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FEMINICÍDIOS ENQUANTO UM PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA Priscilla Soares TeruyaAutor 1 [email protected] Andrea Cristina Coelho Scisleskir 2 [email protected] Heriel Adriano Barbosa da Luz 3 [email protected] O presente ensaio visa refletir sobre como a violência perpetrada contra as mulheres, mais especificamente quando culmina no homicídio, torna-se paulatinamente um problema de saúde pública, segundo a lógica biomédica. Para isso, utilizaremos os conceitos foucaultianos de Biopoder, Medicina Social e Biomedicina. Utilizaremos como base para a discussão os dados disponibilizados pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) em seu relatório denominado MAPA DA VIOLÊNCIA 2015 - HOMICÍDIO DE MULHERES NO BRASIL. A escolha deste documento deveu-se não apenas a sua recente divulgação (9/11/2015) mas, também a peculiaridade metodológica utilizada para a compilação dos registros estatísticos. Segundo Wânia Passinato (2011) o termo femicídio teria sido utilizado por Diana Russel, pela primeira vez em 1976, durante um depoimento perante o Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres, em Bruxelas. Posteriormente Russel, definiria esta expressão como os assassinatos de mulheres decorrentes do fato de serem mulheres, “as mortes classificadas como femicídio resultariam de uma discriminação baseada no gênero, não sendo identificadas conexões com outros marcadores de diferença tais como raça/etnia ou geração” (PASSINATO, 2011, p. 223). Ainda segundo Passinato, o femicídio teria como distinção das demais violências não ser um fato isolado na vida das mulheres assassinadas, mas “apresentar- se como o ponto final em um continuum de terror”(2011, p.224). A violência sofrida 1 Mestranda no Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Católica Dom Bosco 2 Professora Dra. no Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Católica Dom Bosco 3 Mestre pela - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

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FEMINICÍDIOS ENQUANTO UM PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA

Priscilla Soares TeruyaAutor1

[email protected] Cristina Coelho Scisleskir2

[email protected] Adriano Barbosa da Luz3

[email protected]

O presente ensaio visa refletir sobre como a violência perpetrada contra as

mulheres, mais especificamente quando culmina no homicídio, torna-se paulatinamente

um problema de saúde pública, segundo a lógica biomédica. Para isso, utilizaremos os

conceitos foucaultianos de Biopoder, Medicina Social e Biomedicina.

Utilizaremos como base para a discussão os dados disponibilizados pela

Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) em seu relatório denominado

MAPA DA VIOLÊNCIA 2015 - HOMICÍDIO DE MULHERES NO BRASIL. A

escolha deste documento deveu-se não apenas a sua recente divulgação (9/11/2015)

mas, também a peculiaridade metodológica utilizada para a compilação dos registros

estatísticos.

Segundo Wânia Passinato (2011) o termo femicídio teria sido utilizado por

Diana Russel, pela primeira vez em 1976, durante um depoimento perante o Tribunal

Internacional de Crimes contra Mulheres, em Bruxelas. Posteriormente Russel, definiria

esta expressão como os assassinatos de mulheres decorrentes do fato de serem

mulheres, “as mortes classificadas como femicídio resultariam de uma discriminação

baseada no gênero, não sendo identificadas conexões com outros marcadores de

diferença tais como raça/etnia ou geração” (PASSINATO, 2011, p. 223).

Ainda segundo Passinato, o femicídio teria como distinção das demais

violências não ser um fato isolado na vida das mulheres assassinadas, mas “apresentar-

se como o ponto final em um continuum de terror”(2011, p.224). A violência sofrida

1 Mestranda no Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Católica Dom Bosco

2Professora Dra. no Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Católica Dom Bosco

3 Mestre pela - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

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pelas mulheres teria carater universal e estrutural fundamentando-se em um sistema de

dominação patriarcal presente em quase todas as sociedades ocidentais. Os homicídios

femininos seriam apenas as consequencias de um padrão cultural misógino que difere

as relações de poder hierarquicamente entre homens e mulheres.

Segundo Passinato (2011), a introdução do termo feminicídio é feita por

Marcela Lagarde, feminista e deputada federal mexicana, para ela o termo femícidio

perde força ao força ao ser traduzida para o castelhano, por isso propõe o uso da palavra

feminicídio usando-a para denominar o “conjunto de delitos de lesa humanidade que

contém os crimes e os desaparecimentos de mulheres” (Lagarde, 2004, p.5 apud

Passinatto,2011, p.232). Ainda para Passinatto (2011) Lagarde busca justificar essa

nova nomenclatura agregando ao conceito a ideia de que os feminicídios ocorrem em

acordo com o silêncio, a omissão e a conveniência de autoridades encarregadas de

prevenir e erradicar esses crimes. No feminicídio haveria participação direta do Estado

quando o mesmo não é capaz de gartantir condições mais igualitarias e de segurança

para as mulheres, trataria-se também de um crime de Estado. Na ótica de Lagarde,

feminicídio significa bem mais que morte de mulheres em razão do gênero, feminicídio

extrapola a misoginia e agrega ao termo uma condição política.

Em 09 de março de 2015, o Brasil promulgou a Lei n.13.104, que altera o

artigo 121 do Código Penal Brasileiro, prevendo o feminicídio como circunstância

qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1 o da Lei n o 8.072, de 25 de julho de

1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. A nova lei dispõe que:

Homicídio qualificado § 2 o [...]

