Fernando Pessoa - Dossier

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Fernando Pessoa (1888-1935) Referência Biográfica Nascido em Lisboa em 13 de Junho de 1888 deveu o seu nome ao santo popular comemorado nesse dia: Fernando de Bulhões ou Santo António de Lisboa. Seu nome completo: Fernando António Nogueira Pessoa. Seus pais foram Joaquim de Seabra Pessoa, funcionário do Ministério da Justiça e crítico musical, e Maria Madalena Pinheiro Nogueira. A mãe enviuvou em 1893 e casou em segundas núpcias dois anos depois com o Comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal em Durban, África do Sul, para onde levou consigo (1896) o filho Fernando António. Foi na África do Sul que Fernando Pessoa realizou os seus primeiros estudos, sob a orientação de freiras irlandeses, num convento católico de West Street (1897-99). Frequentou em seguida a Durban High School (1899). Depois de uma permanência de cerca de um ano em Lisboa (1901), regressou novamente a Durban onde frequentou a Commercial School (1903). Fez o exame de ingresso à Universidade do Cabo (1903), o matriculation examination e pela qualidade da prova que realizou foi-lhe atribuído no ano seguinte o prémio Queen Victoria Memorial prize. Nesse mesmo ano (1904) e na mesma Universidade fez o Intermediate Examination in Arts, frequentando o correspondente ao primeiro ano de um curso superior. Ainda nesse ano, publicou no jornal de Durban High School um estudo sobre Macaulay (1800-1859) historiador e 1

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Fernando Pessoa(1888-1935)

Referência Biográfica

Nascido em Lisboa em 13 de Junho de 1888 deveu o seu nome ao santo popular comemorado nesse dia: Fernando de Bulhões ou Santo António de Lisboa. Seu nome completo: Fernando António Nogueira Pessoa. Seus pais foram Joaquim de Seabra Pessoa, funcionário do Ministério da Justiça e crítico musical, e Maria Madalena Pinheiro Nogueira.

A mãe enviuvou em 1893 e casou em segundas núpcias dois anos depois com o Comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal em Durban, África do Sul, para onde levou consigo (1896) o filho Fernando António.

Foi na África do Sul que Fernando Pessoa realizou os seus primeiros estudos, sob a orientação de freiras irlandeses, num convento católico de West Street (1897-99). Frequentou em seguida a Durban High School (1899). Depois de uma permanência de cerca de um ano em Lisboa (1901), regressou novamente a Durban onde frequentou a Commercial School (1903).

Fez o exame de ingresso à Universidade do Cabo (1903), o matriculation examination e pela qualidade da prova que realizou foi-lhe atribuído no ano seguinte o prémio Queen Victoria Memorial prize. Nesse mesmo ano (1904) e na mesma Universidade fez o Intermediate Examination in Arts, frequentando o correspondente ao primeiro ano de um curso superior.

Ainda nesse ano, publicou no jornal de Durban High School um estudo sobre Macaulay (1800-1859) historiador e político inglês que se tornou conhecido sobretudo pelo estilo brilhante e ideias claras.

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Em 1905, regressou, e definitivamente, a Lisboa para não mais deixar o país, até à morte. Aí se matriculou no Curso Superior de Letras (1906), de que viria a desistir no ano seguinte. Também nesse ano (1907) tentou, em colaboração com um primo, fazer vingar uma tipografia, aplicando nela o dinheiro recebido de uma herança por morte da avó paterna, Dionísia: a Empresa Íbis – Tipográfica e Editora. Mas a tipografia praticamente não chegou a funcionar.

Fez-se então correspondente estrangeiro do ramo comercial (1908), ocupação que, além do sustento, lhe dava flexibilidade de horário, permitindo-lhe tempo livre para dedicar à actividade literária e à tertúlia com os amigos.

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Apreciando mais que tudo a liberdade, foi rejeitando alguns bons lugares profissionais, que, a troco de remuneração compensadora, o obrigariam ao cumprimento de horários rígidos – o que iria contra a sua própria maneira de ser.___________________________________________________

A partir daí e até ao final da vida, Fernando Pessoa não mais abandonou a actividade literária e intelectual. (...)

Para além da obra que foi escrevendo e publicando, ou ainda, (e em muito maior volune) que foi escrevendo e atirando para o baú, outros acontecimentos da sua vida foram foram deixando nele marcas profundas. Eis alguns:

O seu sempre renovado interesse pelas editoras, que o levou a fundar a Íbis (1907) e a Editora Olisipo, (1921), e a participar com outros na Solução Editora (1928);

O desgosto motivado pelos imprevistos da vida, tais como já o falecimento de um irmão com apenas um ano de idade, os falecimentos da irmã Madalena Henriqueta, da irmã Maria Clara, da avó Dionísia, do padrasto e da própria mãe, o suicídio de Sá Carneiro;

As frequentes mudanças de residência, que bem poderão ser interpretadas em conjugação com a sua personalidade, como manifestações da tendência para a instabilidade e a dispersão;

A candidatura ao lugar de Conservador-Bibliotecário de Museu, em Cascais (onde procurava sobretudo ambiente para escrever), para o qual não foi admitido;

O namoro com a dactilógrafa Ofélia, que decorreu em dois períodos distintos da sua vida – entre Março e Novembro de 1920 e entre 1929 e 1931.

Mas foi realmente a composição da sua obra que lhe ocupou, a cada momento, o melhor das energias. Por ela sacrificou comodidades, lugares bem remunerados e influentes. O próprio casamento. Numa carta a Ofélia, diz que se encontra subordinado cada vez mais a Mestres que não permitem nem perdoam” (carta a Ofélia, de 29-11-1920). E numa outra carta à mesma destinatária diz a dado passo: “Cheguei à idade em que se tem pleno domínio das próprias qualidades, e a inteligência atingiu a força e a destreza que pode ter. É pois a ocasião de realizar a minha obra literária, completando umas cousas, agrupando outras, escrevendo outras que estão por escrever. Para realizar essa obra preciso de sossego e um certo isolamento”. E mais adiante: “Toda a minha vida futura depende de eu poder ou não fazer isto, e em breve. De resto a minha vida gira em torno da minha obra literária – boa ou má, que seja ou possa ser. Tudo o mais na vida tem para mim um interesse secundário.

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Pessoa serviu-se primeiramente do inglês (sobretudo entre 1903 e 1908) para a composição da sua obra. O domínio desta língua internacional mostrou-se-lhe muito útil, não só para lhe tornar acessível o contacto com grandes autores cujas obras foram originalmente nela escritas (Dickens, Whitman, Shakespeare, Byron, Milton Keats, Ben

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Jonson, Tennyson, Poe...), como para realizar traduções de Português par Inglês (Camões, provérbios portugueses...) e de Inglês para Português (Põe, o compêndio de teosofia de C.W. Leadbeater...).

Em 1908, Pessoa voltou-se para a língua portuguesa. E explica que foi “num impulso súbito, vindo da leitura de Folhas Caídas e das Flores sem Fruto, de Garrett”, como declara em carta a Cortes Rodrigues). É nesse mesmo ano que descobre Bernardim, Camões, Antero, Junqueiro, Cesário, António Nobre, Eugénio de Castro, Correia de Oliveira...

Será sempre incorrecto e arriscado explicar a obra de qualquer autor tendo como referência máxima a sua biografia. (...) Mas será igualmente arriscado não dominar elementos fulcrais da biografia responsável pela obra que se vai estudar – e poder-se-á mesmo, em termos de leitura de texto, pagar isso bem caro.

Em relação a Fernando Pessoa, será útil estabelecer-se conexão, por exemplo, entre o seu cerebralismo e tendência para a simulação e a sua condição de emigrante que foi; entre o seu racionalismo e a sua formação no colégio religioso que frequentou; entre o prémio Rainha Vitória e o seu interesse por editoras; entre a profissão de correspondente comercial que exerceu e a necessidade de tempo livre para a tertúlia e a composição da sua obra; entre a frequência do meio desenvolvido da África do Sul e da captação que fez da mensagem do Modernismo, a sua experiência com várias revistas, sobretudo Orpheu, e a crítica que tece ao provincianismo português; entre o seu temperamento introvertido e o enorme volume da sua obra que foi aprisionado no baú, sem publicação; entre as repetidas mudanças de residência e a sua personalidade inquieta e instável (muitos sonhos, menos realizações – como reconhece em Tabacaria.(...).

