir da

falta de comunicação e troca de informações sobre os pacientes por parte dos

prestadores de serviços e das operadoras de planos de saúde. Caso houvesse tal união

para troca de informações, à semelhança do que ocorre no setor bancário, em que os

bancos compartilham uma lista com clientes que costumam ser inadimplentes, o setor

de Saúde teria benefícios, já que os prestadores e operadoras poderiam conhecer

melhor o histórico do paciente logo no primeiro momento de contato. O relato a seguir

evidencia esta situação.

Acho que um grande problema que você tem hoje na saúde suplementar é assim, a falta de integração entre todo o desenrolar da vida de um cliente, até porque, quando ele troca de operadora, ele não leva o histórico dele. Então, acho que isso é um erro. Eu sempre escutei que todo mundo ia ter um cartão único de saúde, dentro do SUS, né. Acho que isso seria uma coisa muito interessante, você ter a história do paciente desde que ele nasceu até a hora que ele vai morrer. Você tem esse histórico, então você sabe o que ele já fez, o que ele não fez, ao que é alérgico, ao que não é alérgico. Você ganha tempo nisso. Então, o processo de integração e de informação é muito interessante sobre esse ponto, como também a fragmentação no tratamento. Quem faz determinado procedimento não passa para o outro que fez, o hospital não manda para o médico que atendeu e o médico não sabe o que foi feito lá no hospital, é uma fragmentação. (ENTREVISTADO#23)

Outro entrevistado destaca a falta de integração que existe no sistema, no que

diz respeito ao desconhecimento dos prestadores de serviços de saúde quanto ao

histórico dos serviços utilizados pelo paciente antes de ingressar em uma unidade de

saúde.

Não existe, por exemplo, nem um e nem outro, nem no SUS e nem nos planos de saúde, na saúde complementar um sistema de hierarquização, não existe um

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sistema de referência e contrarreferência, não existe um sistema de controle de utilização mais eficaz, não existe um sistema de fazer com que o paciente efetivamente participe do funcionamento do negócio. Então o que acontece? Eu pago um plano de saúde e se eu pago um plano de saúde ou contribuo com o SUS de uma outra esfera, o pensamento do cliente é basicamente o seguinte: “se eu pago eu tenho direito a tudo”. E normalmente existe uma super utilização. Então você olha, estatisticamente, tem pacientes que fazem uma quantidade de um determinado exame no ano que fica inviável até você imaginar como que o indivíduo conseguiu realizar tantos exames em tão pouco espaço de tempo e por outro lado você pensa assim, não foi o mesmo médico que pediu isso aí porque o mesmo médico não ia pedir 20 hemogramas no ano. Então você imagina que aquele paciente vai ao médico, por um motivo qualquer, a demanda dele não foi atendida, ele já vai a um outro médico, muitas vezes nem fala que foi ao anterior, não mostra o que ele já fez e aí ele repete tudo aquilo ali e isso acaba gerando uma utilização que é irreal. Eu costumo dizer que eu fico muito angustiado quando eu vejo na propaganda política na esquina da minha casa assim, o hospital tal realizou “não sei quantas mil consultas” e eu fico me perguntando assim, quantas dessas consultas foram eficazes, resolveram alguma coisa, quantas dessas consultas não foram re-consultas em função da demanda não ter sido atendida em uma primeira consulta, quantas dessas consultas poderiam ter sido evitadas se eu tivesse um sistema mais organizado e tivesse mandando esses pacientes para os lugares certos, para receber o atendimento certo que ele precisa? Então ele não sabe o que ele faz e continua voltando na esperança de que em algum momento alguém se compadeça por ele e faça alguma coisa que resolva o problema dele e a gente vai caminhando cada vez mais de uma forma desorganizada. Outra coisa que eu acho interessante é que a tecnologia nesses últimos 30 anos depois que eu me formei, ela invadiu o nosso mundo. Quando eu me formei o computador era uma coisa que era irreal para se acreditar, essa história de falar vendo a pessoa na telinha do celular era uma coisa que só via isso no desenho animado e essa tecnologia foi incorporada em vários setores. No sistema bancário, por exemplo, eu praticamente não falo mais com o profissional, eu falo com a máquina, só que na saúde a tecnologia foi incorporada basicamente na questão de controle financeiro, na atividade médica em si essa tecnologia praticamente foi incorporada, lógico, na eficácia de alguns aparelhos, mas na questão da gestão da saúde, de eu ter o controle do que está acontecendo, de eu evitar a duplicidade de procedimentos, de eu facilitar o acesso e a resolução de problemas, isso não acontece. Se você for tentar ligar para um telefone que marca consulta você vai entender muito bem o que eu estou falando, é praticamente impossível. (ENTREVISTADO#12)

Além disso, outro ponto que foi ressaltado por diversos entrevistados refere-se à

fragmentação entre o setor público e o setor privado. Os relatos indicaram que há

pouca integração entre os dois.

O maior desafio que eu vejo é a integração do sistema de saúde, e esse não é um desafio só do Brasil, esse é um desafio no mundo. A saúde, eu volto a te dizer, é um bem público, de desejo e necessidade de qualquer sociedade, que ela necessita ser gerida com princípios rígidos, mas com humanização. No último congresso mundial da confederação de hospitais, (...), a Margaret Chan que é diretora geral da Organização Mundial de Saúde, ela usou uma frase que eu tenho usado muito: “Na saúde, os players, os profissionais precisam trabalhar mais integrados, com mais comprometimento e com

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mais amor.” Fruto daquilo que eu te disse: ninguém vai procurar um serviço de saúde que não seja uma necessidade. A gente lida com um bem que não se mesura, a vida humana, a saúde é um bem da vida humana. Quanto vale sua vida ou de um ente querido seu? Não tem preço. Então, a prestação de serviços da área de saúde, não é a prestação de serviço de qualquer outro braço da economia, é um braço diferente, é uma coisa diferente, a gente pode estar aqui discutindo isso e, daqui meia hora, eu enfartar aqui e precisar de um serviço de saúde, e eu saio de gestor para um paciente, para um usuário, para um consumidor de sistema de saúde. (...) Olha só, o órgão regulador tem essa missão de regular, hoje, 50, quase 51 milhões de brasileiros tem plano de saúde, 21 milhões tem plano odontológico. Então, nós estamos falando de 25% da população brasileira, a gente tem que criar, na gestão, os alicerces para outras diretorias que compõe a Agência, a gente precisa, na hora de gestão, trabalhar as pessoas, está certo, buscar o diálogo sempre, ter a consciência que não somos os senhores da razão e que podemos, com esse diálogo, agregando pessoas do bem, construir cada dia uma melhor saúde para nossa sociedade. Na hora que nós estamos atendendo 51 milhões de brasileiros e integrando eles ao sistema de saúde brasileiro, nós estamos ajudando os outros 150 milhões de brasileiros. (...) Vamos lá, por exemplo, a gente fala de prevenção, o sistema público, ele faz os programas de saúde família, os programas da saúde vão à sociedade, vão atender a população, vão acompanhar a população, vão fazer a prevenção e você tem, no sistema suplementar, também isso. Hoje, as grandes, as boas operadoras, elas estão preocupadas em incentivar muitos programas de prevenção, porque, na hora que ela faz uma boa prevenção, ela diminui que aquele usuário dela vai utilizar o sistema, economicamente, e em termos de satisfação é melhor. O sistema de saúde suplementar é muito mutualismo. Então, enquanto ele continua naquela carteira, pagando, aquela carteira financia todos, não é verdade? Não há interesse para operadora que a pessoa morra. Então, são ações que se potencializam. (ENTREVISTADO#22)

O relato a seguir evidencia que ambos ganhariam bastante sinergia, se

combinassem melhor suas ações.

Eu acho que, cada vez mais, a gente fala que... Se diz que existe um Sistema Único de Saúde, mas, na verdade, você tem um sistema público que é ineficiente e um sistema privado, que se diz eficiente, para um conjunto da população. Acho que a integração entre esses dois grandes sistemas vai ter que acontecer um dia. Acho que isso é o caminho natural. É difícil, mas é a forma de você pegar um país imenso... É muito grande o Brasil, condições totalmente distintas do que você tem no norte, no sul, o que tem no sudeste, que talvez é onde você tenha a melhor... Mas, de alguma forma vai ter que homogeneizar alguma coisa. Talvez, os sistemas vão ter que se falar um pouco mais, né. Os próprios sistemas dentro dos sistemas privados vão ter que se falar um pouco mais, talvez um grande birô de informações que você tenha, como eu te falei, um cartão único de saúde, isso é importante. O trabalho de promoção e prevenção à saúde que não era feito dentro do sistema privado, ele vai ter que aumentar e, nisso, a saúde pública sempre teve esse histórico de fazer muito bem. Então, uma coisa que dentro da cooperativa da Unimed-Rio a gente aproveitou trazendo colegas de dentro do serviço público e tentou implementar isso... Acho que isso é uma coisa que vai acontecer, que deveria acontecer para você se falar melhor, né. (ENTREVISTADO#23)

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O próximo relato ainda destaca a complementariedade dos serviços de saúde

público e privado, evidenciando ainda uma herança da segunda fase, quando o setor

público assumiu a responsabilidade da saúde preventiva e coletiva, enquanto que o

setor privado focou seus esforços na saúde individual e curativa.

Quando você fala do setor privado, o nosso modelo é todo desierarquizado. A assistência à saúde, ela é uma coisa horizontalizada, ela não pode ser uma coisa verticalizada. Então, quando eu falo de *** do setor privado, estou querendo dizer o seguinte, você tem um problema de saúde agora, você sai da sua casa e vai para o pronto socorro, você não vai a um médico seu, você não vai a um posto de assistência, você não vai ao ambulatório, vai direto para o pronto socorro, ou seja, você, no setor privado, você não faz... não tem uma promoção de saúde, você não tem uma prevenção: "Queria fazer uma prevenção aqui, para pedir uma série de exames, para saber se eu tenho câncer de próstata, se eu preciso se tratar e etc e tal". O seu plano de saúde não topa pagar isso, entendeu? Porque ele não quer fazer vacina, vê se um plano de saúde... vacinação de pneumonia, vacinação de HPV para jovens, não tem isso. Ele só paga o atendimento episódico e é exatamente depois daquilo que ele se queixa. Então, é isso que eu estou dizendo para você. Já o setor público, ele consegue ver a saúde de uma forma horizontalizada, ele não consegue fazer, ela consegue ver. Então, por isso que eu lhe digo, eles têm um sistema de saúde que nós poderíamos aproveitar de uma forma bem importante. São essas duas questões resumidamente. (ENTREVISTADO#25)

Ainda, um dos pontos levantados, no que se refere à interação entre o sistema

de prestação de serviços público e o privado, foi a necessidade, por lei, de os planos de

saúde terem de ressarcir o SUS pelos gastos que seus conveniados venham a incorrer

sobre o sistema público. Esta obrigatoriedade evidencia uma fragmentação explícita

entre os dois sistemas, além de se mostrar, em certa medida, paradoxal, uma vez que,

segundo a Constituição de 1988, todos os brasileiros têm direito a usufruir do sistema

de saúde público gratuitamente.

Com um detalhe, que me parece um detalhe relevante e complicado, que é o seguinte todos nós brasileiros quando descontamos o INSS uma parte do nosso desconto é para custear a assistência médica e, por outro lado, você tem um plano privado onde você também paga. Então na realidade você paga duas vezes para ter assistência médica. Isso até hoje não foi corretamente resolvido,

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porque me parece uma incoerência eu pagar para o SUS quando na realidade eu não uso o SUS, eu uso o sistema privado e vice-versa. Tanto que a área pública está cobrando das operadoras os atendimentos que elas fazem em segurados que deveriam estar na área privada que e estão sendo atendidos pelo SUS. (ENTREVISTADO#16)

O entrevistado a seguir questiona, uma vez todos pagam impostos para financiar

o SUS, o porquê de se ressarcir o poder público quando um conveniado a um plano de

saúde particular utiliza o SUS.

Se você for ver em gasto com saúde, a saúde suplementar gasta 60% e o SUS gasta 40%. O recurso que foi alocado, o gasto de saúde no ano, o SUS para atender a população como um todo gastou 40% e o plano de saúde gastou 60%. Uma polêmica que tem hoje muito grande é a seguinte: não sou obrigado a pagar o SUS? Eu pago plano de saúde. Se eu for atendido na emergência, sofro acidente e fui atendido na emergência, meu plano de saúde tem que ressarcir ao governo. Mas eu não sou segurado do SUS também? Então, qual é a obrigação que ele tem para comigo? Por que ele não me libera da contribuição para eu pagar um plano de saúde melhor? Porque eu financio quem não tem recurso para comprar plano de saúde, para quem não tem recurso para contratar plano de saúde. Não é complexa essa situação? Se eu for atendido na emergência, vou ser atendido pelo SUS, mas o SUS vai gerar uma guia, se eu disser que eu tenho Unimed, e ele vai cobrar da Unimed o meu atendimento. (...) A gente tem lá uma alíquota na nossa planilha que é ressarcimento ao SUS. Todo mês chega lá uma quantia do SUS de pacientes que tem Unimed e foram atendidos em unidades do SUS. Eu tenho que repassar esse valor para ele. Então, conclusão: o governo cada vez mais quer se desobrigar de prestar o atendimento de saúde. (ENTREVISTADO#12)

O Gráfico 5-2 evidencia o crescimento do número de internações e do valor total

pago pelas operadoras de planos de saúde ao SUS.

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Gráfico 5-3: Ressarcimento das Operadoras de Plano de Saúde ao SUS

Fonte: ANS Tabnet (2014). Disponível em: <http://www.ans.gov.br/anstabnet/>. Acesso em: 21

set. 2014

Talvez, uma das causas responsáveis por originar a desintegração entre os

sistemas público e privado seja de cunho ideológico. Conforme visto anteriormente,

parte daqueles que atuam no setor de Saúde defendem que a prestação de serviço

deve ser majoritariamente pública, em detrimento da prestação privada, ideologia que

marcou fortemente o Movimento da Reforma Sanitária, antes da criação do SUS. Neste

sentido, por outro lado, alguns entrevistados defendem uma maior união entre o público

e o privado, para que possam ganhar sinergias e serem mais bem-sucedidos ao

enfrentarem os desafios do setor, conforme segue nos relatos a seguir.

É, sabe, aí começa a filigrana. Porque aí começa o grupo dos privatistas, o grupo da iniciativa privada... a Saúde é uma só. Quando você sofre um acidente aí, hoje você tem o SAMU. Mas, quando você precisa, você vai no primeiro hospital, tenha ou não tenha convênio, pode ou não pode atender, até porque, pela legislação constitucional, você é obrigado a dar atendimento. Quem vai pagar essa conta depois é outra coisa. Se o Estado vai pagar, se você vai pagar, se você vai ser cobrado, se você não vai ser cobrado, se tem plano de saúde, se não tem. Você não pode é entrar em uma omissão de socorro. (...) Então, eu te diria que isso é um pouco assim de uma história e,

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como o Brasil tem hoje, tem um sistema que é misto, não adianta dizer que não tem, o pessoal que é mais ligado aos grupos dos sanitaristas diz: “ahh...” Não, a gente tem um modelo que eu te digo até por atividades que a gente teve de representação fora do país, eu convivi com a Federação Internacional de Hospitais, eu fui o primeiro e único brasileiro a dirigir essa instituição, congrega 130 países. E ela não tem nos seus afiliados só hospitais, ela tem serviços de saúde, ela tem ministérios da saúde. O NHS [National Health System], que é um sistema que é referência para o mundo, é filiado a ela. Então, o que a gente viu no mundo inteiro, dos continentes todas, é que este sistema é um desejo de todos. Por quê? Vamos pegar o sistema americano: privatista, o cara investindo 4 trilhões lá. O que o americano investe em saúde é o PIB do Brasil. O nosso PIB é 4 trilhões, não é isso, de reais. É esse o investimento em saúde. É fácil de ver, olha aqui: 300 milhões de americanos, 8 mil dólares per capita, 7, que fosse 7, dá 21. Bota aqui a 2... 4. Número macro. Quer dizer, e o cara tem 50 milhões que não têm nada, nada, zero. Não têm nada. Do outro lado, os sistemas muito públicos, e o NHS foi uma escola dessas. Mas o próprio NHS, que é do Reino Unido, ele hoje já procura criar parcerias, por isso eu falei daquela parceria público-privada com a primeira Santa Casa. Aí, ele procura exatamente fazer esse mix, aproveitar o que cada um faz melhor. E, hoje, eles procuram criar essas parcerias em vários países da Europa, na Espanha, na Itália, no Reino Unido, a própria França tem, Alemanha que era um sistema só público, quando você vai para Ásia também. Quer dizer, particularmente, o que a gente vê é o seguinte, nós precisamos atender a sociedade e, quando você tem esse mix, você tem por quê? Porque o Estado, como ente, tem que investir em saúde, ele tem que investir em educação, ele tem que investir em segurança, tem que investir em estrutura básica, ele tem que investir em previdência, que hoje é uma rubrica importante nos orçamentos dos países, porque todos estão vivendo mais. Então, você tem que compartilhar ações nos gastos, que entre aspas, não são gastos, são investimentos em saúde. (ENTREVISTADO#22)

Então, o que eu vejo hoje e é uma grande preocupação quando era gestor público é que existe o dogma do SUS, que é mais forte do que a nossa população. Eu acho que a reforma sanitária foi uma revolução, mas nós estamos presos de revolução de 25 anos atrás. (...) Nós estamos presos nos dogmas, a gente não está conseguindo entender as discussões ainda de quem faz saúde pública, principalmente alguns sanitaristas: “Ah, o serviço tem que ser 100% público, o serviço não pode ser exercido por nenhum parceiro privado, se for tem que ser parceiros sem fins lucrativos” e eu não concordo. Eu acho que a constituição diz de forma muito clara que é saúde do direito, como nós vamos fazer, não interessa, porque tem que garantir é equidade, acesso e gratuidade, ou seja, o que não pode ter é mecanismos que foram criados, como: “Ah, a pessoa que tem dinheiro pode internar em uma enfermaria diferente, a pessoa que tem dinheiro que paga um pouco a mais pode começar a internar plano de saúde dentro do hospital universitário”, isso é uma aberração, são coisas separadas. O Fundão na época começou a internar Golden Cross, Amil, etc, para se financiar e está errado, porque você não está resolvendo o problema do financiamento, você está arrumando uma maneira torta de financiamento. Por que o que acontecia? Quem que tinha o privilégio? Era quem tinha o plano de saúde, então quem tinha o plano de saúde... você mata equidade, então por isso que eu acredito em uma única porta de entrada, ou seja, por exemplo, o Hospital do Coração tinha uma área que era de granito e outra área que era de cimento na entrada do paciente, se você é SUS você entra por aqui e se você é plano de saúde você entrar por aqui. Não pode ser, a porta de entrada é única, o

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próprio nome diz: o sistema é único de saúde e, se o sistema é único de saúde, por que nós separamos a saúde suplementar da saúde pública? As coisas tinham que estar se falando e você vê, de novo, essa questão do dogma, (...) (ENTREVISTADO#24)

O entrevistado a seguir destaca a falta de uma coordenação geral do setor,

capaz de integrar os sistemas públicos e privados.

Eu diria para você que todos os principais desafios de sustentabilidade no setor, a gente tem que encarar de frente na relação público-privado, essa relação público-privada, ela tem que ser entendida como algo que leve em consideração o cidadão brasileiro, e não os players do sistema. Porque, às vezes, a gente fica discutindo isso e fica preocupado com meu resultado, com meu emprego, com as reivindicações. A ideologia da saúde, ela é interessante, ela faz parte, porque o assunto de saúde é importante na vida de todas as pessoas, mas tem algo que precisa se sobrepor, que é francamente a visão de que o sistema produtivo de saúde, ele existe para produzir saúde para alguém, esse alguém é o cidadão brasileiro. Então, nós temos que romper esse modelo de percepção ideológica, naquilo que tem a ver com saúde e ter a inteligência de fazer o público trabalhar com o privado. Como? Nós temos uma série de desenhos que a gente fez, baseados exatamente na questão que é o Livro Branco da ANAHP, (...) Estou dizendo mais ou menos assim: o setor público de saúde, a gente não gosta de falar de sistema, vamos falar do sistema brasileiro de saúde, que tem 2 componentes, um público e um privado. O público, ele tem um *ponto de recepção*, que não consegue ser colocado em linha e funcionar adequadamente, porque ele é subfinanciado e ele tem um mau poder de gestão, resumidamente é isso. Já o setor privado, eu não posso dizer que ele seja subfinanciado, porque o per capta é 3 vezes do sistema público e ele tem um bom poder de gestão, que algumas instituições já se profissionalizaram, inclusive na governança, mas ele tem um mau sistema assistencial. Então, é mais ou menos como o corpo em busca de uma alma e uma alma em busca de um corpo. Se a gente conseguir juntar esses 2 sistemas, isso só vai ser feito se a gente tiver uma autoridade sanitária que busque isso, que entenda isso, que queira trazer o público e o privado junto, que consiga quebrar essa barreira ideológica que existe dentro de nosso país. É fácil? Não, é muito difícil. Eu estou dizendo que se não tivermos, nos próximos anos, essa sabedoria, uma liderança que entenda isso e ao mesmo tempo em que os 2 setores não tenham outras lideranças de outros grupos que percebam que isso é algo que a gente precisa fazer, nós vamos falhar e a gente vai continuar ter um sistema fragmentado como o nosso, desierarquizado e sem foco no cidadão. Não tem jeito, eu já vi muitos sistemas, muitos modelos, muitas coisas, impacta no quê? Impacta na operação, impacta exatamente no fazer. Então, esse é um grande desafio, não é um *belo* desafio. (ENTREVISTADO#25)

Outro ponto levantado pelos entrevistados e que evidencia uma fragmentação no

setor de Saúde do Brasil relaciona-se a uma falta de integração entre os serviços do

setor público. Apesar de estarem todos sob a coordenação do SUS, o setor público

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parece não responder adequadamente ao desafio de diversidade, no que tange à

capacidade de integração de seus recursos.

O que aconteceu com o SUS? O SUS propunha isso, uma universalização, ele propunha que a esfera municipal gerenciasse o recurso de esfera federal, estadual e municipal, mas isso efetivamente não aconteceu. A gente ainda continua tendo algumas coisas que são de uma esfera, de outra e de outra, a gente continua ainda tendo serviços não integrados. Então, acredito que, na verdade, o que a gente precisa é resgatar as propostas que existem de organização da saúde e fazê-las realmente acontecerem, serem cumpridas, né. Como tudo aqui no país, a gente tem uma série de normas, de regulamentações, que são as mais evoluídas do mundo, mas que efetivamente não são implantadas e não são cumpridas. Então, cada lugar faz do jeito que quer, cada um... (ENTREVISTADO#12)

Outro entrevistado destaca a ausência de comunicação entre os prestadores de

serviços das diferentes esferas públicas de poder.

O que mais? Aí é um caso puramente do Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro, pelo fato de ter um histórico de ter sido capital do país e tudo mais, ele tem uma grande estrutura federal de hospitais federais e, por outro lado, tem a estrutura de hospitais estaduais e hospitais municipais. Então, o número de leitos, se você somar tudo isso, é um número de leitos bastante razoável, se você levar em consideração à população da cidade. Acontece que esses três entes não se falam. Então você tem hospitais municipais abarrotados e hospitais federais, às vezes, com leitos sobrando. Existe um sistema chamado Sistema de Regulação, que é previsto na lei e que o município seria o que se chama de Gestor Pleno, ou seja, o município deveria gerenciar todos os recursos que tem na cidade e encaminhar os pacientes à medida que houver necessidade com os recursos existentes. Isso não funciona hoje, então você tem uma enorme dificuldade, por exemplo, de internar pacientes num determinado tendo outro hospital com vaga sobrando, está. (ENTREVISTADO#16)

O Sistema de Regulação ao qual se referiu o entrevistado acima é uma tentativa

do setor público de integrar os seus serviços de saúde, indicando, por meio de um

software unificado qual é a disponibilidade mais próxima para o agendamento de um

paciente. No entanto, essa integração se mostra ainda com diversas dificuldades para o

bom funcionamento. Uma delas, que evidencia uma falha na gestão da diversidade,

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pois indica uma fragmentação do sistema, é descrita no relato abaixo, quando alguns

gestores de unidades de saúde não disponibilizam a folga operacional de sua oferta de

serviços à central unificada.

O SISREG é um sistema, né. O SISREG deveria ser o sistema que gerenciaria esse negócio todo. Mas os federais e os estaduais usam o SISREG, mas não disponibilizam os recursos que realmente eles contêm. E aí tem o seguinte, por exemplo, o chefe de uma clínica (...) do Servidores do Estado, que é um hospital federal, ele faz política com aqueles leitos dele, então ele interna os políticos, ele interna os amigos, interna os pedidos, os pistolões, então ele conserva um número de leitos disponibilizado para isso. Então ele não usa o SISREG. Ele até conhece o SISREG, mas ele jamais disponibiliza, no SISREG, esses leitos, que deveriam estar disponíveis para a população. Isso é só um exemplo, mas isso acontece em todos os hospitais, nos estaduais é a mesma coisa e em alguns hospitais municipais também. Então o SISREG seria, teoricamente, um ótimo sistema para coordenar toda essa operação, mas que não funciona porque ele não consegue ter as informações realmente válidas com disponibilidade no dia a dia da rede municipal, estadual e federal. (...) Não, o que falta é vontade política. O que falta é vontade política. Há uma necessidade muito grande de uma intervenção... Não uma intervenção, mas desses três entes se falarem e chegarem a um acordo com relação à funcionalidade desse sistema de regulação, que esse é um sistema chamado de Sistema de Regulação. Basicamente é isso. (...) É vontade política. (...) Porque, naquele sistema que eu te falei, de regulação, o correto seria que o município com gestor pleno fosse o responsável pela distribuição dos leitos federais, estaduais e municipais. Isso não acontece hoje, mas a lei prevê que deveria ser assim. Então, de repente, a médio ou a longo prazo, a gente consiga integrar essas três redes, que seria interessante para a população, né, poder utilizar todos os recursos que a cidade dispõe, que são muitos, é muito grande a quantidade de recursos. Então, por aí, a gente pode chegar lá. (ENTREVISTADO#16)

Adicionalmente, como evidência de uma fragmentação intensa no setor, foram

verificados diversos pontos de conflitos, existentes entre os diferentes players que

atuam no setor.

Primeiramente, há conflitos entre operadoras de planos de saúde e médicos

quando, por exemplo, o médico opta por um determinado tipo de tratamento e a

operadora, que irá financiar o tratamento, questiona se aquele é o tratamento ideal ou

se ele realmente faz-se necessário, o que ocorre geralmente por meio da verificação do

auditor da operadora. Sobre este ponto de atrito, segue as falas de alguns entrevistados

que ressaltam este ponto.

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Ah... é assim, o hospital visa lucrar, é uma empresa. É, dependendo da mentalidade dos diretores, da cúpula lá, você vai fugir ou não dos preceitos de ética da medicina. A ideia é que você não fuja. A ideia é que você não negue coisas para o paciente que precisa, a ideia é que você ofereça o melhor. Às vezes, o melhor é impagável, não tem dinheiro para aquilo, então... às vezes o melhor é pagável, mas “nego”, para economizar, aquela economia porca, oferece um produto pior, entendeu? Isso eu acho que é um pouco da mentalidade da diretoria, assim, sabe. Por exemplo, se você tem cólica renal, uma das piores dores que você pode ter, ai você entra lá com muita dor, se eu, “de cara”, te dou Tramal, o plano de saúde não vai pagar esse Tramal, porque o plano de saúde vai alegar que eu não usei um analgésico mais barato primeiro, que poderia ter melhorado a dor. Mas eu vi o paciente, eu vi como ele estava mal e sei que eu der só Dipirona e anti-inflamatório, não ia segurar. Por isso, eu dei Tramal, entendeu, que é mais forte. O plano de saúde não vai pagar. Meu chefe vai me dar esporro. (...) Então eu devia fazer o quê? Deixar o cara com dor mais tempo para o plano de saúde não surtar? Entendeu? E quem é o plano de saúde para interferir na escolha do medicamento que eu estou fazendo? Ninguém! Não tem... isso dá muito problema. Tem um médico lá, que é o cara responsável por vetar as coisas no plano, que se chama auditor. Procure “auditoria”, como funciona auditoria. É um... Você pede CTI para o doente. Aí: “eu quero CTI muito bom, porque o doente precisa”. Aí o cara vai te ligar: “Vem cá, mas o doente não está assim, assim, assado? Ele não pode ficar num CTI mais vagabundo?” Entendeu? Aí eu falo: “Não.” [auditor]: ”Não, mas olha só, só vou te dar o CTI mais vagabundo, não vou te dar o CTI muito bom, porque eu acho que não precisa”. Entrevistado: “Mas você viu o doente?” “Não.” Então, essa é uma briga gigante. O auditor é o cara que está lá, que pode até ganhar comissão com base no que ele vai negar. Entendeu? É o cara que vai tentar te transferir para um hospital mais barato, esse tipo de coisa. O código de ética até tem um parágrafo sobre isso, sobre auditoria. (ENTREVISTADO#01)

Outro entrevistado destaca o mesmo tipo de interferência, por parte do plano de

saúde, na decisão do médico.

Na saúde complementar, é um absurdo. O paciente paga o plano de saúde, tem direito a... quando vai na ***, o plano nega a cirurgia. Isso é o que mais tem. Então, como você fala que está certo ou errado? Você para atender um paciente tem que ter a autorização de um plano, po, calma aí. Isso fere alguns princípios éticos. Se o cara está doente, por que o plano tem que autorizar se eu tenho que atender ele ou não? Se eu como médico examino o cara e falo: “Não, esse tem indicação de fazer exame, eu quero tal exame.” Por que o plano vai autorizar se eu estou certo ou errado? O cara está indo sobre o meu direito. O paciente é meu. Não é dele. O cliente é do plano, tem um vício de negócio, mas o paciente é meu. Se eu acho que eu tenho que fazer, eu tenho que fazer e acabou. “Ah, mas está errado...”. Eu acho que tem que fazer e eu vou... se eu estiver certo, parabéns para mim, se eu tiver errado, serei devidamente processado por conta disso, se isso causar algum dano ou perder alguma coisa. Da mesma maneira que se eu não faço e o plano nega. E aí? O processo vai para quem? Para o médico também. Então a saúde complementar está toda errada. Os planos estão com um poder que não deveriam ter e um controle que não deveriam ter e a gente está pagando a eles o que a gente não deveria pagar, se o papel estivesse certo... Essa é a grande verdade. (ENTREVISTADO#02)

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O entrevistado a seguir evidencia a dificuldade de conseguir autorização dos

planos de saúde, principalmente quando o tratamento envolve procedimentos e/ou

produtos mais sofisticados e caros.