Feminicídio

VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:

§ 2 o -A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando ocrime envolve:

I - violência doméstica e familiar;

II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Aumento de pena

§ 7 o A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se ocrime for praticado:

I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;

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II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta)anos ou com deficiência;

III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima (BRASIL,2015, p.?)

Neste ensaio não ignoramos a importância do debate sobre as duas

termiologias, nem tão pouco as discussão sobre seus conteúdos políticos ou conceituais.

Porém, optamos pelo uso do termo feminicídio em função tanto do marco jurídico a

partir do sancionamento da Lei do Feminicídio, como de sua utilização no relatório

Mapa da Violência 2015 no qual nos âncoramos para propor as reflexões que se

seguem.

Entretanto antes de nos aprofundarmos na discussão dos dados do Mapa da

violência contra as mulheres é necessário retomar os conceitos propostos por Foucault.

Poder, Disciplina e Biopolítica

Segundo Danner (2010), Foucault não concebeu uma teoria do poder, mas,

propôs uma analítica do poder, um deslocamento em relação à teoria política

tradicional que atribuía ao Estado o monopólio do poder. Isso significa que, para o

filósofo, o poder não existe como um objeto em disputa ou uma propriedade pertencente

a uma classe em detrimento de outra, tão pouco trata-se de uma entidade isolada, sua

condição intrínseca de existência são as relações em que esta inserido. O poder é,

portanto, uma prática social constituída historicamente (MACHADO, 2014).

O que está em jogo nas investigações que virão a seguir é dirigimo-nos menospara uma “teoria” do que para uma “analítica” do poder: para uma definiçãodo domínio específico formado pelas relações de poder e a derteminação dosinstrumentos que permitam analisá-lo. Ora parece me que essa analítica sópoder ser constituída fazendo tabúla rasa e liberando-se de uma certarepresentação do poder, que eu chamaria – veremos a diante porque -“jurídico discursiva”. (FOUCAULT, 2013, p.92)

Foucault (2005) , não concebe o poder como algo que “se dá, nem se troca,

nem se retorna”, o que significa que o poder só se constitui enquanto tal, como uma

prática social, “ele se exerce e só existe em ato”. Ainda para Foucault (2013) o poder

não como um conjunto de instituições e aparelhos que buscam sujeitar os cidadãos a

uma instância superior, tão pouco compreende o poder como um modo estruturado de

sujeitar os indivíduos em oposição a violência. Isso significa dizer que não há um

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sistema geral de dominação coordenado centralmente e exercido por um elemento ou

grupo sobre os outros, mas, que há jogos de poder multidirecionais.

Desta forma, se o poder é um exercício, pode-se situá-lo “ao nível do próprio

corpo social, e não acima dele, penetrando na vida cotidiana e por isso podendo ser

caracterizado como micro-poder ou sub-poder” (Machado, 2014, p.17). Todos os

sujeitos podem exercê-lo em níveis variados e em pontos diferentes da rede social,

atuando de forma integrada ou não ao Estado

É preciso não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço ehomogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, deuma classe sobre as outras; mas ter bem presente que o poder não é algo quese possa dividir entre aqueles que o possuem e o detém exclusivamente eaqueles que não o possuem. O poder deve ser analisado como algo quecircula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca estálocalizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriadocomo uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nassuas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição deexercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentidodo poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder nãose aplica aos indivíduos, passa por eles. (FOUCAULT, 2005, p. 193)

Para Sarzotti (2005) o fato do poder só existir no seu exercício, tem como

consequências a impossibilidade de definir sua localização precisa - seu centro de

comando - bem como, desierarquiza o funcionamento do poder, ou seja, “a sua

dinâmica não concebe uma imagem piramidal, como de uma força que tenha em seu

centro e que irradia do alto dos seus efetios sobre uma multiplicidade das relações

colocadas às extremidades da base social”(2015, p.8). Esta alegação nos leva a uma

percepção diferente do poder, uma vez que, partindo do modelo relacional, abre-se a

possibilidade de compreender com mais refinamento a dinâmica, fragmentada, móvel e,

às vezes contraditória.

Os modelos binários ou deterministas dão lugar para as relações de forças que

ora se chocam e se contrapõem, ora se complementam e se sobrepõem. Ou seja, deve

se ter sempre em mente o reconhecimento de uma pluralidade de correlações de forças -

constitutivas das relações de poder - que atravessam todo o corpo social e, sendo cada

uma dessas forças unidirecional e móvel, a consequência é a impossibilidade de prever

seus resultados antes de seu efetivo exercício, isto porque todas as vezes que o poder é

exercído ele coloca a si mesmo em jogo.

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Machado (2014), salienta que a genealogia operada por Foucault buscou

desenvolver uma concepção não-jurídica do poder, o filósofo francês fez severas críticas

às teorias contratualistas do século XVII que concebiam o poder como direito

originário que era cedido a nível indivídual para se constituir uma soberania e que

tinha como objeto o contrato social. Para o Foucault (2014a) a idéia desse contrato

social em prol da soberania, justificaria a compreensão do poder apenas pelo seu uso

negativo, coersivo e violento. Entretanto como foi apontado acima, se o poder não é um

conjunto de instituições e aparelhos que buscam sujeitar os cidadãos à uma instância

superior, tão pouco um modo estruturado de sujeitar os indivíduos em oposição a

violência.