Mas a poucos mais como a Pessoa se poderá aplicar com total propriedade a conhecida afirmação de Octávio Paz, de que “os poetas não têm biografia, a sua obra é a sua biografia”.

De facto, durante os 47 anos que viveu, Fernando Pessoa pôs sempre a composição da sua obra à frente da sua vida pessoal, profissional e afectiva. Por ela sacrificou um determinado modelo de felicidade pessoal. (...) Era a outra lei que o seu destino pertencia.

Entretanto, procurou levar uma existência sem alardes: “A celebridade é um plebeísmo (...) É preciso ser muito grosseiro para se ser célebre à vontade” (Páginas Ìntimas e de Auto-Interpretação). E como escreveu Ricardo Reis, “A Glória pesa como um fardo rico/A fama como a febre”.

O poeta faleceu a 30 de Novembro de 1935, no Hospital de São Luís, de uma crise hepática, tendo ido a sepultar no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa.

Lino Moreira da Silva, Do Texto à Leitura

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Fernando Pessoa é um dos poetas de maior complexidade e de maior relevo da nossa Literatura nacional e da nossa contemporaneidade universal.

A sua obra caracteriza-se pelo fenómeno da criação de outros poetas, apresentando-se como um autor múltiplo ao assinar ora em seu nome próprio, ora em nome de outros autores, a que se dá o nome de heterónimos. Construiu biografias, retratos físicos, psicológicos e mentais e, mesmo, horóscopos para cada um deles.

O fenómeno da heteronímia distingue-se completamente da pseudonímia, pelo facto de aquele consistir na utilização de um nome falso ou fictício, que se adopta como nome artístico, diferente do nome próprio, biográfico. Ora um heterónimo corresponde à criação de um autor diferente, fictício, mas autónomo do autor: trata-se da invenção de um outro ser, outro autor, neste caso, de um outro poeta, com personalidade biográfica e artística diferentes.

O ano de 1914, fica na biografia interior do poeta, como um ano decisivo, pelo aparecimento dos heterónimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis.

Em 1915 vem a lume o Orpheu de que Pessoa é um dos directores. Até 1917, reparte-se entre a procura dramática da autenticidade (...) e o virtuosismo literário de experiências mais ou menos sinceras (...): do simbolismo decadentista e desconexo de Hora Absurda ao intercepcionismo impressionista de Chuva Oblíqua, sem esquecer o sensacionismo Witmaniano das Odes de Álvaro de Campos, cantor da fúria e das vertigens da civilização mecânica.

(...) Em 1917, o Portugal Futurista inclui poesias de Pessoa e o Ultimatum, manifesto futurista de Álvaro de Campos.

(...) Em fins de 1934, publica a Mensagem, colectânea de poesias que celebram os heróis e profetizam, em atitude de expectativa ansiosa, a renovada grandeza da Pátria. E nenhum volume mais sai em vida do autor. Pessoa morre em grande parte inédito, só admirado num círculo restrito, nomeadamente pelo grupo da Presença.

(...) Hoje, Fernando Pessoa é o poeta de mais larga projecção na poesia em língua portuguesa, dos dois lados do Atlântico. Mas o seu espólio literário permanece, em parte, inédito. (...)

in, Avelino Soares Cabral, 1- Cadernos de Literatura Portuguesa, 12ºano, Edições Sebenta, (Extraído, com adaptações, do Dicionário de Literatura, organizado por . P. Coelho, Liv. Figueirinhas, Porto, pp.

818-823.

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Conceitos:

O Paulismo

O Paulismo fez um aproveitamento muito cuidado do Simbolismo e daquilo que o caracterizava: reacção de tom individualista e subjectivista contra o Positivismo e o cientificismo que caracterizava o realismo / naturalismo, bem como contra os rigores formais do parnasianismo.

A proposta do Simbolismo voltava-se para um aproveitamento da música e dos símbolos na poesia (a poesia - música, a poesia - símbolo). Trata-se de um retorno a um romantismo caracterizado pelo tom lírico, o vago, a melancolia, o pessimismo, os ambientes outonais e crepusculares, a procura da verdade e da autenticidade.

A temática simbolista anda à volta do pessimismo profundo, das passagens outonais, da efemeridade, da mágoa de viver, da doença da alma, do amor sem realização.

O que Pessoa disse ser específico da moderna poesia portuguesa está presente no Paulismo, esse “ismo” que ele inventou. Nomeadamente o vago que é sugerido através das reticências, da interacção objectividade/subjectividade, da musicalidade impressionista, das referências à desilusão profunda, ao tédio, à procura do ilocalizável e inacessível, ao Além, a uma visão fugidia, ao negativismo, ao misterioso e indefinível; dos adjectivos e da sintaxe desconexa e com propositados erros de lógica, dos contínuos transportes entre os versos. E também o subtil, que é sugerido através de frases exclamativas, liberdades métricas, alusões a pormenores mínimos, aparentemente sem significado, a aspectos insólitos, mal perceptíveis, fora do comum, a associação forçada de palavras organizadas sem lógica aparente, a exploração de sensações. E ainda o complexo que é sugerido através da ligação entre o que aparentemente não possui ligação, sobreposição de sentidos inesperados, aproveitamento da sonoridade e ritmos nos mais diversos níveis e sentidos enunciados parcialmente.

A moderna poesia portuguesa é, para Pessoa, “uma poesia da vida interior, uma poesia de alma, uma poesia subjectiva.

O Sensacionismo

O sensacionismo é uma espécie de filosofia poética. Os sensacionistas defendem que a sensação é a única realidade e a base de toda a arte. Distinguem, contudo, três tipos de sensações: a sensação ou sensações que colhemos da realidade do exterior; a sensação ou sensações aparentemente vindas do interior; e uma terceira sensação resultante do trabalho mental – a sensação ou sensações do abstracto. Para o sensacionista, o fim da arte é exactamente a organização das sensações do abstracto, porque para passar a sensação das emoções à arte, essa sensação precisa de ser intelectualizada.

Daí que a arte é a consciência das sensações, é o poder de expressão intelectualizada dessas sensações.

O Futurismo

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O Futurismo foi uma corrente de pensamento do início do nosso século que combateu ferozmente a situação em que se encontrava a Arte nessa altura. Os futuristas condenavam a falta de vigor, de deslumbramento que caracteriza todas as formas artísticas desta altura. O sentimento imperava ainda, sobretudo, na literatura: e era preciso substituí-lo pela vitalidade da sensação. Considerava-se que a literatura se afastava cada vez mais da vida real.

“Como um fato velho desprezível, fora de moda, deitemos à rua a tristeza e o sentimentalismo. A tristeza deprimente, o sentimentalismo é a inércia, é a cobardia, a impotência, a negação da vida!”

“A vida é um movimento que não pára, que avança sempre, sôfrega e resfolegante, vertiginosamente no amor do perigo e do heroísmo!”

“Homens, vivei! Homens, criai a vida!...” (...)

in Maria Leonor C. Buescu, Apontamentos de Literatura

O Quinto Império

“Grécia, Roma, Cristandade, / Europa – os quatro se vão / Para onde vai toda a idade.”

“Não é assim no esquema português. Este sendo espiritual, em vez de partir, como naquela tradição do Império material de Babilónia, parte, antes, com a civilização em que vivemos, do império espiritual da Grécia, origem do que espiritualmente somos, e, sendo esse o Primeiro Império, o segundo é o de Roma, o terceiro o da Cristandade, e o quarto o da Europa – isto é da Europa laica de depois da Renascença. Aqui o Quinto Império terá de ser outro que o Inglês, porque terá de ser de outra ordem, nós o atribuímos a Portugal, para quem o esperamos.”