São produtos muito caros, depois você vai depender da autorização do plano de saúde... Se for uma droga, tipo uma infusão venosa, aí você precisa de autorização do plano de saúde, medicamento propriamente dito não, antibiótico novo está ali à disposição de quem quiser e puder pagar, mas os tratamentos mais de ponta... Você se sente fazendo um pouquinho de ciência, além de estar fazendo medicina, faz a medicina com ciência. (...) Às vezes você não consegue autorização, você tem que fazer uma história muito comprida a não sei quem se sensibilizar, para mostrar que precisa, não é uma coisa fácil. Tem que ter uma justificativa muito bem escrita e não necessariamente... De repente você pode fazer um relatório muito bem feito é ótimo e é profissional, mas às vezes você tem uma negativa que você: “poxa vida, por que essa negativa?” (ENTREVISTADO#09)

Outro ponto que gera conflito e é oriundo da sensação de desconfiança existente

entre os players do setor é a burocracia imposta pelos planos de saúde para que o

pagamento pela prestação de serviço seja efetuado. Caso o prestador de serviço

cometa algum erro ao cumprir tal burocracia, ele corre o risco de ser glosado, isto é,

não receber o pagamento pelo serviço prestado. O relato a seguir evidencia a

necessidade de se estabelecer este tipo de fiscalização por parte da operadora de

planos de saúde, principalmente quando se trata de órteses e próteses.

(...) principalmente na clínica privada, é a famosa necessidade de pedir autorização do plano, quando você indica algum procedimento invasivo, quando você indica alguma cirurgia de grande porte, tudo isso passa primeiro pela análise do plano de saúde para que o procedimento possa ser realizado. E, muitas vezes, o tempo que é perdido nessa autorização, o médico pode estar perdendo a chance dele. (...) Agora bem, para cirurgião, tem determinados procedimentos, principalmente que tem envolvimento de prótese, a seguradora tem alguns poucos médicos de confiança dela para autorizar determinados tipos de procedimentos. Vamos lá, em cirurgia de coluna, onde vai ser usado uma prótese, se você vai no consultório do seu cirurgião de confiança, o cirurgião vai indicar a cirurgia de colocação de uma prótese na coluna. Esse cirurgião onde você foi tem que pedir autorização desse material para a operadora, a operadora pode... ela vai consultar um especialista do assunto da confiança dela operadora e perguntar se a indicação daquele procedimento está correta ou não e, de acordo com isso, ele pode não autorizar a realização daquele procedimento cirúrgico ou pelo menos não com aquele cirurgião que você procurou, entendeu? Se não for uma

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pessoa da confiança da seguradora, ainda que ele possa ser credenciado para fazer outras coisas, mas se houver dúvida em relação à indicação daquela cirurgia, a utilização daquela prótese, que é outra coisa que acontece na... (...) Não deixa de ser, para determinadas situações, não deixa de ser uma interferência que é necessária existir para o dono do dinheiro, ele não pode simplesmente autorizar tudo o que pedem, porque a gente sabe que, eventualmente, pode ter alguém agindo de má fé, mas, em contrapartida, isso fere muito a relação médico-paciente, no sentido de que, teoricamente, pelo código de ética médica, você tem autonomia para, uma vez que você seja médico formado, capacitado e que esteja trabalhando, você tem autonomia para fazer aquilo que você julgar e entender que seja o melhor para o seu doente, sem, teoricamente, o plano de saúde exercer essa influência, essas interferências, mas a gente sabe que elas acontecem. (ENTREVISTADO#03)

Ademais, o entrevistado a seguir destaca a necessidade e a dificuldade dos

prestadores de serviço de submeterem à burocracia das operadoras dos planos de

saúde.

Plano de saúde hoje está com uma coisa muito chata também, é muito difícil de lidar com plano. A nível de hospital, é um inferno e o plano glosa, “glosar” seria não pagar, a bel prazer. Mesmo você autorizando, ligando, pedindo senha de liberação, pedindo tudo, tudo certinho, você fez o exame do paciente, laudo, entregou o exame, o plano não quer te pagar... “Por quê?” “Porque não quero, você errou um número na ficha guia do paciente.” “Ó, mas não é esse, é esse...” “Não, agora já não adianta mais. Eu não quero te pagar mais.” Como assim? Como é que isso é normal? Como é que a gente entra na justiça por conta disso e a justiça fala que isso é normal? Ou demora 5, 6 anos para julgar uma coisa que acontece todo ano? E se as clínicas não fazem, descredencia, pegam todos os pacientes e levam para outra, que aceita, se submete a fazer um serviço de péssima qualidade, aceita um salário menor, um pagamento menor do plano de saúde e não está nem aí, só quer que o paciente faça e acabou. Até onde isso também não acabou com o particular? Não é mais grandes coisas. (...) Vendida. Totalmente vendida. Totalmente dependente dele. Tenta liberar um ou outro exame, mas bloqueia outros, não cobra deles com a severidade que deveria ter, não força deles o mínimo que deveria ter, não pune eles pelos erros com a punição que deveria ter. É uma coisa muito fraca ainda. Eu vejo ela como uma fraca. Você vê cirurgia sendo negada para caramba e a ANS mal se pronunciando publicamente, falando, sendo noticiado. Vira e mexe a gente vê em jornais que cancelou venda de plano de saúde. Quando chega ao ponto de cancelar, é porque aquilo está muito ruim. Não é que está ruim, a coisa está ruim para caramba. está ruim para demais. Então, começa a atrapalhar, a atrapalhar aí. Plano de saúde também é uma coisa complicada. Não vou falar que os caras ganham dinheiro para caramba. Ganham se souber manusear muito bem o dinheiro. (ENTREVISTADO#02)

O relato a seguir ainda ressalta o que parece ser uma distorção no setor ligada à

falta de confiança entre prestadores de serviços de saúde e operadoras de planos de

saúde, quando, segundo ele, o profissional responsável pelo preenchimento dos

formulários de requisição de pagamento que serão enviados à operadora tem uma

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remuneração maior do que o profissional mais qualificado da atividade fim do prestador

de serviço, que é o médico. O trecho também indica que este tipo de situação ocorre

não apenas para obter remuneração das operadoras de planos de saúde, mas também

para ser remunerado pelo SUS, uma vez que, quanto mais o profissional responsável

pelo preenchimento dos formulários souber formas de agregar receita na prestação de

serviço realizada, maior será a receita do prestador de serviço.

No final a única coisa que realmente é feita direitinho dentro da norma é o preenchimento de fatores, porque se não estiver preenchido direito, é glosado, o dinheiro não é repassado, né. Muitas vezes, até esse preenchimento não corresponde a uma realidade, né. A gente vê que, em determinados locais, a gente observa uma incidência sazonal de determinadas doenças, que na prática a gente não visualiza muito isso, mas que é para atender uma possibilidade de uma solicitação de demanda de recursos. “Ah, se eu tiver aqui dengue, eu posso receber um pouco mais do governo federal. Então, todo ano nessa época do ano tem que ter dengue aqui. Nem que não tenha pacientes, estatisticamente esse dengue tem que aparecer.” Na verdade, é uma coisa meio perversa, né. Existe muita... Qual é a palavra... Muita invenção, muita mentira dentro dessas estatísticas, desses controles todos. (...) Porque o que que acontece? O controle é burocrático, mas ele não é elaborado de uma forma para funcionar realmente. Então, se tiver um funcionário muito bom em conhecer as normas de preenchimento do formulário, ele preenche o formulário de forma que ele seja aparentemente verdadeiro. Não tem como eu provar que ele é falso. Na verdade, as glosas são feitas em cima de erro de preenchimento. Nos grandes serviços o profissional que é melhor remunerado não é nem o médico não, é o profissional que controla o setor de contas, que controla a liberação do preenchimento dos documentos, porque ali que o pessoal ganha dinheiro, ali que tira dinheiro. Por exemplo, o próprio SUS não te orienta, de forma adequada, da onde você pode tirar recursos. Então, ele te diz assim, uma internação vale tanto, só que às vezes aquela internação tem determinadas particularidades que você poderia cobrar por fora um determinado procedimento, a utilização de um determinado material, só que eles não passam isso com essa clareza. Então, quem não tem um profissional que conhece bem o sistema vai cobrar pela consulta e vai ter prejuízo. O outro que tem vai cobrar por tudo, até pelo o que muitas vezes não utilizou para tentar tirar todo dinheiro possível. E aí, isso aí gera algumas distorções entre alguns serviços que conseguem se sustentar e outros que não. (ENTREVISTADO#12)

Outro tipo de conflito que foi identificado a partir das entrevistas realizadas com

profissionais do setor de Saúde ocorre entre as operadoras de planos de saúde e os

seus clientes. Em alguns casos, os clientes exigem que as operadoras forneçam

serviços de saúde que não estavam previstos no contrato do convênio, em outros

casos, as operadoras se negam a pagar pelos procedimentos que estavam previstos no

contrato assinado.

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Vale ressaltar que a Agência Nacional de Saúde Suplementar é responsável pela

regulação da relação entre operadoras de planos de saúde e usuários. No entanto, a

judicialização da Saúde, isto é, quando alguém entra na justiça para exigir a prestação

de algum serviço, algo que tem se tornado cada vez mais comum, indica que o setor

não está respondendo adequadamente ao desafio de diversidade, no que se refere à

solução de conflitos. O relato a seguir indica essa fraca capacidade de resposta a este

desafio.

E é interessante, porque tem um indicador, que acho que é importante para mostrar que não está funcionando bem, que é a judicialização da saúde. Qualquer pessoa quer uma coisa vai lá ao juiz, tem um mandato e ele vai ter seu remédio, seu atendimento, alguma coisa assim, que mostra uma disfuncionalidade, mostra que não está funcionando bem, parou de funcionar. (ENTREVISTADO#20)

O entrevistado a seguir reforça este ponto.

(...) e aí entra um outro ponto importante que é o seguinte: a gente já tem essa questão assistencialista e hoje em dia a gente tem uma questão muito forte que é judicialização da medicina. Se eu quiser alguma coisa e não for atendido, eu entro na justiça e a justiça normalmente faz o seguinte, ela dá uma liminar que te atenda, para depois julgar o caso. Então muitas coisas hoje dentro da área de saúde estão sendo resolvidas não na esfera da administração de saúde, estão sendo resolvidas na esfera da administração judicial, o juiz determina que você pague determinado remédio. (ENTREVISTADO#12)

Os dois relatos abaixo ainda indicam que a solução do conflito determinada pela

justiça acaba gerando mais conflito, pois aquele que é responsabilizado pelo não

cumprimento da determinação judicial nem sempre encontra condições de cumpri-la,

devido à falta de folga operacional.

É que nem plantão judiciário. Entendeu? Outra coisa, o plantão judiciário manda você fazer coisas que não dá, você vai preso, porque não dá... “Ah, quero que opere agora”. “Po, mas não dá. Não dá para operar, não pode

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operar.” “Ah não, mas tem que operar agora senão vai preso”. “Então me prende...” (...) É, não tem material necessário, você vai fazer o quê? Vai abrir e fechar o... Não dá. Mas aí nego não sabe da realidade e caga ordem. “Opere”, “Faça isso”, “não sei o quê...” (ENTREVISTADO#01)

E o que tem acontecido muito no Brasil (...) é a chamada judicialização da saúde, ou seja, acaba um juiz qualquer determinando, isso tanto no setor privado quanto no público. (...) A liminar é assim: “Em 24 horas, você é obrigado a fornecer alguma coisa”, que, na realidade, muitas vezes, nem existe, você não tem condições de dar, ou por fatores econômicos ou indisponibilidade de algum medicamento, ou de um tratamento qualquer. O dia a dia é uma coisa totalmente absurda: “em 24 horas interna alguém em casa.” e eu tenho que ter os profissionais, e não acha o profissional, tem que dar medicamento, suporte. Então, não existem regras, ou as regras são ruins e acaba então desembocando, a gente observa isso de um modo geral na justiça hoje em dia, na trabalhista também as regras não são boas, não são claras e o judiciário acaba legislando, cria uma regra que é válida para aquela situação particular. Então, tudo isso é um elemento à ausência de regras, ou pior, as más regras geram uma instabilidade, uma insegurança, uma dificuldade de operar enorme. Eu acho que isso talvez seja um dos fatores mais relevantes na área de saúde. (ENTREVISTADO#17)

O relato a seguir, apesar de se referir a um contexto diferente, indica uma

situação semelhante das relatadas acima de judicialização, em que o paciente

processou os prestadores de serviços em que foi tratado, pois foi contaminado pelo

vírus HIV em algum procedimento realizado por um destes prestadores. No entanto, o

que vale ressaltar é que, à época, segundo o próprio entrevistado, não havia tecnologia

desenvolvida para detectar se algum material estava infectado pelo vírus,

demonstrando o quão comum se tornou, atualmente, o processo de organizações do

setor de Saúde por parte dos pacientes.

E você vê, meu Deus do céu, é incrível, a justiça que era alguma coisa... você quer ver um exemplo claro que aconteceu aqui? Eu estou indo me encontrar com o ministério público na sexta-feira. Em 1984, tivemos aqui uma criança, fez um procedimento, uma transfusão de sangue, 9 anos depois, depois de várias intervenções outras, ela aparece com AIDS. Nós, o banco de sangue, a Santa Casa de *** fomos condenados, sendo que, podia ser dessa transfusão ou de quaisquer outros procedimentos, sendo que, em 84, nem nos EUA havia o teste para saber se o sangue estava contaminado, dá para entender? Eu vou adivinhar que vai ter? Você está entendendo o absurdo? Eu disse para a juíza, vou entrar contra ela, eu vou estar com um conhecido atrás do ministério público, eu não vou aceitar, “*** foi julgado em uma instância.” Dane-se,

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me desculpe. Peraí, o que é mais importante? A justiça ou o descalabro de uma juíza? (ENTREVISTADO#14)

Outro ponto de conflito que se mostra relevante se dá entre os profissionais de

saúde e os pacientes e/ou acompanhantes. Foi constatado a existência de insegurança

física, uma vez que os profissionais de saúde são vítimas de ameaças ou de agressões

físicas. O relato abaixo demonstra esse tipo de violência.

No público, foi extremamente traumatizante. Durante a formação, fiz estágio no Andaraí, no setor de emergência, no Salgado Filho, no setor de emergência. Fiquei um ano em cada um. No Salgado Filho, a gente consegue ver o detrimento que ficou o hospital. Profissionais muito bons, muito dedicados, mas naquele binômio de super estressante com pessoas ou muito graves ou que não têm nada, associado a uma insegurança muito grande, porque nem sempre a polícia fica no posto de atendimento, na frente do hospital. Principalmente, quando ia levar o pessoal na radiologia, que a radiologia é atrás do setor de emergência, então muitas vezes, na ultrassonografia, você era agredido e ninguém via, porque não tinha ninguém próximo. (ENTREVISTADO#02)

Outro entrevistado relata um caso ocorrido com pessoas próximas e ressaltam

esta situação.

(...) a minha nora, mulher dele, deixou o município, porque... e, às vezes, tinha que se esconder, um grupo de pediatras tinha que se esconder, porque um pai queria acabar com os médicos, era um tipo de gente que vai pela emergência em determinados hospitais... e era na Barra (...) (ENTREVISTADO#13)

Ainda, outro entrevistado destaca que o risco de agressão física é de tal maneira

iminente que, em seu local de trabalho, há portas detectoras de metais para prevenir o

médico deste tipo de risco.

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Agora está um pouco menos, mas há 3 semanas uma colega minha, entrou uma mulher se dizendo maluca e com uma tesoura, e a gente briga, grita, a gente pede, porque tem porta detectora de metal. Tem, a porta está lá, mas ela não funciona, o que adianta, só para enfeitar? Só para gastar dinheiro e botar lá, mas não funciona. (...) Não sei, a gente não entende isso. Porque existe a reclamação da parte dos médicos, nós entramos no Ministério Público, reclamando das condições de trabalho, e o ministério público obriga o INSS a colocar as portas detectoras de metal, elas funcionam 2, 3 dias e param de funcionar, sabotagem? Não sei. Por que são de má qualidade? Não sei. Alguma coisa acontece e elas param de funcionar, e ficam, porque qualquer coisa do INSS para consertar... A sala do lado da minha está com a luz queimada há uns 2 meses. Você trocar as lâmpadas, trocar as lâmpadas... Eaí é isso. (ENTREVISTADO#09)

Outro relato, do mesmo entrevistado que declarou o trecho acima, indica que a

falta de confiança entre os atores do setor é um pré-requisito em alguns casos, como,

por exemplo, a perícia médica do INSS, que são responsáveis por avaliarem se o

beneficiário está, de fato, impossibilitado de continuar trabalhando e ainda deve receber

o auxílio.

Foi um choque, porque você como homeopata conhece a postura de acolher, de ouvir, de dar o tempo do paciente falar e você não valoriza sua queixa física, mais a queixa emocional e tudo isso é levado em consideração, e você entra na perícia médica onde, a primeira coisa que te ensinam: não abre a boca, não fala nada, porque tudo que falar, vai ser usado contra você. Então é uma escuta diferente, é uma escuta com o pé atrás, a pessoa abre a porta e vê a sala, e entra e você já olha se está mancando ou não está mancando, ou é maluco, ou está com cara de doido, ou está bem arrumado, você já vai analisando e sempre com o pé atrás, sempre desconfiando. Você como médico, em qualquer especialidade, você acolhe o paciente, você acredita. Na perícia médica desconfia no primeiro minuto, ele tem que convencer que ele não está forjando, simulando nada, e o que acontece? Quando eu entrei na carreira de perícia no INSS, tinha ficado muito abandonado, vamos se dizer por muitos anos, havia os médicos terceirizados que faziam perícias médicas em seus consultórios, e os médicos peritos do INSS, eram considerados péssimos e os salários eram aviltantes e houve uma greve durante 3 meses e eu não tinha entrado ainda, e esses médicos conseguiram melhorar, fazer uma carreira de perito médico. O INSS acabou com os credenciados, só perito médico concursado podia fazer perícia, e entrei nessa e abriu mais concursos pra poder colocar mais médicos que estava precisando, foi aí que eu entrei. (...) O primeiro concurso foi em 2004 e 2006 teve o segundo concurso. E porque que eu entrei nessa área? Eu me perco um pouquinho às vezes... é sobre a questão de qualidade que era feito. Então nós vamos aprendendo que tinha que desconfiar, no mesmo tempo tinha que ser justo, você pode desconfiar à vontade, se a pessoa está apresentando alguma coisa, não tem importância se ela tem ou ela não tem, é um grande nó assim. (...) Existe

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uma mudança também na população em relação ao médico. A população hoje é muito desconfiada do médico, não confia no médico, seja ele qual for, a não ser o médico muito antigo que ela já tenha um contato há muito tempo, senão a tendência é sempre desconfiar e o médico está sempre se sentindo acuado... Então é uma relação que está meio que quebrada, da parte do cliente que está muito desconfiada e da parte do médico que está muito assustado, está assim... As agressões não acontecem só com os peritos não, elas acontecem com médicos que assistem nos pronto-socorros, nos ambulatórios... Existe uma agressividade para com o médico. (ENTREVISTADO#09)

Ainda neste sentido, um dos entrevistados destaca a pressão sofrida pelos

médicos por parte do paciente e seus acompanhantes.

Você ter um ambiente hostil por parte do paciente é muito ruim, por parte da família, sabe, tem família que já vem com sete pedras, entendeu, já vem se defendendo, já vem gravando... parte do princípio que você é um sacana, mercenário, entendeu? (ENTREVISTADO#01)

Outro ponto de atrito destacado por diversos entrevistados ocorre devido ao

vínculo de contratação dos profissionais de saúde e ao processo seletivo imposto para

a escolha destes profissionais, que será abordado no desafio de Provisionamento de

Recursos Humanos. No que tange ao vinculo de contratação, em alguns estados do

Brasil, como São Paulo e Rio de Janeiro, uma nova forma de contratação para os

serviços de saúde das unidades públicas tem crescido, aquela feita por meio das

Organizações Sociais (OS’s).

A maior diferença existente entre a contratação por meio de concurso público e a

feita por meio das OS’s é o vínculo empregatício. Enquanto na primeira, o profissional

chamado de estatutário tem o vínculo vitalício, na outra, ele é regido pela Consolidação

das Leis Trabalhos (CLT), pela qual pode ser demitido com maiores facilidades. A partir

disso, uma das reduções de custos alegadas por quem defende o sistema de

contratação via OS é que o Estado não ficará responsável pelo pagamento integral da

aposentadoria do funcionário, algo que ocorre quando o profissional é estatutário.

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A partir desta suposta economia, as OS’s estão contratando profissionais com

uma remuneração maior do que a recebida pelos funcionários públicos mesmo que, em

muitos casos, o trabalho seja o mesmo. Sendo assim, há atritos entre os profissionais

contratados pelas OS’s e os estatutários, conforme pode-se perceber no relato a seguir.

(...) fora esta questão ideológica muito forte que impede uma renovação na maneira de administrar, é ainda o caso das OS’s, sempre que possível, as pessoas que não aceitam as OS’s atacam. Então, tem gente que trabalha ganhando melhor, tem gente que não recebe pela OS, recebe aquela coisa ínfima, mas faz um jogo, eu finjo que trabalho e você finge que me paga, é um conluio, infelizmente, essa é uma realidade. (ENTREVISTADO#13)

O entrevistado a seguir evidencia um sentimento de injustiça, uma vez que os

salários dos profissionais contratados pela OS são maiores do que os dos estatutários,

para que a mesma função seja realizada.

É difícil quando você está acostumado com uma coisa, você conseguir ver a vantagem que uma coisa nova pode trazer. Na verdade você se sente ameaçado, porque você está perdendo o que você tem, então isso é uma verdade. Todo profissional de saúde do estado e do município está sentindo uma ameaça, porque está vendo sua aposentadoria arriscada, em que sentido? Vai deixar de se aposentar? Não, mas os seus bens vão cada vez diminuir mais, há injustiça, porque o mesmo trabalho que ele faz o profissional da OS faz, só que o profissional da OS tem o salário enorme, tem o salário isso aqui [aproximando os dedos], por outro lado ele tem as vantagens trabalhistas, que o profissional da OS não tem. O grande problema é que você não cria no profissional de OS, um vínculo com seu trabalho. Então, por exemplo, vou usar uma coisa muito antiga, em 1966, 1967, foi um período de muita enchente no rio, todos os profissionais médicos, de enfermagem e todo mundo ficavam dentro do hospital dobrando plantão, e não faziam aquilo por dinheiro, não ganhavam mais pra isso, o hospital era um pouco a casa deles, eles faziam isso. Depois bem mais tarde no meu tempo, em 67 eu ainda era garota, quando eu já estava formada, você tinha um vínculo com o hospital onde você trabalhava, você queria trabalhar bem, você tinha um vínculo com seu paciente, tinha compromisso. Hoje em dia não existe compromisso, você está naquele hospital, "o salário não está bom; ih, essa equipe é muito chata, pego meu boné e vou embora, vou procurar outro". Você precisa ter uma ligação com o lugar que você trabalha, pra você produzir melhor, se não fica uma coisa... não sei te explicar, a palavra não me vem, mas... não é vazio, assim, impessoal, acho que medicina, saúde não dá para ser completamente impessoal, você tem que lidar com as pessoas, não tem jeito. (ENTREVISTADO#09)

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Um entrevistado destaca, no relato a seguir, algumas causas que podem gerar

situações de conflito entre os profissionais da mesma equipe, em função da forma como

os vínculos e as carreiras estão sendo colocados.

E, cada vez mais, vai se acabar com o profissional de saúde que tem vínculo com o serviço público. Então, depois de um tempo se a coisa continuar assim você extingue a carreia de servidor público da saúde. Como vai ficar essa situação é uma coisa meio complexa ainda, porque no momento que eu transfiro isso tudo para o privado, todo profissional vai ser gerido pela iniciativa privada. Como funciona a iniciativa privada? Ela funciona com a lógica do lucro. Como vou fazer essa equação novamente, serviço de boa qualidade com remuneração digna do profissional? Tudo indica que a gente caminha para um beco sem saída. (...) É, mas aí você tem um salário maior, mas não tem garantia nenhuma de estabilidade. Aí você recebe um salário maior, enquanto você produz bastante. Eu tenho 30 anos de formado e há, 30, 25 anos atrás eu dava três plantões por semana, dormia 3 dias fora de casa, só que 30 anos depois não tenho mais pique para fazer isso. E aí, quando eu não tiver pique para fazer isso, o que vai acontecer com a minha remuneração? Ela vai despencar porque ninguém vai me manter no serviço se eu não tiver dando o rendimento máximo que eles querem que eu dê. É uma lógica complexa. Por exemplo, numa carreira de estado, uma carreira mais sólida de um serviço mais regular, à medida que eu envelheço, eu diminuo a minha força produtiva em termos de trabalho braçal, mas eu ganho experiência profissional e mantenho a unidade daquele serviço, eu reoxigeno aquele serviço no sentido de estar recebendo os mais novos, de estar passando a experiência. E em uma OS não, é todo mundo igual. O que tem 30 anos de OS é igual ao que tem 3 meses. O que acontece, você quebra aquela estrutura de formação profissional extra faculdade, que é depois que eu me formo, eu continuar aprendendo na minha atividade profissional, no meu serviço a partir de profissionais que estão ali há mais tempo e que desenvolvem atividades na mesma área que eu, mas em níveis hierárquicos diferentes. Você iguala todo mundo. Você acha que estou de plantão na OS ganhando a mesma coisa que o outro que tem 3 meses, que eu vou estar do ladinho dele, ensinando o que ele tem que fazer? Eu não, vou tocar meu serviço. Eu não, porque não vou fazer isso mais. O indivíduo que está lá, ele vai tocar o serviço dele. Eaí, daqui a um tempo, a gente vai ter cada vez mais a qualidade do serviço deteriorando. Eu tenho um exemplo que eu uso com os alunos, falo sempre para os alunos isso para eles tentarem fazer diferente. Quando eu me formei, eu sabia alguma coisa de teoria de ver raio-x, mas não sabia ver raio-x não. Eu saí da faculdade sem saber ler raio-x. E aí eu trabalhava num serviço onde eu era médico e tinham outros médicos, tinha serviço de radiologia, tinha radiologista. Eu pedia um raio-x no meu plantão, olhava, achava que tinha uma pneumonia, por exemplo, e no dia seguinte o médico mais experiente falava para mim "você achou que tinha pneumonia? Tinha mesmo, parabéns.” Ou “Estou achando que isso não é pneumonia". Na hora que eu tinha dúvidas, eu ia lá, sentava com o radiologista e o radiologista falava "aqui tem uma pneumoniazinha, isso parece que não é, mas é. Isso parece que é, mas é tão estrutura", aí fui aprendendo. Hoje em dia o indivíduo se forma e vai trabalhar numa OS, num pronto atendimento e é ele e ele. Ele aí pede o raio-x, olha o raio-x, acha que tem alguma coisa e ficou por isso mesmo, ninguém mais vai olhar esse raio-x, o radiologista não vai dar laudo, nenhum outro médico mais experiente vai ver aquele exame. O que eu falei que é, é e acabou. Se eu vejo errado, eu vou continuar vendo errado com 2 anos, 5, 20 anos de profissão, porque não existe essa questão do profissional mais experiente trabalhando do meu lado. Essa terceirização vai estabelecer isso em todos esses serviços onde ela estiver. (ENTREVISTADO#12)

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Ademais, outro tipo de conflito existente no setor de Saúde ainda no âmbito de

categorias profissionais é referente ao reconhecimento do valor de cada profissional

que compõe as equipes multidisciplinares. Conforme foi descrito no histórico, o início do

setor no Brasil era caracterizado por diversos profissionais de conhecimento prático e,

ao longo da história, o médico passou a se legitimar como autoridade máxima quando

se trata de saúde. Neste sentido, apesar de também constituírem-se de formação de

nível superior, outras categorias profissionais têm dificuldade de se posicionar perante o

poder atribuído ao médico. Alguns relatos destacam esse conflito.

A enfermagem, pela história dela, acho que ela ficou muito tempo submissa às ordens médicas e eles falam isso: “ordem médica”. Me lembro uma vez de uma discussão no Pedro Ernesto, no auditório, por conta de uma... Gerou até uma greve, o auditório discutindo e aí, na minha fala, eu usei a palavra consultório. O médico que estava lá na mesa, era do sindicato dos professores: "mas desde quando enfermeiro tem consultório?", aí esperei ele falar tudo o que ele tinha para falar, falei assim "o senhor já leu o Aurélio? Lá, não diz que consultório é privativa do médico", porque ele estava querendo dizer que consulta e consultório era privativo do médico, falei: "não, o senhor quando vai lá no seu advogado, o senhor está fazendo uma consulta com ele", sempre fui de nariz meio empinado, "procura um engenheiro para fazer uma obra na sua casa, o senhor está fazendo uma consulta com ele. Não vem com essa história de que consulta é privado do médico, consulta qualquer um pode fazer, até o pai de santo faz consulta". (ENTREVISTADO#10)

Um dos entrevistados ressalta a importância do trabalho em equipe e como a

dificuldade de integração na equipe pode prejudicar os resultados.

A equipe é fundamental. O seu plantão, a vida da pessoa ali vai depender não é de você... o médico, a gente tem a função de diagnosticar e prescrever... e traçar um plano de conduta: o que a gente vai fazer. Se o pessoal não souber fazer e a fisioterapia não souber também direcionar o tratamento respiratório, fazer um tratamento muscular, a fono, depois, orientar corretamente, alimentação, a nutricionista orientar que dieta vai fazer, cara... e a enfermagem pegar isso aí tudo e executar e direcionar os técnicos o que tem que fazer antes, ou em que hora, pouco adianta. Então muda tudo, muda tudo. A grande questão é que a gente tem a dificuldade, não sempre, mas, às vezes, de comunicação entre profissionais. Cada um querer fazer do jeito dele, isso existe, a nível pequeno... pequeno, tsc... até significativo esse embate entre profissões. Mas se eu prescrever um remédio e não fazerem, a culpa recaí sobre mim. Se você ter que ficar

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cobrando de ter aplicado remédio a remédio no meio de 300 pacientes internados, não há cérebro que aguente, não há cérebro que aguente. Cada paciente ganha 5, 6 medicações, você ter que lembrar medicação de 1800 remédios e o horário, pelo o amor de Deus... o cara está fazendo alguma coisa errada. Então chega a ser fundamental. Quando é muito boa a equipe, a equipe é unida, o atendimento é outro, tudo é mais rápido, tudo é melhor, tudo flui. O plantão fica melhor, o plantão do outro fica... todo mundo fica melhor. Mas quando tem um embate, nem que seja pessoal, ou seja por revolta, acaba. (ENTREVISTADO#02)

Ainda no que tange à diversidade existente nas equipes multidisciplinares de

saúde, outro entrevistado ressalta a dificuldade de se coordenar e motivar uma equipe

tão diferenciada.

Tomar conta de gente, isso é muito difícil, porque são universos totalmente diferentes, de cada pessoa que esteja trabalhando aqui dentro dessas três unidades, desde o médico rotina, passando pelo médico plantonista, pela supervisora de enfermagem, pela enfermeira plantonista, pelos técnicos de enfermagem, pelas meninas do apoio e você buscar uma forma de atender à necessidade de todas essas pessoas, que tem objetivos às vezes que não são comuns a todas elas e tentar administrar isso de forma a atender às necessidades de todos e tentar motivar as pessoas a estarem unidas por um bem comum, que na verdade é a saída do doente do ambiente de terapia intensiva. Encontrar forma de que todos estejam atuando em sintonia, que entendam a responsabilidade daquilo que eles estão fazendo aqui dentro, para que este objetivo maior seja alcançado, que é o bem-estar do doente e a saída do doente daqui de dentro do CTI. (ENTREVISTADO#03)

Por fim, como forma de síntese, o Quadro 5-3 faz uma síntese dos conflitos

identificados entre os players no setor em cada período da história do setor.