O que me parece certo é que, para analisar as relações de poder, só dispomosde dois modelos: o que o Direito nos propõe (poder como lei, proibição,instituição) e o modelo guerreiro ou estratégico em termos de relações deforças. O primeiro foi muito utilizado e mostrou, acho eu, ser inadequado:sabemos que o Direito não descreve o poder. O outro sei bem que também émuito usado. Mas fica nas palavras: utilizam-se noções pré-fabricadas oumetáforas (‘guerra de todos contra todos’, ‘luta pela vida’) ou aindaesquemas formais (as estratégias estão em moda entre alguns sociólogos eeconomistas, sobretudo americanos). Penso que seria necessário aprimoraresta análise das relações de força.(FOUCAULT, 2014, p.360)

Assim, é preciso ter em mente que as relações não se dão onde não haja

liberdade. A existência da liberdade é fundamental, uma vez que e ela que permite a

reação por parte daqueles sobre os quais o poder é exercido.

Foucault(1982) não ignora o papel desempenhado pela violência nas relações

de poder, mas afirma que ela é dos um instrumentos utilizados, todavia não um

princípio básico da sua natureza.

Uma relação de violência age sobre um corpo ou sobre coisas; ela força,dobra, destrói ou fecha a porta a todas as possibilidades. O seu pólo opostopode ser apenas a passividade e, ao se deparar com qualquer resistência, suaúnica opção é tentar minimizá-la. Por outro lado, uma relação de podersomente pode ser articulada com base em dois elementos que sãoindispensáveis tratando-se realmente de uma relação de poder: que o ‘outro’(aquele sobre quem o poder vai ser exercido) seja plena mente reconhecido emantido até o fim como uma pessoa que age; e que, em face de uma relaçãode poder, todo um campo de respostas, reações, resultados, e possíveisinvenções seja aberto (Foucault, 1982, p.220)

Deste modo quando falamos do ato de violência ou mesmo de feminicídio, a

príncipio, não se trata de uma relação de poder entre os sujeitos, não se trata sequer de

uma relação uma vez que o uso da violência não permite que as vítimas possam

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exercer qualquer poder de negociação ou resistência. Entretanto, essa violência produz

efeitos de poder tanto sobre os sujeitos envolvidos como ao seu entorno, como veremos

adiante. Sobre essa violência constroem-se mencanismos disciplinares e de biopoder.

Constrõem-se práticas discursivas, que veiculam, fazem circular e consequentemente

produzem efeitos de poder.

É neste ponto que Foucault (2013, 2014a) procurou desvenciliar o uso do poder

de seus aspectos unicamentes negativos, apontou que “de fato, o poder produz, ele

produz real, produz domínios de objetos e rituais de verdade” (Machado, 2014a, p.19).

Ao enfatizar o aspecto produtor do poder, Foucault se insurge contra a idéia de que o

poder é fundamentalmente uma expressão que denotaria o uso da força, da imposição e

principalmente do discurso da proibição. Essa perspectiva desconstrói a imagem de que

o poder age através da lei da interdição e da censura. O poder passa a ser encarado

menos em termos jurídicos e de proibição e mais como técnicas e estratégias com

efeitos produtivos. Desta forma, Foucault (2013) procura se afastar da tradição

filosófica que toma o Direito e seus príncipios jurídicos como parâmetro à

compreensão das relações de poder.

Parte dos efeitos do poder são as produções dos saberes, “não simplesmente

favorecendo-o porque o serve, ou aplicando-o porque é útil” (Foucault, 2013. p. 101)

mas, a partir do entendimento de que saber e poder estão diretamente implicados, que

não existe uma relação de poder sem a produção de um saber correlacionado e que por

sua vez não há saberes que não suponha e não constitua relações de poder.

Assim, para Foucault (2014) a partir da produção do saber-poder são

constituidos os regimes de verdade, que não podem ser tomados a partir de premissas

morais de verdade absolutas e imutáveis. Mas, como saberes que sustentam e produzem

relações de poder, na medida em que são aceitas não pela coersão da força, mas que

permeiam, produzem coisas e constituem discursos. E, é justamente nos discursos que

se articulam o poder e o saber.

Assim, na concepção foucaultina não se pode falar de qualquer coisa em

qualquer época, é preciso considerar as condições históricas para o aparecimento de um

objeto discursivo que o garantem “dizer alguma coisa” . O discurso, enquanto um

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conjunto de enunciados que se apoiam em uma mesma formação discursiva, não possui

apenas um sentido ou uma verdade, ele possui, acima de tudo, uma condição de

existência. Assim nosso primeiro questionamento é quais são as condições de existência

para a produção do Mapa da Violência – Homicídios Femininos? Quais são os jogos de

poder que permitem sua circulação? O que implicam os dados por ele coletados? E

quais são os possíveis efeitos de poder dele oriundo?

Machado (2014) salienta que a genealogia operada por Foucault buscou

desenvolver uma concepção não-jurídica do poder, o filósofo fez severas críticas as

teorias contratualistas do século XVII que concebiam o poder como direito originário

que era cedido a nível indivídual para se constituir uma soberania e que tinha como

objeto o contrato social. Para o Foucault (2014a) a idéia desse contrato social em prol

da soberania, justificaria a compreensão do poder apenas pelo seu uso negativo,

coersivo e violento. Para Foucault o poder é tomado como uma rede de dispositivos ou

mecanismos que atravessam toda a sociedade e do qual nada nem ninguém escapa.

Porém, ainda que haja o deslocamento do poder da uma figura central do Estado isso

não significa que o filósofo negligêncie sua importância.