In Fernando Pessoa, Sobre Portugal

Portanto - e insistindo – o Quinto Império, esperado para Portugal, nada teria a ver com as colónias que no tempo de Pessoa ainda havia. A esse respeito, é bem explícito:“Inutilidade e malefício das colónias; deixemos descer à vala o corpo dos impérios que tivemos, ressuscitemos o seu espírito no orgulho, ânsia de domínio, glória de expressão. Uma das coisas necessárias é desfazermo-nos de todos os elementos do passado que possam pesar sobre a nossa delineação cultural. Devem desaparecer as colónias portuguesas. As colónias portuguesas são uma tradição inútil. Na nossa mão, elas não nos servem, nem servem aos outros, e pesam sobre nós, alimentando uma tradição funesta, que foi bela enquanto foi glória inútil, porque foi glória; mas tendo deixado de ser glória, ficou sendo inutilidade apenas. Que o imperialismo seja a nossa tradição; e não o imperialismo colonialista e dominador!”idem, ibidem

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Os Heterónimos

Alberto Caeiro

Quem é Alberto Caeiro?

Para o sabermos, para compreendermos a sua personalidade, dispomos como fontes das afirmações do próprio Fernando Pessoa, de Álvaro de Campos, de Ricardo Reis, e ainda, naturalmente, do próprio Caeiro – ou citado pelos outros heterónimos, ou nos seus próprios textos, quer considerados à superfície, quer (e isto, como se vai ver, é muito importante) na sua profundidade.

Fernando Pessoa, na sua divulgada carta a Casais Monteiro, dá Caeiro como tendo nascido em 1889, em Lisboa, tendo vivido «quase toda a sua vida no campo», e morrido em 1915. Era «de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era». Louro sem cor, olhos azuis, «não teve mais educação que quase nenhuma – só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó». «Escrevia mal o português».

Caeiro olhava «com uma formidável infância» (diz Fernando Pessoa, Páginas de Doutrina Estética, p. 209). E por esta busca da infância podemos ver, desde já, neste heterónimo de Pessoa, uma intenção de renascer, de lutar contra o elaborado, o artificial, o falso, e um apelo ao reencontro da ingenuidade das crianças.

Sobre a sinceridade de Caeiro, diz Álvaro de Campos (Sudoeste 3, de Almada Negreiros, 1935 – comemorando os 20 anos de Orpheu): «O poeta superior diz o que efectivamente sente, o poeta médio diz o que decide sentir. O poeta inferior diz o que julga que deve sentir. Nada disto tem a ver com a sinceridade. (...) A maioria da gente sente convencionalmente (...) O meu mestre Caeiro foi o único poeta sincero do mundo».

Em Notas para a recordação do meu mestre Caeiro, o mesmo Campos cita Caeiro, atribuindo-lhe afirmações como «Tudo é diferente de nós, e por isso é que tudo existe». Comenta ele que esta frase foi proferida na altura em que ambos foram apresentados, tendo sido «dita como se fosse um axioma da terra» (Presença, Jan./Fev. 1931).

Uma outra afirmação atribuída por Campos a Caeiro foi esta: «Toda a coisa que vemos, devemos vê-la sempre pela primeira vez, porque realmente é a primeira vez que a vemos» (idem). E acrescenta ainda Campos: «O meu mestre Caeiro não era pagão: era o paganismo (...). Em Caeiro não havia explicação para o paganismo; havia consubstanciação. (...) Uma das coisas que mais nitidamente nos sacodem na comparação de nós com os gregos é a ausência de conceito de infinito, a repugnância de infinito, entre os gregos. Ora o meu mestre Caeiro tinha lá mesmo esse inconceito».

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Campos relata ainda a conversa havida com Caeiro sobre o infinito, que Caeiro rematou assim: «Se concebo o quê? Uma coisa ter limites? Pudera! O que não tem limites não existe. Existir é haver outra coisa qualquer e portanto cada coisa serlimitada. O que é que custa conceber que uma coisa é uma coisa, e que não está sempre a ser uma outra coisa que está mais adiante?»

E Campos comenta: «Nessa altura senti carnalmente que estava discutindo, não com outro homem, mas com outro Universo. Fiz uma última tentativa, um desvio que me obriguei a sentir legítimo. «Olhe, Caeiro... Considere os números... Onde é que acabam os números? Tomemos qualquer número – 34, por exemplo. Para além dele temos 35, 36, 37, 38, e assim sem poder parar. Não há número grande que não haja um número maior...»

«Mas issosão só números», protestou o meu mestre Caeiro. E depois acrescentou, olhando-me com uma formidável infância. «O que é o 34 na Realidade?»

Como continua Campos no mesmo local, Caeiro «não dizia senão o que era». Uma das frases «que o contém com maior simplicidade é aquela que uma vez me disse em Lisboa... Eu perguntei: «Está contente consigo?» E ele respondeu: «Não: estou contente». Era como a voz da terra, que é tudo e ninguém.»

E o engenheiro termina assim as suas notas: «Nunca vi triste o meu mestre Caeiro. Não sei se estava triste quando morreu, ou nos dias antes. Seria possível sabê-lo, mas a verdade é que nunca ousei perguntar aos que assistiram à morte qualquer coisa da morte ou de como ele a teve.

«Em todo o caso, foi uma das angústias da minha vida – das angústias reais em meio de tantas que têm sido fictícias – que Caeiro morresse sem eu estar ao pé dele. Isto é estúpido mas humano, é assim.

«Eu estava em Inglaterra. O próprio Ricardo Reis não estava em Lisboa; estava de volta no Brasil. Estava o Fernando Pessoa, mas é como se não estivesse. O Fernando Pessoa sente as coisas mas não se mexe, nem mesmo por dentro.»

«Nada me consola de não ter estado em Lisboa nesse dia (...) e a própria ideia do nada – a mais pavorosa de todas se se pensa com a sensibilidade – tem, na obra e na recordação do meu mestre querido, qualquer coisa de luminoso e de alto, como o sol sobre a neve dos píncaros inatingíveis.»

Ao definir o seu mestre como o paganismo, Fernando Pessoa / Álvaro de Campos queria(m) significar um regresso às origens, em que a oposição sentir / pensar não existisse, e tudo quanto fosse fruto da razão e do pensamento fosse recusado. O paganismo é referido como o tempo anterior ao cristianismo, com tudo quanto a sua vigência significou para o mundo ocidental (Páginas Íntimas, p. 169)._____________________________________

Reis, o principal comentador crítico de Caeiro, diz que os poemas do mestre tendem para o objectivismo total, o objectivismo absoluto; são «aparentemente tão símplices», mas neles, através de uma análise cuidada, o crítico «se encontra defronte de

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elementos cada vez mais inesperados, cada vez mais complexos». Segundo o mesmo Reis, eles primam pela naturalidade e espontaneidade, mas o crítico «pasma de verificar que eles são, ao mesmo tempo, rigorosamente unificados por um pensamento filosófico que não só os coordena e concatena, mas que ainda mais, prevê objecções, antevê críticas, explica defeitos por uma integração deles na substância espiritual da obra» (Reis, inédito sem data).

Ora, como por aqui se vê (numa primeira leitura, directa e mais elementar), o mestre Caeiro aparece-nos como um ingénuo, um amante da simplicidade e da inocência (tinha olhos azuis), da natureza sem metafísica (em oposição à civilização), da vida simples do campo (ele vivia no Ribatejo), da áurea mediania horaciana. Não tendo mais que a instrução primária e escrevendo mal o português, entregava-se às sensações desprovidas de pensamento (a sensação é tudo -, o pensamento é doença). É nisso que Caeiro se aproxima do guardador de rebanhos, integrando-se como ele na natureza, vagabundeando passivamente pelos espaços, fruindo a felicidade de cada coisa.

Apaixonado pelo presente (aceitar o passado ou o futuro seria atraiçoar a natureza), pelo concreto, pelo imediato, pela anulação da subjectividade, sempre preocupado com o olhar (sensações visuais), ele diz aceitar as coisas tal como se lhe apresentam, admirando a sua originalidade, diversidade e mobilidade – que é o que constitui, segundo ele, o seu signo de existir. E neste ponto reside a sua sabedoria.

Caeiro propõe um regresso à inconsciência, ao pasmo essencial – gesto que, apesar da sua complexidade, se tende imediatamente a relacionar com essa espécie de paraíso-perdido que é o tempo da infância, encarado como tempo de uma pré-consciência feliz.

Mas esse regresso constitui um impossível para Pessoa, pelo que o heterónimo manifesta apenas uma intenção, um desejo de que assim seja – mas nunca poderá ser. A superação do problema que preocupa Pessoa não encontrará também através de Caeiro a solução ansiada.