Quadro 5-3 Síntese dos Conflitos orioundos do Desafio da Diversidade entre os Players do Setor de Saúde

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Conflitos Antecedentes Fase 1 Fase 2 Fase 3

Saúde Pública x

Privada N/A* N/A*

Movimento da Reforma Sanitária buscou a criação de um sistema de

saúde público; Ideologia de que a Saúde não pode

oferecer lucro a quem a presta

Conflito ideológico entre os que defendem que o sistema de saúde deveria ser totalmente público e os

que aceitam a participação de empresas privadas; Inexistência de compartilhamento de informação entre

os players quanto ao histórico do paciente tanto de procedimentos realizados quanto de suas condições de

saúde; Planos de saúde são obrigados a ressarcir o SUS por

procedimentos realizados em seus conveniados

Operadoras de planos de saúde

x Conveniado

N/A N/A*

Devido à falta de regulação da ANS, as operadoras estabeleciam

contratos com grande desequilíbrio entre as vatagens de cada parte

Operadora se recusa a pegar por tratamentos previstos no contrato;

Conveniado entra na justiça exigindo que a operadora pague por tratamento não previsto em contrato

Operadoras de planos de saúde

x Prestadores de

serviços

N/A* N/A*

Alta burocracia cobrada pelas operadoras de planos de saúde

para o preenchimento das informações dos serviços prestados e, se houver algum erro, há glosa e

o prestador não recebe; Há casos em que o prestador

informa à operadora a prestação de um serviço que não foi realizado, de modo a obter um ganho ilícito;

Necessidade de a operadora de plano de saúde alocar profissionais

para controlar e fiscalizar a prestação de serviços, reduzindo a

folga financeira

Alta burocracia cobrada pelas operadoras de planos de saúde para o preenchimento das informações dos

serviços prestados e, se houver algum erro, há glosa e o prestador não recebe;

Há casos em que o prestador informa à operadora a prestação de um serviço que não foi realizado, de

modo a obter um ganho ilícito; Necessidade de a operadora de plano de saúde alocar profissionais para controlar e fiscalizar a prestação de

serviços, reduzindo a folga financeira

Operadoras de planos de saúde

x Médicos

N/A* N/A*

Médicos consideram que o pagamento pela consulta médica

por parte das operadoras é reduzido e buscam resistir ao

avanço das operadoras fundando as Cooperativas Médicas

O auditor médico, contratado pela operadora de plano de saúde, questiona as decisões do médico e, por

vezes, a operadora nega-se a pagar pelo tratamento prescrito pelo médico;

Médicos consideram que o pagamento pela consulta médica por parte das operadoras é reduzido

Profissionais de saúde

x Pacientes

S/E** S/E** Paciente aciona a justiça devido a erros cometidos pelo profissional

de saúde

Risco físico de agressões e violências sofridos pelos profissionais de saúde pelos pacientes e seus

acompanhantes; Paciente aciona a justiça devido a erros cometidos pelo

profissional de saúde

SUS x

Prestadores de serviços

N/A* N/A* N/A*

Tabela de pagamento do SUS defasada, gerando falta de folga para os prestadores de serviços;

Prestadores de serviços cobram o SUS por serviços não prestados e materiais não utilizados;

Alta burocracia cobrada pelo SUS para o preenchimento das informações dos serviços

prestados e, se houver algum erro, há glosa e o prestador não recebe

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Médicos x

demais profissionais de

saúde

N/A*

Pressão política

dos médicos

para proibição

de atuação dos

profissinais da arte de

curar

Conflitos dentro da equipe devido à posição do médico como

profissional acima dos demais profisisonais de saúde;

Conflitos dentro da equipe devido à posição do médico como profissional acima dos demais profisisonais de

saúde;

Profissionais estatutários

x celetistas

contratados por OS's

N/A* N/A* N/A*

Sindicato médico defende que o emprego público deve ser a forma padrão de contratação, fazendo frente ao aumento da contratação de profissionais com vínculo

celetista por meio de OS's; Sentimento de injustiça entre os estatutário, que recebem menos para desempenharem a mesma

função do que os profissionais contratados por OS's

Gestor x

equipe de saúde N/A* N/A* S/E**

Como, em hospitais públicos, o diretor é contratado por meio de indicação política, a sua letigimidade fica

comprometida perante a equipe de saúde

*Não aplicável

** Sem evidências para análise

5.1.3 Desafio de Provisionamento de Recursos Humanos

No Brasil, durante o período dos antecedentes do setor, percebe-se uma

dificuldade no provisionamento de recursos humanos. Este ponto pode ser comprovado

a partir do atendimento das demandas em Saúde por profissionais sem qualificação

teórica, munidos apenas de conhecimento prático. Adicionalmente, verifica-se que,

neste período, cursos e faculdades médicas existiam apenas fora do Brasil, não

havendo formação de recursos humanos especializados para atendimento da demanda.

Assim, uma evidência explícita da falta de provisionamento de recursos humanos para

no período que antecede a primeira fase do setor consiste na declaração por escrito do

então Vice-Rei, D. Luiz de Vasconcelos, em 1789, de que havia apenas quatro médicos

no Brasil para atender à demanda de saúde.

Na primeira fase, começa-se a se verificar o provisionamento de recursos

humanos qualificados em saúde, com a criação das Escolas Médicas e Cirúrgicas em

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Salvador e no Rio de Janeiro em 1808, que, em 1832, se tornariam faculdades de

medicina. Ainda, vale ressaltar que, no código penal de 1890, os profissionais de saber

popular, que praticavam o curandeirismo, foram proibidos de atuar. Esta proibição levou

à redução do número de profissionais que atuavam no setor, sob a justificativa de que

não eram devidamente qualificados para exercer suas atividades. Contudo, não há

evidências que determinem se o setor contava com um provisionamento antecipado de

profissionais nesta fase.

Durante a segunda fase, pode-se constatar um crescimento da diversidade de

profissionais que atuam no setor. Enquanto que, na Fase 1, os profissionais de saúde

eram basicamente os médicos, os cirurgiões e os boticários, na Fase 2, novas

profissões aparecem e surgem especialidades das que já existiam. Alguns exemplos

deste crescimento qualitativo são: farmacêuticos, enfermeiros, técnicos de enfermagem,

auxiliares de enfermagem, nutricionista, psicólogos, fisioterapeutas.

Além disso, apenas a partir de 1945, com a criação do Conselho Federal de

Medicina (CFM) e dos Conselhos Regionais de Medina, combinado com a criação da

Associação Médica Brasileira em 1951, as especialidades médicas passaram a ser

normatizadas (CREMESP, 2013). Atualmente, o CFM reconhece a existência de 53

especialidades médicas e 54 áreas de atuação, que são as sub-especialidades

(CREMESP, 2013), como segue nos Quadros 5-4 e 5-5, respectivamente.

Relação das Especialidades Médicas Reconhecidas

1. Acupuntura

2. Alergia e Imunologia

3. Anestesiologia

4. Angiologia

5. Cancerologia

6. Cardiologia

7. Cirurgia Cardiovascular

8. Cirurgia da Mão

9. Cirurgia de Cabeça e Pescoço

10. Cirurgia do Aparelho Digestivo

11. Cirurgia Geral

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12. Cirurgia Pediátrica

13. Cirurgia Plástica

14. Cirurgia Torácica

15. Cirurgia Vascular

16. Clínica Médica

17. Coloproctologia

18. Dermatologia

19. Endocrinologia e Metabologia

20. Endoscopia

21. Gastroenterologia

22. Genética Médica

23. Geriatria

24. Ginecologia e Obstetrícia

25. Hematologia e Hemoterapia

26. Homeopatia

27. Infectologia

28. Mastologia

29. Medicina de Família e Comunidade

30. Medicina do Trabalho

31. Medicina de Tráfego

32. Medicina Esportiva

33. Medicina Física e Reabilitação

34. Medicina Intensiva

35. Medicina Legal e Perícia Médica

36. Medicina Nuclear

37. Medicina Preventiva e Social

38. Nefrologia

39. Neurocirurgia

40. Neurologia

41. Nutrologia

42. Oftalmologia

43. Ortopedia e Traumatologia

44. Otorrinolaringologia

45. Patologia

46. Patologia Clínica/Medicina Laboratorial

47. Pediatria

48. Pneumologia

49. Psiquiatria

50. Radiologia e Diagnóstico por Imagem

51. Radioterapia

52. Reumatologia

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53. Urologia

Quadro 5-4 Relação das Especialidades Médicas Reconhecidas

Fonte: CFM (2015). Disponível em:

<http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2011/1973_2011.htm>

Relação das áreas de atuação médicas reconhecidas

1. Administração em Saúde

2. Alergia e Imunologia Pediátrica

3. Angiorradiologia e Cirurgia Endovascular

4. Atendimento ao queimado

5. Cardiologia Pediátrica

6. Cirurgia Crânio-Maxilo-Facial

7. Cirurgia do Trauma

8. Cirurgia Videolaparoscópica

9. Citopatologia

10. Densitometria Óssea

11. Dor

12. Ecocardiografia

13. Ecografia Vascular com Doppler

14. Eletrofisiologia Clínica Invasiva

15. Endocrinologia Pediátrica

16. Endoscopia Digestiva

17. Endoscopia Ginecológica

18. Endoscopia Respiratória

19. Ergometria

20. Foniatria

21. Gastroenterologia Pediátrica

22. Hansenologia

23. Hematologia e Hemoterapia Pediátrica

24. Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista

25. Hepatologia

26. Infectologia Hospitalar

27. Infectologia Pediátrica

28. Mamografia

29. Medicina de Urgência

30. Medicina do Adolescente

31. Medicina do Sono

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32. Medicina Fetal

33. Medicina Intensiva Pediátrica

34. Medicina Paliativa

35. Medicina Tropical

36. Nefrologia Pediátrica

37. Neonatologia

38. Neurofisiologia Clínica

39. Neurologia Pediátrica

40. Neurorradiologia

41. Nutrição Parenteral e Enteral

42. Nutrição Parenteral e Enteral Pediátrica

43. Nutrologia Pediátrica

44. Pneumologia Pediátrica

45. Psicogeriatria

46. Psicoterapia

47. Psiquiatria da Infância e Adolescência

48. Psiquiatria Forense

49. Radiologia Intervencionista e Angiorradiologia

50. Reumatologia Pediátrica

51. Sexologia

52. Transplante de Medula Óssea

53. Ultrassonografia em Ginecologia e Obstetrícia

Quadro 5-5 Relação das áreas de atuação médicas reconhecidas

Fonte: CFM (2015). Disponível em:

<http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2011/1973_2011.htm>

Ainda durante a Fase 2, também percebe-se um crescimento significativo do

número de profissionais médicos atuando no setor. No entanto, apesar deste

crescimento, a população brasileira aumentou em uma taxa semelhante, fazendo com

que a proporção de médicos por habitantes se mantivesse com poucas variações entre

o início da segunda fase e o seu final, à exceção das duas últimas décadas.

Ano Número de medicos*

População brasileira**

Médicos por mil habitantes

1910 13270 23,077,185 0.58

1920 14031 30,635,605 0.46

1930 15899 37,625,436 0.42

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1940 20745 41,236,315 0.50

1950 26120 51,944,397 0.50

1960 34792 70,191,370 0.50

1970 58994 93,139,037 0.63

1980 137347 119,002,706 1.15

1990 219084 146,917,459 1.49

2000 291926 171,279,882 1.70

2010 364757 190,755,799 1.91

Fonte: *Pesquisa Demografia Médica no Brasil Vol. 2, 2013; **IBGE

Gráfico 5-4: Número de médicos por mil habitantes no Brasil, 1910 - 2010

Fonte: Pesquisa Demografia Médica no Brasil, 2011; IBGE

O gráfico 5.3 demonstra que, de 1910 a 1960, a proporção de médicos na

população brasileira se manteve praticamente estável, em torno de 0,5 médico para

cada mil habitantes. No entanto, a partir de 1970, o número de médicos aumentou

significativamente. Na década de 1980, a proporção de médicos já era o dobro da

existente nos cinquenta anos anteriores e, passados mais trinta anos, essa proporção

era aproximadamente três vezes a de até 1960. Este aumento, segundo o Conselho

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Federal de Medicina (2011), deveu-se pela criação de 39 escolas médicas na década

de 1960, das quais 21 públicas, e, entre 2000 e 2011, de 77 cursos de medicina, dos

quais 52 particulares. Vale ressaltar que, até 2011, havia 185 faculdades de medicina

no Brasil.

Neste sentido, um dos entrevistados destaca que a multiplicação de faculdades

particulares de medicina foi responsável por elevar o número de médicos no Brasil,

mas, por outro lado, a qualidade da formação foi comprometida.

Então, universidades... Quando eu me formei nós tínhamos 4 escolas de Medicina, duas públicas. Agora nós temos, no estado [do RJ], 17, 13 privadas e 4 públicas. Lula e Dilma fizeram im monte de escolas privadas. Você sabe, um país do mundo, um, que tenha mais escolas médicas do que o Brasil? Índia. Só. Agora, olha a população da Índia. (...) A formação do médico, a formação do estudante primário e secundário é fundamental para uma nação, fundamental para tudo, para uma profissão. Então, quando eu vejo essa *** de escolas com resultados pífios, o número é um dado importante, a quantidade é um caso mais importante que a qualidade. Então, há a falsa percepção de que aumentou o número de médicos. Não. Como diz o Alberto ***, diretor do Hospital Mãe de Deus aí em Porto Alegre, “nós temos poucos médicos e muitos formados em Medicina”. Por quê? Porque na verdade não são médicos, médicos mesmo não tem. Então, eu acho que é importante a conscientização, eu sempre acho que a revolução é pela conscientização, do que está acontecendo e não ficar em coisas pontuais. “Ah, isso, isso e aquilo”. Não. (ENTREVISTADO#14)

Um ponto a se destacar é a distribuição geográfica dos médicos contratados no

Brasil. Apesar de, quando se considera o país como um todo, a proporção de

profissionais de saúde em relação à população estar aumentando, as regiões do Brasil

apresentam grandes diferenças nesta proporção, quando comparadas entre si. O

Gráfico 5-4 demonstra a disparidade existente entre as regiões do país, no que diz

respeito à proporção de médicos na população.

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Gráfico 5-5 Médicos contratados por mil habitantes, por região demográfica, 2013

Fonte: CFM (2013)

Sob a alegação de que pequenas cidades do interior não dispunham de número

de médicos suficientes, o governo federal lançou, em 2013, o Programa Mais Médicos,

que visava a trazer médicos estrangeiros interessados em atuarem nestas cidades, de

modo a preencher parcialmente estes déficits. Tal programa foi alvo de críticas por parte

dos profissionais médicos, o que se refletiu em declarações espontâneas nas

entrevistas uma vez que, vale ressaltar, o tema não foi introduzido pelo entrevistador.

Neste sentido, o que mais foi ressaltado pelos entrevistados refere-se à

inexistência de estímulos do profissional de saúde para se deslocarem a estes lugares

para atuarem profissionalmente como, por exemplo, um plano de carreira, em que o

médico teria a possibilidade de mudar de local de trabalho à medida que progredisse.

Nesta linha, alguns entrevistados compararam essa proposta de solução com a carreira

de juízes no Brasil, consideravelmente concorrida e que não apresenta falta de

profissionais em locais distantes. Ainda, foi destacada a insegurança dos contratados

junto às prefeituras e estados, que dificultam o planejamento do profissional que opta

por atuar em atuar em municípios distantes dos grandes centros.

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A seguir, um dos entrevistados destaca a falta de estímulos para a atuação dos

médicos brasileiros em locais onde faltam profissionais.

Então, por exemplo, o porquê do questionamento da classe médica em relação ao Programa Mais Médicos, porque, no Brasil, não faltam médicos. Apenas não há estímulos suficientes para que essas pessoas trabalhem aonde esses médicos estrangeiros estão trabalhando, entendeu? O dinheiro que está sendo pago para esses... pelo menos oficialmente, porque a gente sabe que, na verdade, esse dinheiro não está ficando na mão dos médicos, o salário que está sendo oferecido para esses médicos estrangeiros trabalharem no interior do país é um salário muito acima do que é oferecido aos brasileiros. (ENTREVISTADO#03)

Outro entrevistado reforça que não há um plano estruturado que dê garantia ao

médico de trabalhar em uma pequena cidade do interior, comparando com a carreira de

juízes, que oferece mobilidade entre estados, por se tratar de um plano de estrutura

nacional, e a chance de o juiz retornar à sua cidade de origem.

Voltando, formando os médicos, quem quer... qual é a faculdade que forma médicos para trabalhar no interior? Qual é a gratificação de médico? Qual é o reconhecimento médico, do profissional, a nível de crescer, como médico de interior, de família e tudo mais? Qual é a perspectiva salarial ou como é que é o fundo? Tudo isso desagrada. A gente, quando é contratado para ir, a gente não tem nenhuma estabilidade que juiz tem. Eu acho isso o maior erro dessa interiorização. Juiz, como é que é juiz? Po, o cara faz prova para onde? Para tudo que é lugar do Brasil. Fez a prova, passou. Juiz, promotor, defensor. Vai para o interior, vai passar 5, 6 anos no interior. Mas ele sabe que quando o daqui vier a falecer ou aposentar, tem uma progressão. E tem juiz para tudo que é lugar do Brasil, não tem? Na grande maioria tem. Pelo menos, muito mais juiz que médico. Mesmo os processos estando atrasados todos, mais do que fila de médico. O médico não, a gente vai para o interior, a gente ganha aquilo, sem benefício, sem nenhum poder de concurso público, podendo ser mandado embora a bel prazer, sem nenhuma estabilidade ou segurança adquirida por lei. E você quer colocar, nesses moldes, um cara na faculdade tenha o interesse de fazer isso? É curioso quando você vê o pessoal de direito, todo mundo interessado em fazer concurso público, todo mundo, minha irmã mesmo... todo mundo interessado. “O que que você é?” “Concurseiro.” “O que que você faz?” “Estudo para concurso”. Por quê? Porque, se passar, estabilizou a vida. Vai trabalhar, vai fazer o melhor que consegue, vai evoluindo e sabe que um dia vai chegar na capital. Por que não pode fazer igual com médico? A gente vai prova para concurso público, uma prova te pagando que nem juiz. Nossa, vai ter médico para tudo que é canto. Para ganhar 26 mil reais por mês? Eu atendo, no interior de Minas, durante 5 anos, está ok. (ENTREVISTADO#02)

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Ainda, um dos entrevistados ressalta a dificuldade que o médico, geralmente

formado em centros urbanos, teria em viver em cidades pequenas com pouca

infraestrutura, quando comparadas aos grandes centros urbanos.

(...) eu falaria assim: “Ah, o Mais Médicos está pagando 10 mil reais por médico? Vamos fazer o seguinte...”, é claro que o cara que está com 10 anos de formado não vai, mas uma pessoa que está lá para o quinto ano de formado: “estamos fazendo um programa agora, está saindo uma lei, você que tem o seu consultório, você que tem não sei o quê, se você ficar 6 meses dentro do município tal, não estou falando ficar o resto da vida, você vai receber por mês 40 mil reais, mas com esses indicadores que você vai ter que cumprir.” Porque a gente imagina, eu vou tirar um médico hoje para trabalhar em São Gabriel da Cachoeira, no interior do Amazonas, porque... o que ele vai imaginar? Ele vai imaginar: “Só vou ficar dois anos aqui”, porque lá não tem escola para o filho dele, lá não tem saúde para a família dele, não tem um plano de saúde, lá é só o que existe. Então, ele não vai jamais pensar em construir família ali. É falácia a gente achar que vai conseguir interiorizar o médico, vai interiorizar pouco, a maior parte, ele vai continuar sendo um cara urbano. Então, o que que a gente tem que enxergar para a gente conseguir dar acesso a nossa população que hoje é totalmente desassistida, a única coisa boa dos cubanos é essa, que eles estão indo para lá, mas totalmente desassistida é nós garantimos projetos que sejam temporais de 4 meses, de 6 meses. (ENTREVISTADO#24)

Outro ponto que surgiu em relação ao desafio de provisionamento de recursos

humanos está diretamente relacionado ao sistema de remuneração do profissional de

saúde. Diversos entrevistados ressaltaram que as maiores remunerações, tanto dos

planos de saúde quanto da Tabela do SUS, são direcionadas aos procedimentos de

alta complexidade, enquanto que, por sua vez, as consultas médicas recebem baixa

remuneração. Desta forma, foi relatado por alguns entrevistados a baixa procura por

algumas especialidades médicas, em especial a pediatria, em que se pratica

essencialmente a consulta e há poucos procedimentos a serem realizados.

No Brasil, você falou em desperdício, o Brasil é o país onde mais se faz cesáreas no mundo. Hoje em dia você quase não consegue mais fazer um parto normal, porque não existem pediatras, porque pediatria não dá dinheiro. Alguém já me falou: “O neném não bota prótese, não bota marca-passo, não bota... com raras exceções, não vai ser um produto oncológico, entendeu?” O neném faz

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coco e xixi, tem diarreia, entendeu? Então, não dá dinheiro. Ninguém quer entrar, ninguém quer ser pediatra, porque não dá dinheiro. Os procedimentos de alta complexidade é que dão dinheiro. Então as pessoas se especializam em coisas que dão dinheiro. Agora, isso é uma questão muito mais cultural, social, do que propriamente de alguma coisa específica, ou seja, essa questão de ser hospitalocêntrico, as raízes disso, as razões que estão por trás disso são do modelo sócio econômico que a gente vive. (ENTREVISTADO#17)

O relato a seguir descreve com mais detalhes como este processo vem

ocorrendo.

Uma coisa que a gente tem visto é que algumas especialidades também estão passando por um processo de esvaziamento, quase de extinção mesmo, porque o que leva um indivíduo a fazer uma determinada carreira é a coisa complexa, tem a questão que a gente diz da vocação, mas que é uma coisa muito difícil de você identificar, tem a questão da influência familiar, a gente vê muito candidato a médico em função dos parentes serem médicos, mas qualquer profissional que faz uma carreira qualquer, ele almeja ter um salário digno que permita viver de modo, pelo menos, confortável e em função disso algumas especialidades são pouco procuradas atualmente pelas pessoas que estão terminando o curso de medicina, em especial as especialidades clínicas. O que acontece? Foi aquela questão da tecnologia que foi incorporada de maneira não homogênea então algumas especialidades em que se desenvolveu um recurso tecnológico principalmente na questão de aparelhos para diagnóstico o indivíduo consegue suprir parte da deficiência do rendimento dele através uma atividade paralela, que é a realização do exame. Então existem algumas especialidades que o profissional até se oferece para trabalhar de graça, ele não quer remuneração pelo trabalho médico, mas ele quer uma porcentagem de todo exame que ele faz e o rendimento dele é muito maior no exame do que na atividade profissional dele específica e, com isso, também, além do profissional, alguns hospitais têm direcionado o seu atendimento para especialidades em que a remuneração pode ser maior, em que existem programas do governo, de incentivo ou de que o plano de saúde é obrigado a remunerar determinados procedimentos, para poder sobreviver de forma mais equilibrada. Então, hoje em dia, os serviços de cardiologia, por exemplo, têm alguns desses benefícios, mas principalmente, no momento, é a questão do câncer. Uma série de hospitais tem deixado de ter leitos de especialidades básicas, não querem mais internar clínica médica, não querem mais internar pediatria em função de que nessas especialidades você empaca dinheiro, você recebe basicamente o que você gasta ou às vezes você tem que financiar esse atendimento, então eles preferem ter especialidades que vão remunerar com lucro. É o caso, por exemplo, do câncer hoje em dia. E aí existe uma distorção muito grande na saúde, a gente não oferece hoje em dia à população o que a população precisa, a gente oferece hoje à população o que o mercado está determinando financeiramente, eu ofereço principalmente aquilo que consegue me dar um retorno concreto. (ENTREVISTADO#12)

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Ainda, outro entrevistado destaca a baixa procura por algumas especialidades

médicas.

E hoje o maior desafio é como montar um sistema que o doente é o centro do sistema, que hoje o sistema é mais financeiro do que humano, embora você lide com gente o sistema hoje é muito mais desenhado para um modelo financeiro do que pelo um modelo de fazer do doente o centro do sistema. (...) Por exemplo, pediatria, como você não remunera bem a pediatria, você quase não tem hospital de pediatria, quase não tem esse serviço, porque aquilo paga mal entendeu? (...) Você vai ter a pessoa tratando demais, para poder ganhar dinheiro, você vai ter o médico escolhendo atividade que dá mais recurso financeiro, em vez de ser aquela que de repente é melhor para pessoa e o maior problema do sistema é quando você trata dele como se ele fosse focado em gente, mas na verdade ele é focado em dinheiro, em lucro, em lucratividade. (ENTREVISTADO#21)

Adicionalmente, o Quadro 5-6 indica que os gastos do Ministério da Saúde são

maiores em atendimentos de média e alta complexidade do que em atendimentos de

atenção básica, apesar destes últimos serem mais frequentes do que dos dois primeiros

(KUSCHNIR et al., 2011).

Quadro 5-6 Gasto do Ministério da Saúde com atenção à saúde como proporção (%) do gasto total do Ministério da Saúde, por componente, segundo ano. Brasil, 2004-2010

Ano

% Gasto total atenção à

saúde MS no gasto total

MS

% Gasto do MS com atenção básica

% Gasto do MS com

atenção de média e alta

complexidade

2004 58,6 15,2 44,4

2005 58,8 15,9 43,9

2006 62,7 17,6 46,0

2007 64,8 18,0 47,8

2008 67,7 18,8 49,9

2009 67,6 19,9 48,7

2010 67,7 20,2 47,5

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Fontes: Ministério da Saúde: Fundo Nacional de Saúde – FNS; Ministério da Saúde: Subsecretaria de Planejamento e Orçamento: Coordenação-Geral de Orçamento e Finanças.

Outro ponto levantado é que, na área da saúde, há uma necessidade de

constante atualização do profissional de saúde, uma vez que novas pesquisas

científicas, aparelhos, procedimentos, etc. são descobertos e desenvolvidos. Apesar

desta necessidade de desenvolvimento de recursos humanos, algumas dificuldades se

colocam à frente do profissional, como a falta de estímulo das organizações em que

trabalham para promover tais estudos e a falta de tempo desses profissionais para se

dedicarem à formação continuada.

Os relatos abaixo comprovam a necessidade de se o profissional manter

atualizado nesta área, de modo a acompanhar as descobertas e tecnologias mais

recentes.

(...) é uma profissão que você, às vezes, tem que esquecer tudo que você sabia e aprender de outra forma, as outras profissões, à medida que você estuda, você vai acrescentando conhecimento, na medicina, de repente, sai uma descoberta, que mostra que tudo que você fazia estava errado. Então tem que apagar tudo da sua vida e reaprender. Então sempre ter que estudar e estar atualizado é um desafio. (ENTREVISTADO#07)

Aí quando apareceu a oportunidade de eu entrar realmente no mercado, que foi

esse convite para montar o Bradesco [Saúde] eu aí parei, porque eu não conseguiria dar conta das duas coisas ao mesmo tempo. Porque a medicina, ou você estuda vinte e quatro horas por dia para estar atualizado, ou é melhor não fazer. E eu estava me dividindo, então eu fiz a opção a partir desse convite, a opção para ficar nessa outra área e parei de clinicar. (ENTREVISTADO#16)

O entrevistado a seguir aponta ainda para uma necessidade maior de controle

sobre a qualificação dos profissionais, de modo a haver garantia de que os médicos que

estão trabalhando estejam minimamente atualizados. Atualmente, não há nenhum tipo

de controle compulsório sobre a qualificação dos profissionais, nem por parte das

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entidades de classe e nem por parte do governo, capaz de restringir a atividade do

profissional de saúde em função de um mal desempenho na avaliação.

Como médico, eu acho que o principal desafio meu foi... Talvez tenha sido ter tido oportunidade de estar permanentemente me qualificando e sendo testado sobre as minhas qualidades profissionais. Estou convencido de que não é possível que nós deixemos os médicos brasileiros, depois de formados, soltos no setor de assistência sem serem rechecados periodicamente. Estou cada vez mais convencido que nós devemos adotar o mesmo modelo de controle que a aviação civil e militar faz sobre os seus pilotos, periodicamente rechecados sobre as condições clínicas, no nosso caso, as condições cirúrgicas, como é que ele se comporta diante... Porque a incorporação tecnológica é numa velocidade tão absurda, que o que eu estou conversando com você agora, provavelmente, já tem alguma coisa diferente do que a gente está falando nesse exato momento surgindo em algum lugar, que não é razoável que... Olha, eu fui médico assistencialista, fui intensivista, trabalhei em terapia intensiva, durante um bom tempo e, se você hoje me colocar numa unidade de terapia intensiva, eu não sei absolutamente nada dos novos equipamentos que estão ali. Não sei manejar aquilo. Não adianta, não sei manejar. Eu entro na unidade de terapia intensiva e vejo aquele arsenal de monitores e aquilo tudo para mim soa exatamente do mesmo jeito que você pegar e me colocar na cabine de um Boeing 737 800, diante daquele cenário de painéis e dizer assim: "maneje isso daí". Para mim é a mesma coisa, manejar aquilo e manejar aquele bando de monitores no CTI. É óbvio que nem todo médico vai trabalhar na unidade de terapia intensiva, eu sei. Mas a gente precisa ter, minimamente, controle da qualidade do serviço prestado pelos nossos profissionais. Eu diria que a grande dificuldade que eu tive na minha época de professor de medicina e de médico assistencialista foi de fazer com que todas as pessoas que trabalhassem comigo estivessem permanentemente se atualizando, fossem submetidos a uma avaliação periódica das suas habilidades. (...) Então, a gente precisa ter o controle, não só do médico cubano, mas do médico brasileiro também. Se eles fizessem isso com os médicos brasileiros nós não teríamos a menor possibilidade de um profissional e saúde cubano que eu não sei se é médico estar no Brasil exercendo a atividade. É porque nós não controlamos o nosso, po, nós não sabemos de nada. Eu já estou fora do exercício da profissão médica, como médico assistencialista, há 15 anos, mas se eu quiser me meter e entrar em hospital e tratar de um doente eu vou lá e me meto para fazer isso, sob risco meu, ninguém me impede de fazer isso, não tem nenhum tipo de controle para fazer esse tipo de coisa. Mas se eu entrar em um CTI, eu não sei o que fazer ali dentro, mas se eu for um maluco e der um surto aqui psicótico e eu quiser entrar no CTI e começar a tratar o doente eu tenho a carteirinha de médico... (ENTREVISTADO#18)

O relato a seguir também chama a atenção para a necessidade de uma

verificação quanto à qualificação do profissional, porém, o entrevistado ressalta que um

controle deveria ser aplicado desde a graduação.