Foucault (2013) em História da Sexualidade I (A vontade de Saber), mostra que

com a derrocada das estruturas Feudais e a concentração populacional nos Estados

modernos houve uma profunda transformação nos mecanismos de poder. Houve à

instauração da anátomo-política disciplinar e da biopolítica normativa enquanto

procedimentos institucionais de modelagem do indivíduo e de gestão da coletividade.

Foucault (2014b) em sua obra Vigiar e Punir debruçou-se sobre uma forma de

poder específica que atua sobre os corpos dos sujeitos enclausurados, a Disciplina. A

partir da observação do Panopticon de Jeremy Benthan, o autor percebe que há uma

série de mecanismos que visam a docilização utilitária do corpo do detento.Esta técnica

embora tenha sido observada dentro de um contexto restrito, pode ser observada em

outras instituições sociais como hospitais, escolas, etc... Para o autor, a punição e a

vigilância são mecanismos de poder utilizados para docilizar e adestrar as pessoas para

que essas se adéquem às normas estabelecidas nas instituições. A vigilância é uma

tecnologia que incide sobre os corpos dos indivíduos, controlando seus gestos, suas

atividades, sua aprendizagem, sua vida cotidiana. Já a punição terá a função de corrigir

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os indivíduos para estabelecer relações de poder, como forma de controle para atender

aos interesses da burguesia. (FOUCAULT, 2014b)

É através do poder disciplinar que se permite a atuação sobre os corpos

individuais por meio de exercícios especialmente direcionados para a ampliação de suas

forças produtivas. Estes exercícios visam o adestramento e a docilização dos corpos,

buscando a consolidação do projeto macropolítico moderno do Estado liberal, ou seja, é

necessário que as técnicas de poder disciplinar sejam amplamente difundidas,

permitindo o controle minucioso das operações do corpo, assegurando a sujeição

constante de suas forças e lhe impondo uma relação de docilidade-utilidade.

Essa sujeição é obtida através de um saber e de um controle que

constituem o que Foucault chamou de uma tecnologia política do corpo, que para ele,

trata-se de uma microfísica do poder. Essa nova anatomia política deve ser entendida,

como:

[...] uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origensdiferentes, de localizações esparsas, que [...] Circularam às vezes muitorápido (entre o exército e as escolas técnicas ou os colégios e liceus), àsvezes lentamente e de maneira mais discreta (militarização insidiosa dasgrandes oficinas) [...](FOUCAULT, 2005, p. 119).

Na concepção foucaultiana, os dispositivos do poder disciplinar caracterizam-

se pela minúcia e pelo detalhe. Nesse sentido, o corpo será submetido a uma forma de

poder que irá desarticulá-lo e corrigi-lo através de uma nova mecânica do poder.

Assim a disciplina atua diretamente no corpo dos indivíduos como

conformação de todas as suas atitudes, forma de se portar em determinados lugares

quanto à fala, modos, gestos, ela concebe o corpo como uma maquinaria de poder,

portanto deve esquadrinhá-lo, o desconjuntá-lo e o recompô-lo. Se tomamos essas

premissas não é difícil perceber como esta mecânica de poder age no que tange as

relações de gênero. Forjam se relações que impõem as mulheres desde o seu nascimento

atitudes moldadas para a docilidade, a fragilidade enquanto ao gênero masculino espera-

se atitudes mais truculentas e rudes.

Machado (2014) mostra que o adestramento do corpo, a regulamentação do

comportamento, a classificação, hierariquização “faz aparecer pela primeira vez na

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história esta figura singular, individualizada – o homem – como produção do poder”

(2014a. p.29). Ainda segundo ele, neste momento o homem emerge também como

objeto do saber, o que por sua vez possibilita o surgimento das ciências do homem.

A relação intrínseca entre poder e saber ganha ainda mais importância. Poder e

saber para Foucault estão diretamente imbricados, de modo que todo saber é efeito do

poder. O saber não é aqui entendido como uma verdade inquestionável trata-se da

impossibilidade de estabelecer uma relação de poder que não esteja implicada em seu

respectivo campo de saber.

Após compreender algumas das tecnologias disciplinares empregadas nas

instituições carcerarias e hospitalares Foucault (2013, 2014a) busca analisar como os

dispositivos de saber e poder também operam em uma lógica biopolítica da população.

Para Foucault, “a biopolítica lida com a população como um problema político, como

um problema a um só tempo científico e político, como problema biológico e como

problema de poder” (2013, p. 93). Ao nos apresentar as transformações ocorridas nos

mecanismos de poder, onde a estratégia principal passa a ser o poder de fazer viver e de

potencialização da vida e, não mais (ou não somente) o poder coercitivo que faz morrer,

Foucault inaugura outro modo de pensar os governos aos quais estamos submetidos,

muito mais sutis e, principalmente, muito mais eficazes, voltados para uma econômia.

Uma tecnologia de poder que não exclui a primeira, que não exclui a técnicadisciplinar, mas que a embute, que a integra, que a modifica parcialmente eque, sobretudo, vai utilizá-la implantando-se de certo modo nela, eincrustando-se efetivamente graças a essa técnica disciplinar prévia.(Foucault, 2005, p.289)

Essa nova técnica não suprime a técnica disciplinar, utiliza-se de instrumentos

totalmentes novos, é dirigida não mais ao corpo do homem, mas ao homem enquanto

espécie.