A simplicidade de Caeiro é apenas aparente. Ele não é efectivamente o que afirma ser. Mas antes alguém que aspira a ser a realidade que enuncia – o que constitui uma contradição mal disfarçada. Tudo com quanto depara é marcado pela argúcia que o caracteriza, pela sua capacidade de observação, pela sua inteligência e racionalidade, resultando daí a formulação de constantes juízos de valor e uma sistematização de pensamento que culmina com afirmações do tipo «o único sentido íntimo das coisas / É elas não terem sentido íntimo nenhum».

E é assim que toda a imagem de «grau zero» (de que fala J. A. Seabra, em F.P. ou o Poetodrama, p. 89 ss.) que esse heterónimo de Pessoa pretende transmitir soa como um disfarce. Caeiro, em suma, é um filósofo da não filosofia (nas palavras de J. do Prado Coelho), é alguém que diz nada ter a ver com a metafísica, mas que se mostra, em cada momento, profundamente comprometido com ela.

Lino Moreira da Silva, Do Texto à Leitura

Alberto Caeiro

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“Há metafísica bastante em não pensar em nada.”

Caeiro representa a antítese de F. Pessoa ortónimo, o “remédio” para a sua ansiedade e para a sua angústia perante o mistério da existência, inacessível ao Homem. Para este heterónimo, a única via para atingir a felicidade é não pensar, é recusar a essência, para acreditar que apenas existe a aparência. Ele nega a dicotomia platónica, herdada pela cultura ocidental, segundo a qual o fenómeno (aquilo que os seres humanos podem percepcionar através dos sentidos) é uma cópia de um mundo que o Homem não pode captar (o mundo da Essência). Alberto Caeiro propõe uma “desculturalização”, na medida em que nega a visão da realidade sujeita à análise do pensamento, defendendo que existir é, afinal, estar de acordo com as leis naturais. Assim, afirma que “Há metafísica bastante em não pensar em nada” e que “Pensar no sentido íntimo das cousas / É como levar uma copo de água à água das fontes.”

Ele é um estóico e um epicurista, porque não deseja nada, a não ser inserir-se no todo cosmogónico, aquilo que, efectivamente, lhe dará a felicidade: “E sou feliz.”

Alberto Caeiro representa a tranquilidade que o seu criador nunca conseguiu encontrar e que exprimiu ao constatar o paradoxo do universo:

“(...)O Universo não concorda consigo próprio, porque passa. A vida não concorda consigo própria, porque morre. O paradoxo é a forma típica da Natureza. Por isso, toda a verdade tem uma forma (...) paradoxal (...)”(1)

Ao que Caeiro, o Mestre reconhecido pelo seu próprio criador, responde:O que é preciso é ser-se natural e calmoNa felicidade ou na infelicidade,Sentir como quem olha,Pensar como quem anda,E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,E que o poente é belo e é bela a noite que fica...Assim é e assim seja...”

In O Texto em Análise

Ricardo Reis

Ricardo Reis é um poeta “pagão por natureza”, segundo as palavras de Álvaro de Campos. É em tudo um clássico: no rigor do vocabulário e da sintaxe; na mentalidade e na religião, no desejo da perfeição. Tendo Caeiro por seu mestre, como Álvaro de Campos, aconselha a aceitação pacífica das coisas. Ambos elogiam a “magna quies” do viver campestre, por oposição à turbulência da cidade. É pensando o menos possível sobre a vida que se alcança o pleno viver.

Este heterónimo, em quem Fernando Pessoa, segundo ele próprio, colocou toda a “disciplina vestida da música que lhe é própria”, é uma personalidade essencialmente tradicionalista, como é natural, pela educação jesuítica que recebeu, pelas ideias monárquicas por que optou, pelos estudos que realizou, pela profissão de médico que assumiu, pela ideologia estética neoclássica que perfilhou.

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Ricardo Reis alicerçou a sua cultura clássica na leitura directa de Horácio e nela se inspirou quer no que se refere à expressão estética, quer no que concerne ao conteúdo: a nível da expressão, segue Horácio no verso rigoroso, na forma da ode ou do epigrama, no estilo latinizante, na sintaxe apurada; a nível do conteúdo, é nítido o pensamento clássico do hedonismo, do epicurismo e do estoicismo.

O próprio Fernando Pessoa, em “Páginas Íntimas”; define a poesia de Ricardo Reis:

“Resume-se num epicurismo triste toda a filosofia da obra de Ricardo Reis. Tentaremos sintetizá-la. (...) Devemos buscar dar-nos a ilusão da calma, da liberdade e da felicidade coisas inatingíveis porque, quanto à liberdade, os próprios deuses – sobre que pesa o fado – a não têm; quanto à felicidade, não a pode ter quem está exilado da sua fé e do meio onde a sua alma devia viver; e quanto à calma, quem vive na angústia complexa de hoje, quem vive sempre à espera da morte, dificilmente pode fingir-se calmo. A obra de Ricardo Reis, profundamente triste, é um esforço lúcido e disciplinado para obter uma calma qualquer.”

Quanto à temática, ela gira, exactamente, em volta desta concepção pessimista da vida. O fado é, para este poeta, uma entidade implacável, a única entidade certa pois os próprios deuses e as próprias crenças são vários e incertos (“não sejamos /Inteiros numa fé talvez sem causa”). O Fado, sim, dita as leis de uma vida finita, cuja certeza é apenas a Morte: o poeta, todo o homem, já sente o “frio da sombra”, chora aquilo que é o seu verdadeiro atributo: “súbdito ausente e nulo / Do universal destino.” A sensação do homem é a constante espera, a eterna espera: “Talvez que já nos toque / No ombro a mão, que chama / à barca que não vem senão vazia.”

No entanto, a ideia da presença constante da Morte, a que já aludi, arrasta consigo a sensação de que a própria vida é uma sucessão de mortes, pois que cada fase da vida é finita e irreversível; o tempo não pára e o pensamento da efemeridade da vida torna-se mais doloroso que a ideia da própria Morte final; daí a apologia da felicidade possível do “carpe diem” dos epicuristas:

“Tanto quanto vivemos, vive a horaEm que vivemos, igualmente mortaQuando passa connosco Que passamos com ela.”

Ricardo Reis

“Abdica / E sê rei de ti próprio”

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Ricardo Reis foi aquele que melhor traduziu a evidência da tragédia humana.Existir é nada ter, é nada poder.Este poeta não acredita na obtenção de verdades e a sua única certeza é que não

fugiremos ao nosso fado, ao nosso destino, que culminará, inevitavelmente, na morte. Então propõe a anulação da vontade, a aceitação passiva de todas as coisas, a recusa da emoção e até do prazer. Para Ricardo Reis, o homem é um ser que está preso na sua própria condição.

A renúncia é a única coisa que nos resta perante a vontade divina que nos transcende, perante o Cronos (o Tempo), que devora os seus próprios filhos. A imitação da Antiguidade não esconde uma preocupação que caracteriza os tempos modernos: a angústia perante a morte; o horror do nada, preocupações igualmente presentes, na poesia ortónima e na de Álvaro de Campos.

Para Ricardo Reis, o paganismo funciona como uma realidade aceite – os deuses significam, por um lado, a condenação humana; por outro, a hipótese que lhe resta de o homem atingir a tranquilidade, pois nada poderá fazer para alterar o seu destino. Aliás, os próprios deuses não têm uma liberdade absoluta. Acima deles existe uma entidade superior, uma Lei, um Fado.

Ricardo Reis renuncia ao Conhecimento, porque não acredita na possibilidade de o alcançar – a resposta à questão “Qual é o sentido da vida?” jamais seria conseguida.

É, pois, de reter que, apesar das estruturas estróficas e métricas, da latinização da sintaxe, do léxico erudito e arcaico, à maneira clássica, a poesia de Ricardo Reis deixa sempre perpassar a angústia metafísica do próprio Fernando Pessoa face ao enigma da Existência.

Fernando Pessoa escreveu ainda, a propósito dos seus heterónimos:

“(...) ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer “eu próprio” em vez de “eu mesmo”, etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis – ainda inédita – ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso.”