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Eu não entendo, se a OAB, para ser um advogado você tem que fazer uma prova da OAB, para ser médico, você não faz nada. Você se forma, você já tem o 007 né, que é a licença para fazer o que quiser, não para matar, mas a licença para você fazer o que quiser. Não pode ser assim. Também eu sou contra que você faça a prova só no último ano, acho que tinha que fazer a prova de dois em dois anos. Uma prova nacional. Passou nos 4 primeiros períodos, primeira prova do curso básico, seriam avanços de ciclos nacionais. Porque o médico não pode fazer um investimento de seis anos, não passa na prova e aí o que ele faz com o diploma na mão? Um advogado pelo menos, um bacharel, ele pode não exercer, mas ele pode fazer petições, alguém assina para ele, mas ele pode trabalhar num escritório de advocacia sendo bacharel. Um médico sem o CRM na mão não faz nada, se não puder atuar. Sem o CRM, ele não pode atuar. Então minha ideia era de fazer por ciclos, primeiros quatro períodos faz uma prova nacional. Passou? Se não passou, refaz por mais um ano, você só pode passar para o terceiro e para o quarto ano que são seis anos, para o segundo ciclo se você passar aqui. “Demorei 3 anos para passar”. Demorou 3 anos para passar... Aí faço lá terceiro e quarto ano, passou? Passou. Pode ir para o quinto e sexto. Aí sim, você está no quinto e no sexto ano, você vai ter que ter uma chancela que você efetivamente você conseguiu ser aprovado para ser médico. Então, eu acho que tinha que se repensar esse modelo. (ENTREVISTADO#24)

Retomando à necessidade de constante atualização do profissional, apesar da

necessidade constatada, o setor parece ter dificuldades de responder adequadamente

a este desafio. Os relatos a seguir demonstram que o treinamento e a educação

continuados não são iniciativas de praxe do setor, ou seja, caso o profissional queira se

manter no estado da arte do conhecimento em sua profissão, ele terá que despender

um esforço pessoal.

O relato a seguir informa quanto à falta de incentivo financeiro e a ausência de

um plano de progressão de carreira na esfera pública, em função de cursos de pós-

graduação.

O que é mais velho, ele vai receber um triênio, um quinquênio que vai mudar

alguma coisa, mas não existe um plano de eu poder, dentro da minha carreira, crescer profissionalmente. Por exemplo, na saúde do estado existem três níveis, o indivíduo entra e depois de 5 anos passa para o outro nível, depois de 10 anos passa para o outro nível. Eu acho que é assim, eu já fui até do estado, mas pedi demissão, graças a Deus. E aí, o que que acontece? Quando ele chega naquele patamar, independente do que ele fizer da vida dele, ele vai ficar ali. Então, por exemplo, se eu me qualificar melhor profissionalmente, eu vou continuar recebendo aquele salário. Se eu for um grande especialista na minha área, eu vou continuar recebendo aquele salário. Se eu publicar... a questão da publicação tem um valor muito grande acadêmico, mas, profissionalmente, eu ter mestrado não muda nada na minha vida profissional com o médico, entendeu? Mudou muito pouquinho como professor, não mudou grandes coisas. Então, incentivo para qualificação não existe. O que a gente vai ver cada vez mais é o indivíduo que vai se formar, vai fazer uma especialização básica, vai começar trabalhar e vai ficar a vida inteira naquilo ali. O que acontece com a medicina como um todo, a

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medicina como um todo vai se perdendo em qualidade e a gente vai criando as ilhas: “ah, o hospital tal...” O Fantástico é fantástico no sentido de dar as notícias "tal avanço da medicina", mas aonde está aquele avanço da medicina? Está numa ilha, está na USP, está no Albert Einstein e só. No geral da medicina aquilo não vai existir nem daqui a 10, 20, 30 anos. (ENTREVISTADO#12)

O entrevistado a seguir confirma a falta de incentivos que há nas instituições

públicas de um modo geral para a qualificação dos profissionais por meio de aumentos

de remuneração em função de cursos acadêmicos, mas ressalta que o Instituto

Nacional de Câncer se mostra uma das exceções ao oferecer benefícios maiores em

função da qualificação. O seu relato também indica que, quando se trata de carreiras

públicas na área de saúde no município do Rio de Janeiro, a ausência de uma

progressão funcional acaba gerando distorção na remuneração dos profissionais de

saúde, quando comparados aos vinculados à Secretaria Municipal de Administração.

"Aqui eu vou ficar e irei me desenvolver como profissional, e aqui farei o meu melhor, eu tenho raiz aqui, aqui é meu lugar. Então eu vou me dar de tudo, porque eu vou fazer minha carreira aqui", agora esse estímulo vai ser mantido, se houver o que eu te falei: plano de cargos e salários, não existe na saúde. Olha que coisa ridícula, eu tenho um funcionário que ele é administrativo, ele está como técnico de administração por concurso, mas quem paga o salário dele não é a Secretaria Municipal de Saúde, é a Secretaria Municipal de Administração, na mesma prefeitura, ele só fez 3 provas para mudar de nível, ele chegou no nível máximo que um técnico pode chegar e o salário dele é igual o meu que tenho nível superior, se tirar minha comissão de chefia, que é ridícula, eu ganho quase igual a ele, e o concurso dele não foi por nível superior, foi para nível técnico, deu para entender? Porque na [Secretaria Municipal de] Administração tem plano de cargos e salários, e na saúde não tem. Isso desmotiva muito. Por exemplo, eu vou fazer prova agora para o INCA, eu já tenho um salário diferenciado porque eu sou mestra. Se você faz o doutorado você ganha mais 30%. Você não vai estar motivado? Por isso que o INCA é um centro de pesquisa, porque um doutor se acha ali... Ele não vai ganhar milhões, mas ele tem um lugar que motiva ele a estudar, motiva ele a produzir, e ainda tem o adicional de produção de pesquisa, mais ou menos chega a uns 15% a mais do seu salário, se você tiver envolvido com projeto de pesquisa lá dentro e se dedicar, você ainda ganha mais. Então se torna o quê? Um referencial para tratamento do câncer. O Hospital do Andaraí tem tratamento de câncer também... “Ah, porque é INCA, Instituto Nacional de Câncer”, mas, além disso, o que que ele tem de diferencial? É um polo de pesquisa, e são os funcionários públicos que fazem pesquisa lá dentro, ou alunos que vêm de instituições públicas: UFRJ, UERJ, que fazem pesquisas lá bancados por órgãos, tem bolsa de (CNPQ), centro nacional de pesquisa, porque é uma referência. Por que é uma referência? (ENTREVISTADO#11)

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Outro entrevistado relata a dificuldade de conseguir uma autorização formal para

dedicar-se aos estudos, mesmo sendo professor de uma universidade pública.

Acho que a educação no Brasil, ela é muito falha, não sei como corrigir não. Tem tantas coisas, é falta de condição, falta daquilo, tem muita política. Sabe por que sai da UERJ e fiquei 10 anos fora, na verdade? Porque enquanto eu estava lá na UERJ eu queria fazer um curso de especialização lá na Fundação Oswaldo Cruz, quase todo professor tinha... Um grupo, né, sempre tem um grupo, já tinha feito esse curso e eu falei "gente, quando eu vou?", era um curso relacionado ao desenvolvimento de recursos humanos para a saúde, curso de especialização. "Ah, porque você dá aula assim, assado", “mas e daí? Vou ficando para trás? Não consegui sair para fazer esse curso de especialização. Teve um dia, tinha que ser aprovado na reunião de departamento, para depois ser aprovado na reunião do conselho e nunca minha vez chegava. Um dia me aborreci lá e falei: “vou ficar aqui segurando piano até a hora que eu quiser, porque a hora que eu não quiser mais eu vou-me embora daqui e vocês vão ter que me aturar.” Eu estava muito enfezada, falei: “dessa vez eles vão me liberar para fazer o curso.” E não era para liberar ficar lá não, entendeu? Era só porque tinha que ter o aval para me inscrever porque daí depois o próprio departamento acomoda os horários de aula, é só questão de arrumar horários. A gente sempre ajuda o outro professor "eu troco com você, fica nesse horário", tudo bem. Não demorou muito tempo o Jatene entra e esse diretor lá me chama e eu: "mas eu não posso vir para cá, eu trabalho de noite, trabalho na UERJ, como eu venho para cá?", "pode sim, vou pedir à sua sessão para o reitor da UERJ e ele vai ter que ceder, isso é direito do servidor público e você vem com os honorários da UERJ e tudo, só que você vai ter que trabalhar aqui 40 horas", porque eu trabalhava 6 lá e 6 na UERJ. Falei: “É a minha vez.” Pronto, sai da UERJ. Fora da UERJ fiz esse curso, fiz curso de especialização em controle de infecção hospitalar, fiz o MBA e fiz mestrado, voltei para a faculdade, resolvi voltar para a faculdade, eu estava fazendo minha defesa de mestrado. Cheguei lá: “Ah, e aí, você!” "Está aqui, quero apostilar tudo isso aí no meu currículo, meus certificados todos". (ENTREVISTADO#10)

O entrevistado a seguir ressalta a falta de estímulo para que o profissional

participe de congressos e realize cursos de atualização.

Uma outra coisa que acontecia, é que, antigamente os hospitais públicos, eles tinham bons profissionais que faziam pesquisas, que faziam ciência. Hoje em dia é a maior dificuldade você conseguir ser liberado para ir em um congresso, o salário que você ganha não dá para você se manter atualizado, para você comprar livros de medicina, para você ir ao congresso de medicina, não dá. Além disso, eles não liberam você para ir em congressos, é a maior dificuldade. Então, eles não investem na educação continuada do profissional e o que eles querem mesmo é que você não participe, que você não se atualize, por exemplo: asma, a asma é tratada aqui no município aqui do Rio de Janeiro como se tratava 30 anos atrás, não evoluiu, já saíram vários outros remédios, vários outros métodos, vários outros aparelhos e continua tratando como antigamente no Rio de Janeiro. (ENTREVISTADO#07)

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Vale ressaltar que dois entrevistados destacaram que o Município do Rio de

Janeiro, apesar de, antigamente, oferecer cursos e seminários gratuitos aos

profissionais de saúde, atualmente, não os tem oferecido ou tem cobrado uma taxa

para tal, desestimulando a participação dos profissionais. O relato a seguir informa a

importância das palestras sobre atualizações técnicas do profissional de saúde.

Faz um tempinho já, porque a gente, num decorrer de uns 10 anos, eu trabalhava aqui já há uns 5, aí no decorrer de uns 8, 10 anos, tinham esses cursos todos. Aí até diziam assim: “Quem se interessa por esse curso?”, aí, uma época, fechava serviço, a coordenadora era terrível, danada, de odontologia, ela dizia: “temos que capacitar”, e aí chegava lá 300 pessoas no curso, aí era o dentista de Paciência, era o dentista de não sei o quê. Então, depois falou assim: “Ó, tem um curso de atualização de alguma coisa, quem quer ir?” “Ah, eu quero ir.” E vai um, vai outro, aí eles querem que quem vá assistir ao curso, repasse, então a gente chega, faz um resumozinho: “Olha, no curso foi assim que aconteceu.” E vai informando às pessoas, mas àquela época, a gente ia, era até uma confraternização, porque era uma coisa de a gente encontrar bolsistas nossos, que a gente trabalha e vem o estudante e faz um ano conosco, aí bolsista que estava trabalhando no outro posto, lá em Jacarepaguá: “Ah, fui para a saúde pública, porque eu adorei trabalhar no [Hospital] Jesus!” A gente fala: “ficamos velhas, mas pelo menos fizemos um bom trabalho.” E aí depois parou-se, agora eu não sei. Na época, a gente sabia quem era a coordenadora de saúde bucal, que era ela que mandava, estava lá, apresentava professor. Agora, eu realmente não sei quem é agora o coordenador de saúde bucal e quem lida mais com isso é a chefia, que eu fui chefe, substitui a chefe, aí também ia nessas palestras e tal, assim para mandar as mudanças: “Olha, tem que fazer dessa forma.” Tem que fazer palestra para mãe entrar, que são palestras de instrução para a mãe cuidar e depois tem o atendimento individual, então assim, foi por uma época e não tem tido mais. Isso é uma coisa que faz falta para gente, mas a gente faz os nossos cursos por conta própria, cada um vai se atualizando e vai contando: “Ó, mudou, hein, não se faz mais aquilo não, se faz assado.” Por trabalhar aqui, isso é legal, eu trabalho segunda com um grupo e na sexta com outro grupo, então: “Ó, vou fazer curso disso, que vir comigo?” Às vezes vai no mesmo curso, quando não é o dia aqui do hospital, ou então depois fala que apareceu de novo, a gente vai trocando ideias. (...) Só que assim, na época que tinham esses cursos todos, toda a vez que tinha curso, ela ia lá, que a gente já conhecia: “Gente, trouxe aqui o professor tal, para falar com vocês sobre prevenção. Aí veio o prof. Rui lá, que fez curso na Suécia. Os escandinavos são ótimos em prevenção, aí vinha dizendo: “Ó, mudou isso, mudou aquilo.” Então, a gente conhecia quem era. Como agora não tem mais os cursos, eu nem sei o nome, porque eu não sou da chefia, quem lida com isso é a chefia. (ENTREVISTADO#04)

Outro entrevistado se refere aos conhecimentos básicos que se mostram

importantes no dia a dia do trabalho, principalmente para os profissionais de nível

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técnico, ressaltando a necessidade e a ausência de cursos financiados integralmente

pelo poder público.

E outra coisa que eu vejo muito no município, a ausência de treinamentos até, a gente tinha muito treinamento, muitos cursos, tinha a fundação João Goulart, então a gente fazia tudo quanto é tipo de curso, você podia fazer Excel, PowerPoint, inclusão digital você fazia gratuitamente. Essa fundação acabou, entendeu? Não tem mais. Eu fiz curso de AIDS, de infecção oportunista, para orientar o paciente, como trabalhar com esse paciente, hoje eu não tenho um treinamento, eu tenho reuniões para ver logística, para ver problema, agora capacitação não vejo mais. (...) Decisão política, decisão política. O prédio está no mesmo lugar, as salas estão no mesmo lugar, mas não tem mais treinamento nenhum. Ele faz alguns convênios com cursos, entendeu? Bota lá uma rede ali de cursos de computador, aí você paga 50% de bolsa, 50% você paga, tem uns convênios, mas assim, a gente não pagava nada porque tem muito funcionário, se o nível superior não está sendo bem remunerado, imagina os funcionários que ganham menos. Aqui tem os mais antigos hoje não, para você fazer concurso, tem que ter ensino médio, mas no passado, os mais antigos, tem gente aqui que estudou só até o oitavo ano, antigo ginásio e fizeram concurso para ser auxiliar administrativo, auxiliar de portaria e esses funcionários eles tinham inclusão digital por quê? Eles tinham cursos gratuitos, hoje não têm. Tem funcionário aqui que não sabe o que é passar um e-mail, tem dificuldade até de leitura. (ENTREVISTADO#11)

A dificuldade de aprimoramento da qualificação profissional parece não se limitar

ao desenvolvimento técnico do profissional de saúde, mas também atinge a qualificação

em gestão dos profissionais que atuam no setor de Saúde. O entrevistado#13 relatou

as posturas tanto do setor público, quanto do setor privado, em se tratando de um curso

de pós-graduação em gestão de saúde, conforme exposto, respectivamente, a seguir.

Vale ressaltar que a formação em gestão no setor de Saúde será abordada com

maiores detalhes mais adiante.

Eu acho que é um setor carente, o setor público muito carente e o setor público não manda ninguém. O setor público manda assim, a UFRJ, nós (...) damos vaga para 2 ou 3 pessoas da UFRJ, do Hospital Universitário ou do outro Hospital, maternidade escola, de graça, no curso. Então, essas pessoas, provavelmente, estão lá no curso, mas não vão aplicar, pelo que já senti em um ou outro, não vão aplicar lá dentro do público, por conta daquela burocracia que conversamos. Porque tem sempre uma matrícula privada, ou seja, um contrato privado, no setor privado, vão aplicar no setor privado e a gente está dando essa possibilidade, mas, dificilmente, essas pessoas vão desenvolver algum trabalho mais importante no hospital público. É triste isso, mas é verdade. (ENTREVISTADO#13)

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As pessoas estão pagando do seu próprio bolso, porque as empresas não estão bancando mais. Então, o que você tem? Se você permitir módulos, um módulo básico, todo mundo tem que fazer, se você permite módulo básico num ano, no ano seguinte fulano volta para fazer o 2º módulo, seriam 3 módulos e, no outro ano seguinte o 3º módulo, dava para ele respirar. Porque 36, 38 mil, sei lá, não é qualquer um... (ENTREVISTADO#13)

Ainda no que tange à formação do profissional de saúde, os cursos de

graduação foram alvos de críticas, por parte de alguns entrevistados, que ressaltaram

falhas ou evidências de que o setor não está respondendo adequadamente ao desafio

de desenvolver profissionais que atendam à demanda.

Um dos pontos levantados refere-se a um descompasso entre o que o trabalho

exige de um profissional e o que ele foi capaz de aprender na graduação para estar

preparado para suas tarefas. Um exemplo é a baixa capacitação do médico para

trabalho multidisciplinar com equipes de saúde.

Acho que a grande dificuldade, que eu vejo e vi durante toda formação acadêmica minha, é que a medicina não dá o peso específico à atividade comportamental do profissional. Se a gente ainda tem um acervo bom de avaliação de conhecimento técnico mensurável, do ponto de vista comportamental, atitudes, trabalho em equipe, exercício de liderança, isto eu acho que é o grande desafio e o grande problema da medicina brasileira. Eu não sei como se comportam os profissionais de saúde em outros locais do mundo, não sei. Mas eu sei que, no Brasil, essa questão da avaliação comportamental do profissional não é uma prioridade das academias, dos cursos de pós-graduação, que dão muita ênfase à questão técnica e esquecem a questão comportamental, especialmente a liderança, atitude, trabalho em equipe. Hoje, a medicina é uma medicina, eu diria, multiprofissional e interdisciplinar. Ela não pode mais ser exercida por uma única pessoa. É tanta variedade, é tanta coisa, que você tem que estar com pessoas bem informadas fazendo uma equipe multiprofissional com opiniões diferenciadas, para que você construa a melhor proposta de diagnóstica e terapêutica para o seu paciente. A gente, no passado, era muito a medicina centrada no conhecimento individual. Hoje, a base é nas evidências e você, sozinho, não é capaz de exercer isso na plenitude, entendeu? (ENTREVISTADO#18)

Os próximos dois trechos destacam com clareza o tipo da formação do médico,

no que se refere à baixa qualificação para o trabalho em equipe.

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Como a gente, na hierarquia... na minha profissão, normalmente, a gente está quase que treinado, a gente, na faculdade, já começa mandar. Então mais do que mandar, não adianta você mandar se o seu funcionário não te aceita sabe, então não foi difícil não. Há outras coisas que a gente faz na vida que facilitam a gente caminhar na vida. (ENTREVISTADO#08)

Muito difícil, principalmente o médico. O médico é um camarada que ele, a formação dele, ele não é uma pessoa formada para trabalhar em equipe, ele é formado para trabalhar com uma equipe, alguém servindo a ele. Mas, hoje, com a mudança do sistema, com a mudança de tecnologia, ele tem que trabalhar em equipe e ele não é formado para isso, não sei se ele não tem perfil, mas ele também não é treinado para isso. Hoje, na América, já existe algumas universidades onde os profissionais são treinados para trabalhar em equipe. (ENTREVISTADO#21)

Ainda no que se refere à formação de profissionais médicos, outro entrevistado

ressalta a ausência de formação prática durante o curso de medicina.

E o mais difícil, que eu quero colocar e serve para o público e para o privado: a formação de recursos está cada vez pior, a qualidade dos profissionais, por exemplo, no Rio de Janeiro, quais são as 4 faculdades públicas que nós temos no Rio de Janeiro? Fundão, UERJ, UNIRIO e UFF. Dessas 4, a única que ainda tem alguma produção assistencial é o Pedro Ernesto, porque UNIRIO nunca teve e Fundão e UFF estão numa crise gigantesca, com menos de 30% dos leitos abertos, onde esses alunos estão aprendendo, Felipe? (...) Tudo bem, mas e a graduação? Durante a graduação, eles não estão tendo acesso ao paciente porque esses hospitais são das nossas melhores universidades não estão com seus hospitais em pleno funcionamento. Não é há um ano não, é há mais de dez. Então, imagina, os profissionais estão saindo, nos últimos dez anos dentro dessas universidades... aí vamos lá: as duas melhores privadas que existiam Souza Marques e Gama Filho, onde é que é o campo de treinamento deles de graduação? Santa Casa. Santa Casa está fechada também, então essas pessoas não estão vendo pacientes. Aí você tem a Estácio que também agora está na Santa Casa, então os nossos médicos eles estão chegando ao final de seis anos do curso sem uma educação adequada, sem uma qualidade de ver o doente, de acompanhar o doente, porque na medicina você precisa disso, aula teórica e aula prática. Então, o ensino é uma coisa extremamente grave, que eu acho que tem que ser, além do déficit do número de vagas, você tem que melhorar a qualidade de ensino. (ENTREVISTADO#24)

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A baixa competência de lidar com a prática do exercício da profissão foi

constatada por outro entrevistado, que era responsável por residentes de uma unidade

de saúde.

Eu fui preceptora de residente e os residentes lá, eles faziam concurso, eles se formavam em medicina e faziam um concurso para adquirir a vaga na residência. Cada ano chegavam piores. Piores, assim, de saber lidar com o paciente. Alguns até teoricamente sabiam, mas não sabiam lidar com o paciente, porque eles não tinham essa vivência da prática. E quando você acaba uma faculdade é para você saber exercer a sua profissão, né? Imagina-se. Mas essas faculdades formam sem o profissional ter condições de ser um médico, de botar o carimbo dele ali e dizer, eu estou prescrevendo isso, estou com certeza do diagnóstico, tenho certeza da escolha que eu fiz do remédio, vai dar certo. Não tem, quase não tem. (ENTREVISTADO#07)

Uma outra dificuldade evidenciada a partir dos relatos dos entrevistados se

refere ao descompasso entre o tipo de formação dos médicos e a estratégia principal do

SUS, de investir cada vez mais em atenção básica e prevenção, uma tendência

percebida na terceira fase do histórico do setor. O relato a seguir mostra que os

médicos ainda são formados, principalmente, para atuarem nas ações curativas e de

alta complexidade de saúde.

Acho que esse é um grande problema da saúde pública, você não tem faculdades que abordem isso como tema principal, ensinem, que fazem instrução a nível de saúde primária, como incentivo aos médicos, não tem. A gente é muito curativo, a gente gosta de doença rara, ver paciente em estado grave, isso aí. A gente não gosta de prevenir. E esse é um pensamento um pouco equivocado? Depende. Se você não tiver o outro, mas é que, no nosso caso, a gente só tem isso. (ENTREVISTADO#02)

Ainda no que se refere à graduação de profissionais médicos, um dos

entrevistados descreve como ocorre o processo da graduação, indicando que há uma

tendência de benevolência em relação à aprovação nas disciplinas.

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Tá, vamos lá, tem a pública e tem a privada. O que que a pública tem de viés bom: os melhores alunos tendem a ir para lá, porque são os que mais estudaram e é muito difícil de passar, então você já deixa enviesado. A infraestrutura delas tende a ser muito pior, faltar coisa, etc. No final das contas, o que eu vejo é: eu conheço médicos ruins da UFRJ e da UFF e da Souza [Marques] e da Gama, da Estácio. Conheço médicos muito bons, excelentes da UFRJ e da UFF e da Souza e da Estácio. Então vai muito de você. (...) UFRJ. Vai muito de você, do seu interesse próprio e, claro que se nego for com estímulo, dos seus amigos a sua volta, se é um bando de vagabundo, se é um bando de nerd, se é um bando de cachaceiro, entendeu? (...) Depende se ele foi dar plantão fora, se foi para congresso, se foi buscar conhecimento fora, se foi fazer estágio, fazer intercâmbio, isso tudo a universidade pode até te ajudar a ter, sabe, mas... é o tipo da coisa: tem que querer. Se não quiser... você pode fazer a faculdade nas coxas e ser um médico muito ruinzinho, fraquinho. Pode, você passa, acaba passando. Não tem essa cultura, igual à da engenharia, que é de reprovar todo mundo. (...) Não tem. No geral, todo mundo passa. Não é essa coisa de reprovar metade, todo mundo abaixo de 5. Não... (...) É... Às vezes eu acho que poderia ter um pouquinho mais de rigor em algumas coisas. (ENTREVISTADO#01)

Assim, considerando as evidências supracitadas, pode-se constatar que o setor

de Saúde, por não estar devidamente oferecendo a capacitação adequada para seus

profissionais, faz com que eles aprendam parte do conhecimento necessário para a

atividade profissional na prática do trabalho e com profissionais mais experientes. Este

tipo de resposta dada ao setor oferece dois riscos importantes. O primeiro é que, de

acordo com o relato de diversos entrevistados, os profissionais mais experientes estão

se aposentando, o que pode gerar uma lacuna de conhecimento entre os profissionais

mais antigos e os mais novos. O segundo risco se refere aos erros de procedimentos,

que podem gerar complicações para a saúde dos pacientes, até mesmo com risco de

morte, o que será tratado mais à frente.

O relato a seguir indica que a lacuna na reposição de profissionais não acontece

apenas no que se refere à qualificação, mas também ocorre no número de funcionários

que atuam nas unidades de saúde.

É, olha, eu acho o seguinte: quando a gente tinha um serviço público forte, nós éramos em 10 médicos e grande parte desses médicos vinha de escolas de medicina, por exemplo, Santa Casa foi uma das grandes escolas de medicina aqui, não era, assim, tipo nada oficial, mas era um centro que irradiava cultura médica, a Santa Casa. (...) A Santa Casa ali da Praça XV. Então, a gente tinha lá grandes colegas que foram chefes de enfermaria na Santa Casa, médicos respeitadíssimos da medicina carioca que eram da Santa Casa e frequentavam o mesmo lugar que eu estava, que era o PAM 13 de Maio. Esses caras tinham uma cultura médica acima da média. Então, o que tinha ali de médicos, de qualificação técnica era muito forte, muito forte. Isso resistiu um tempo, resistiu um

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tempo, acho que felizmente eu ainda cheguei no tempo que a coisa ainda era assim, tinha bons colegas lá, a maioria professores. Na minha clínica, tinham pelo menos 2 caras que davam aula na UERJ e eram médicos lá, tinha 1 ou 2 também que frequentavam a Santa Casa, eram médicos de boa qualificação técnica e o pessoal do serviço público federal também, concursado, entendeu, que tinham uma qualificação técnica bem... diferente da de hoje, por exemplo. Existiam médicos muito bons, o quadro de médicos lá e, com isso, você aprendia também. Hoje é outro tempo. Hoje não tem mais nada disso, eles não foram sendo repostos. Na época o PAM tinha mais ou menos 500 médicos, um pouco menos do que isso, quando sai de lá não tinham nem 50 médicos e alguns já recolocados, que não tinham a menor condição de estar lá, recém-formados, assim, assumindo função de médicos que saíram de lá que eram fantásticos, muito bons mesmo. Acho que a qualidade do atendimento foi caindo vertiginosamente do ponto de vista técnico e também a população aumentando cada vez mais. Aqueles médicos que eram médicos de família, que a família inteira tratava com eles, deixou de existir, o atendimento caiu muito de qualidade, não havia mais interesse em tratar ninguém, porque não tinha como tratar ninguém, acho que era uma coisa assim tipo, esvaziou o atendimento, porque não tinha exame, não tinha mais lugar para internar ninguém, era um borbotão de gente, começou a esvaziar tudo e não acompanhou, o atendimento só vinha aumentando, e não houve uma maneira de dar conta do atendimento que aumentou demais. (...) Então, juntando aquela história do PAM, dos grandes médicos que tinham lá, enquanto tinha um serviço público forte, você tinha uma medicina boa, podia irradiar um pouco da cultura médica para vários outros lugares que não fossem só a universidade, não fosse só academia. Eu, no Souza Aguiar você encontrava chefes de equipe renomados, trabalhei no Souza Aguiar 3 anos. Em determinado momento essas pessoas deixaram de existir porque estavam idosas também, deixaram substitutos e, com o tempo, isso não foi renovado, houve um... partiu ali. (...) O serviço público deixou de ser um grande centro de irradiação médica, de cultura médica. E, nisso, enfraqueceu demais o ensino do médico aqui no Rio. (...) O PAM era para ser uma policlínica, com vários especialistas, mas nunca chegou a isso, porque não conseguiu substituir a altura o pessoal que estava lá, nunca conseguiram. Lá na pneumologia tinham pesquisadores, caras que faziam pesquisa, que eram conhecedores profundos da área de pneumologia, por exemplo. De repente não tinha mais ninguém, porque envelheceu, preferiu sair de lá porque não tinha futuro mesmo, era só enfrentar problemas, não tem raio x, não tem como colher... não tem broncoscopia, não tem... enfim, não tem onde fazer nada, então vamos embora daqui. (ENTREVISTADO#06)

Ainda neste sentido, o relato de um entrevistado demonstra com clareza a

dificuldade vivenciada pelos profissionais de saúde, no que tange ao provisionamento

tardio de recursos humanos, em função da não reposição de profissionais mais antigos,

uma vez que, por um período, houve uma quantidade de mão de obra aquém do

necessário na área do hospital em que ele trabalha.

Hoje a gente vive um momento melhor aqui, a gente está com dois meninos que dão suporte, eles distribuem soro, que são de uma empresa terceirizada, mas antes, a gente estava com grupo de idosos, funcionários administrativos idosos, um grupo de farmacêutico, um farmacêutico por dia e como é que o soro vai chegar lá na

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ponta? Eu não sou obrigada a carregar caixa, está entendendo? Tinha um funcionário só para isso, agora estou com mais dois, então é uma fase muito melhor, um ajuda até na gerência do estoque, dois distribuem o soro, saneante para limpeza, que armazenam em outro estoque aqui embaixo, não tem só esse. Então hoje eu tenho uma estrutura administrativa melhor do que do meu colega que o saiu... É até esse farmacêutico que está aí, ele pegou uma fase bem difícil, dele não conseguir fazer gestão, teve que dar plantão para cobrir falta de funcionário, por quê? Aqui é um hospital federal que foi municipalizado e os federais foram envelhecendo, e se aposentando. Daí ficaram, todos somos concursados, federais e municipais. Só que ficou com um grupo pequeno que eram os municipais, e essa mão de obra não foi reposta, (ENTREVISTADO#11)

O trecho a seguir se refere a mais um exemplo no setor público em que o

número de funcionários foi diminuindo, uma vez que não foram sendo repostos

antecipadamente, comprovando a resposta de provisionamento de recursos humanos

tardio do setor.

Algumas pessoas se aposentando e muita gente abandonando, porque como é o trabalho perigoso, desagradável, estressante, o que tem de gente que entrou no meu concurso e já saiu, que pediu demissão, foi embora, é muito grande. Então os médicos está cada vez diminuindo, nós éramos 85 peritos, a gente, na gerência norte, já são 56, e o número de pedidos continua enorme. (ENTREVISTADO#09)

Outro ponto destacado pelos entrevistados se refere à formação de profissionais

especializados de nível técnico, responsáveis por operar equipamentos de alta

tecnologia. O entrevistado abaixo revela a dificuldade de qualificação e especialização

dos funcionários de nível técnico, no Brasil, acompanharem os avanços tecnológicos no

setor.