Se de um lado a disciplina busca reger a multiplicidade dos homens através da

vigilância individual dos corpos que devem ser treinados, adestrados e eventualmente

punidos. Este nova tecnologia de poder se volta para a multiplicidade dos homens, não

pela perspectiva de seus corpos simplesmente, mas a partir de uma homogeneização, na

medida em formam “uma massa global, afetada por processos de conjunto que são

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próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença,

etc' (Foucault, 2005, p. 289)

Logo, depois de uma primeira tomada de poder sobre o corpo que se fezconsoante o modo da individualização, temos uma segunda tomada de poderque, por sua vez, não é individualizante mas que é massificante, se vocêsquiserem, que se faz em direção não do homem-corpo, mas do homem-espécie. Depois da anatomo-política do corpo hurnano, instaurada no decorrerdo século XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo que já não euma anatomo-política do corpo hurnano, mas que eu chamaria de uma"biopolítica" da espécie hurnana. (Foucault, 2005, p. 292)

Portanto, a biopolítica ou biopoder age sobre os fenômenos globais da

população, sobre os processos biológicos ou bio-sociologicos das massas humanas. A

biopolítica se ocupa, portanto, com os processos biológicos relacionados ao homem

estabelecendo sobre os mesmos uma espécie de regulamentação. Logo começa-se

sistematizar quantitativamente dados sobre mortalidade, natalidade, gênero,

criminalidade, a qualidade de vida e a longevidade, sendo que estes processos foram

assumidos como prática de governo através de uma série de intervenções e controles

(Foucault, 2013). E há aí a produção de múltiplos saberes, como a Estatística, a

Demografia e a Medicina Sanitária.

Para Foucault (2013) a arte de governar desde o século XVI subsidiou o

desenvolvimento do aparelho administrativo da monarquia territorial, bem como o

pareciemento de aparelhos de governo e das análises e dos saberes. A arte de governar

passou a se organizar em torno de uma razão de Estado, entendida como um conjunto de

regras racionais que são próprias do Estado, que não se deduzem das leis naturais ou

divinas, mas, que constrói sua racionalidade naquilo que constitui a a realidade

específica do Estado.

A expansão demografica do século XVII, demanda uma ciência do governo.

Foi com o desenvolviemento da ciência do governo que a economia pôdecentralizar-se em um certo nível de realidade que nós caracterizamos hojecomo econômico; foi com o desenvolvimento dessa ciência do governo quese pode isolar os problemas especificos da população; mas também se podedizer que foi graças à percepção dos problemas específicos da população,graças ao isolamento desse n´viel de realidade, que chamamos a econoia,que o problema do governo pôde enfim ser pensado, sistematizado ecalculado fora do quadro jurídico da soberania. (FOUCAULT, 2014, p. 423)

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A sistematização de dados sobre a população permite a percepção de que ela

tem uma racionalidade e caracteristicas próprias, bem como de que seus fenômenos são

irredutíveis aos da família “finalmente que por seus deslocamentos, de sua atividade, a

população produz efeitos econômicos específicos” (FOUCAULT, 2014, p. 242).

A governamentalidade como uma racionalidade política onde todo o corpo social

é passível de se tornar objeto de governo, representa uma grande economia de poder em

relação às disciplinas, pois governa-se muito com muito pouco, ou seja, para manter a

população em um processo de governamento são utilizadas estratégias que atinjam a

população de forma geral, uma dessas estratégias foi e ainda é as políticas de saúde.

A questão para Foucault (2005) é o paradoxo de como a biopolítica enquanto

tecnologia de poder que objetiva a vida, o fazer viver, que busca aumentar a vida e

prolongar sua duração pode exercer o direito de matar dentro de um sistema político

centrado no biopoder? Segundo o autor, é só através do racismo que esse poder poderá

agir, não que o racismo não existisse antes dessa nova tecnologia, porém é com a

emergência da biopolítica que o racismo insere seus mecanismos de funcionamento no

Estado.

O racismo seria o meio de introduzir um corte entre o que deve viver e o que

deve morrer, responsavel por estabelecer uma censura do tipo biológico no interior de

um domínio considerado precisamente um domínio biológico.

No continuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, adistinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação de certas raçascomo boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser umamaneira de fragmentar esse campo do biológico de que o poder se incumbiu;uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aosoutros. (Foucault, 2005,p. 305)

É a partir do racismo que é possível conceber a população como uma mistura de

raças e instaurar uma subdivisão na espécie. “Essa e a primeira função do racismo:

fragmentar, fazer cesuras no interior desse continuo biológico a que se dirige o

biopoder” (FOUCAULT,2005, p.304). Além disso, caberá ao racismo estabelecer uma

relação entre o fazer viver e o deixar morrer, do tipo que quanto mais você deixa

morrer, mais, por isso mesmo, você vive. O racismo moderno permite o funcionamento

da lógica de quanto mais as raças consideradas inferiores desaparecerem, melhor serão

as chances de sobrevivencia da espécie enquanto tal.

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A morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seriaminha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raçainferior (ou do degenerado, ou do anormal), é que vai deixar a vida em geralmais sadia; mais sadia e mais pura. (Foucault, 2005,p. 304)

Para o autor esse mecanismo só pode funcionar porque os inimigos, os outros

não são vistos como adversários no sentido político do termo, mas como riscos para a

população. Em um sistema de biopoder que investe na vida, só é admissível fazer

morrer quando a função não é a vitória, mas sim a eliminação do perigo biológico.

É importante salientar que quando o autor fala de fazer morrer não entende

apenas como o assassinato direto, mas também, o fato de deixar morrer, expor a morte,

multiplicar o risco de morte ou também a eliminação simbólica, a morte política, a

rejeição, etc

Para o autor o funcionamento do racismo nos Estados moderno é marcado por

sua inrupção em certos pontos, em certos grupos em que o direito a morte é

necessariamente requirido. Estes pontos tem certa mobilidade, sendo definidos

conforme relações de poder naquele determinado momento.