In O Texto em Análise

Álvaro de Campos

Segundo o próprio Fernando Pessoa ortónimo, Álvaro de Campos nasceu “em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890.” É “engenheiro naval (...), mas em Lisboa, em inactividade”. É alto e magro, tipo “judeu português”. “Teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro, mecânica e depois naval. Numas férias fez uma viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário.” Fernando Pessoa ainda informa que sempre que sente “um súbito impulso “para escrever” independentemente do assunto, assina em nome de Álvaro de Campos.

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No que diz respeito à sua personalidade, Campos surge-nos como um indivíduo amoral, apaixonado pelas sensações súbitas, fortes e extravagantes. Pretende aproximar--se de Whitman, mas nada possui da sua solidariedade, pois, pelo contrário, Álvaro de Campos é praticamente anti-social (veja-se, por exemplo, “Lisbon Revisited”). Do ponto de vista ético, este heterónimo, situa-se no pólo oposto a Ricardo Reis. Afirma-se, no entanto, tal como este, discípulo de Caeiro. Todavia, se, para Caeiro, a sensação é tudo, a sensação das coisas tal como elas são objectivamente; para Álvaro de Campos, as coisas não valem em si mesmas, mas pelas sensações subjectivas que provocam no indivíduo. Álvaro de Campos, modernista, futurista, apaixonado pelo célere ritmo da vida moderna, pretende “sentir tudo de todas as maneiras”, tal como ele próprio diz. Não pretende reflectir ou questionar, só sentir. Pretende ser, ao fim e ao cabo, um vanguardista que pretendia restringir o antigo ao passado e caminhar para o futuro em passos largos e a plenos pulmões. Em “Ultimatum”, editado no último número da revista “Portugal Futurista”, da responsabilidade de Almada Negreiros, Álvaro de Campos, de forma totalmente incontida, insurge-se contra “os mandarins da Europa”, contra quem traça um mandato de despejo: “Tirem isso tudo da minha frente! Fora com isso tudo! Fora!”

Aliás, a grande intenção dos futuristas é provocar o escândalo, “dar bofetadas ao público”, como diz o próprio Fernando Pessoa. E as armas de escândalo são o exagero, a exaltação, a energia, a ironia, o sarcasmo através dos quais se recusa tudo o que é tradicional, romântico, idílico. O génio criativo, a originalidade, a liberdade total (da sintaxe, da pontuação, das maiúsculas, de todos os sinais linguísticos) surgem como principal recurso e objectivo.

Segundo Álvaro de Campos, devia nascer uma nova estética, uma estética não Aristotélica. Ou seja, à estética da beleza, devia substituir-se uma estética da força (Páginas de Doutrina Estética). “O artista não-aristotélico subordina tudo à sua sensibilidade” de modo a obrigar o leitor a “sentir o que ele sentiu.”

A produção literária de Álvaro de Campos, pode repartir-se por três fases distintas:

1ª fase – fase decadentista2ª fase – fase futurista3ª fase – fase intimista

1ª - fase decadentistaO poema característico desta fase é Opiário, cuja composição foi motivada por

uma viagem que Campos fez ao Oriente. Dedicado a Mário de Sá- Carneiro, é no seu estilo que ele se decalca, manifestando a fusão de elementos da vida real com elementos da intimidade psíquica, o desejo de verdade e autenticidade, a rejeição do que é artificial. Aí o poeta se revela mergulhado no tédio, no desencanto da vida, no enjoo de tudo – e nem a bebida, nem o fumo, nem a viagem que faz ao Oriente... nada é suficiente para transformar a sua personalidade.

2ª - fase futurista

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É a fase de Ode Triunfal e Ode Marítima, com influências claras de Whitman e algumas marcas do sensacionalismo. Campos é aqui o poeta da energia, da vitalidade, das vertigens, o cantor das máquinas, da técnica, da civilização, do ímpeto e da fúria, dos motores, do progresso, da febrilidade da vida moderna, da emoção até há histeria. Mostra-se poroso a todo o tipo de sensações novas, nunca experimentadas anteriormente, detentor de uma personalidade forte e de uma imaginação torrencial e exaltada.

A concepção de arte subjacente é a que assenta na ideia de força, característica do artista não-aristotélico, e já acima aludida nos referidos «Apontamentos para uma estética não-Aristotélica.».

O seu estilo é impetuoso, recorrendo largamente às apóstrofes, às interjeições, às exclamações, às onomatopeias e alterações expressivas, ao ritmo precipitado e verso livre, às metáforas inusitadas, às anáforas e repetições – condicentes com o estado febril de alguém que escreve «à dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica».

3ª - fase intimistaNesta 3ª fase, Álvaro de Campos apresenta-se como o poeta da angústia e do

abatimento. A sua alma é habitada por um profundo vazio de que ele procura libertar-se, recorrendo por vezes à exaltação e fogosidade. Contudo, já não é mais a personalidade excêntrica da fase anterior a manifestar-se, mas antes uma personalidade já muito próxima da do Pessoa-Ortónimo, versando temáticas que se inclinam em muito para as deste último (a ternura, a saudade, a infância...).

In Lino Moreira da Silva, Do texto à Leitura

Álvaro de Campos

“Sentir tudo de todas as maneiras”

Fernando Pessoa afirma que Álvaro de Campos “é o filho indisciplinado da sensação”.

Querer sentir tudo e de todas as maneiras significa, para o poeta, a tentativa de abarcar o Todo, numa ânsia incontida e exuberante.

Os seus poemas apresentam, contudo, três fases distintas, como fez notar Jacinto do Prado Coelho:

a primeira fase corresponde à da produção do Opiário, em 1914; a segunda fase é a do Futurismo e patenteia-se nos poemas “Ode

Triunfal” de 1914, “Dois excertos de Odes”, também de 1914. “Ode Marítima, de 1915, “Saudação a Walt Whitman”, igualmente de 1915 e “Passagem das Horas”, de 1916;

a terceira fase distancia-se das duas primeiras, revelando um Álvaro de Campos “romântico” e os poemas que a ilustram são todos aqueles que se seguiram a “Casa Branca Nau Preta”, de 1916 a 1935.

O que caracteriza fundamentalmente este poeta é a sua faceta anti-social (à maneira romântica), o seu desprezo pelo burguês, o lepidóptero, e pela sociedade materialista, exigente de comportamentos estereotipados, cujos valores caducos ele

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contesta, numa revolta veemente, assumindo-se como um dandi, sempre pronto a provocar, a chocar os seguidores da ordem estabelecida, causando escândalo, por lhe oferecer o espelho onde poderiam observar a sua caveira apodrecida. O poeta escreve:

“Não me peguem no braço!Não gosto que me peguem no braço (...)”

Aquilo que José Régio berrava no “Cântico Negro”: Não sei para onde vou / Só sei que não vou por aí”, leva-o Álvaro de Campos até às últimas consequências, agitando, pela raiz, as estruturas deformadas de uma sociedade em que a moral se tornou o absurdo, por excelência, pois não corresponde às aspirações mais profundas do Homem no século XX, condenando-o, inexoravelmente, à hipocrisia e à ilusão de felicidade. É defendendo uma postura ainda amoral (que se situa para além daquilo que é moral ou imoral), mas indo mais longe do que aqueles que haviam preconizado a ideia da “arte pela arte”, que Álvaro de Campos propõe uma estética não-aristotélica, substituindo o conceito de beleza pelo conceito de força, ao nível da emoção individual – a forma de se impor taxativamente aos outros.

A fluência jorrante, manifestada em versos tempestuosos, exprime a dor de uma solidão assumida e desejada, um tédio imenso perante a vida, um cansaço atroz perante a existência.

As elocuções febris traduzem um cepticismo sem remédio e não excluem uma saudade viva da infância, de um tempo anterior, em que o poeta sentia ter tido um espaço, para sempre perdido, porque os outros tinham desejos por ele.

Campos recusa a acção, pois não se insere no sistema social que o envolve e grita a sua diferença de uma forma pungente, reivindicando para si mesmo a condição daquele que “nasceu para isso” aquele que tem consciência de que entre o seu “eu” e os outros existe um abismo intransponível.

In O Texto em Análise

Fernando Pessoa (ortónimo)

“Escada absoluta sem degraus...Visão que se não pode ver...