Por exemplo, na área de física médica, a gente tem uma carência de físico no Brasil. Nós estamos aumentando o número de máquinas de radioterapias, se eu não treinar físico, eu não tenho profissional. Hoje, você não tem o camarada especializado, eu trabalho numa área especializada. Então, a gente, na radioterapia, trabalha com máquina de última geração, eu tenho que treinar a pessoa da última geração ou então esse cara não sabe mexer na máquina de ponta, ele sabe mexer na máquina simples, porque o que acontece? O serviço público hoje não tem recurso financeiro na maioria dos lugares, você tem algumas ilhas que funcionam, não é uma política de governo, é uma ilha,

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uma pessoa ou outra, por algum motivo, ou algum lugar, mas não é uma estratégia ampla. Vou te dar um exemplo prático, quando a gente trouxe há 4 anos atrás, a nossa primeira máquina de radioterapia, o cara não sabia instalar o software, era a Siemens. Consegue imaginar a Siemens não saber instalar um software? A máquina quebrava toda semana, a pessoa não sabia dar manutenção na máquina. (...) O homem que fazia a manutenção, pela Siemens, que, teoricamente, era a pessoa que deveria me ajudar era meu maior inimigo. O cara que tinha que estar do meu lado era o meu maior inimigo, porque ele não tinha formação naquela máquina, que era a primeira da América Latina. Ele nunca tinha visto aquela máquina na vida, ele não sabia mexer, em vez da pessoa me ajudar ela só me atrapalhava. (ENTREVISTADO#21)

Assim, pode-se constatar uma carência de profissionais técnicos especializados

na área de saúde e uma necessidade de as empresas formarem os seus próprios

profissionais, como confirma o trecho abaixo.

Quando você fala "vamos criar novas unidades, sejam elas diagnósticas, sejam elas terapêuticas, hospitais de ponta", isso tudo que você está criando, trazer a incorporações tecnológicas, se você associar ao agronegócio, que você teve uma demanda do povo da zona rural, dos campos para a cidade, porque os equipamentos não eram possíveis serem manuseados por aqueles. Hoje, você está botando equipamentos aqui e não tem uma mão-de-obra qualificada, estruturada para fazer determinados serviços que a inovação te permite fazer. Então, hoje, eu digo assim, o técnico de enfermagem, nas questões de informatização, os processos dentro de um hospital como esse, necessitam uma total integração dos diversos sistemas que você tem aqui dentro rodando, senão você não roda mais. Você, como administrador, sabe: na hora que alguém está usando uma Novalgina no paciente lá no leito, isso tem que cair no estoque, no almoxarifado, mandar para compra, mandar ressuprir, cair na área de contas, para poder cobrar. Então, se você não tem pessoas que entendam disso... Quer dizer, cada vez mais você tem um hospital eu diria paper less, porque, senão, você tem um tempo, um desgaste imenso e a possibilidade de erro no processo de integração dos vários sistemas... Você precisa de gente qualificada. E a utilização desses equipamentos, seja ele dentro do CTI, dentro do centro cirúrgico, dentro do serviço de imagem, de ponta, a mão-de-obra não tem. Então, você tem que treinar pessoas. Hoje, talvez, um dos grandes desafios é você ter dentro da sua estrutura, seja da operadora, seja prestação de serviços médicos, a necessidade de um investimento para o treinamento. Não só o treinamento, a formação, treinamento e manutenção dessas pessoas aqui, porque você investe, alguém vem e tira. Então, você tem um turn over que tem um nível alto, não é baixo, porque à medida que surge alguma coisa nova as pessoas querem ir e acaba que você fica, às vezes, com pessoas menos qualificadas. (ENTREVISTADO#23)

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Ainda, um outro entrevistado ressalta a baixa qualidade na formação dos

profissionais de nível técnico, que acabam por adquirir a capacitação necessária

durante a atuação profissional.

E outra coisa também é a falta de preparo do pessoal que trabalha nos hospitais.

Você hoje tem um problema sério, por exemplo, de técnico de enfermagem, que ele, para ficar bom, ele precisa de muitos anos de treinamento, porque a faculdade é muito ruim [o técnico em enfermagem não é uma profissão de nível superior]. O enfermeiro também. Esse é outro problema, que é um problema de formação de pessoal, de treinamento de pessoal. (...) Eles estão preparando mal. Com raras exceções, deve haver exceções no Brasil, eu não conheço, mas deve haver. Mas, em geral, estão preparando mal. A pessoa só vai, realmente, ficar up to date, quer dizer, em dia com a sua atividade no dia a dia lá, depois de formado trabalhando, aí que vai realmente aprendendo o que deveria ter aprendido na faculdade ou no curso. (ENTREVISTADO#16)

Como resposta, algumas empresas do setor são obrigadas a investir por conta

própria na qualificação de seus profissionais, reduzindo a folga financeira.

Agora, o desafio é como ajustar meu modelo de negócio, para aquilo que eu acho que é o que vai me permitir ser liderança e sobreviver ao mesmo tempo. Que você tem esse problema, né, você tem que crescer e crescer ao mesmo tempo, você está brigando pelas 2 pontas, a gente tem um sistema que... como temos um país que tem pouco recurso financeiro, a gente tem um problema gravíssimo que, além de ser um país com pouco recurso, tem muita corrupção, pouca infraestrutura e pouca educação. Então, em um país que você tem menos recurso, você teria que ser mais eficiente e produtivo e aí você esbarra na falta de infraestrutura, em uma educação ineficiente e uma falta de profissionais de alta qualidade, que a ferramenta que você teria para compensar a falta de dinheiro, seria aumento e produtividade e você tem muita dificuldade em fazer, porque o país não investe nem em infraestrutura e nem em educação e acaba que quem quer fazer isso acaba tendo que desenvolver um programa de formação própria, é o que a gente faz. Além disso, temos um instituto de educação e pesquisa, que hoje é uma OSCIP [Organização da Sociedade Civil de Interesse Público], que hoje é reconhecido com OSCIP pelo governo e ele e voltado só para área de educação e pesquisa. (...) Porque o que acontece é o seguinte: se você às vezes opta pelas pessoas, você, às vezes, tem que sacrificar o lucro e, em um país que as margens são pequenas, esse limite é sutil. Hoje em dia, a gente investe praticamente tudo que a gente ganha, então qualquer situação em que a minha situação financeira caia, ou eu tenho que parar de investir em coisas que eu acredito que são o futuro, educação, pesquisa... (...) Ou eu corro o risco de trabalhar no limite de sustentabilidade muito arriscado. (...) Poderia quebrar. Isso é uma decisão super difícil. Eu, até hoje, sempre, felizmente, só escolhi uma que foi ser sustentável e trabalhar... porque a gente tem um instituto de educação que nós colocamos um dinheiro, a gente gasta uma fortuna de dinheiro por mês só em educação e

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pesquisa, coisa que, provavelmente, outros grupos botariam no bolso como lucro, entendeu? (ENTREVISTADO#21)

O relato de um dos entrevistados, professor de uma universidade, revela que os

alunos de um curso de nível superior em saúde apresentam dificuldades básicas no

aprendizado.

(...) quando eu trabalhava na assistência, eu digo assim: “quantas crianças eu salvei, hein.” Tenho grandes amigos médicos, eu digo assim "Lembra que furada você deu porque você não tomou conta dos seus estagiários, seus residentes? Se eu desse a medicação naquela dosagem a criança poderia ter morrido, sabia?", é verdade. Eu chegava, conferia, porque eu sabia que tinha um monte de residente, um monte de estagiário e tinha meu também, de enfermagem, eu conferia as continhas todas, para ver peso, não sei o quê. Sempre tinha alguma coisa errada, era antibiótico errado, na época a gente usava muito a Micacina, podia romper tímpano, tanto de adulto como em excesso. Nem o médico ficava ressentido e nem eu, porque era outra coisa, era uma questão de educação também, cada um se respeitando e se fazer respeitar dentro daquilo que faz. Acho que hoje isso é meio complicado e eu boto um pouco de responsabilidade disso na área da formação, falta de compromisso também na área de formação. E fiquei quase 10 anos fora da UERJ, só no Ministério, cedida. Aí voltei, volto para onde? Quero voltar para a área que sempre administrei e sei "mas está bom, mas só tem vaga no internato, 9º período", “tudo bem, não me importo de ir para hospital não. Não vou saber puncionar uma veia de novo, não vou ter habilidade, mas se eu treinar eu vou conseguir.” Primeira turma, aí eu voltava para a escola ali na Pedro Ernesto, de 7 ao meio dia, daí ia para a escola. Eu perguntava aos professores, meus colegas de departamento: "me explica como o sujeito chega ao 9º período e ele não tem noção do que é limpo, do que é sujo e do que é esterilizado". Eu fiz uma pergunta para ele e ele foi contar nos dedos quantas horas eram. Como essa pessoa chega no 9º período e vai se formar. "Ah, mas ele aqui, as notas dele na prova...”, falei: “a nota dele pode ser boa na prova, mas desde o 5º período que ele está indo fazer estágio no hospital e só no 9º que eu chego e vejo isso? Como é isso?” Falei: “Comigo ele não vai passar.” Pronto, já aprontei a confusão na faculdade e ele não se formou. Digo que falta compromisso com o ensino, tantos outros professores lá, amigos meus: "não é possível, (*nome*), você é psicóloga, tão exigente!” “pois é, né (*nome*), mas como vou ser a carrasca?", "Não, mas eu faço questão de ser a carrasca". Não é questão de ser a carrasca, é a minha responsabilidade, meu compromisso com um sujeito que estou botando no mercado de trabalho, que, amanhã, sou eu quem estou lá precisando dele. Aí foi uma confusão e ele não se formou, a família compareceu, ele trancou a matrícula e ficou um semestre sem ir, voltou no outro e ele caiu comigo de novo, porque eu era a única que estava no nono período. Eu falei: "não quero fazer a avaliação dele sozinha, quero 3 professores comigo porque não vou ser a carrasca de novo não". Falei "tem 3 disciplinas envolvidas" no estágio, administração, assistência e ética. "Esses 3, cada dia um professor desses vai ficar com ele lá". Eu sou de administração, mas eu sei assistência, quem dá ética sabe assistência. Então vai lá ver e vai avaliar. Assim foi. Aí foi reprovado de novo. Ele tinha um déficit, não sei como eles falavam que ele tirava 10 na prova, porque no internato não tem prova escrita, é o dia a dia, avaliação dia a dia. Mas para mim ele tinha um déficit cognitivo, não era possível ele não ter uma deficiência cognitiva, porque: "fulano, o paciente por quem você está responsável vai fazer uma tomografia, você sabe que horas...”, eu já sabia, já tinha visto tudo. "Sabe que horas vai fazer a tomografia?", "ah, não sei", "então vai ver". Ele já tinha que saber, já está saindo. A

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primeira coisa quando ele chega, ele tem que pegar o prontuário, ver, ver a prescrição do paciente e começar ali a vida. Ele foi ver, falei assim "você sabe que ele tem que fazer um jejum, tem que fazer umas restrições de ingesta", aí ele disse "ah, é?" Eu falei "É. Então, se ele vai fazer o exame as 11 horas, a partir de que horas ele tem que ficar que não pode se alimentar?” “ih...” Eu falei: “Tem um protocolo lá, você não viu?”, "não”, "então vá ver..." “4 horas antes do exame” Aí eu falei: “É? Então a partir de que horas ele tem que ficar sem comer nada?", "ah... 11 horas, 10...”, contava nos dedos, eu falei "acertou, né, contando nos dedos quem não acerta?", 10 horas da manhã estava ele lá com o comprimido para dar ao sujeito. Ele não podia tomar. (...) Porque tinha que beber água e ele ia fazer o exame. Tudo era suspenso, nessas 4 horas, só se fosse uma emergência. Então, eu acho que muitas coisas, falta compromisso mesmo com o corpo docente. Sou meio abusada e digo assim: corpo docente que fez minha formação e de tantos outros professores que estão por lá e tantos que conheço por aí também, contemporâneos, não existe mais. A massa de que eles foram feitos não existe mais. (ENTREVISTADO#10)

Ainda no que se refere à qualificação profissional, vale ressaltar que, no caso da

enfermagem, existe uma hierarquia de profissionais. Em primeiro lugar, estão os

enfermeiros, com curso superior, em seguida, estão os técnicos de enfermagem, com

ensino médio completo e, abaixo do nível técnico de enfermagem, estão os auxiliares

de enfermagem, que devem ter o ensino fundamental completo e mais um ano de curso

para formar-se como tal. No entanto, conforme verificado anteriormente, uma vez que

os cursos de formação não estão capacitando adequadamente os profissionais de

saúde, aumenta-se o risco de ocorrências de erros, que podem levar a danos ao

paciente.

O programa de televisão Fantástico, da Rede Globo, fez uma reportagem

especial sobre a qualificação de auxiliares de enfermagem, apontando diversos erros

graves (G1, 2010). Em 2010, um caso foi amplamente divulgado na mídia, quando uma

auxiliar de enfermagem deixou de conferir o rótulo da embalagem da substância e

aplicou vaselina, ao invés de soro, na veia de uma criança, que veio a falecer. Em

reportagem do mesmo programa, uma profissional de controle de segurança hospitalar

indica que deveriam ser seguidas cinco certezas antes de profissionais de enfermagem

agirem: se o paciente, o medicamento, a via de aplicação, a dose e horário estão

corretos. No entanto, há evidências de que esta regra não está sendo aplicada de

maneira sistemática, além de outros procedimentos de segurança, como a utilização de

luvas, por exemplo, também parecem ser negligenciados.

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Em 2012, o mesmo programa de televisão reportou uma nova notícia, referente

a uma estagiária de auxiliar de enfermagem que aplicou café com leite na veia de uma

paciente que, segundo ela, não estava se alimentando direito (G1, 2012). Em entrevista

ao programa, ela informou que nunca havia realizado esse tipo de procedimento antes

em um paciente e, neste caso, a vítima do erro faleceu. Apesar deste caso, o diretor da

escola que oferecia o curso ao qual a estagiária estava vinculada reportou que a

estudante que cometeu o erro era uma excelente aluna e que receberia o diploma ao

fim daquele ano.

O relato a seguir evidencia a falta de preparo dos hospitais em oferecer

assistência com profissionais adequados. Neste caso, um profissional sem nenhum tipo

de qualificação em saúde, o segurança do hospital, tomou a posição de um profissional

de saúde quando o deslocamento do paciente se fez necessário, impondo mais riscos

ao acidentado.

O Hospital Antônio Pedro hoje em dia, aliás, não posso falar nesse momento, mas a última vez que eu estive lá: é criminoso, a última vez que eu levei alguém lá foi uma experiência traumatizante para mim. Eu socorri uma pessoa que tinha sofrido um acidente de moto na rua, botei no meu carro, colocamos com cuidado, porque ele tinha uma lesão na coluna, chegamos no Antônio Pedro, tínhamos feito todo o transporte cuidadoso com o paciente, chegamos lá, vieram os vigilantes terceirizados do Hospital Universitário Antônio Pedro: “Vocês não têm um enfermeiro?” “Não...”, eles pegaram o rapaz, eu tenho essa imagem gravada na cabeça, eles pegaram, ele estava colocado dentro do meu carro, a cabeça para o lado de dentro, eles pegaram ele pelo braço e puxaram ele. Na hora que ele levantou, eu vi a cabeça dele tinha fraturado a coluna, foi naquele momento que eles provocaram um tetraplégico, entendeu? Se tivesse tido cuidado, não sei, mas naquele momento eu vi: se tinha alguma chance de recuperar o rapaz ali, mataram... Mataram não, mas tornaram o cara tetraplégico. Como é que pode uma coisa dessas, entendeu? Não tinha... esse é o Hospital Universitário Antônio Pedro. (ENTREVISTADO#17)

Ainda, o relato a seguir indica um outro caso em que o segurança da unidade de

saúde assumiu o papel que cabe a profissionais qualificados de saúde. Neste trecho, o

entrevistado relata que era ao segurança da unidade de saúde que cabia a

responsabilidade de fazer a triagem dos que adentravam à emergência.

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Há pouco tempo, há poucos dias morreu um senhor na porta do Instituto de Cardiologia de Laranjeiras, você deve ter visto também, aí: "ah, porque é omissão de socorro", aquela história toda. Depois vi no jornal a diretora do hospital dando uma entrevista e falei: "gente, essa moça tinha que ter vergonha de dizer que ela é diretora do hospital", pelo que ela falava, uma pessoa completamente despreparada. Despreparada em que sentido? Ela jogou toda a culpa, lógico que quer tirar dos ombros dela, jogou toda a culpa que o segurança não chamou, demorou a comunicar à recepção do hospital, a recepção achou que não era para atender, porque está na rua não é para atender e a equipe médica chegou lá e o homem já estava morto. O que eu quero dizer é assim, o grupo médico quer arranjar jeito de eles ficarem bem com todo mundo, está na cara que aquilo ali foi omissão de socorro, tanto que depois que houve o processo, indiciaram a médica, todo mundo ali. Descobriram que quem faz a triagem ali na porta é o segurança, ele diz quem vai e quem não vai. Como uma mulher vai para a televisão falar umas coisas descabíveis dessas? Não tem preparo nenhum de nada, nem de defesa da categoria dela, porque eu não iria defender minha categoria desse jeito, jogando para cima do outro. (ENTREVISTADO#10)

Ainda na linha do que se refere à atribuição de responsabilidades e alocação de

profissionais, quando se trata de instituições públicas, uma vez formados e admitidos

em concurso público, parece ainda haver uma ineficiência na alocação dos recursos

humanos junto às tarefas a serem assumidas pelos novos contratados, não se

aproveitando a qualificação e a especialização que cada profissional possui.

Farmacêutico bioquímico também, trabalhava no laboratório do CTI, fui lá, conversei... É inadmissível, quem vai trabalhar aqui no laboratório e vai ser responsável aqui é um biólogo, é muito mais do biólogo, porque é laboratório químico. Aí ele foi para a farmácia, foi fazer a gerência da farmácia. Hoje ele voltou para o laboratório e quem voltou a gerenciar a farmácia é a técnica. Acho que há um tempo atrás é que ela estava fazendo faculdade de farmácia. Para você ver como são as coisas, eu não posso entender uma farmácia que não seja gerenciada pelo farmacêutico, quem mais entende do negócio é ele, estudou para isso. Eu estava falando da enfermagem, que tem várias especializações, mas você faz o concurso, quando não está lá a vaga especificada no concurso, no edital, aí você faz o concurso, vamos dizer um concurso genérico, mas você chega lá no hospital você precisa de gente especialista em CTI, em pediatria e não sei o quê. No meio desse povo que passou, sempre você vai encontrar alguns especialistas, não custa, e aí falo que é a enfermagem também, não custa aquele chefe de enfermagem receber o sujeito e falar "qual é a sua especialidade?", "sou ‘ceteísta’, tenho formação", "então vou te botar no CTI", isso não acontece, muito raramente. Ela vai colocar a amiguinha dela que não quer sair do CTI ou quer ir para lá e a outra que tem especialidade, por exemplo, vai trabalhar lá na pediatria. Essa coisa no mercado também não é uma coisa da enfermagem, já na medicina não, é tudo mais direcionadinho direitinho. (ENTREVISTADO#10)

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Outro relato destaca a alocação ineficiente de recursos humanos em uma

unidade de saúde em função de conflitos internos.

Havia compartimentalizações, o gestor lá do laboratório é municipal né, então o que o diretor quisesse conseguia com ele, mas se a gente precisasse de uma emergência era uma dificuldade, tinha que pedir autorização do diretor, não sei o quê. (...) É que a gestão era municipal. Aí você tinha pessoas qualificadas em farmácia que não podiam gerir o laboratório, mas um técnico de laboratório geria o laboratório, porque era o que o diretor queria, entendeu? O farmacêutico não, o bioquímico não, mas o técnico de laboratório poderia e aí isso criava um conflito dentro do laboratório. “Então está bem, eu não vou trabalhar mais aqui, me transfere, me muda daqui, me manda para outro lugar.” Aí eu fui trabalhar na AIDS, com o secretário, para atender prontuário, isso amiga nossa que era farmacêutica, trabalhar lá com o secretário. Agora você imagina, farmacêutico qualificadíssimo, fez hematologia, sabia ler aquelas lâminas todas de cor e salteado, acabou, depois disso, trabalhando numa clínica, atendendo paciente para passar para médico. Lia prontuário, anota no livro, entrega para o médico. Se sujeitou a isso. (ENTREVISTADO#06)

Ainda no que tange à ineficiência na alocação de recursos humanos, alguns

entrevistados destacaram exemplos que geram desperdício de recursos no sistema. O

relato a seguir refere-se à alocação de médicos recém-formados na atenção básica,

que, como resultado da pouca experiência do médico, tem como consequência um

aumento no número de pedidos de exames complementares, em contraposição ao

diagnóstico clínico.

Saúde primária é você pegar o melhor médico que tem, com o mínimo de equipamento e ele conseguir tocar a vida. Começa com outro grande erro: incentiva, na atenção primária, recém formado. E foi incentivado agora, até pelo governo federal, com o PROVAB (Programa de Valorização da Atenção Básica), que é incentivar médico recém-formado para ir para o hospital para periferias, para atender na atenção básica e achar que isso está bom. Não está! Você não tem que incentivar o recém-formado. O recém-formado, vários estudos mostram que ele pede muito mais exame do que o cara que tem 10 anos. Eu peço hoje muito menos exames do que quando eu tava recém-formado. Então, isso aí, você vai ter a coluna... Você coloca o recém-formado na periferia. Tudo que chegar, ele vai pedir: tomografia, ultra-som, exame de sangue. Para quase todo mundo. Você vai chegar no outro nível que a maior parte... que a demanda por esses exames que o cara está pedindo vai ser altíssima e o governo não dá. Então, não fechou a conta. Então não é esse médico que tem que pôr. “Ah, vamos pôr um cubano”. O cubano é maravilhoso, po, ele não sabe pedir os exames. Só

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que ele não vai pedir para ninguém. E aí vai ter um bando de doente que vai morrer e não serviu de porcaria nenhuma pôr o médico. Põe logo um enfermeiro muito bom, que tem vários no Brasil, que resolve. Melhor. Então, não fecha a conta. A saúde da família é você pegar médicos, mas mais bem de vida, fazer uma residência de medicina da família, que o cara tem mais tempo de se especializar em tudo, para poder atuar. E ele terá que resolver a coisa com aquele velho jargão: o médico de família, aquele que vai com uma malinha e resolve o problema. Aquele que vai com uma malinha, mas pede um ATC, pede uma biópsia, pede isso, pede uma esteroscospia, uma *videoes”... Então, esse cara aqui não serviu para nada, ele é um hospital ambulante, ele lota o sistema todo. Então, os erros começam aí, você não investe, você não educa, você força uma pessoa errada a entrar dentro desse sistema de médico de família, achando que só porque ele é médico, ele é médico, ele sabe de tudo, ou então vamos pegar um engenheiro recém formado e vamos construir a nossa nave espacial. Vamos ver se a gente consegue passar daqui... Vamos lá, vamos construir com o recém formado tudo. Tem engenheiro para caramba desempregado aí. Não é por isso, não é por aí. E o governo faz isso a nível federal de incentivo. (ENTREVISTADO#02)

Outro entrevistado descreve uma situação semelhante, destacando que o

médico recém-formado encaminhará o paciente para um especialista mais vezes que

um médico experiente, dando como um exemplo o sistema de saúde britânico, que

também é público e universal.

Por que hoje a Inglaterra tem a melhor atenção primária do mundo? Os médicos que na atenção primária lá que são os GP’s, ou General Practioners, eles são sênior, eles não são juniores. Aqui, a gente coloca o recém formado, se o GP, que é o médico de família é um cara que tem que ser resolutivo, ele tem que ter uma bagagem, ele não pode ser um garoto recém formado que quase não viu doença, que quase não teve acesso a patologias e não vai saber tomar uma decisão e aí ele vai fazer o quê? Ele vai ficar sempre encaminhando ao cardiologista, ao endocrinologista, ao não sei o que e aquilo que é para ser resolutivo deixa de ser. (ENTREVISTADO#24)

Uma outra questão levantada pelos entrevistados que parece influenciar o

provisionamento de recursos humanos no setor se refere à existência de um suposto

corporativismo médico, o que pode ser constatado nos relatos a seguir.

Eu acho que o principal, uma delas, é a gente misturar sindicalismo com corporativismo, pode parecer a mesma coisa, mas são coisas completamente diferentes. Eu sou completamente a favor do sindicalismo e sou

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totalmente contra ao corporativismo. O sindicalismo é tudo que você faz em benefício da sua classe trabalhadora, da qual você pertence, o corporativismo é aquilo que você faz única e exclusivamente como proteção e não necessariamente benefício da sua classe e benefício da sua classe e daquele steakholder que está lá do outro lado. No sindicalismo, você está pensando o seguinte: “eu quero ganhar mais, eu quero ter mais benefícios, eu quero entregar mais.” No corporativismo, é o seguinte: “prefiro que não mude nada, que fique como está, eu quero manter esse meu status quo.”. (ENTREVISTADO#24)

Em parte, devido ao corporativismo da categoria profissional, a gestão das

organizações de saúde é feita, comumente, pelos próprios médicos. Neste sentido,

alguns entrevistados levantam o desafio de profissionalizar a gestão das instituições de

saúde, devido à baixa qualificação dos profissionais.

É um setor que está mal, em termos de administração, por mais que esteja preparado por nós, mas ainda precisa de muita coisa. Por quê? Porque você não... O médico, de um modo geral, acha que entende de tudo, ele entende, inclusive, de medicina, mas que ele entende de arquitetura hospitalar, entende de custos, e não é bem assim. (ENTREVISTADO#13)

O entrevistado a seguir enfatiza a necessidade de uma melhor qualificação em

gestão dos responsáveis pela administração das unidades de saúde.

Eu queria comentar um pouco isso, quer dizer, a área de saúde é uma área... Você viu agora na imprensa que é o número um em queixa da população. 93% das pessoas dizem que o problema maior que eles têm é o problema de saúde. É uma área prioritária e uma área que se presta muito à demagogia, uma área que, eu diria, no caso do Brasil, o problema não é tanto o recurso não, o recurso até tem, mas entre o recurso que sai lá de Brasília e o recurso que chega aqui na ponta, 90% se perde no caminho, chega 10% aqui. Então é muito mais gestão mesmo. Eu acho que o grande problema de saúde no Brasil é gestão. Óbvio que tem outros também, falta de médicos, tem cidades inteiras sem médicos, tem uma série de outras coisas, mas, do que existe hoje, é gestão. (...) A única coisa que eu acho que tem e que é importante é o seguinte: o grande problema do Brasil na área de saúde não é, obrigatoriamente, recurso, é muito mais gestão. Quer dizer, se você mergulhar nos hospitais como nós temos feito aqui e aí eu não estou falando só de hospital público não, no privado também, em geral, os hospitais são geridos por médicos que não tem nenhuma noção do que é gestão do hospital. Então, eles são mal geridos. O sistema de saúde, como um todo, é muito mal gerido, não só os hospitais, mas os ambulatórios também. Então, soluções, que são meramente soluções administrativas de racionalização, não são adotadas, porque simplesmente os médicos desconhecem isso. Então, na minha visão, o que deveria realmente melhorar muito é a gestão, é treinar pessoas competentes para gerir

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competentemente o recurso médico que está à disposição da população, seja privado ou público. (...) Então, têm soluções. Não são as melhores, mas têm soluções. E é isso que eu te digo, quer dizer, na realidade o que está faltando é a gestão profissional dos recursos da saúde seja em ambulatório, seja no próprio consultório médico, seja onde for, tem muito desperdício, muita ociosidade, tem de tudo. (ENTREVISTADO#16)

O relato a seguir ainda destaca a influência do médico na gestão em saúde.

Assim, o meu aprendizado aqui, a minha tese, é fato que o Brasil gasta menos do que muitos outros países per capta com saúde pública, é fato que a gente tem uma formação de algumas categorias de profissionais aqui talvez que a gente idealmente precise, é fato que nós temos um Sistema Único de Saúde para dimensões do Brasil, que é uma coisa peculiar, singular, mas assim, o que eu encontro mais na saúde, na minha tese, o que falta na saúde mesmo, mais urgente, mais importante, para que você consiga pegar recursos escassos e responder à demanda crescente, é a gestão. E a pergunta, obviamente, o que é gestão em saúde? Porque todo mundo fala de gestão, gestão, mas não especifica o que é gestão de saúde e eu acho que dá para fazer muito mais com a situação de recursos existentes, eu acho que gestão em saúde, não só pública, é uma questão complicada, porque a saúde, ela, obviamente, tem o DNA do médico na gestão, fortemente, e o médico não foi formado para ser gestor. Tem muitos médicos hoje que fazem o curso de gestão e começam a entender mais as questões de gestão, mas não é gestor. Se me der um bisturi hoje, eu não vou saber nem para que lado pegar, mas se me der uma empresa para gerir, eu vou saber fazer muito bem, porque é meu DNA, eu sempre fiz isso. Então, claro que você tem exceções, tem alguns médicos que podem ser excelentes gestores, mas é exceção. Então, em saúde como um todo, quer dizer, como a saúde, normalmente, é dirigida por... organizações de saúde quaisquer, elas são dirigidas por médicos, acho que aí tem uma questão importante. E gestão e saúde é você fazer mais com menos. Aqui, na RioSaúde, nós definimos essa gestão no tripé, são 3 indicadores básicos: é você ter o maior volume de produção nas instalações existentes e a gente acha que, mudando o processo, nós achamos que conseguimos fazer isso e aí, adotando prática de gestão e processo, muito forte, a gente consegue aumentar muito o volume; ter ações específicas de satisfação para 3 grupos de pessoas que são os pacientes, acompanhantes e os funcionários, de uma organização, e aí, basicamente, dando mais atenção e informação para eles. E terceiro é custo, fazer isso no patamar atual de custos, porque você tem limitações, fato. Então, tem limitações de recursos, você tem uma demanda crescente, como que você compatibiliza essas coisas? E fazer isso, no setor público, é mais difícil, como eu falei antes, por toda a arquitetura de funcionamento do setor público. Uma das coisas que eu percebo... Assim, uma das coisas, gestão tem muito a ver com padronização, você padroniza processos, você padroniza formas de fazer a coisa, principalmente em saúde, eu acredito fortemente que isso é possível, mas isso é a minha visão de gestão. A visão do médico, normalmente, é que: “Não, cada caso é um caso, você não consegue padronizar, porque a cada diagnóstico, até 2 médicos olhando o mesmo paciente, pode sair com o diagnóstico diferente, que as demandas são flutuantes”, enfim, o médico enxerga cada caso, cada patologia, como sendo uma coisa um pouco única e não é assim, a patologia pode ser única, a visão médica pode ser essa, mas a visão de gestão é... Quer dizer, em um hospital, uma clínica é altamente padronizado, talvez 80% das atividades são altamente repetitivas e padronizadas. E aí existe uma incompatibilidade de visão por formação e aí acho que pega, tem uma hora que você... Eu vou falar um termo aqui que os médicos “pulam” [se assustam], mas é isso mesmo, mas na hora de se industrializar os processos da saúde e eles,

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normalmente, falam que é impossível industrializar processo da saúde, que aquela pessoa é uma pessoa e tem suas peculiaridades e tudo mais, mas, considerando isso, acho... Acho não, eu tenho certeza que padronização dos processos de gestão de saúde, pode dar ganhos fantásticos no sistema. (...) Você vê que a última indústria, talvez, que está começando a adotar essas técnicas de gestão é a Saúde, por quê? Principalmente porque, para o médico, isso é uma coisa muito distante, como o médico, normalmente, ele controla as organizações, faz a gestão, a última fronteira do Lean é a Saúde. Então, enfim é um pouco por aí. (...) Assim, se for olhar o Brasil, não sei o que deveria mudar, mas tem alguns gargalos importantes, eu acho que gestão acima de tudo, está, mas você tem o SUS, que todo mundo acha que foi super bem concebido, não vi ninguém dizendo que o SUS era ruim. Agora, a operacionalização do SUS tem muita coisa que precisa ser mudado e precisa ser melhorado, quer dizer, tem um conceito, um desenho teórico bom e aplicação ainda carece de muita gestão para ele, efetivamente, chegar mais perto daquilo que foi a concepção dele. (ENTREVISTADO#20)

Mais um entrevistado ressalta a importância de uma administração profissional

das empresas de saúde, ainda questionando a predominância do médico na gestão das

empresas no setor de saúde.