Outra função importante do racismo é o seu papel na economia política. Um

exemplo, são as guerras que expõem não só os considerados inimigos como os seus

próprios cidadãos a morte. Segundo Foucault (2005) só se justifica o risco de fazer os

cidadãos morrem se isso resultar no fortalecimento da sua própria raça. É só a partir da

busca do bem comum, do bem da raça, que se esta autorizado a fazer com que alguns de

seus membros sejam executados.

Assim, o racismo assegura a função de morte na economia do biopoder, partindo

da premissa que a morte dos outros é o fortalecimento biológico da própria pessoa na

medida em que ela e membro de uma raça ou de uma população, visto que que se é

elemento numa pluralidade unitária e viva.

A saúde passa a ser um modo de potencializar a vida através de estratégias de

regulamentação do corpo social. Para Foucault (2013) há um processo de estatização do

biológico, que culmina com um investimento sobre a vida humana

O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva nummundo vivo, ter um corpo, condições de existência, probabilidade de vida,saúde individual e coletiva, forças que se podem modificar, e um espaço emque se pode reparti-las de modo ótimo. Pela primeira vez na história, semdúvida, o biológico reflete-se no político; o fato de viver não é mais essesustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos, no acaso da

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morte e de sua fatalidade: cai, em parte, no campo de controle do saber e deintervenção do poder.( FOUCAULT, 2013, p.155)

Foucault (2013) em seu texto O nascimento da Medicina Social mostra como a

biopolítica forja uma tecnologia de poder e saber que visa o controle dos corpos de

modo coletivo.

Minha hipótese é que com o capitalismo não se deu a passagem de umamedicina coletiva para uma medicina privada mas, justamente o contrário;que o capitalismo, desenvolvendo-se em fins do século XVIII e inicio doséculo XIX, socializou um primeiro objeto que foi o corpo enquanto força deprodução, força de trabalho (FOUCAULT, 2013, p.144)

Ainda para o filósofo, o corpo é uma realidade biopolítica e a medicina uma

estratégia biopolítica de controle, isso significa dizer que não é pela ideologia que a

sociedade exerce seu poder sobre os indivíduos. Até o século XVIII a medicina era

praticada de forma individual, ou melhor, pensada para a individualidade em um

processo simples de tratamento dos sintomas (quando possível).

Na Alemanha no século XVII há os primeiros investimentos na melhoria da

saúde da população, a partir da observação dos dados de natalidade e morbidade houve

o estabelecimento de uma normalização do ensino de medicina, bem como uma

organização da atividade dos médicos.

Esta organização e hierarquização dos profissionais, através do

estabelecimentos de departamentos e quantidade de profissionais por números de

habitantes, permitiu a sistematização dos dados por eles coletados, tais como “verificar

que tratamentos são dispensados, como se reage ao aparecimento de uma doença, etc.”

(FOUCAULT, 2013, p.150). Esse processo de normalização e produção de saber

caracteriza o que se denominou Medicina de Estado.

Já na França neste período, surgiu um outro germe da medicina social,

organizado através da Medicina Urbana. Até meados do século XVIII o país

encontrava-se fragmentado politicamente, seu território era ocupado por diversos

poderes (leigos, clérigos, religiosos, representantes do poder estatal na figura do rei) o

que impedia uma unidade, entretanto, era eminente a necessidade de homogenizar e

organizar as grandes cidades em um corpo urbano. Cidades como Paris tornaram-se

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centros comerciais com grande circulação de pessoas e mercadorias, além disso houve o

aparecimento de uma população operária pobre.

O aumento populacional, causou um certo caos urbano (acúmulo de

corpos nos cemitérios, aumento de dejetos nas ruas, condições de saneamento

inexistentes) e consequentemente surtos de doenças epidêmicas constantes. A prática

medicinal aplicada até então consistia no isolamento do enfermo (que era rapidamente

levado para longe da cidade) e como medida preventiva aos cidadãos sadios a

orientação de que permanecem em suas residências. Obviamente, tão medida não se

adequava as necessidades do sistema capitalista nascente.

O mecanismo da exclusão era o mecanismo do exílio, da purificação doespaço urbano. Medicalizar alguém era mandá-lo para fora e, por conseguintepurificar os outros. A medicina era uma medicina da exclusão. (FOUCAULT,2014, p. 156)

Porém, com a observação, mapeamento das condições sanitárias e sua

relação com prevalência das doenças, além de se propor uma reorganização dos

espaços urbanos, começa-se a traçar uma relação entre os organismos e os meios.

Constrói-se a noção de salubridade e criam-se os comitês de salubridade a nível

departamental e nas grandes cidades.

A Inglaterra por ser o país que teve o desenvolvimento industrial mais

acelerado, teve o maior aumento do proletariado pobre, o que levou o país a ser o

primeiro lugar a normalizar a ação do estado sobre a saúde da população através da Lei

dos Pobres. Esta lei tinha por função garantir a vacinação obrigatória da população,

organizar o registro de epidemias e doenças, mapear os lugares mais insalubres e

quando necessário destruí-los.