A poesia de Fernando Pessoa ele-mesmo reflecte, essencialmente, a preocupação com o mistério da existência. Pessoa acredita num mundo para além do mundo das aparências, o que o leva a encarar as realidades perceptíveis pelo ser humano como irreais, como ilusão. A própria vida é, para ele, um sonho. Acredita que há uma vontade superior ao Homem, que constrói o seu destino e que tudo se harmoniza segundo uma paralógica que escapa ao ser humano. A vida na terra é encarada como uma vivência necessária, para se estabelecer uma harmonia que não temos capacidade de captar. O pressentimento da existência de outro mundo motivou a interrogação e a ausência de uma resposta, provocou a revolta que se traduziu na sua solidão existencial e social, face

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ao mistério. E a inquietação perante o mistério alia-se à constatação do paradoxo da existência – a vida e a morte.

A consciência da tragicidade da vida, a interrogação sobre o destino do Homem estão sempre presentes nos poemas de Pessoa, impregnando-os de uma nostalgia persistente, reflexo imutável do reconhecimento dos limites que caracterizam a liberdade humana e da fatalidade que atingirá o Homem, enquanto ser transitório. É, aliás, esta forma de estar no mundo que o leva a distanciar-se e a escrever:

“Assisto ao que acontece, de longe, desprendidamente, sorrindo ligeiramente das coisas que acontecem na vida.(...) Eu não tenho rancores nem ódios. Esses sentimentos pertencem àqueles que têm uma opinião, ou uma profissão, ou um objectivo na vida. Eu não tenho nada dessas cousas.” (1)e

“O meu pior mal é que não consigo nunca esquecer a minha presença metafísica na vida.” (2)

É esta sujeição à sua “presença metafísica na vida”, aliada à crença panteísta da unidade dos seres e do Cosmos que aproxima F. Pessoa dos poetas simbolistas. O símbolo é a fusão da interioridade do “eu” com os objectos, pois a interpretação do real é condicionada pela subjectividade do indivíduo e pela forma como este o percepciona (e o mistério consiste no facto de o objecto simbolizar algo que está para além dele). É como se o universo “falasse” uma linguagem, a que só os eleitos têm acesso, pela sua capacidade de decifração do símbolo.

Foi este o objectivo de F. Pessoa – a sua vida foi uma incessante procura de respostas (o que o levou a tentar encontrar no ocultismo aquilo que a religião não lhe podia facultar); a sua poesia é um caminho para, através da arte, reencontrar uma linguagem primordial, esquecida pelos homens e que o poeta acreditou que o colocaria mais perto da Verdade.

In O Texto em Análise

Pessoa ortónimo é completamente diferente de um Caeiro ou de um Reis exactamente por não expor filosofias nem normas de comportamento. Essencialmente intuitivo, caracteriza-o, no entanto, uma admirável lucidez, uma clara intervenção da inteligência. Parece haver nele a expressão espontânea das emoções, a dilacerada voz de uma alma triste e ansiosa mas a lúcida intervenção do espírito inteligente veda-lhe o caminho tradicionalmente sentimentalista da lírica portuguesa. É conhecida a afirmação em verso: “Eu simplesmente sinto/ Com a imaginação/ Não uso o coração”. Daí a inexistência do confessionismo dolente que caracteriza tantos poetas portugueses. O estilo caracteriza-se geralmente por uma certa musicalidade, uma cadência que funciona na própria estrutura significante dos poemas. Não é só a cadência rítmica, musical, aspecto da forma que está em causa na combinação dos sons, dos versos. A

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estrutura formal sugere-nos muitas vezes autênticos significados simbólicos. Ajudando geralmente a construir aquilo que à partida é inefável e indefinido. No entanto, quanto ao estilo, Fernando Pessoa ortónimo apresenta duas “maneiras”, quase dois estilos diferentes. Um de verso longo, léxico mais abstracto, estruturas sintácticas fora do comum. Outro, verso mais curto, linguagem mais simples, motivos mais concretos. No entanto, une-os a abstracção do significado, o indefinido de mensagem, a subtileza do que se diz, mas sobretudo e sempre a clara lucidez do pensamento, geralmente dorido e designado, que conduz ao tópico característico de Fernando Pessoa que é “a dor de pensar”.

Análises de Texto

Fernando Pessoa (ortónimo)

Ó sino da minha aldeia

1 - Este poema de Fernando Pessoa manifesta uma certa continuidade no que se refere à tradição lírica portuguesa: o gosto pelo popular, seja nas formas poéticas, seja nos poemas.

Vejamos o que diz respeito às formas poéticas. Trata-se de uma composição poética constituída por quatro quadras, versos de redondilha maior (Ó-si-no-da-mi-nha al-dei(a)) e rimas cruzadas (a b a b). O motivo do sino de aldeia reporta-nos também para um ambiente popular.

Ainda na sequência da tradição, aparece-nos o tema da saudade, tema essencialmente português, desde as origens da nossa literatura.

Contudo, todos estes aspectos de que o poema de Fernando Pessoa faz eco sofrem uma apropriação do poeta e tornam-se nitidamente pessoanos.

Comecemos por analisar os elementos fónicos. Naturalmente que a regularidade estrófica, métrica e rimática torna-se responsável por um certo ritmo. Ora a poesia de Fernando Pessoa vai mais longe; a exploração dos elementos fónicos atinge quase a perfeição, a suavidade musical. As aliterações ganham uma intensa expressividade, sugerindo estados inefáveis (que não podem ser expressos/traduzidos por palavras) de alma; as aliterações em t, d e p (sons oclusivos) remetem-nos directamente para o soar das badaladas dos sinos. Os sons nasais ajudam directamente a uma sensação de tristeza e dolência, principal sensação que se pretende transmitir. Tudo isto contribui para a melodia, a música dos seus versos, nítida influência do simbolismo e que Fernando pessoa segue e explora. O quiasmo presente nos dois últimos versos, a antítese que nele se verifica por um lado, a anáfora, a aliteração evidente dos /s/ tudo conduz para a verdadeira eufonia dos seus versos que tanto caracteriza a poesia de Pessoa.

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Do ponto de vista temático, apesar do motivo exterior de que o sujeito poético se serve – o sino da sua aldeia – assumir, como se afirma acima, uma continuidade da tradição no recurso a motivos populares; o sino adquire, neste poema, como na maioria da poesia, pessoana, valor simbólico. O símbolo, polissémico e inefável na sua natureza, é para os simbolistas, como o será para Fernando Pessoa, o único veículo através do qual se pressente a linguagem da natureza e do cosmos, e o seu mistério apenas se anuncia ou indicia através dos símbolos cuja decifração só os eleitos (os grandes poetas) têm acesso.

O tema, ou temas presentes, são aqueles que são típicos em Fernando Pessoa: a nostalgia dum passado distante e irreversível, mas persistente através duma memória sempre viva e actuante sobre o momento presente, atribuindo-lhe, de alguma forma, uma força atemporal e cosmogónica: a intelectualização dos sentimentos e das sensações, facto que só é possível através da intervenção da inteligência e do pensamento, que constitui, neste poeta, uma linguagem poética própria.

O processo é típico em Fernando Pessoa: apresenta-se o motivo exterior que é de imediato interiorizado pelo sujeito lírico, assumindo-se, assim, aquele como mero pretexto para a exposição/exploração do sentir/pensar do próprio sujeito poético. Aliás, observando bem, o motivo exterior apresentado não é um motivo objectivo na sua essência. Trata-se, ao invés, dum objecto já subjectivado: “Ó sino da minha aldeia / Dolente na tarde calma”. A apóstrofe prova desde logo que, tratando-se duma invocação constitui já um produto da memória alterado na sua essencialidade objectiva para se tornar um instrumento carregado, “vestido”, como diria Alberto Caeiro, da mentira que existe no próprio ser humano e que transcende a verdade pura dos objectos.