O gestor público, em instituições médicas, não precisa ser médico, ele precisa ser um administrador qualificado, não precisa ser médico. Por que tem que ser médico? O hospital, o sistema de saúde, é uma empresa como outra qualquer e tem que ser tratada como tal: tem que ter um programa, tem que ter um planejamento estratégico, tem que ter um financiamento para que esse planejamento estratégico possa ser exercido, um financiamento para valer. Enquanto não tiver isso, qualquer plano que você fizer e tudo não vai a frente, tem que ter um sistema de planejamento, um sistema de cobrança da execução desse planejamento e financiamento. Aí você vai fazer discurso na Câmara, vai mobilizar a população e tudo, mas não vai acontecer nada, nada. Embora, nós, quer dizer, o Brasil está começando, na parte de saúde, está começando a despertar para isso e o setor privado, outra vez, está mostrando, está dando a lição. (...) Problema de administrar, quer dizer, a administração de uma empresa de saúde, empresa não é um termo pejorativo, como alguns idealistas de saúde acham, empresa é qualquer atividade humana, em maior ou menor escala, é uma empresa, precisa da gestão tipo empresarial. (...) Isso é outro desperdício enorme, enfim, o problema de saúde no Brasil não é um problema da saúde no Brasil, é um problema da saúde da empresa. Se a empresa for saudável, certamente vai prestar um ótimo serviço de saúde no Brasil, mas a empresa, para ser saudável, tem que ter tudo isso: tem que ter dirigentes com formação empresarial e não formação profissional médico, por que o hospital tem que ser administrado por um médico? O hospital tem que ter regras para ser um hospital, tem que ser o seu conselho científico, mas a administração tem que ser um empresário que seja recrutado do mercado empresarial, não é uma coisa, um cargo de confiança, que cargo de confiança é esse? Acaba sendo um cargo de desconfiança. QI, quem indica. (ENTREVISTADO#26)

Ainda, a presença cada vez maior de profissionais não médicos na gestão de

organizações de saúde parece uma mudança que evoca resistência por parte de uma

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parcela dos médicos. Alguns entrevistados ressaltaram o estranhamento de

profissionais não médicos na gestão, mesmo quando o profissional é da área de saúde,

conforme segue o relato.

Muito ruim mesmo o pessoal de administração do município. Isso aconteceu com a gente também na municipalização do PAM, você vê que enfraqueceu muito a qualidade do pessoal de chefia, de chegar a ponto de mandar enfermeiro chefiar o PAM. Isso causou uma certa revolta dos funcionários e dos médicos, por que não. E também não melhorou o serviço público por causa disso. (ENTREVISTADO#06)

O estranhamento parece ser ainda maior quando o gestor, além de não ser

médico, também não tem como formação básica uma graduação na área da saúde,

como é o caso de administradores e economistas, citados nos dois relatos abaixo.

A entrada do administrador não-médico, que tem a visão exclusivamente empresarial, que visa exclusivamente o lucro, a popularização dos preços de determinados planos de saúde, o que a gente sabe que tem determinados planos que cobram preço que são inviáveis de se cumprir aquilo que é cumprido, então não adianta você acreditar que, você pagando uma mensalidade de 100 reais de um plano de saúde, na hora que você precisar de um CTI, que você vai ter um CTI de primeiro mundo, até porque aquela seguradora não vai ter dinheiro para pagar, com aquilo que ela recebe do seus cooperados, do seus clientes, ele não vai ter condição de pagar sua conta num hospital onde seja oferecido tudo de melhor qualidade, tudo aquilo que realmente a pessoa precisa. E aí, com isso, um maior número de pessoas hoje tendo plano de saúde, a gente faz um negócio estrutural de forma a conseguir atender a essa demanda maior de pessoas que tem plano de saúde, então é muito comum hoje, as filas de emergência de hospital particular igual ou maior às filas que a gente sempre se acostumou a ver nas emergências de hospital público. Hoje praticamente não existe diferença, então se você precisar fazer um exame complementar, marcar uma radiografia do pulmão, você só vai conseguir vaga para daqui a muito tempo, exatamente igual acontece na saúde pública. (...) Passou a ir para o privado e hoje o privado passa pelos mesmo problemas que o SUS passava há um tempo atrás. (ENTREVISTADO#03)

Por exemplo, um economista era secretário de saúde, uma coisa que, na minha cabeça é confusa, o ministro da saúde, economista. Sabe na minha cabeça... apesar de ele ser muito bem intencionado, falta algum conhecimento. Apesar de ser excelente... Excelente no sentido de organização. Economista tem essa visão, agora na visão da saúde específica e tal falta preparo, sabe. Eu vejo diretores de postos nas unidades, na ponta, sabe, que são indicados não por competência. Sabe... Vejo pessoas no sistema que não

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estão preparadas, não têm conhecimento técnico para mandar. Tipo assim, eu acho incompatível, por exemplo, um diretor de hospital ser um dentista, por exemplo. A gente vê muito na área de enfermagem isso. E muitas vezes as pessoas têm poder, mas não tem competência, ou seja, é impossível você exigir de um médico você sendo faxineiro, você não sabe o que você vai pedir e nem vai ter argumentos. Não estou dizendo que existam faxineiros, só para não ficar implicando com alguns profissionais. Mas assim, a coisa é incompatível e, às vezes, o que se pede não é recomendado. Sabe essa coisa precisava mudar assim, as pessoas precisavam ser mais gabaritadas para exercer essas atividades. (ENTREVISTADO#08)

Apesar de um estranhamento oriundo da mudança gradativa que parece ocorrer

nos últimos anos no setor, de uma presença maior de gestores formados em

administração e outros cursos fora da área de saúde, o relato abaixo é de um

entrevistado que defende a presença de profissionais de administração em posições de

gestão no setor de Saúde e ressalta que o corporativismo médico cria uma resistência a

esse processo de mudança.

Deveriam botar pessoas qualificadas e competentes. Exemplo, sempre defendi que, na área de gestão, na área administrativa, que quem sabe isso é o administrador, então deveria ser um administrador, só que o grupo médico não aceita. Eu vou dizer para você que não aceita. Existe aqui no Brasil uma... CBA, Consórcio Brasileiro de Acreditação, já ouviu falar? (...) As primeiras avaliações no Brasil eram assim. Não sei exatamente, ele saiu porque ele foi o último a sair, porque o grupo decidiu que quem faria as avaliações na área de administração era o médico que tem o curso de especialização de administração. Hoje não tem nenhum administrador. É médico, eles se fecham. Essa corporação, falei que tem corporação de enfermagem, tem corporação médica, mas a corporação médica é um negócio, eles são inimigos. Eles podem ser inimigos, mas, na hora que falou de fechar aqui, eles são todos amigos. É muito complicado. Essa é uma questão. (...) Então, tinha a equipe, tudo aprovado pela UFRJ, Ministério da Educação e tudo mais, o primeiro sujeito ali a ser diretor do hospital foi uma professora enfermeira, com muita briga. A única briga que teve é que nenhum outro profissional poderia ser diretor de um hospital que não fosse médico. Teve até briga na justiça, pessoal mesmo, mas ela ganhou, a escola ganhou e ela foi a 1ª agora. Só que eu digo para você, isso foi uma conquista tão grande para a profissão e para a própria sociedade, os outros... ela se aposentou, essa história toda, os outros que vieram foram se arrefecendo e não é mais, agora é médico. Como você mantém essa luta? É só esse profissional que pode fazer tudo na área da saúde? A gente tem tantos outros e até fora da área da saúde, competentes, capazes de. Hospital é uma empresa e muito complexa, muito complicada. Então, por que não ter outros profissionais? Essa coisa da corporação na medicina é muito forte, na enfermagem também é bem forte no sentido assim, nem é tão forte, acho que deveria ser mais, a enfermagem é muito cúmplice do médico. (ENTREVISTADO#10)

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Ainda no que tange à gestão das unidades de saúde pública, um outro ponto

levantado pelos entrevistados refere-se à contratação de diretores dos hospitais

públicos. Este processo depende de nomeação política, o que foi apontado por diversos

entrevistados como algo que deveria ser mudado no sistema de saúde no Brasil, uma

vez que prejudica a administração dos hospitais, já que a escolha não passa por um

sistema de avaliação meritocrático e ainda favorece esquemas de corrupção.

Recebi um dia, para almoçar, um ex-aluno do Saúde. "*Nome*, vim te contar uma coisa: recebi um convite para dirigir o Souza Aguiar". Souza Aguiar é federal, um hospital que já foi referência. Souza Aguiar não, era Andaraí, na zona norte, é uma monstruosidade de hospital, você conhece? (...) No passado, ótimas residências, cirurgias, era Andaraí, Souza Aguiar, Miguel Couto, Servidor do Estado e Lagoa. “Recebi esse convite para dirigir o Andaraí. Aí, fui conversar” Eles disseram o seguinte: "O salário é muito baixo, mas você tem um PF", a conversa foi nesse nível. “Um PF, por fora, de R$ 25 mil, mas com uma condição: você assina, só, as licitações". Ele disse "Mas como assim?", "você sabe, a nomeação, a administração do dinheiro”, não falou nem recurso, "do dinheiro dos hospitais federais, aqui no Rio de Janeiro, é uma cota do PMDB”, e disse o nome do deputado e do senador". O senador não era daqui, mas tinha ligação com o deputado daqui. "Então, você tem que só assinar e a gente faz as coisas", ele falou "desculpe, mas não estou bem de saúde, não vou poder aceitar", ele foi me contar isso e outras pessoas me disseram a mesma coisa. No hospital Servidor do Estado (...) mudaram a administração do Servidores. Percebe qual é o problema? (ENTREVISTADO#13)

Ainda, um entrevistado revela a baixa qualificação dos diretores, uma vez que o

processo de contratação não requer exigências relacionadas à capacidade técnica ou

de gestão.

Indicação política na maioria das vezes, sem nenhuma qualificação, sem nenhuma condição técnica para gerir nada ou porque é médico ou porque não é, não interessa. Acho que isso talvez devesse ser feito, se trocar e colocar pessoas qualificadas para gerir o sistema de saúde. Mas como, ainda, a gente é muito mal politizado, tudo é interferência política, afastar essa interferência política da área de saúde, entendeu? Eu acho que isso é uma coisa que é ruim, muito ruim. Aqui a gente tem casos assim que eu conheci um caso pelo menos, uma pessoa muito próxima minha que foi diretora do Hospital do Andaraí durante um tempo e que em determinado momento ela ocupava o cargo de diretora administrativa e em determinado momento chamou um deputado

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muito famoso aí, colocou como diretor geral né o seguinte, olha, eu quero 30% da fatura do hospital. Deputado conhecidíssimo no Rio de Janeiro, se você desligar aqui... (...) E aí ele convidou a diretoria toda e colocou a proposta do deputado e ninguém topou. A resposta dele foi a seguinte, daqui a dois meses vocês não estarão mais aqui nessa administração. Não deu outra, não ficou ninguém para contar história. Foram todos eles demitidos. (...) Alguns preferiram sair e outros, como eram tão conhecidos assim, ficaram por lá mesmo até aposentar-se. Mas cargo foram alijados do cargo. Aí eu digo para você que essas influências não devem acontecer, não podem acontecer. As indicações lá para a gestão seriam de outra maneira, de outro modo. (ENTREVISTADO#06)

Por fim, o relato a seguir mostra um exemplo de como um diretor foi escolhido

para o cargo.

(...) por mais que você argumente o interesse não é esse, por mais que você mostre o paciente, o interesse não é atender a comunidade. Como são escolhidos os diretores? Por indicação e essa indicação é muito por amizade, dificilmente eles indicam pela parte técnica, nem pela parte técnico-administrativa e nem pela parte técnica da profissão da pessoa, não é. É por simpatia, é o amigo desde a infância, é esse aí que vai ser e é quem tem pensamento do mesmo modo que o prefeito. Então, essas pessoas eram pessoas que não tinham vivência hospitalar, eram pessoas que não tinham uma vivência como médicos, como profissionais de medicina, eram pessoas que viam aquilo ali como números, eles trabalham assim, com estatística, para comprar, aquela pessoa ali vai morrer, vai morrer, não interessa, é um número a menos. Acho que os gestores são mal escolhidos. Houve uma época no Rio de Janeiro, que fazia votação para escolher os diretores, isso até 1984, se não me engano, tinha aquele Hospital da Grajaú-Jacarepaguá, o Cardoso Fontes, ele era dominado por um vereador. Como era isso? A pessoa chegava ali precisando de internação, e eles diziam: não tem vaga, mas anotavam tudo. No dia seguinte, uma pessoa ligava e dizia: "olha, vereador fulano de tal arranjou uma vaga para senhora aqui, então a senhora pode vir", o hospital era comandado por esse tal vereador. Os médicos dali se revoltaram e aí fizeram, colocaram o diretor para fora do hospital e elegeram uma diretora que foi a Ana Maria “Lipic”. Ana Maria “Lipic” foi diretora e conseguiu acabar com essa influência de vereadores escolher a vaga no hospital, porque ele vai escolher para quem vai dar voto para ele e não para quem está mais grave, para quem está precisando mais. Então há uma ideia que a comunidade daquele hospital é que escolha o seu diretor, mas eu concordo que é um modo ideal, porque muitas vezes, vai ser escolhido o diretor que não avalia muito as falhas do funcionário, o que deixa faltar o que dá muito feriado, mas do jeito que é agora é muito ruim. Eu trabalhei em um lugar que o diretor foi escolhido da seguinte forma: ele foi a um jantar, porque ele era esposo de uma mulher que trabalhava no município e ele sentou-se ao lado de um homem e, nesse jantar, eles fizeram amizade, coisa e tal. Acabou o jantar, o carro do moço estava enguiçado, aí ele disse: "a minha mulher veio com carro e eu também. Então você faz o seguinte, você leva meu carro e depois você me devolve", no dia seguinte esse homem, que levou o carro emprestado foi alçado a diretor do hospital. Ele ligou e falou "eu vou devolver seu carro, e agora eu sou diretor e qual cargo você quer?". Nem conhecia o homem direito, foi amizadezinha de um jantar e foi escolhido

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para ser diretor. Essa pessoa não tem preparo nenhum, nem administrativamente, e, muitas vezes, nem como médico, não tem conhecimento para ser gestor de um hospital, os gestores são muito mal escolhidos, porque o critério é amizade. (ENTREVISTADO#07)

Sendo assim, o Quadro 5-7 sintetiza os fatores deficitários no setor de Saúde do

Brasil relacionados ao desafio de provisionamento de recursos humanos, subdividindo-

os em cinco dimensões: formação, remuneração, carreira, atualização e disfunções.

Deficiências Antedentes Fase 1 Fase 2 Fase 3

Formação

Inexistência de cursos de formação: o profissional de saúde brasileiro detinha apenas conhecimento práticos

Primeiras faculdades de medicina no Brasil, mas a maior parte dos profissionais detinha apenas conhecimento prático

Poucos profissionais capacitados para atuar em prevenção no interior do país; Foco em medicina curativa; Qualidade da formação questionável devido à multiplicação acelerada de cursos; Inexistência de um controle de qualificação do profissional de saúde, à semelhança do exame da OAB para advogados; Baixa formação do médico para trabalhos multidisciplinares; Cultura de cursos de medicina em passar alunos que não tenham um desempenho excelente, com o intuito de não separar as turmas que

- Baixo alinhamento da formação dos profissionais de saúde com a Estratégia de Saúde da Família do SUS (foco da formação em ações curativas e não preventivas); Baixa oferta de profissionais técnicos especializados; - Qualidade da formação questionável devido à multiplicação acelerada de cursos e, em alguns casos, sem experimentação prática durante a formação, ocasionando em erros médicos; - Inexistência de um controle de qualificação do profissional de saúde, à semelhança do exame da OAB para advogados; Baixa formação do médico para trabalhos multidisciplinares; - Cultura de cursos de medicina em passar alunos que não tenham um desempenho excelente, com o intuito de não separar as

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entraram juntas; Baixa formação do médico em gestão;

turmas que entraram juntas; Necessidade de os prestadores de serviços investirem em qualificação de profissionais, reduzindo a folga financeira; Baixa formação do médico em gestão;

Remuneração Sem evidências para análise

Sem evidências para análise

Alta para os profissionais que trabalhavam nos hospitais dos IAP's; Alta para os profissionais liberais, antes de os planos de saúde se popularizarem;

- Baixo valor pago pelas consultas médicas; Sistema de remuneração do SUS e das operadoras de planos de saúde destina valores maiores a procedimentos de alta complexidade, ocasionando em baixa procura por especialidades médicas essencialmente clínicas;

Carreira

Não aplicável, pois os profissionais da artes de curar atuavam isoladamente como profissionais liberais

Não aplicável, pois os profissionais da artes de curar atuavam isoladamente como profissionais liberais

- Inexistência de um plano de carreira em nível nacional para levar o profissional de saúde com segurança às áreas geográficas com menor oferta de profissionais de saúde;

- Inexistência de um plano de carreira em nível nacional para levar o profissional de saúde com segurança às áreas geográficas com menor oferta de profissionais de saúde; - Inexistência de um plano de carreira dentro das empresas prestadoras de serviços públicos;

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Atualização

Não aplicável, pois os profissionais praticamente não realizavam cursos de formação

Não aplicável, pois a maior parte dos profissionais não era munida de conhecimento teórico e a velocidade de novas descobertas e invenções não era tão alta quanto nas fases seguintes

- Inexistência de um controle por parte dos conselhos de classes para verificação se os profissionais de saúde para verificação se estão atualizados com as últimas descobertas e inovações (procedimentos, diagnósticos, tratamentos, medicamentos, tecnologias, etc);

- Baixo incentivo em aumento de remuneração por parte dos prestadores de serviços aos profissionais mais qualificados; - Baixo incentivo à maior qualificação devido à inexistência de planos de carreiras, já que uma maior qualificação não necessariamente fará o profissional progredir na carreira; - Dificuldade de liberação dos profissionais de saúde por parte dos prestadores de serviços para participação em cursos e congressos; - Reduzida oferta de cursos por parte do SUS; - Baixa folga financeira do profissional de saúde para se dedicar a cursos e congressos; - Baixa folga de tempo do profissional de saúde para se dedicar a cursos e congressos; - Inexistência de um controle por parte dos conselhos de classes para verificação se os profissionais de saúde para verificação se estão atualizados com as últimas descobertas e inovações (procedimentos, diagnósticos, tratamentos, medicamentos, tecnologias, etc);

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Disfunções

Boticários prescreviam tratamentos; Boticários preparavam medicamentos receitados por profissionais que não os físicos

Boticários prescreviam tratamentos; Boticários preparavam medicamentos receitados por profissionais que não os físicos

- Profissionais qualificados sendo direcionados a cargos aquém da sua qualificação em função de conflitos entre profissionais em unidade de saúde pública; - Alta influência do médico na gestão das organizações de saúde, havendo resistência de outros profissionais assumirem cargos de gestão;

- Profissionais não capacitados assumindo funções de profissionais de saúde. Exemplo: segurança fazendo triagem em hospital; - Residentes atuando sem a devida supervisão de um responsável;; - Auxiliares de enfermagem realizando procedimentos destinados a técnicos de enfermagem; - Pouca eficiência na alocação de recursos humanos contratados concurso público em função das qualificações dos profissionais.; - Profissionais qualificados sendo direcionados a cargos aquém da sua qualificação em função de conflitos entre profissionais em unidade de saúde pública; - Médicos pouco experientes alocados para atenção básica, diminuindo a capacidade de solução sem necessitar de um encaminhamento para especialista ou para exames complementares; - Alta influência do médico na gestão das organizações de saúde, havendo resistência de outros profissionais assumirem cargos de gestão; - Baixa folga de profissionais de saúde devido ao provisionamento tardio de recursos humanos em unidades públicas de saúde, reduzindo a folga operacional;

Quadro 5-7 Quadro Síntese das Deficiências relacionadas ao Desafio de Provisionamento de Recursos Humanos no setor de Saúde no Brasil

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5.1.4 Desafio de Gestão da Complexidade

O Desafio de Gestão da Complexidade será analisado sob a perspectiva das três

dimensões que mais se destacaram ao longo da análise dos demais desafios:

profissionais de saúde; prestação de serviços (subdividida em quatro subdimensões:

promoção, prevenção, diagnóstico e tratamento); e financiamento e acesso. Ao longo

do processo de crescimento do setor de Saúde no Brasil, estas três dimensões

demonstraram significativas mudanças, que as tornaram mais complexas, quando se

considera as interconexões e interdependências entres os players do setor.

Durante o período dos antecedentes do setor, havia pouca interdependência

entre os profissionais de saúde. Cada profissional da arte de curar atuava de maneira

independente, à exceção da prescrição de medicamentos a serem preparados na

botica, que criava uma dependência dos físicos para com os boticários. Assim, não

havia ainda a existência de equipes de saúde trabalhando em conjunto para prestar os

serviços de saúde.

A prestação de serviços de saúde, durante os antecedentes do setor, também

não exigia interconexões. O mesmo profissional da arte de curar era responsável por

diagnosticar a causa da enfermidade e tratá-la. Ainda, considerando a definição de

promoção da saúde da Carta de Ottawa (WHO, 1986), isto é, como sendo a

capacitação das pessoas e comunidades para modificarem os determinantes da saúde

em benefício da própria qualidade de vida, pode-se considerar que, antes da primeira

fase do setor, não havia esta subdimensão de prestação de serviço. Por sua vez, a

prevenção de doenças era função da Provedoria-mor, que tinha como responsabilidade

a profilaxia das cidades, como, por exemplo, a inspeção de gêneros alimentícios e dos

portos.

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Ainda neste período de primórdios, o acesso aos serviços de saúde ainda era

pouco complexo, isto é, sem interdependência entre os players relacionados a essa

dimensão, e se dava de duas maneiras. Aqueles que tinham capacidade de pagamento

tinham acesso aos serviços oferecidos diretamente pelos profissionais das artes curar.

Para os demais, restava o atendimento nas Santas Casas de Misericórdia, cujo

financiamento era fruto de filantropia e o paciente não precisava pagar pelos serviços

prestados.

A primeira fase da história do setor não apresenta mudanças significativas na

forma de acesso e financiamento dos serviços de saúde. As Santas Casas continuaram

a oferecer seus serviços aos pobres e indigentes e, por sua vez, os profissionais que

atuavam no setor de Saúde continuaram a prestar seus serviços por meio do

pagamento direto. Apenas a partir da segunda fase, com o início da previdência social e

o surgimento das operadoras de planos de saúde, esta dimensão será

significativamente alterada.

Ainda durante a primeira fase do setor, os avanços tecnológicos alteraram

significativamente a legitimidade dos profissionais de saúde. Algumas das descobertas

e novas teorias mais marcantes foram a teoria da evolução das espécies por meio da

seleção natural de Charles Darwin; o estudo sobre hereditariedade de Mendel, que deu

início ao campo de estudo da genética; a contestação da Teoria Humoral por parte de

Virchow, com seu estudo em que identificou que o corpo é uma comunidade de células

e com sua teoria de que as doenças eram originárias de alterações dessas células; e,

principalmente, a teoria microbial de Pasteur, que identificou os agentes patogênicos de

doenças.

Estes novos estudos e experimentos deram ao setor de Saúde uma base

científica sólida para que o os profissionais de saúde pudessem diagnosticar e tratar os

pacientes. Neste processo de transformação, o médico ganhou maior legitimidade em

sua atuação profissional, distanciando-se cada vez mais das explicações metafísicas

oferecidas pelos demais profissionais da arte de curar, que praticavam o curandeirismo.

Assim, em 1890, a prática do curandeirismo foi proibida pelo Código Penal da primeira

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Constituição da República Brasileira, reduzindo a variedade de profissionais de saúde,

mas estimulando uma maior qualificação técnicas daqueles que atuavam no setor.

De maneira análoga, em função das novas descobertas científicas, a prevenção

a doenças foi aprimorada. No final da primeira fase, a partir da nomeação de Oswaldo

Cruz à diretoria do Departamento Geral de Saúde Pública, os guardas sanitários

passaram a ter uma atuação preponderante no combate às doenças nas grandes

cidades. No entanto, vale destacar que a ainda não havia promoção de saúde, uma vez

que a população não foi envolvida no processo de mudança dos seus determinantes de

saúde, o que, em parte, levou à Revolta da Vacina, uma vez que a população não

compreendia plenamente a necessidade das ações dos guardas sanitários.

Adicionalmente, as expedições científicas realizadas entre 1912 e 1917 ao

interior do país aumentaram a visibilidade das condições de saúde da população rural.

A partir destas expedições, foi constada a necessidade o Estado realizar ações de

saúde no interior do país, por meio de uma centralização das ações de saúde. Isto

mostrava-se necessário, uma vez que a atuação individual dos municípios surtia pouco

efeito, quando os municípios vizinhos não praticavam ações preventivas. Desta forma,

aumentou-se a complexidade do setor, uma vez que as ações, cada vez mais, tiveram

que ser integradas, aumentando a interdependência entre os governos.

No que se refere à interpendência entre os profissionais de saúde, poucas

mudanças foram constatadas em relação ao período que antecede o setor. Apesar da

presença cada vez maior do médico na prestação de serviços de saúde, também em

função da criação das faculdades de medicina em 1832, suas ações ainda eram

realizadas de maneira essencialmente individual. A característica do médico desta fase

era a utilização de uma maleta com instrumentos e medicamentos e a visita às casas

dos pacientes, de modo que pudesse prestar atendimento aos enfermos.

Apenas a partir da segunda fase do setor, a relação entre os profissionais de

saúde passa a estabelecer maior interdependência. Com a introdução cada vez maior

da tecnologia nos hospitais, que passaram a conter máquinas e equipamentos de

diagnóstico, e com o crescimento da variedade de medicamentos e procedimentos

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existentes, o médico deixou de ter uma atuação individual, passando a depender cada

vez mais de uma equipe de saúde a sua volta.

Desta forma, gradativamente, a equipe de saúde passou a contar com

profissionais como farmacêuticos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, auxiliares de

enfermagem, nutricionista, psicólogos, fisioterapeutas, além de profissionais capazes de

operar os equipamentos, como técnicos de radiologia, técnico de radioterapia, entre

outros. Além disso, houve surgimento cada vez maior do número de especialidades

médicas, tornando o profissional médico cada vez mais dependente de um colega de

conhecimento mais especializado em um assunto capaz de atender à demanda do

paciente.

O relato a seguir, apesar de se referir ao período pós criação do SUS,

exemplifica com clareza as dificuldades enfrentadas em um hospital provenientes do

aumento da complexidade relacionada à atividade da organização, processo de

crescimento da complexidade este que ocorreu, em grande parte, durante a segunda

fase do setor.

Então eu quero que você tenha a ideia do seguinte, a gestão que a gente faz aqui ela fica entravada pela gestão que está acima de nós, né, aqui. Se o ministério não me repassa o que eu preciso para o mês não é culpa do município, o ministério não me repassou, entendeu? Se eu não recebo medicação para tratar doenças oportunistas, tuberculose, hanseníase - lepra -, a culpa não é do município, é do estado, porque o estado que tem que repassar para o município. Quem determina isso? O SUS, a lei, o SUS que determina o que é de esfera de cada um. Isso tudo vai impactar na tua gestão, e fora assim questões do dia a dia, de rotina. Essa baixa remuneração do profissional que faz com que o profissional esteja em 3, 4 lugares, o médico vem aqui de manhã, aí no outro dia ele volta e não acompanha o paciente, ele começa com um antibiótico, aí ele troca por outro, entendeu? Aí vem outro médico e troca de novo, então tudo vai impactar aqui na farmácia. Eu tenho visualizado muito isso. A gente troca muito de médico, tem muito residente aqui, é um hospital de ensino e, às vezes staff do hospital chega e vê que houve erro, aí ele troca tudo, porque esse médico está sendo treinado, ele *** ainda. Então isso tudo vai impactar na farmácia, entendeu? Então a logística para coordenar tudo o que acontece aqui é muito ampla, porque o medicamento, ele vai abranger todos que chegam aqui, ninguém pode sair daqui sem medicamento, tanto os internados quanto os do ambulatório a gente também atende, asma adulto, asma infantil, artrite reumatoide juvenil, AIDS, eu tenho que ter medicamento para esses pacientes. Mas se não houver uma gestão que funcione bem desde o nível central até a unidade, o paciente da ponta vai sofrer, independente da nossa vontade. Às vezes é um documento que o médico não preenche de forma correta, que era para ter chegado há 15 dias atrás aqui o medicamento e

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volta tudo. Aí tem que voltar para o médico, pedir para ele responder novamente o documento e o paciente fica esperando. Mas quem definiu essas regras? Fui eu? Não. Foi quem está acima de mim. Esse medicamento tal só é liberado por esse passo a passo. Então eu não mudo isso. É isso que eu tento conscientizar o médico, o médico lá na ponta também está cansado porque ele trabalha aqui, trabalha em outro lugar para ter um salário digno de um profissional da saúde. (ENTREVISTADO#11)

Ainda neste âmbito, o Entrevistado#18 destaca que houve uma mudança na

forma de se fazer medicina nos últimos anos. Antigamente, o médico adquiria

conhecimento e experiência ao longo de seus estudos e carreira, o que o tornava cada

vez mais capaz de diagnosticar e indicar o tratamento adequado para o paciente. Com

a evolução da tecnologia e maior abrangência do acesso a ela, e medicina passou a ser

baseada em evidências, isto é, quando busca-se, por meio de exames

complementares, o diagnóstico da doença. Assim, o médico passou a depender cada

vez mais de outros profissionais para o diagnóstico e tratamento do paciente.