De maneira geral, pode-se dizer que diferentemente da Medicina Urbana e daMedicina de Estado da Alemanha no século XVIII, aparece, no século XIX esobretudo na Inglaterra, uma medicina que é essencialmente um controle dasaúde e do corpo das classes mais pobres para torná-la mais aptas ao trabalhoe menos perigosas às classes mais ricas. (FOUCAULT, 2014, p. 169)

Para Foucault a articulação desses três modelos de medicina (de Estado,

Urbana e Assistencial) forjou uma biotecnologia de controle dos corpos, principalmente,

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dos corpos pobres. Esse modelo de biopoder permanece até hoje na maioria dos países

ocidentais e ao mesmo tempo que é uma tecnologia de poder também constrói um saber

denominado Biomedicina.

Camargo (2005), em seu texto A Biomedicina busca explicitar como as

categorias nosologicas ganham papel fundamental na racionalidade médica. A

Biomedicina é assim denominada enquanto racionalidade médica porque vincula-se

fortemente aos saberes produzidos pelas disciplinas científicas do campo da Biologia, é

a partir desse conhecimento que a Biomedicina formula seus conceitos (e práticas) de

doença, diagnose e terapêutica.

A biomedicina vincula-se a um “imaginário científico” correspondente àracionalidade da mecânica clássica caminhando no sentido de isolarcomponentes discretos, reintegrados a posteriori em seus “mecanismos”originais. (CAMARGO, 2005, p. 178)

Ainda para o autor, a racionalidade biomedica calca-se na visão analítico

mecanicista vinculada a uma visão anatomoclínica das lesões e das doenças. A

mudança na racionalidade médica se inicia na segunda metade do século XVIII até a

primeira metade do século XIX, neste período, a doença e as lesões passam a ser

categorias centrais na prática médica. O surgimento dos hospitais atuam

sobremaneira para essa mudança de paradigma pois, é ali o local onde são observadas e

descritas a relação entre as doenças/lesões e seus agentes etiológicos.

Essa lógica mecânico causal cria a ideia de que “as doenças são objetos

com existência autônoma traduzíveis pela ocorrência de lesões que seriam por sua vez,

decorrência de uma cadeia de eventos desencadeados a partir de uma causa ou de

causas múltiplas ( CAMARGO, 2005, p. 179).

A partir desse momento a própria definição de saúde passa a ser atrelada

a ausência de doenças. O corpo uma é compreendido como um agrupamento de

sistemas que quando em funcionamento atuam como uma máquina.

Ainda para o autor, essa racionalidade médica é subsidiada por uma

doutrina médica implícita, que apesar de discursivamente compreender o homem em

sua totalidade biopsicossocial, hierarquiza saberes valorando os aspectos biológicos em

detrimentos dos outros. “Agregue-se a isto o fato de que os termos “psico” e “social”

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não passam de referências genéricas, subordinadas ao primado do discurso biológico”

(CAMARGO, 2005, p. 158)

Há um grupo de representação não explicitas que pemeiam todo o saber

médico e que Camargo resume como

as doenças são coisas, de existência concreta, fixa e imutável, de lugar paralugar e de pessoa para pessoa; as doenças se expressam por um conjunto desinais e sintomas, que são manifestações de lesões, que devem ser buscadaspor usa vez no âmago do organismo e corrigidas por algum tipo deintervenção concreta. (CAMARGO, 2005, p. 189)

Neste sentido o concreto é entendido como intervenções medicamentosas

e cirúrgicas que extirpem o agente causador da lesão. Quando o médico não consegue

subsidiar suas hipóteses diagnósticas nessa teoria das doenças há uma tendência a um

ocultamento, ou melhor, quando as causa não podem ser explicitadas biologicamente,

não podem ser confrontadas, dissecadas essas lesões ou doenças são subtraídas da

produção desses saberes médicos.

Como o femínicídio passa a ser um problema de saúde pública?

Organizado pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz o MAPA DA VIOLÊNCIA

2015 - HOMICÍDIO DE MULHERES NO BRASIL reune dados oriundos do Sistema

de Informações de Mortalidade (SIM), da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do

Ministério da Saúde (MS), índices de mortalidade da Organização Mundial de Saúde

(OMS), dos Censos Demográficos do Insituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE) e as estimativas intercensitárias, disponibilizadas pelo Departamento de

Informática do Sistema Único de Sáude (DATA- SUS), as notificações de violência

doméstica, sexual e/ou outras violências do Sistema de Informação de Agravos de

Notificação (Sinan) do Ministério da Sáude e por fim dados da Pesquisa Nacional de

Saúde no Brasil. É evidente que estas estatísticas são majoritariamente provenientes de

instituições vinculadas as políticas públicas de saúde, segundo o autor, tal fato advém da

dificuldade de contar com dados confiáveis para analisar a questão.

Como bem aponta Wânia Pasinatto: “Um dos maiores desafios para arealização desses relatórios é a falta de informações oficiais sobre essasmortes. As estatísticas da polícia e do Judiciário não trazem, na maior namaior parte das vezes, informações sobre o sexo das vítimas, o que tornadifícil isolar as mortes de mulheres no conjunto de homicídios que ocorrem

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em cada localidade. Além disso, na maior parte dos países não existemsistemas de informações judiciais que permitam conhecer quantos processosjudiciais envolvendo crimes contra mulheres chegam a julgamento e quais asdecisões obtidas” ( WAISELFISZ, 2015,p.8)

O Mapa da Violência 2015, traça um panorama da violência contra

mulher no período compreendido entre 2003 e 2013, além disso, trás algumas

especificidades ligadas a questão de cor/raça, idade, instrumentos utilizados, locais da

agressão e vinculação da vítima com os autores dos crimes.