Cada badalada do sino “soa dentro da (sua) alma”, exactamente porque não se trata dum “soar” sensorial, mas interiorizado, sentido profundamente, espiritualmente: “E é tão lento o teu soar / Tão como triste da vida”. É a essência subjectiva e profunda do sujeito que é transferida para aquilo que é percepcionado. Mas é, no entanto, esta percepção sensorial que acaba por ser, eventualmente, posta em causa. O sino da aldeia é um motivo que evoca um passado, contudo, tange perto, sempre que o sujeito passa; sendo como um sonho que soa na alma distante. É esta fusão, este paradoxo da coexistência e concomitância do passado e do presente que nos faz sugerir que o motivo exterior, pretensamente objectivo, do sino não passa dum sonho realmente, dum símbolo de algo muito mais profundo, como a presença persistente dum passado que insiste em viver no presente, condicionando e enformando a existência do sujeito e que se caracteriza exactamente pela saudade triste mas calma (“tarde calma”) dum tempo ido, mas, paradoxalmente, sentido e resistindo no presente. Daí o oximoro patente nos versos: “Que já a primeira pancada / Tem o som de repetida.” Parece tratar-se de uma capacidade, dum conhecimento global, intuitivo, que vai para além do directamente percepcionado. O sensorial é subestimado a favor dum sentido mais profundo, captado pelos movimentos imperceptíveis da consciência; dum conhecimento que ultrapassa a própria cognição, mergulhando nos espaços incognoscíveis e inefáveis da alma. Esta sim, o único lugar humano, trampolim para o mistério da existência inacessível ao conhecimento humano.

Podemos dizer, apenas para concluir esta pequena abordagem dum dos poemas mais bonitos de Fernando Pessoa, que se trata de um texto que pretende materializar poeticamente a sua melancólica mas pertinaz e incessante consciência da

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inacessibilidade do conhecimento. E é esta consciência que, dramaticamente, o leva a viver dia-a-dia a angustiada tristeza do sentido da efemeridade e transitoriedade da vida. As pancadas vibrantes do sino, que podem traduzir simbolicamente a exuberância da vida, repercutem a consciência do seu próprio paradoxo: o absurdo duma vida que é para morrer. O passado fenece, distancia-se cada vez mais, aumentando a saudade que é a consciência tragicamente sentida da aproximação da morte: “Sinto mais longe o passado / Sinto a saudade, mais perto.”

Pobre velha música

1- Analisa o poema quanto ao tema e o seu desenvolvimento.

O poema trata um dos temas mais queridos de Fernando Pessoa – a nostalgia da infância. O tema desenvolve-se, ao longo do poema, em duas grandes partes: uma primeira composta pelas duas primeiras quadras; e uma segunda correspondente à terceira quadra. Como em muitos outros poemas seus, o poeta começa por referir-se a um motivo exterior, neste caso, a “pobre velha música”, para em seguida , o interiorizar, tornando-se, assim, mero pretexto para a reflexão, para a intelectualização do sentimento provado.

Realmente, o primeiro verso constitui uma apóstrofe à música. Contudo, a dupla adjectivação nele presente, anteposto ao nome, imediatamente institui uma relação afectiva relativamente à música, facto que é absolutamente confirmado nos três versos seguintes, pois o sujeito poético afirma o sentimento de agrado e a emoção que a música nele provoca (“Enche-se de lágrimas/ Meu olhar parado.”). A segunda estrofe contém a explicação do fenómeno apresentado anteriormente: é porque ouvir a música recorda “outro ouvir”. Contudo, de imediato e perfeitamente paradoxal, surge a afirmação de que não sabe se terá ouvido essa música na sua infância. Mas certo é que a música lhe recorda a infância. Trata-se, assim, da apresentação de um motivo exterior que conduz o sujeito lírico à recordação da sua infância.

A segunda parte desprende-se completamente da anterior pela ausência de referência à música. Esta fora apenas o pretexto para a recordação da sua infância. Do estado inicial de comoção profunda, passa o sujeito a um estado de emoção mais forte ainda: “Com que ânsia tão raiva/ Quero aquele outrora.”. Do pretenso diálogo que estabelecera com a música, passa, neta segunda parte, à pura efusão lírica.

Todavia, os dois últimos versos fecham quase circularmente o poema, pois o sujeito poético, questionando-se sobre se fora feliz no tempo da infância e responde: “Fui-o outrora agora.”

Tudo o que faço ou medito

Para compreendermos melhor este poema vale a pena citar o que o próprio Pessoa afirma noutro passo: «Ficarei o Inferno de ser EU, a Limitação Absoluta,

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Expulsão-ser do Universo longínquo! Ficarei nem Deus, nem homem, nem mundo, mero vácuo-pessoa, infinito de Nada consciente, pavor sem nome, exilado do próprio mistério, do próprio mistério, da própria vida. Habitarei eternamente o deserto morto de mim, erro abstracto da criação que me deixou atrás. Arderá em mim eternamente, inutilmente, a ânsia (estéril) do regressar a ser».

É evidente a mesma dor, a mesma angústia que ganha foros de irónico auto- -sarcasmo, quer num, quer noutro enunciado.

A ânsia do sujeito poético é tão grande, tão total essa avidez de Absoluto, de perfeição, que por mais perfeccionista que seja na realização dos seus actos (“faço ou medito”) fica sempre na metade. É flagrante a imensa distância a que fica do “infinito” por que anseia (“Querendo, quero o infinito”). Os actos, a realização prática do seu querer fica completamente aquém do seu desejo que é Ambição de Absoluto. Deste modo presenciamos uma oposição total entre o «querer» e o «fazer». Este, a acção, afirma-se assim, pela negativa («Fazendo nada é verdade»), porque apenas o infinito é verdade, apenas ele é o verdadeiro ser por que o sujeito aspira, qualquer coisa que o não seja, não é essa verdade: é a ausência do ser.

É deste confronto É deste confronto terrível que nasce «o nojo» de si a frustração insuportável «ao olhar para o que (faz)». Trata-se da terrível consciência da condição humana, limitada na sua essência, e tão bem patente no segundo texto. A frustração adquire a dimensão atroz da eternidade, porque o sujeito tem consciência que ao absoluto não se chegará nunca: «Ficarei (...) infinito de Nada consciente»; «Habitarei eternamente o deserto morto de mim.» Podemos tomar como equivalente a metáfora «mar de sargaço» com que o poeta se identifica na sua materialidade, uma completa oposição à «alma» «lúcida e rica» que dentro dele se anuncia e que é responsável pelos seus anseios e pela sua vontade. A alma, visionária, «vê» além da sua material condição: a alma é a «reminiscência» do Absoluto, pressentido, adivinhado que se insinua inconscientemente: esse «mar de além...» inalcançável, inatingível, inexorável na sua longínqua distância.

E podemos vislumbrar neste «mar de além» a teoria platónica da reminiscência («Arderá em mim eternamente, inutilmente a ânsia (estéril) do regresso a ser». O Infinito, nesta perspectiva, já terá, algures num tempo e num espaço, sido «vivenciado» pelo sujeito que ambiciona esse «regresso» a essa vivência, a essa pré-existência.

Nesta linha de ideias os «lentos fragmentos de um mar de além...» serão o ténue ponto de «contacto(?)» com esse «mar». O Eu, um mar morto, «um mar de sargaço» presente à sua tona («um mar onde bóiam lentos/fragmentos (...)» subtis pontes para uma viagem que fica para além, mas da qual não possui consciência, nem conhecimento nem nunca o possuirá. Esses «fragmentos», presença insinuante e iminente de algo que está para além, apenas se pressente («bóiam») na sua inconsistência; são «fragmentos», e naturalmente «lentos» como uma permanência que actua, que, dolorosamente, persiste, inconscientemente, mas cuja intuição garante essa mesma presença: por isso o paradoxo final «vontades ou pensamentos?/Não o sei e sei-o bem», confirmam essa consciência/inconsciência, esse não saber e esse intuir que enformam a dualidade humana do sujeito poético.

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É brando o dia, brando o vento.É brando o sol e brando o céu.Assim fosse meu pensamento!Assim fosse eu, assim fosse eu!

Mas entre mim e as brandas glóriasDeste céu limpo e este ar sem mimIntervêm sonhos e memórias...Ser eu assim, ser eu assim!

Ah, o mundo é quanto nós trazemos.Existe tudo quanto existo.Há porque vemos.E tudo é isto, tudo é isto!

1- Identifica o tema e o modo como o assunto se desenvolve ao longo do enunciado poético.

Resposta:O poema apresenta e desenvolve um dos temas mais caros e recorrentes na

poesia de Fernando Pessoa ortónimo que é o tema da condição humana ou a problemática do ser.