Por isso, que a medicina baseada no conhecimento acumulado, no modelo repetitivo, ele foi fundamental... Era fundamental que o médico acumulasse conhecimentos com métodos. Era a chamada medicina baseada no conhecimento. Você acumulava métodos e conhecimentos para dizer assim: "o Felipe tem todo quadro sugestivo de pneumonia, porque já vi mil pneumonias". Agora não, é uma medicina baseada não no conhecimento, mas uma medicina baseada em evidências, em que você tem uma série de exames e procedimentos e, com o somatório daqueles exames e procedimentos, conclui-se que o Felipe tem uma pneumonia. Não é mais necessário, fundamental... Eu acho importante, mas não é necessário, fundamental que você acumule conhecimento de 1 milhão de casos, porque as tecnologias hoje existentes são tão refinadas que permite a um jovem médico recém saído de uma faculdade, se ele exercer rotinas chamadas de guide line nas suas investigações diagnósticas, ele chega à mesma conclusão que o Dr. Adib Jatene chega com base no conhecimento acumulado ao longo de 70 anos, sei lá quantos anos de atividade profissional, entendeu? (...) Então, a questão da regulação de mercado, as leis de mercado, aquela coisa que você, que é da área de administração estudou muito, Adam Smith, da mão invisível, da regulação pelo próprio mercado, na medicina, não é aplicável, não é possível você fazer isso. Você tem que ter uma intervenção do Estado, regulando, não fazendo com que você, Felipe, queira fazer uma ressonância magnética, porque está com uma dorzinha na ponta do dedo, que é a distorção que a gente tem hoje no sistema. (ENTREVISTADO#18)

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Adicionalmente, durante a segunda fase do setor, surgiu um novo player no

setor, o laboratório de diagnósticos, isto é, uma organização especializada em prestar o

serviço de exames laboratoriais para complementar ou confirmar o diagnóstico feito

pelo médico. Este novo player evidenciou um crescimento significativo na prestação de

seus serviços, incrementado pela maior variedade e precisão dos exames laboratoriais.

No entanto, há evidências de que esta mudança de paradigma na medicina fez com

que passasse a haver uma demanda desnecessária por este tipo de serviço, reduzindo

a folga operacional do SUS e a folga financeira das operadoras de planos de saúde,

que passaram a arcar tanto com o custo da consulta médica quanto com o custo dos

exames laboratoriais. O entrevistado a seguir destaca esta situação relacionada ao

SUS.

Depende, isso daí já é por trabalho. Cada médico que você põe, cada um, cada médico que você põe no Medicina de Família recém-formado, você deveria abrir mais quase três médicos no nível acima. O que seria isso? O cara vai pedir muito exame. Então, eu vou precisar de um cara no laboratório, um cara na radiologia e um cara na cirurgia. E isso encontrar pelo SUS é um inferno. Então você vê um bando de gente nessas zonas periféricas que foram atendidas pelo médico e estão com pedido de ultrassom marcados para daqui a 90 dias, 100 dias... Raio-x, 100 dias... Se ligar hoje vai ser 100 dias de marcação, de espera. E isso tendo só a agravar. Quando mais médico você pôr, você vai superlotar. Não é questão: “ah, então não vamos pôr médico que está resolvido.” Não. Senão você não dá nenhum diagnóstico. A questão é você colocar a peça certa no local certo. Você tem que incentivar... como é que você vai tirar aquele médico que tem 10 anos de formado e levar ele para a *área* de Família, porque ele resolve, só com a cabeça. Ele vai pensar, vai olhar, vai examinar e vai chegar a uma conclusão que não precisa de exame, não precisa. Pega hoje, po, eu na radiologia... a quantidade de tomografia que eu faço para diarreia... aguda. Isso em um hospital menorzinho, o que é uma coisa que não precisa de exame nenhum. Tomografia, tomografia, tomografia... Eu faço às vezes 20 por dia só de diarreia. Imagina se a gente for pensar em nível nacional, quantas tomografias não são pedidas por doenças que não precisariam? Se eu estou num mundo de 10 médicos. Coloca num mundo de 1000, 20 mil, 16 mil cubanos, 35 mil médicos de família. O governo vai precisar investir na outra área, não vai complementar da [atenção] básica. E isso não faz. E aí, para que que você fez a [atenção] básica se você não seguiu, não deu continuidade? Qual é o sentido do fluxo do atendimento? Também está equivocado aquilo, a gente não está ainda correto, ainda não tem, pelo menos onde eu sei aqui no Rio, de *gerência* de Família, uma indicação: “ó, você vai fazer um ultrassom ali, você vai fazer ali.” E guiar a pessoa *** para fechar um diagnóstico. Não tem. (...) É. Aqui até agora não tem muito “funcionante”, muito bom, assim, ágil, a ponto de *** ser ágil. Até tem uma certa tentativa, mas agilidade: “Daqui para aqui... po, 15 dias.” [Como é:] “Marquei, daqui a 90 dias você vai lá.” Poxa! Se não foi nada, curou. Se foi, morreu. Então, para que que fez o básico? Deixava a coisa seguir, você só gastou e deixou tensão na pessoa... e criou uma sensação de 90 dias de angústia. Aí é um pouco errado. (ENTREVISTADO#02)

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No que se refere à dimensão de financiamento e acesso, a segunda fase iniciou

um processo de alargamento do número de pessoas capazes de acessar os serviços

de saúde. Isto ocorreu devido ao início da previdência social no Brasil, por meio das

CAP’s e, posteriormente, dos IAP’s. Devido ao financiamento em conjunto entre

empresas e funcionários, os empregados puderam se beneficiar com atendimentos de

saúde que antes não acessavam.

Em função desta nova modalidade de financiamento, o setor de Saúde tornou-se

mais complexo, uma vez que, além do crescimento quantitativo de pacientes,

atendimentos e serviços, houve a entrada de novos players no setor, como as

empresas e os sindicatos. Além disso, o governo passou a ter uma nova função, além

de zelar pela prevenção de doenças, que consistiu na negociação junto aos sindicatos

dos benefícios oferecidos pelos IAP’s, gerando mais um elo de interdependência.

Ainda, em meados da segunda fase, surge uma nova modalidade de

financiamento e acesso aos serviços de saúde: o plano de saúde. As medicinas de

grupo, as cooperativas médicas e, posteriormente, as seguradoras são novos players

que ingressam no setor de Saúde oferecendo uma modalidade de pagamento mensal

que permite ao segurado o acesso aos serviços de saúde previstos no contrato.

Desta forma, um grupo de pessoas que não tinha acesso por meio do

pagamento direto por não poder arcar com os custos dos serviços de saúde e não

estavam vinculadas à previdência social passaram a ter a possibilidade do acesso por

meio dos planos de saúde. Vale ressaltar que, ainda, uma parcela significativa da

população não era capaz de financiar o acesso aos serviços de saúde, o que se tornou

possível apenas com a criação do SUS.

Com as operadoras dos planos de saúde atuando como novos players no setor,

aumentou-se a complexidade, uma vez que os profissionais de saúde liberais, que até

então estabeleciam por conta próprio o preço de seus serviços, passaram a ter que lidar

com a pressão da popularização dos planos de saúde, que ofereciam pagamentos

baixos pelas consultas médicas. O relato a seguir demonstra a interdependência entre

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os médicos e as operadoras de planos de saúde, uma vez que os pacientes passaram

contratar os planos, fazendo com que os médicos perdessem clientes, caso não

aceitasse esta nova modalidade. Ainda, o entrevistado ressalta a mudança de

comportamento de alguns profissionais, que passaram a atender o paciente de maneira

mais rápida e, consequentemente, afetando a relação entre o médico e paciente.

Ou você faz a consulta, mesmo recebendo mixaria, do jeito que você entende e não se trai a seus princípios, ou você abandona o convênio. Aí pronto, não tem nenhum convênio que pague bem, todos eles pagam mal. A gente tem que trabalhar muito para conseguir alguma coisa, até hoje, desde aquela época até hoje. Antes a gente imaginava que ia ter um consultório, que ia botar um preço e ia receber isso direto do indivíduo e, com o tempo, a gente viu que isso não era possível mais. Então tem muita reclamação de médico, o paciente que entra no consultório, temos aqui vários que reclamam disso, o médico não olha para a cara, que o médico não dá a menor atenção, logo, logo ele já está resolvendo o problema do atestado, da receita, está despachando o indivíduo, até hoje a gente escuta isso. Médico que não examina, eles falam disso também, é até estranho, porque a gente aqui tem hábito de botar a mão, examinar. Isso lá existe? Acho que aquela coisa do PAM 13 de Maio, daquele pessoal que eram figuras médicas reconhecidas como grandes médicos, reconhecidas como bons profissionais, hoje a gente escuta mais reclamação do que elogio, de um modo geral. Raras as figuras que você escuta elogios. Houve uma mudança muito dramática na relação do médico com o paciente e também ao contrário, porque passa a desconfiar o tempo todo de que não está sendo bem atendido, isso, em determinado momento, é verdade, em muitos momentos é verdade e não sei se não tivesse plano de saúde do jeito que foi montado aqui no Brasil, se isso seria assim, talvez não fosse ou não houvesse essa violência toda, essa mudança do comportamento do médico, acredito que não teria. (ENTREVISTADO#06)

Ainda, o relato a seguir enfatiza a dependência que os médicos passaram a ter

em relação às operadoras dos planos de saúde, que se popularizaram.

Começou, era mal visto. Então foi mais ou menos quando me formei que começaram os planos de saúde. Então o médico que tinha plano de saúde, era mal visto, era o médico que não era bom, não conseguia clientela. Então aceitava o plano de saúde. Depois a coisa foi aumentando porque você pagaria e teria uma série de coisas, e aí os médicos foram começando a aceitar os planos de saúde... Os bons profissionais foram aceitando os planos de saúde, mas o problema é a remuneração que é muito baixa. Então começa a ter... Você tem que ter quantidade para gerar um valor que valha a pena no fim do mês e aí novamente a gente cai na consulta rápida, na coisa feita o mais rápido possível e fracionado. Então hoje eu atendo, eu faço uma entrevista, aí marco daqui a 15 dias para fazer exame físico e então em vez de ganhar uma consulta, eu ganho duas em cima da pessoa. Isso é um exemplo, não é todo

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profissional que age assim não, estou dizendo que isso acontece, e está justificado porque paga tão pouco, que poxa vida, pelo menos é uma maneira de tentar ganhar um pouquinho mais sem ser desonesto para atender um paciente, é muito confuso. E hoje em dia está acontecendo que os planos de saúde se multiplicaram, muitas vezes sem base para funcionar e aí você vê muitos planos quebrando, você vê as pessoas sem conseguirem atendimentos que elas precisam. (ENTREVISTADO#09)

Ainda na segunda fase, nascem as correntes de pensamento que buscam

priorizar as ações de promoção e prevenção de saúde como forma de se contrapor à,

até então, predominante medicina curativa. Considerando que a medicina curativa,

devido à incorporação de tecnologias de ponta em diagnósticos e tratamentos, se

tornou cada vez mais custosa, surgem a medicina preventiva, a medicina comunitária e

a medicina social. No entanto, no período em que estas correntes estão se

desenvolvendo, o Brasil passa pelo período do governo militar, que priorizou, em suas

ações de saúde, a construção de grandes hospitais privados e das campanhas de

vacinação, postergando a efetiva promoção em saúde.

Apenas a partir da terceira fase do setor, com a criação do SUS, que estas

correntes de pensamento no setor de Saúde foram aplicadas no Brasil. O SUS unificou

todas as ações e serviços de saúde pública existentes no país. Desta forma, os

serviços de saúde pública passam a considerar uns aos outros para que sejam tomadas

as decisões, como é o caso dos consórcios entre os municípios, que se unem para

financiar e fornecer um determinado serviço que seria muito custo para cada um

oferecer individualmente, aumentando a interconexão entre os players do setor.

Adicionalmente, o setor de Saúde apresentou, na terceira fase, uma solução

sistemática para organizar a fila de espera para atendimentos. Foi implantado o

Sistema de Regulação, que visa a realizar marcação para o próximo horário disponível,

otimizando a redução do tempo de espera. A unificação do software para marcar todos

os tipos de atendimento em todas as unidades de saúde que dependem de

agendamento prévio evidencia um alto nível de complexidade, uma vez que as

unidades de saúde pública passam a depender umas das outras para que possam

atender à demanda por seus serviços.

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A criação do sistema SISREG para unificar a marcação de atendimentos

apresenta vantagens para o setor, uma vez que, anteriormente, a fila de espera

prestava-se ao clientelismo e favorecimento pessoal. No entanto, na prática, há

evidências de que o Sistema de Regulação ainda deve ser aprimorado para resolver

dificuldades, entre elas a decisão de o gestor da unidade de saúde não disponibilizar

seu recurso, como um leito por exemplo, no sistema, o que permitirá a utilização deste

recurso sem a otimização idealizada pelo SISREG.

O relato a seguir mostra algumas vantagens e desvantagens deste sistema.

Hoje em dia, eu estou falando do município do Rio, que é o que eu conheço,

existe uma coisa chamada SISREG, que é uma central de regulação de vagas, teoricamente, a nossa teoria é linda, o SUS, que é o Sistema Único de Saúde, se funcionasse seria de primeiro mundo. O SISREG, teoricamente, se funcionasse, seria muito bom. O que é o SISREG? Você tem um paciente que precisa fazer uma tomografia, tomografia é um exame caro, então o hospital telefona para a central de regulação, e diz: “eu preciso de uma tomografia para um paciente”. Eles vão colocar na tela do computador deles, todos os lugares, vão ver onde tem a primeira vaga e encaixam o seu paciente, então teoricamente funciona muito bem. Mesma coisa funciona pra consulta, hoje em dia você liga para marcar consulta, e não consegue em lugar nenhum, você tem que ir no posto de saúde, aí começam os passos: em primeiro lugar você tem que ir no posto para marcar uma consulta com o clínico geral, aí vai demorar um tempo, por causa da demanda, que é sempre muito grande, e você consegue consulta com o clínico geral, e ele vai marcar pra um especialista. A central de regulação do município vai lá e ver onde tem vaga pra um especialista, como são poucos especialistas vai demorar, e quando você consegue para o especialista, ah não, mas tem as clínicas de apoio. Então um exemplo prático, uma paciente nossa do hospital da Lagoa, que precisava fazer operação de catarata, o hospital da Lagoa faz, mas você não pode ir mais direto, tem que passar pela central de regulação. Então ela foi no posto de saúde, com o pedido para operar a catarata, aí ela foi mandada para consulta em uma clínica de apoio em São Cristóvão, aí chegou lá, o oftalmologista examinou, observou: “é, precisa fazer cirurgia”, agora volta para a central de regulação para poder marcar, 1 ano e isso não sai. (...) Antigamente por ela ser paciente do hospital, ela chegava lá, passava por uma porta de entrada, era identificada como paciente do hospital, número de prontuário, ali mesmo já era marcado uma consulta com o oftalmologista e a coisa andava melhor. (...) Mesmo coisa era o posto de saúde, é onde eu recebo atendimento, e se for necessário e não tiver lá, o meu médico do posto de saúde vai me mandar para outro médico, mas a minha base está ali. Hoje em dia, tirando a clínica da família, que é sempre em torno das casas das pessoas, elas se dirigem sempre pra lá. Saiu da clínica da família, você não tem mais nenhuma ligação. (...) Eu acho que é uma tentativa de organizar e de fazer o escalonamento, mas como sempre não funciona, não sei te dizer o porquê, não sei onde ficam os nós, mas ainda você conseguia, como te disse os atendimentos... Você conseguia ir para a porta do posto de saúde, conseguia a sua consulta... E a partir dali eu estava ali como clínica, mas eu conhecia um colega do Hospital da Lagoa que era uma especialidade ‘x’, que não tem no posto de saúde... Você mandava carta, funcionava muito cartinha de médico para médico, você via muito isso: “Paciente fulano, que eu atendo não sei onde, está precisando” aí o médico entrava na agenda daquele... Ele ia na marcação de consulta e marcava a consulta para

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aquela pessoa. Tem uma coisa positiva, teoricamente, você para com o clientelismo, isso é clientelismo. Então você é amigo, eu consigo pra você alguma coisa que eu não consigo para o outro que não conheço, ou outro que não me conhece e não consegue. Mas o problema é que hoje em dia você não consegue nem para os amigos e nem para os que não são. (ENTREVISTADO#09)

Outro entrevistado ressalta que, apesar da vantagem de se marcar o

atendimento para o próximo horário disponível no município, a implantação desta forma

de marcação de atendimentos impôs maiores deslocamentos para os pacientes, o que

pode prejudicar aqueles com saúde mais delicada.

Na minha opinião, quando eu entrei, eu via um SUS mais organizado, um sistema de saúde mais organizado. Como não tínhamos tantas unidades como temos hoje, falando em atenção básica de saúde, mas eu visualizava algo que funcionava melhor, a gerência era melhor, os pacientes eram direcionados basicamente para um setor de clínica médica, no caso o adulto, pediatra, que é o clínico infantil e depois eram direcionados, na área em que eles moravam, para os especialistas. Se precisava de um cardiologista, na área onde morava. Hoje temos um sistema totalmente diferenciado, se chama SISREG. Então você tem hoje no Rio 75 clínicas da família na atuação básica que foi de onde eu vim, e aí hoje o paciente ele tem uma consulta inicial com o clínico e se ele precisar de um especialista, se as vagas estiverem aqui esgotadas ele se desloca para muito longe, como Lagoa, Campo Grande, entendeu? Então eu não sou a favor da coisa como é. Na minha opinião, o que eu via no passado, embora não atendesse toda a população que precisava de atendimento, era um sistema que se demonstrava mais eficiente, eu acho a estrutura atual com muita aparência e pouca efetividade, principalmente na questão das Clínicas da Família. Se um paciente chega num estado grave numa clínica da família ou até nas UPA’S, ele não tem ali uma estrutura para dar suporte para ele... Na UPA, no caso de emergência, e na atenção básica, quando eles chegam com uma doença com várias “comorbidades”, por exemplo, se ele é HIV positivo, ele também tem tuberculose, ele também tem uma hepatite, ele se desloca para vários lugares para poder tratar dessas doenças que ele tem. Se um paciente que é diabético e é cardiopata e já é um paciente nefropata, com doença renal, ele também não é tratado na sua área, ele se desloca onde tem vaga para onde esse tal sistema reporta esse paciente, entendeu? Então, às vezes o paciente espera 8 meses, 10 meses para uma consulta. E uma coisa que vimos mudar, tem essa questão de logística, que ao meu ver, destruiu muito uma atenção primária que era muito boa, local, (...) Eu já passei por essa experiência de ajudar minha diretora na atenção básica, abria vaga no sistema SISREG, a gente ligava para o paciente que estava na fila de espera. Olha a consulta da sua mãe, cardiologia, Hospital da Lagoa... Ele falava um baita de um palavrão: “Agora? Agora ela já morreu. Ela estava esperando há oito meses pela consulta”. Paciente com doença renal grave fica quatro, cinco meses numa fila. Eu passei por uma experiência com uma senhora com câncer com um tumor enorme na boca, ela se inscreveu em novembro já era julho do outro ano e ela não tinha sido chamada para fazer a biópsia. Eu consegui ajudar essa mulher com uma aluna minha que trabalhava dentro do INCA, pediu um favor ao médico para encaixar ela. Eu tinha certeza que era câncer pela coisa que estava crescendo na boca, pela característica sabe. Aí o que aconteceu? Teve que arrancar até a língua. Pelo tempo que ela ficou esperando para ser atendida. Isso não funciona. Desse jeito não funciona. Deixa a clínica da família, estrutura bem, torna o

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funcionário estatutário, treina ele, cria raiz, contrata de preferência quem mora ali por perto, que conhece o lugar, que entende as questões sociais do local, que vai trabalhar perto de casa, diminui o custo com transporte, ele vai faltar menos, ele vai estar mais perto da comunidade dele, capacita, finca raiz, que vai funcionar. Coloca na área, se ele é cardiopata: “Ó, eu moro em Colégio” Em Rocha Miranda tem um cardiologista para atender. Agora faz o paciente que mora em Campo Grande ir para uma consulta lá na Lagoa? Esse paciente tem que sair de casa quatro horas da manhã para poder chegar na Lagoa às sete. Tem noção? Com a Perimetral toda em obra? Às vezes o paciente é pobre, ele não tem... Eu já vi paciente chegar aqui e ficar com glicemia porque foi mandado para cá para fazer cirurgia de próstata, aqui é referência, catarata, então vem muito idoso. Eles chegam aqui para consulta, saiu de casa quatro e meia da manhã aí o médico está fazendo a cirurgia e aí ele desce para atender no ambulatório, aí o paciente está desde quatro da manhã sem se alimentar e já é meio dia ou uma hora e ele vai ser atendido. Por que não foi atendido perto da casa dele como era antes? (ENTREVISTADO#11)

Ainda, um dos entrevistados ressalta uma limitação operacional do programa

SISREG, quando se trata de se adequar às necessidades específicas da unidade de

saúde em que trabalha.

Ah, isso pode melhorar, porque, o que acontece, a criança desce daqui, faz o atendimento, aí, entre uma consulta e outra, vai fazer várias ***, ela desce, faz a marcação e volta no outro dia. Quando tem alta, ela fica 3 meses ou 5 meses ou 6 sem vir, então, para marcar, ela não tem agenda, quando ela sai daqui. Então ela sai daqui hoje: “Ó, terminei seu tratamento, volta em tanto tempo.” Não tem agenda aberta lá, então o que acontece? Essa mãe, que tem uma criança especial, que mora lá longe, ela tem que vir ao Rio de Janeiro para fazer uma marcação, chega lá embaixo, tem uma fila de 20, 30 pessoas, aí a gente fala assim: “Gente, que isso? Nos dias de hoje, isso não existe.” Aí, uns estão conseguindo marcar pelo posto deles, vão lá e falar: “Olha, eu quero uma vaga lá com o dentista, com a doutora tal”, mas é raríssimo de acontecer. Então, isso tinha que melhorar. Instituíram esse programa faz pouco tempo, mas aí esse programa funciona mal desse jeito, porque eles não abrem agenda, é o SISREG, eles não abrem agenda para daqui a 6 meses. Se eles abrirem agenda para daqui a 6 meses, ou daqui a 5, que o paciente desce daqui e o paciente vai lá e fala: “Ó, em 3 meses com a doutora Maristela, 6 meses com a doutora...” Aí pronto, está marcado. Pode ser que ele falte, pode, né, mas assim, o problema é que, muitas vezes, ele não vem e passam dois anos... a gente tinha o atendimento marcado aqui, então a criança não costumava sumir, a gente meio que atrelava, já marcava o retorno. Agora, como houve esse atendimento generalizado, essa marcação generalizada, a criança, às vezes, some dois anos, tem criança que some quatro anos! “Ah, doutora, não tem como marcar não, porque eu não tenho com quem deixar meu filho.” Aí não tem como vir aqui, e aí não tem quem possa marcar, então isso... eles dizem que é uma maravilha, o SISREG, mas eu não vejo desse jeito não. No nosso setor, piorou a fluência, porque a coisa fluía bem e agora a gente está tendo tratamentos interrompidos por causa da dificuldade de marcação. Aí até falam assim: “Ah, é criança especial, tem passar à frente.” Só que lá embaixo tem criança com anemia falciforme, tem a criança com síndrome de Down, tem a criança com problema neurológico, problema de rim, problema... transplantado. Por que que o meu vai passar à frente deles? Por que que o meu é especial

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e vai passar à frente? Todos são especiais ali, é um hospital terciário. Aí: “Ah, manda passar à frente.” Imagina, você está na fila e aí vem um dentista e passa à frente, aí vem um outro dentista e passa à frente, aí a mãe também vai ficar com raiva, né. (ENTREVISTADO#04)

Outro ponto de interdependência identificado no setor, relacionado à

subdimensão de tratamento, da prestação de serviços, refere-se à gestão de estoques

de medicamentos nos hospitais públicos. Para resolver a falta de medicamentos,

relatada por diversos entrevistados, o procedimento utilizado cotidianamente é a troca

de medicamentos entre hospitais. Desta forma, aumenta-se ainda mais a

interdependência entre os players prestadores de serviços de saúde, uma vez que sua

folga operacional de medicamentos passa a depender diretamente da folga operacional

do outro prestador.

Eu estou com um antibiótico que não recebo ele desde abril, eu tenho vivido, tenho mantido estes pacientes que precisam deste antibiótico fazendo troca. Então o que que é isso? Eu tenho um número no estoque, tenho um outro medicamento que o meu colega em um outro hospital da rede não tem. Aí me cede o que eu preciso e eu cedo para ele um outro item para eu conseguir manter meu paciente sem falta desse medicamento. E são antibióticos que, às vezes, a gente considera básico para um tipo de paciente que atendemos aqui. (...) A troca deveria ser exceção. (...) É, gente está usando muito a troca, enquanto que não deveria estar acontecendo isso. Se tudo chegasse no tempo certo, se o hospital pudesse receber tudo que ele deveria receber, a gente não precisaria fazer troca. Então existe troca porque a gente não recebe, é nesse sentido que eu falei para você. (...) Estou correndo atrás do medicamento chegar, aí liga para o meu celular pessoal, era para ser assim? Se a empresa dele ganhou o pregão e deveria ter me entregue. Não me entregou. E aí ele tenta, ele ganha uma comissão também, vem aqui. Ele me deu o cartão dele, eu fico ligando, ele liga para mim, só vai me dar uma posição amanhã, e o prazo dele acabou sexta-feira, eu falei: “Mais 2 semanas eu vou cancelar seu empenho.” Quando eu cancelo o empenho dele, ele não recebe mais, não adianta ele me entregar, morreu, mas às vezes eu fico com medo, porque eu posso segurar por mais 2 semanas e receber, porque se eu gerar outro pedido agora, quem for me entregar vai ter 30 dias úteis para poder entregar. Então eu fico nesse trabalho de corpo a corpo, não era para ser eu, isso é muito mais administrativo do que de um farmacêutico, embora eu esteja na gestão, era o setor de compras que tinha que estar cobrando eles, mas só quando eu comunico: “Não quero mais, cancela esse empenho, porque eu não vou mais aguardar esse medicamento.” Cancelei um monte, chegava mais de 20 entregas atrasadas em janeiro, cancelei tudo, nem que eles queiram, eles podem entregar, isso fica registrado lá em cima. Todo mundo devia fazer assim. Às vezes termina o ano e tem gente com empenho aberto de janeiro. (ENTREVISTADO#11)

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Alguns entrevistados destacaram a relevância e frequência que a falta de

medicamentos e materiais incorre como dificuldade na prestação de serviços de saúde,

conforme segue nos relatos a seguir.

Pós-formado, fui para o Hospital da Posse, onde foi a pior sensação que já vivi como médico. Eu dava um plantão por semana, a infraestrutura zerada, é um hospital que tem uma briga, porque ele já foi estadual, foi para a federação, voltou para o estado, depois voltou para a federação e, agora, acho que é do estado. Então, é um hospital que muda de regimento, muda de fonte bancária e, por mudar tanto, ninguém investe. Ao ponto de não ter equipamentos básicos, dipirona, amoxilina... dava plantões sem ter acesso venoso no paciente, eu tenho acesso periférico, mas quando o paciente é muito amaciado, gordo, tem que fazer pulsão profunda, tem que pegar um tubo e injetar na... Não tinha nenhum cateter para profundo e paciente ficava sem nada, porque não tinha o que fazer. Bati meu recorde de atestado de óbito em um plantão, em 12 horas, dei 20 atestados de óbito. Durante minha permanência lá, foram mais de 400. E isso tudo por falta de material. (ENTREVISTADO#02)

Então, a prestação de serviços foi diminuindo qualidade e nas especialidades, pessoas foram saindo do hospital, porque também envolve uma série de outros aspectos, aspectos financeiros, como pagamentos aos serviços públicos de uma maneira geral, a dificuldade de você chegar àquele local, é um local distante do centro e as condições de trabalho também se agravando cada vez mais, isso levou a uma condição de insolvência do hospital. Então, em 1994, 1995 a emergência simplesmente, fechou, a emergência foi fechada, para você ter uma ideia, nessa época, nós chegávamos no plantão e fazíamos um rateio para comprar, por exemplo, dipirona, nós chegávamos ao plantão e não tinha dipirona. Então, a equipe se reunia e cada um dava uma determinada quantia, ia na farmácia em frente, isso era uma coisa totalmente, irregular, na farmácia em frente, nós comprávamos uma caixa de Novalgina injetável, comprávamos Esodil e isso ficava com o chefe do plantão, no armário do chefe do plantão. Então, toda vez que a gente precisava desse medicamento, nós íamos ao chefe de plantão, para que ele nos desse uma ampola de dipirona, ou um comprimido de Esodil, uma coisa assim. Então, você vê a situação aonde chegou, até que, realmente, resolveram fechar a emergência e os pacientes estavam sendo expostos a uma situação muito grave, de incapacidade do atendimento. Então, é melhor você fechar, porque você evita uma série de contratempos, inclusive podendo até causar um risco de morte. O pessoal vai procurar um hospital daquele, um hospital de grande porte e a emergência nessa situação, nessa deficiência toda, os riscos ao paciente eram muito grandes. Então, resolveu-se fechar da emergência. A emergência foi reaberta, maravilhosa, mudaram toda a arquitetura, o layout da área de atendimento geral, mas, em 3 meses, já estava totalmente, obstruído, a demanda é muito forte, muito grande. Então, as macas eram colocadas umas, literalmente, ao lado da outra e para você examinar o paciente e você tinha que retirar a maca, para o corredor, para uma área mais ampla, para examinar o paciente e depois voltar com ele, como se fosse uma gaveta, né. Então, para você ter uma ideia dessa dificuldade que aconteceu. E me parece que isso foi sendo mantido, com oscilações, há momentos em que há uma melhora e há momento que isso piora. (ENTREVISTADO#19)

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Além disso, vale destacar que um dos entrevistados revelou que o processo de

compra de medicamentos de um hospital público, mais especificamente do município

do Rio de Janeiro, se dá de maneira, segundo ele, confusa. Segundo ele, diversos são

os sistemas de compra e os links, que servem para efetivar as compras, o que

necessita de uma atenção constante para que o pedido seja validado, uma vez que

estes links ficam obsoletos quando novos chegam, ressaltando a complexidade das

interconexões existente entre os players.