Waiselfisz (2015) aponta que o Brasil se encontra em 5º lugar no rank

mundial de homicídios femininos segundo a Organização Mundial de Saúde com uma

taxa de 4,8 homícidios por 100 mil mulheres, ficando atrás apenas de El Salvador,

Guatemala e Federação Russa.

No Brasil, na última década houve um aumento de 8,8 % de homicídios

femininos, sendo que evidencia-se a ampliação de 54%, em dez anos, no número de

homicídios de mulheres negras, passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. Em

contrapartida, neste mesmo período, a quantidade anual de homicídios de mulheres

brancas caiu 9,8%, saindo de 1.747 em 2003 para 1.576 em 2013.

Se tomarmos os pressupostos teóricos acima citados não é dificil

perceber essa estatistica se justifica no conceito de Racismo de Estado quando cumpre

seu papel na economia política duplamente, primeiro porque ao permitir que as

mulheres sejam assassinadas em função do gênero a que pertencem acaba

disciplinando, docilizando e adestrando os corpos femininos e segundo, no que tange ao

aumento dos homicídios de mulheres negras cria um segundo marcador biológico que

justificaria a desvalorização dessas mulheres. Assim, o racismo assegura a função de

morte na economia do biopoder, partindo da premissa que a morte dos outros é o

fortalecimento biológico

O estudo ainda aponta que 55,3% desses crimes foram cometidos no

ambiente doméstico e 33,2% dos homicidas eram parceiros ou ex-parceiros das vítimas,

com base em dados de 2013 do Ministério da Saúde.

No que tange aos instrumentos utilizados no assassinato o estudo indica

que se enquanto nos casos de homicídios masculinos prepondera a utilização de arma de

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fogo (73,2% dos casos), nos femininos essa incidência é bem menor: 48,8%, com o

concomitante aumento de estrangulamento/sufocação, cortante/penetrante e objeto

contundente, indicando maior presença de crimes de ódio ou por motivos fúteis/banais.

Vimos anteriormente que com o advento do Capitalismo e o surgimento

da categoria população houve uma necessidade de governar os sujeitos, não apenas de

forma individual mas, com mecânismos que atuassem de forma a atingir a coletividade.

Assim, a biopolítica passa a se ocupar dos processos biológicos relacionados aos

indivíduos estabelecendo sobre os mesmos uma espécie de regulamentação.

Medicina Social baseada em uma racionalidade biologizante é uma das

principais formas de controle. A grosso modo é essa racionalidae que investirá na vida

(em algumas mais do que em outras) preparando corpos dóceis e saudáveis aptos a

produção.

Podemos perceber que estas estratégias de poder ainda são vigentes em

nossa sociedade quando ao analisar o Mapa da violência 2015 nos deparamos com

dados que são coletados majoritariamente nas estatísticas geradas pelas instituições

vinculadas as políticas públicas de saúde.

E a segunda diz respeito a qual a racionalidade define o que é violência.

Segundo Waiselfisz (2015) o relatório sobre os homicídios femininos encontrou

inúmeras dificuldades principalmente referentes a escassez de fontes de dados sobre o

tema.

[...] as escassas fontes disponíveis convergem sempre sobre a figura dasvítimas, sem referências aos causantes ou agressores. Isso se explica porque oprocesso dos operadores da segurança pública ou da justiça começa com aexistência de um corpo, mas nem sempre se sabe quem foi o agressor nemquais foram as motivações e as circunstâncias da violência. E, no Brasil, oproblema se acentua ainda mais pela baixa capacidade de elucidação doscrimes de homicídio, permanecendo nas sombras a maior parte dos autores edas circunstâncias desses crimes. ( WAISELFISZ, 2015,p.41)

As fontes principais foram O Sistema de Informação de Agravos de

Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, que registra os atendimentos do Sistema

Único de Saúde (SUS) no campo das violências e a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS),

realizada pelo IBGE em 2013.

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A notificação de violência doméstica, sexual e/ou outras violências foi

implantada no Sinan em 2009, devendo ser realizada de forma universal, contínua e

compulsória diante da suspeita ou confirmação de violências dirigidas a crianças,

adolescentes, mulheres e idosos, atendendo às Leis 8.069 (Estatuto da Criança e

Adolescente), 10.741 (Estatuto do Idoso) e 10.778 (notificação compulsória da

violência contra a mulher). Essa notificação é realizada pelo gestor de saúde do SUS,

mediante o preenchimento de uma ficha específica.

Segundo o Weiselfisz (2015) os registros do Sinan permitem o levantamento do

tipo de violência sofrida pela vítima. Entretanto, percebe-se que a grande maioria das

notificações é oriunda da violência física.

É necessário considerar que cada atendimento pode gerar o registro de maisde um tipo de violência. Por esse motivo, os totais Vemos que a violênciafísica é, de longe, a mais frequente, presente em 48,7% dos atendimentos,com especial incidência nas etapas jovem e adulta da vida da mulher, quandochega a representar perto de 60% do total de atendimentos. Em segundolugar, a violência psicológica, presente em 23,0% dos atendimentos em todasas etapas, principalmente da jovem em diante.(WAISELFISZ, 2015,p.41)

Neste sentido percebemos que há uma racionalidade biomédica que aponta

que a violência contra a mulher só se torna um problema de saúde quando ela atinge o

corpo da vítima, quando lesiona e pode ser comprovada por meio de exames. Ou seja,

quando torna improdutivo o corpo.

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