Na atenção básica você trabalha com estoques bem maiores, porque você está tratando o paciente para ele não chegar dentro do hospital. Você está tratando uma doença, para que esta doença não complique, a ideia é essa, não complique a ponto de ele precisar de uma internação, porque ele enfartou, porque está com infecção urinária complicada, seria isso. Então você trabalha com menos especialidades, menos itens, diversidades de estoque, você tem os padrões de hipertensão, padrões de diabetes, os medicamentos padronizados segundo uma relação que se chama de REMUNE [(Relação Municipal de Medicamentos Essenciais)], Relação de Medicamentos do Município do Rio de Janeiro. Então ali tem os padronizados e trabalha com estes padronizados, e você tem uns pólos de doenças mais graves como a tuberculose, que hoje é um problema sério de saúde pública. Já na hospitalar, você tem uma diversidade muito maior de medicamentos que você trabalha, porque você trabalha com paciente mais grave, que ele não tem só hipertensão, ele é hipertenso, mas ele é cardiopata, tem doença renal, ele tem hipertensão. Então você tem muito mais medicamentos para trabalhar e o processo é bem dinâmico. Você tem três maneiras de “gestionar” o estoque, uma é adquirindo pelo REQUER que é um sistema informatizado que a gente abre de 3 em 3 meses e faz uma previsão do estoque para 3 meses, baseado no consumo médio mensal. Tem o consumo médio mensal, aí você estima em cima desse consumo o pedido, você cria uma margem de uns 20% a mais para você ter uma margem de segurança e você tem o REQUER. Fora o REQUER, eu tenho os medicamentos que chamo de atenção básica, são os medicamentos de programa de hipertensão arterial e, especificamente, os pacientes com insuficiência cardíaca, que já é uma complicação, alguns chegam até ter internados aqui. Insuficiência cardíaca congestiva, chama de (ICC). Atendemos um programa de AIDS, que a medicação é cara. Então, aqui temos pacientes que ficam internados com complicações da AIDS e tem um ambulatório, atendo esse paciente aqui também e atendo pólo de asma do adulto e infantil, e atendo também reumatologia infantil. Então, estes medicamentos já são solicitados por outros sistemas, o sistema de planilhas que são informatizados também, mas estes eu trabalho com estoque maior da prefeitura e eles chamam de TPC, é o grupo TPC que administra... Esse estoque fica no bairro de Jacarepaguá, não é Barra, é Jacarepaguá. Então ali fica todo o estoque da atenção básica da prefeitura, são essas doenças comuns da população, hemodiálise que é muito caro, também os pacientes... Os medicamentos chamados psicotrópicos, que são antidepressivos, ansiolíticos, que são regidos por uma portaria específica, a portaria 344 de 1998 da ANVISA, Agencia Nacional de Vigilância Sanitária, e aí estes também são solicitados por essa planilha. É uma maneira de você também solicitar medicamento. Fora isso, nós temos os links, que solicitamos um estoque, para quê? Para doenças que chamam de oportunistas, está relacionada à AIDS. Então paciente por ter sistema imunológico comprometido, ele tem doenças que se aproveitam disso e se instalam no corpo desse paciente, por isso que ele morre. Não morre, não vai estar lá no atestado de óbito dele: “morreu de AIDS”, ele morre de pneumonia, de tuberculose. Então estes medicamentos também tenho que solicitar via

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Google Docs, na nuvem, eu lanço este pedido, aviso ele que gerei um pedido, um gestor que fica tomando conta disso a nível central. (...) Para mim, na minha opinião, nestes 20 anos de saúde pública, eu não vejo motivo para falta de medicamentos e de outros insumos, agulha, seringa, considerando que você está trabalhando com país que tem uma economia em crescimento, mais ou menos, tem uma inflação meio escondida, mas que está no grupo dos BRICS e a gente tem ainda uma situação de calamidade pública em alguns estados do Brasil, o Rio está mal das pernas na saúde, imagina Amazonas e em outros estados. Não há justificativa para isso. A falta é a ausência de administração mesmo, ausência de logística, por exemplo, a tuberculose, eles às vezes mandam, no mês, 5 links diferentes para você trabalhar, aí se o colega não estiver abrindo email todo dia, que eu faço mil coisas, entendeu? Hoje eu separei um tempo até para falar com você, mas eu faço mil coisas, se eu não estiver vendo o link certo, eu vou usar um link que me passou há 2 dias atrás, aí não recebe o meu pedido. Então falta logística, falta gestão, falta planejamento racional. Nós pedimos medicamentos antes da copa que eles mesmos mandaram a gente fazer uma estimativa de uso porque iríamos receber vários turistas... Até hoje não recebi estes medicamentos e a copa já acabou, mas eu preenchi a planilha. Porque que eu preenchi essa planilha? Essa planilha... e me deram assim, prazo de 24 horas para fazer e eu tive que enviar e todo mundo enviou, porque tinha que se fazer uma compra para poder... entendeu? Gerar esse pedido, só que eu não recebi esse medicamento. Então se pediu, todo mundo cumpriu os prazos, todo mundo entregou a planilha e porque o medicamento não chegou? Não sei. Então, para mim falta gerência sim. (ENTREVISTADO#11)

Ainda no que se refere ao processo de compras para as unidades públicas de

saúde, apesar de haver interdependência entre os players, na prática, há evidências de

que a comunicação entre eles ainda requer melhorias. Nos relatos a seguir, constata-se

que o que é comprado nem sempre está de acordo com a demanda da unidade de

saúde e que as unidades de saúde nem sempre estão devidamente informadas sobre

aquilo que foi adquirido pelo SUS.

O que acontece é o seguinte, eles centralizam, e aí eles vão sempre querer comprar o que é mais frequente. Então, por exemplo, de antibiótico, o que nós usamos mais é a Amoxicilina Clavulanato. Então eles vão comprar para uma previsão deles, mas isso não impede que o paciente tenha uma infecção por um germe que é resistente àquilo. Então eles teriam também que fazer a compra para o que não é o mais frequente. Está bom, eu não vou comprar 10 mil caixas daquele antibiótico, se só, em média, mil usam, mas aqueles mil que usam têm que ter aquilo, eles não compram. Outra coisa é a burocracia, para você dizer que precisa, até conseguir comprar, isso demora muito. Eu, lá no hospital público, eu antes fui coordenadora da equipe multidisciplinar da terapia nutricional, nutrição enteral e parenteral, eu não tinha nada a ver com compras, eu não comprava nada, mas eu tinha que dizer o quanto eu estava usando: “Olha, eu tive tantos pacientes que precisaram usar tal tipo de alimentação, foram gastos tantos e tal”, eu tenho que dizer isso, o que eu vou precisar para fazer meu trabalho. Não era comprado, não era comprado. Muitos pacientes eu conseguia fazer a alimentação parenteral, porque

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eu conhecia o pessoal de outro hospital, aí eu pedia e o outro hospital cedia para mim, para eu usar no paciente. (ENTREVISTADO#07)

Você vê essa cadeira [de dentista], essa cadeira é de agora, a gente recebeu agora, o Ministério da Saúde tava doando cadeiras para os serviços, aí a chefe foi na reunião, uma outra chefe falou: “Você está sabendo que tem cadeira para receber?” Aí a chefe: “Não...” Aí, olha eu não sei se tinha que mandar um ofício, o que que era: “Faz isso, para tal lugar, manda o ofício.” Aí ela até falou, nós temos aqui 5 equipamentos e mais um na anestesia geral, no centro cirúrgico: “Quantos eu pego?” “Ué, pede 5 ué, vai pedir 2?” Pediu os 5 e recebemos os 5, aí estão todos instalados, mas assim, não é da prefeitura, não foi a prefeitura que comprou, foi a saúde federal, a saúde do governo federal, aí está lá: Ministério, Brasil Sorridente, saúde bucal levada a sério, propaganda deles. Mas poxa, melhorou o nosso setor, né. (ENTREVISTADO#04)

Outro ponto levantado que caracteriza a interdependência entre os players se

refere-se à baixa folga financeira do SUS. Uma vez que os recursos públicos de Saúde

são limitados para atender à demanda, passa a haver um custo de oportunidade na

escolha do gestor público. Os relatos abaixo evidenciam com clareza esta

interdependência gerada por uma baixa folga financeira.

A gente tem exemplos que estão na mídia de tratamento que às vezes são uma fábula, custam uma fortuna, vão beneficiar um indivíduo, mas a gente cai em um outro problema que é complexo. A medicina de uma forma geral é complexa, porque a gente trata dessa questão da vida humana, da saúde humana então a gente fica sempre naquela questão “mas eu vou deixar o indivíduo morrer, vou deixar o indivíduo doente”. Mas por um outro lado quando a gente pensa saúde, a gente teria que pensar na maneira, não é questão individual e não é a questão coletiva. Você imagina na hora que eu atendo em milhões de reais a demanda de um indivíduo, esses milhões de reais faltam no sistema como um todo às vezes para atender dezenas ou centenas de outros indivíduos e aí gente cai nessa polêmica. Quando eu penso individualmente não dá certo, eu não vou deixar aquele indivíduo morrer, mas quando eu penso coletivamente eu estou atendendo um para prejuízo de um monte. (ENTREVISTADO#12)

Você me perguntou sobre integralidade, eu, particularmente, sou contra, eu acho que integralidade é algo que é dependente de financiamento. Os recursos são finitos, a integralidade é infinita. Vamos lá, você é um gestor de saúde, eu digo para você que, para você tratar 100 mil tuberculosos eu gasto 50 milhões de reais/ano. Você é o gestor, o secretário de saúde, você não é o paciente e nem o familiar, aí vem um paciente que tem uma doença rara e essa doença rara tem uma pesquisa que está sendo feita agora no Vietnã, vou ter um medicamento, um tratamento que tem condição de prolongar a vida dessa pessoa, você não tem certeza se salva, porque não têm evidências ainda, nem trabalhos científicos e custa, para tratar 20 doentes, os mesmos 50 milhões. O que você faria? (...) É a realidade atual. (...) Então, você está preparando o orçamento de 2015 e

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o teu secretário executivo falou, estou com essas duas propostas aqui, esse veio de uma área, esse veio de uma outra área, qual que eu aprovo? Qual que eu coloco no orçamento? (...) Não estou dizendo que vai ter prejuízo você tentar buscar mais recursos. Faria de tudo para tratar isso aqui, para ter esse dinheiro e você tem que tomar a decisão hoje, porque fecha hoje o sistema para colocar no orçamento. (...) Você fez essa pergunta e chamou a equipe técnica, vieram os dois: “Com esse tratamento de tuberculose a gente tem conseguido diminuir as incidências, o abandono, tem dado muito bom resultado, a gente está com os melhores resultados dos últimos dez anos.” Aí vem o outro aqui e falou: “Olha, o trabalho tem se mostrado muito eficaz, eu acredito que esse novo tratamento para o câncer, para esse câncer desses 20 pacientes aqui realmente vai prolongar a vida, se sobreviver mais 3 anos, vai poder ficar em contato com a família, sabe, se não fizer esse tratamento ele morre em seis meses. Se fizer, no mínimo ele tem mais 3 anos.” Deu para entender? (ENTREVISTADO#24)

Adicionalmente, a partir da criação do Sistema Único de Saúde, passa a haver

um maior nível de interdependência entre os prestadores de saúde pública, em função

da integralidade e os sistemas de referência e contrarreferência. A legislação do SUS

prevê que o atendimento deve iniciar-se em centros de atenção básica, também

chamados de atenção primária ou de baixa complexidade, que deve ser capaz de

resolver os casos simples. Em situações em que se mostra necessário a consulta com

um especialista, encaminha-se o paciente para centros de atenção secundária, como

policlínicas, por exemplo. Para casos mais graves, que requerem equipamentos e

profissionais mais especializados, encaminha-se o paciente para centros de alta

complexidade, como hospitais.

No que se refere à dimensão de profissionais de saúde, na terceira fase,

constata-se que houve uma especialização ainda maior dos profissionais de saúde.

Cada vez mais, os médicos reduzem o escopo de atuação para se tornarem

especialistas em um determinado assunto, como, por exemplo, o médico ortopedista

que passa a ser especialista em ombro. Desta forma, aumenta-se ainda mais a

interdependência entre os profissionais de saúde, conforme o trecho de entrevista a

seguir ressalta, expondo a necessidade de interação entre profissionais com diferentes

formações.

E, o outro lado, o que motiva, você vê que você tem condição de exercer uma boa

medicina, de você poder dar o que o seu paciente precisa, de você ter uma equipe que te

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ajuda, que trabalha junto contigo, porque você sozinho não vai fazer nada, tanto de enfermagem, de fisioterapia, de nutrição, de fono, você precisa disso tudo muitas vezes, então, você ter uma equipe dessa, po, muito bom. Você ter troca de ideias com especialidade, você ter especialistas de outras áreas à disposição para aparecer, para discutir caso, é muito bom, você aprende muito. E você vê que o paciente ganha muito com isso também, entendeu? Então, um exemplo, no CTI, tem que ter fisioterapeuta, para o respirador, então você acaba trocando uma ideia com o fisioterapeuta e aprendendo um pouco de fisioterapia respiratória. Isso é muito bom. E aí você vê que o paciente fica melhor e, por isso, ele sobrevive mais, entendeu? Isso é muito bom. (ENTREVISTADO#01)

O relato anterior ainda destaca o aprendizado entre os profissionais de saúde

durante a prática profissional. Este ponto mostra-se especialmente importante não

apenas pelo nível cada vez maior de especialização dos profissionais de saúde, mas

também porque, conforme verificado na análise do desafio de Provisionamento de

Recursos Humanos, a educação formal apresenta algumas falhas. Assim, foi

constatado que uma das principais formas de aprendizado dos profissionais que atuam

no setor é por meio do conhecimento passado entre os profissionais, durante a prática

do exercício da profissão.

Esta forma de aprendizado demonstra um aumento na interdependência entre os

profissionais de saúde, não apenas entre os diferentes tipos de profissionais que

compõem as equipes de saúde, mas também entre os profissionais com a mesma

formação, mas com diferentes níveis de experiência. O relato a seguir exemplifica este

caso de interdependência e demonstra esta maneira de se aprender.

O vínculo é bom, porque, né, nossa aposentadoria, que a gente vai aposentar, mas a convivência é melhor ainda, porque, como eu te falei, aqui a gente lida com vários colegas, cada um com sua especialidade, a gente lida com médico, com doenças que eu já ouvi falar e que agora eu já sei, então, assim, para mim, flui muito bem, porque a gente vai aprendendo a cada dia. No caso, esse hospital, a gente chama de terciário, é um hospital de especialidade, então, aqui não vem assim, a gente brinca da dermato, não vem perebinha não, aqui vem coisa séria, como hanseníase, são coisas que vão acabar pipocando aqui, então a gente ainda assim, antigamente era assado, então a gente vai tendo uma interação com outros profissionais que é muito boa e, em parte, na odontologia, também, porque, em um consultório, você está fechadinho ali, trabalhando, faz o atendimento com cada paciente. Aqui, a gente tem os outros colegas para discutir caso, ainda tem os médicos para discutir, para ajudar, porque tem umas doenças de coração, tem uma que até a cardiologista falou: a criança tem quatro problemas no coração, aí eu conheço, já ouvi falar, mas quando a criança vem: “Peraí, deixa eu ver em termos odontológicos.” Aí, quando eu fui ver, eu falei: “Nossa...” Então é um universo que a

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gente não conhece, que a gente acaba conhecendo doença e eu acho muito bom viu, com a saúde pública ou um hospital, apesar de não ser um hospital básico, no posto é atendimento básico, aqui é mais ainda do que no posto, então eu acho fundamental para o enriquecimento mesmo, desenvolvimento do profissional. (ENTREVISTADO#04)

Durante a terceira fase, o setor de Saúde no Brasil parece enfrentar uma lacuna

de informações sobre performance dos profissionais e prestadores de serviços em

saúde. Segundo o relato de alguns entrevistados, há uma falha na coleta de

informações no nível operacional com vistas ao aprendizado e melhoramento da

performance do setor, o que mostra-se importante para o aprendizado sistemático do

setor como um todo.

Desta forma, em função desta lacuna, a interconexão entre alguns players, como

a relação entre as operadoras de planos e saúde e os prestadores de serviços privados

de saúde, fica comprometida, aumentando ainda mais o nível de desconfiança e

conflitos descritos na análise da gestão da diversidade. Os relatos a seguir descrevem

esta situação com precisão.

(...) e você não estuda, na verdade, o desfecho clínico, que é uma coisa que falta para mensurar a capacidade dos vários players que têm isso, desde o consultório médico até o hospital de ponta. Você não consegue ainda medir se determinado hospital é melhor que o outro. Isso talvez sejam tendências que devam estar vindo por aí, você poder avaliar e remunerar determinados serviços por esse tipo de avaliação. Ou seja, você faz uma ressonância aqui, você pega, olha: "Está ruim", aí você pede de novo, é o que eu digo, desperdício. Aí pede de novo: "Ah, agora eu tenho". Então, o que faz com o que foi ruim e o que faz com o que foi bom? Como se remunera e avalia isso? Deverão ter alguns avaliadores disso daí? A ANS tem um trabalho para fazer avaliação sobre o rankeamento de determinados prestadores e você poder, de alguma forma, colocar isso dentro da sua forma... Também dar essa opção para o cliente. Agora, é muito difícil você, como médico, dizer assim "por que tenho que tratar um infarto diferente se ele tem um plano básico e um plano top?". O infarto é o mesmo, está ali na mesma situação. Então, você tem que prezar um grande desfecho clínico que é salvar a vida dessa pessoa. E, às vezes, é muito caro. Isso não é barato, não. É muito caro. Entendeu? (ENTREVISTADO#23)

Hoje, o Brasil tem cerca de 6750 hospitais, no total, sendo que 2 mil hospitais

desses 6 mil, eles são hospitais públicos e os 4700 são hospitais privados, com ou sem fins lucrativos. Aí tem as instituições sem fins lucrativos que são privadas, santas casas, filantrópicas. Bem, essas instituições têm, em sua média, 65 leitos, o que é totalmente insustentável, do ponto de vista econômico, nos hospitais. E aí, eles, por serem

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insustentáveis economicamente, não conseguem investir em melhorias de processos. São organizações... para você ter uma ideia, dos 6750 hospitais, nós temos menos de 300 com processos de certificação pela metodologia da Acreditação. A Acreditação é um processo de certificação de qualidade que avalia a segurança, avalia os processos e avalia os resultados das instituições. Então, a maioria esmagadora, 6400, 6500 hospitais brasileiros não medem nada e, por não medir nada, não conseguem mudar nada. Nós precisaríamos, primeiro, fazer um esforço monumental de medir tudo, para depois mudar tudo. Então, quando eu digo que tem desperdício, eu digo porque não se mede. Agora, eu tenho certeza... Qual é o volume de desperdício existente no setor de saúde? Não sei. Não tenho a menor ideia. Não se mede, po. Seria uma leviandade minha dizer "perde-se 30%, 40%". Não existe, eu não sei. Não se mede. Não se sabe nada a respeito, absolutamente nada, na maioria dos hospitais brasileiros. O desperdício de tempo: Quanto tempo você demora para ser atendido num hospital? Não sei. Na emergência: quanto tempo você espera numa sala de emergência? Será que não é organizar melhor aquele processo, botar mais gente ali, mais acolá... Será que... Quanto tempo você gasta no processamento da informação por dados mal formulados, mal escritos? Não sei. Você perde um tempo enorme. Quanto, de dinheiro, você perde por informação errada? O dono do hospital pensa que o que ele perde de dinheiro é o que é glosado pelo plano de saúde. Na realidade, eu imagino que ele perca muito mais dinheiro por aquilo que não é registrado corretamente para ser cobrado, está entendendo? Então, a falta de registros, prontuários mal escritos, a falta de processos organizacionais, a falta de controle dos desfechos clínicos, para ver se os resultados estão bons, se não precisa ser mudado o método de tratar o paciente, nada disso é feito de forma regular, na maioria dos hospitais brasileiros, na maioria. Esse é um espaço monumental para gente como você, de administração, organizar. Você tem aí uma mega oportunidade. (ENTREVISTADO#18)

Uma outra coisa que a gente hoje é uma das bandeiras que a gente leva, é o fato de você não saber o que o sistema entrega, por exemplo, se você chegar hoje para uma operadora, para uma prestadora e falar para o camarada assim: “vem aqui, qual é o seu resultado clínico? Se você pegar seus pacientes com câncer de pulmão, por quanto eles viveram? Como que vocês comparam com as grandes instituições do mundo?” Ninguém sabe, nem operadora e nem o prestador. Qual é o resultado disso? Você não sabe nem onde você está, você não sabe nem o que está entregando. E aí, o fato de o cara ser bom vira muito mais uma coisa de marketing, de força da marca, do que realmente conformação e comprovação da entrega da pessoa. A única forma de você melhorar é medir o que você está entregando, se você não mede, não sabe nem onde você está pisando e você não têm como melhorar. Então, hoje o sistema não sabe o que *traz*. Quando você compra uma televisão, um carro, na hora sabe o que está comprando, vai para um hotel, você sabe o que está comprando, você julga ali na hora. Na saúde não, tem muita imprecisão, tem remédio que vai funcionar e que não vai funcionar, você não sabe em quem ele vai funcionar. Tem estudos no mundo, de grandes instituições de marcas, quando elas foram testar o que elas entregavam, elas eram piores do que os que eles achavam que eram ruins, que não tinham tanta marca. (...) Eu estou lhe falando o quê? Quanto tempo a pessoa fica viva, se a cirurgia está sendo eficiente ou não, se a pessoa tem que operar de novo ou não, se a pessoa morre ou não, se ele sai com alguma sequela ou não, se a qualidade de vida dele é boa ou não, ninguém mede nada disso. Você tem alguns trabalhos pontuais medidos como pesquisa, mas não tem essa medida sistemática. Vou te dar um exemplo para você ver o que eu chamo disso, o que é uma instituição que as pessoas chamam de *Every* Learning Organization, que é a pessoa que vai aprendendo o tempo todo. Você chega para um camarada hoje que ninguém se fala, você chega para um radiologista que só faz a ressonância da próstata e você manda 100 pessoas com câncer de próstata para o médico avaliar a ressonância da próstata. Aí ele vai saber se a doença é avançada ou se não é, se a doença saiu da próstata ou não saiu, e

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ele vê isso o tempo todo e ele lhe diz o que aconteceu, se aquilo é avançado ou se não é. Primeira pergunta: essa pessoa cruzou isso com o que aconteceu na cirurgia ou não? Depois que o doente foi operado, alguém diz para ele se o que ele falou estava certo ou não? Entendeu? Se não falou, ele não tem experiência, ele só tem volume. Esse tipo de comunicação do sistema é fundamental, você só melhora sabendo o que você falou, se bateu ou não, se ele acertou 99%, benza Deus, esse cara é o máximo, se ele acertou 50, ele tem que melhorar muito, ele não sabe nem onde ele está. E como ele vê muito, ele acha que é bom e, como ele vê muito, os outros acham que ele é bom, mas ninguém parou para testar, entendeu? (...) Então esse tipo de cultura não existe, onde você checa o que você está entregando no dia a dia, é um sistema que não é desenhado para melhorar continuadamente, porque ninguém nem sabe o que está entregando. Você incorpora a tecnologia e você não sabe se aquilo fez a diferença na prática, entendeu? (...) Primeiro, ser um sistema focado em informação, um sistema em que as doenças crônicas fossem tratadas de forma contínua de cuidado, em hospitais especializados, para você ter volume. Na verdade, você tem que ter volume, porque quanto mais a pessoa faz, melhor ela faz, só que ele tem que fazer mais tendo um feedback do que ele está fazendo. Então, o que eu faria hoje seria: criar um baita programa de informação para entender o que está acontecendo, criar um programa de cuidado que combina o ambulatório com o hospital e ter uma política honesta do que dá para pagar (ENTREVISTADO#21)

Desta forma, a Figura 5-5 sintetiza a evolução da complexidade do setor de

Saúde no Brasil ao longo dos antecedentes do setor e das três fases de sua história.

Figura 5-5 Síntese do Desafio de Complexidade

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6 Conclusão

O setor de Saúde no Brasil, ao longo de sua história, experimentou um relevante

processo de crescimento, saindo de procedimentos rudimentares e profissionais, em

sua maioria, sem conhecimentos de base técnico-científica até chegar nos dias atuais,

em que existem centros de tratamento e diagnóstico com alta tecnologia, além de um

amplo conhecimento científico sobre como prevenir e curar as doenças que afligem a

população.

Verifica-se também, na trajetória do setor, um aumento gradativo do acesso aos

serviços de saúde. Marcadamente, o início da previdência privada, o surgimento das

operadoras de planos e saúde e a criação do Sistema Único de Saúde ampliaram

significativamente o acesso da população aos serviços do setor de saúde. No entanto, à

medida em que foi ampliado o acesso, isto é, ampliada a demanda pelos serviços de

saúde, nem sempre a oferta destes serviços acompanhou a demanda. Desta forma, o

setor encontrou dificuldades de lidar com os desafios do crescimento ao longo de sua

trajetória.

Constatou-se que, no que tange ao desafio de navegação no ambiente dinâmico,

apenas a partir da segunda fase o setor conseguiu controlar, em parte, as pressões

externas oriundas do ambiente natural, mais especificamente, o controle sobre a

proliferação de doenças contagiosas. No entanto, outro tipo de agravo oriundo de

enfermidades cresceu, o de doenças crônicas, para o qual o setor ainda não conseguiu

dar uma resposta satisfatória.

Também foi verificado que o ambiente institucional, para as operadoras de

planos de saúde, até a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar, era um

ambiente piedoso. Após a criação da ANS, o ambiente institucional tornou-se

desafiador, em função da regulação das atividades das operadoras. Além disso, as

operadoras de planos de saúde navegavam em um ambiente de tarefas piedoso, uma

vez que, devido aos altos juros no Brasil em função da hiperinflação, o modelo de

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negócios das operadoras permitia um alto lucro financeiro, uma vez que recebiam a

mensalidade antes de efetuarem as despesas com os serviços. Assim, pouco antes da

criação da ANS, já na terceira fase do setor, as operadoras passaram a enfrentar um

ambiente desafiador, em que se viram obrigadas a ganharem eficiência operacional

para sobreviverem.

Outro ponto de destaque refere-se à prestação de serviços de saúde. Após a

unificação dos serviços públicos de saúde no SUS, os prestadores de serviços públicos

de saúde, que até então enfrentavam um ambiente de tarefas piedoso, em função do

financiamento oriundo da previdência privada, passaram enfrentar um ambiente de

tarefas inóspito. Isto ocorreu devido ao alargamento do acesso aos serviços prestados

para a população e à integralidade dos serviços, previstos pela Constituição de 1988,

sem que houvesse uma contrapartida financeira para acompanhar o aumento da

demanda pelos serviços.

No que se refere ao desafio da diversidade, verificou-se que o setor não foi

capaz de lidar adequadamente com o aumento do número de players no setor.

Percebe-se, em todas as fases de sua trajetória, que os serviços de saúde são

prestados de maneira fragmentada, sem o aproveitamento de sinergias entre seus

players, que poderia beneficiar sua eficiência e sua capacidade de atender à crescente

demanda de saúde da população. Além disso, foi constatado que há um alto nível de

desconfiança no setor, o que gera conflitos entre seus players, seja em função de

formas e valores de pagamento, de ideologias divergentes ou da legitimidade entre os

diversos profissionais de saúde.

Quando se trata do desafio de provisionamento de recursos humanos, foram

verificadas um conjunto de deficiências que acompanham o setor de saúde ao longo de

sua trajetória e que se agravam na terceira fase de sua história. Os profissionais de

saúde encontram dificuldades na sua formação, sobre a qual foram identificadas falhas

nos diversos níveis, desde o auxiliar até o médico; na sua capacidade de obter uma

remuneração que julgue adequada para a sua formação e seu trabalho; em ter um

plano de carreira para o seu crescimento profissional, tanto dentro das instituições de

saúde quanto em nível nacional; e em ter folga financeira e de tempo para se atualizar

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profissional e poder acompanhar o crescimento da diversidade em sua área de

conhecimento.

Ademais, foram verificadas disfunções no que se refere ao provisionamento de

recursos humanos. Por exemplo, identificou-se que profissionais que deveriam ser

supervisionados constantemente em função de seu nível de formação e/ou experiência

atuam sem a devida orientação, o que incorre em erros de procedimentos, tornando o

paciente uma vítima. Além disso, em função da falta de folga de recursos humanos em

algumas unidades públicas de saúde constatou-se que profissionais que não foram

formados na área de saúde assumem posições dentro do setor, como, por exemplo,

seguranças de hospitais, que, em alguns casos, são responsáveis por realizar a triagem

dos pacientes que adentram à emergência e/ou transportar o paciente para dentro da

unidade, sem os cuidados necessários.

Outro ponto que se pode destacar como conclusão do estudo no que se refere

ao desafio de provisionamento de recursos humanos foi a constatação de que

empregadores do setor de Saúde, de um modo geral, não têm disponibilizado recursos

suficientes para a formação do profissional, tanto no que se refere aos recursos

financeiros quanto à folga de tempo para que o profissional se dedique a cursos. Não

apenas há um baixo investimento diretamente em cursos para o profissional, mas, com

evidências de que a remuneração do profissional do setor é reduzida, gerando a

necessidade de o profissional de saúde trabalhar em diversos locais, sobra pouca folga

financeira e de tempo para que ele invista na sua formação e atualização. No entanto,

apesar de a folga dos profissionais de saúde ser pequena, cabe a eles utilizarem-se

desta folga, tanto financeira quanto de tempo, para se atualizarem profissionalmente,

uma vez que as empresas, em geral, não fazem estes investimentos.

No que diz respeito ao desafio da complexidade, verificou-se um crescimento

significativo das interconexões e interdependência entre os players que atuam no setor

de Saúde no Brasil. O crescimento da complexidade foi analisado em três dimensões

principais (profissionais de saúde, prestação de serviços e financiamento e acesso).

Percebe-se que, ao longo de sua história, os profissionais de saúde foram se

especializando cada vez mais, o que fez mudar a atuação destes profissionais, que

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deixou de ser um atendimento em que o profissional realiza tanto o diagnóstico quando

o tratamento, nos antecedentes da história do setor e na primeira fase de sua história,

para uma equipe multidisciplinar de saúde, em que cada profissional dependendo do

outro para que o paciente possa ser atendido, nas fases 2 e 3.

Adicionalmente, enquanto que os antecedentes e a primeira fase apresentam

formas simples de financiamento dos serviços de saúde, por meio do pagamento direto

ao profissional de saúde ou por meio de filantropia das Santas Casas, as fases 2 e 3

evidenciaram uma maior interdependência para que os serviços de saúde pudessem

ser financiados. Com o início da previdência privada e o surgimento das operadoras de

planos de saúde, a forma de pagamento direto foi, aos poucos, se extinguindo e, cada

vez mais, os intermediários financeiros se tornaram mais presentes, o que, conforme

verificado no desafio de diversidade, aumentou o nível de conflitos no setor.

Com a criação do SUS, a fase 3 passou a evidenciar um nível ainda maior de

interdependência. Devido à unificação de todos os serviços de saúde públicos,

estruturados em uma hierarquia de integralidade e um sistema de regulação

responsável por organizar o atendimento, os players passaram a depender uns dos

outros para prestar o serviço de saúde, seja em função de recursos financeiros e

operacionais, que passaram a ser distribuídos entre as unidades públicas de saúde.

Ainda, vale destacar que, diferentemente do que propõe o modelo de arquétipo

do sucesso organizacional (FLECK, 2009), o crescimento do setor, principalmente

durante a segunda fase, com as CAP’s e IAP’S e no momento da criação do SUS, não

se deu por um processo de renovação, proporcionado pela existência de folga. Pelo

contrário, o crescimento do setor ocorreu em função da força da lei e da reivindicação

da sociedade, que desejava o acesso aos serviços de saúde. Desta forma, percebe-se

que a prestação de serviços públicos de saúde, principalmente durante a terceira fase,

busca constantemente lidar com a baixa folga, principalmente financeira e operacional,

o que compromete o seu crescimento saudável no longo prazo.

Por fim, sugere-se que futuros estudos busquem medir quantitativamente a folga

existente no setor de Saúde do Brasil e como cada fator identificado neste estudo

influencia o aumento ou a redução das folgas financeira, operacional, de recursos

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humanos e de tempo. Desta forma, compreendendo mais claramente a dimensão da

influência de cada fator na redução da folga do setor, poder-se-á buscar as soluções

mais eficientes e eficazes para solucionar os problemas identificados no setor de Saúde

no Brasil neste estudo.

Outra linha de estudos que pode ser explorada futuramente se refere ao

aprofundamento dos fatores que influenciam as relações entre cada player, de modo a

compreender o motivo dos conflitos e fragmentação existentes. A partir de um

mapeamento deste tipo, poder-se-á buscar soluções que visem a reduzir tais conflitos

e, como consequência, aumentar a integridade e a cooperação entre os players do

setor, o que pode aumentar a eficiência dos processos por meio da redução de

fiscalização entre players, gerando redução de custo no serviço para os financiadores

do setor e aumento da facilidade do acesso à oferta de serviços, uma vez que estaria

integrada, em vez de fragmentada.

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