O tema desenvolve-se, ao longo do poema, em três partes, pois cada estrofe apresenta um assunto específico. Na primeira estrofe, o sujeito poético expressa o desejo de ser como o real exterior a si próprio: o sujeito diz-nos ambicionar ser a mesma brandura que caracteriza o dia, o vento, o sol e o céu. Na segunda parte, já o sujeito lírico nos constata essa mesma impossibilidade. A adversativa com que se abre a segunda estrofe evidencia, exactamente, a oposição que se realiza entre o desejo de ser e a realidade desse mesmo ser: “Mas entre mim...” e “ser eu assim, (...)!” O sujeito lírico apresenta ainda o motivo desse facto, ou seja, os factores que se manifestam responsáveis pela impossibilidade da concretização da ambição que manifestara na primeira estrofe: são eles os sonhos e as memórias que intervêm entre ele e o exterior. Finalmente, na última estrofe, através de afirmações de carácter axiomático, o sujeito poético constata a verdadeira condição do ser: tudo o que existe está no ser, isto é, a existência que o sujeito vivencia é a única realidade, porque tudo existe dentro do ser: “Existe tudo quanto existo.” O que prova que nada há a fazer, pois o ser determina e condiciona toda a existência: “E tudo é isto, tudo é isto!” Note-se a passagem para um discurso no plural, abarcando agora a verdadeira condição humana.

2- Identifica os recursos estilísticos presentes na primeira estrofe e interpreta os efeitos de sentido por eles produzidos.

Resposta:O recurso estilístico mais evidente ao longo dos quatro versos que compõem a

primeira estrofe é o paralelismo anafórico. A estrofe é composta por duas partes, ou

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seja, por dois pares de versos. O primeiro par de versos constitui o primeiro termo de uma comparação; e o 2º par, o segundo termo dessa comparação.

O primeiro par de versos refere-se ao real exterior ao sujeito. Esta referência é composta por quatro frases simples e curtas, paralelas do ponto de vista sintáctico: a estrutura é a mesma em cada uma delas (Predicado Nominal e Sujeito com omissão do verbo na segunda e quarta frases).

O segundo par de versos é composto por três frases também paralelas em que a terceira é a repetição da segunda. A repetição anafórica nos dois primeiros versos acentua a qualidade que caracteriza o real exterior ao sujeito lírico: a brandura. Todos os elementos da natureza se caracterizam por essa mesma brandura. E é essa mesma qualidade que ele pretendia para seu pensamento, para si próprio; mas, contudo, não passa de uma pretensão expressa exactamente pelo modo conjuntivo da forma verbal “fosse”. A repetição desse desejo acentua esse desejo mesmo, e a nostálgica expressão duma ambição que se sabe impossível vir a possuir ou realizar.

3- “Assim fosse meu pensamento! / Assim fosse eu, assim fosse eu!”Conhecendo a vida de pensamento que caracteriza Fernando Pessoa ortónimo, comente o paralelismo gradativo dos dois versos acima.

Resposta: Sabemos como o poeta Fernando Pessoa vive uma vida de pensamento. Toda a

sua experiência de ser humano se reduz à actividade intelectual e cognitiva. Assim o ser inteiro de Pessoa é o seu pensamento. Naturalmente, então, a substituição do nome “pensamento” que ocorreu no primeiro verso citado pelo pronome “eu” que funciona como o seu sinónimo directo e mais correcto. (Não se trata de uma substituição do tipo do sinédoque ou da metonímia, trata-se, com rigor, duma substituição no campo da sinonímia). Lembremo-nos de outros versos de Pessoa: “O que em mim sente/’stá pensando.” A gradação verifica-se com a intenção de provar que o pensamento é o verdadeiro ser, o verdadeiro todo em Fernando Pessoa.

4- Interpreta os sentimentos expressos em cada um dos últimos versos de cada estrofe e descreve o sentido da gradação que essa sequência paralelística constrói.

Resposta: Os últimos versos de cada estrofe constituem no contexto global do poema uma

gradação de sentido: “Assim fosse eu! // Ser eu assim, ser eu assim! // E tudo é isto, tudo é isto!

Esta gradação apresenta a seguinte evolução: primeiro o sujeito poético apresenta o seu desejo, a sua ambição; depois, com nostálgica melancolia, expressa a sua verdadeira e pessoal realidade; finalmente, afirma-se na geral condição humana. Parte-se, assim, do individual para o geral e da expressão de sentimentos para a constatação duma realidade essencial.

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5- Caracteriza, a partir de dados textuais a relação que o sujeito poético estabelece entre o ser e o mundo.

Resposta:A relação que o sujeito poético estabelece entre o ser e o mundo é uma relação

de identificação: “Ah, o mundo é que nós trazemos”. O mundo está dentro de cada um de nós. O que captamos do mundo – o que vemos – é, para nós, o mundo. A capacidade de ver de cada um de nós determina a capacidade de construção desse mesmo mundo. O ser condiciona e determina o mundo. Tudo, afinal o mundo inteiro é “isto”, é o que o ser conseguir possuir desse mundo. E assim, a existência do mundo é igual à existência do ser. O mundo é o ser.

O Menino de sua mãe

1. Ao longo do poema, alternam dois espaços, duas realidades, explicite-os o melhor

que puder.

2. Explore a expressividade linguística das expressões:2.1. “Fita com olhar langue / E cego os céus perdidos”;2.2. “Tão jovem! Que jovem era! / (Agora que idade tem?)”;2.3. “Está inteira / E boa a cigarreira, / Ele é que já não serve.”

3. “Malhas que o Império tece”Trata-se de uma expressão que sintetiza todo o poema. Explique.

1. Ao longo do poema alternam dois espaços que apresentam duas realidades completamente diferentes: um é o espaço onde acabou de morrer o jovem soldado (“No plaino abandonado…”); outro é o espaço familiar, onde reza por ele a sua família (“Lá longe, em casa, há a prece.”) Naturalmente que se tratam de duas realidades completamente opostas: “No plaino abandonado”, como o próprio adjectivo indica, domina o abandono, a morte (“Jaz morto”), a consumação da desgraça: “De balas trespassado”; “De braços estendidos”; “exangue”; “Fita com olhar langue / E cego os céus perdidos.”“Lá longe, em casa” há ainda “a prece”, a esperança: no fervor da oração, o optimismo impera: “Que volte cedo e bem!”

2.1. O que sobressai destes dois versos é o olhar. Para isso contribui a adjectivação expressiva “langue” e “cego” e o verbo “fitar”. Note-se que os três vocábulos apontam para a mesma ideia, intensificando-a, por isso: a ideia de morte, falecimento. “Fitar” é olhar de forma parada, imóvel. Este “fitar” é realizado através de um olhar “langue” e “cego”, porque já não existe vida nele: olhar parado, inútil. Daí os céus, “perdidos”, porque já não são observáveis através deste “olhar cego”. Os céus podem significar, metonimicamente, toda a vida real que se perdeu neste momento, com a morte.

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2.2. Nestes versos, pretende-se realçar, por um lado, a juventude do soldado morto, e, por outro, a ausência do real, a ausência da própria juventude, ou melhor, da própria idade. As duas exclamações seguidas (“Tão jovem! Que jovem era!) pretendem realçar a sua juventude e provocar uma certa revolta pela morte prematura e, consequentemente, pelas circunstâncias dessa mesma morte. “Agora que idade tem?” é uma interrogação retórica, mas que acaba, neste contexto poético, por funcionar como uma interrogação filosófica, uma vez que se questiona o que é inacessível ao conhecimento humano: os mistérios da morte e da vida depois da morte. De realçar também a oposição de vida / morte ou passado / presente através das formas verbais em tempos diferentes (era / tem) que estão posicionado em situação final de verso. Esta oposição, que acaba por constituir uma antítese realça exactamente as duas realidades opostas: a jovem vida e a morte, mistério que continua a afigurar-se-nos insondável.

2.3. Estes versos pretendem realçar a morte do jovem soldado por oposição ao préstimo da cigarreira. O soldado que é humano e tinha vida própria morreu. A cigarreira que é um objecto inanimado ainda “presta”. Há uma espécie de uma amarga ironia: veja-se que é o soldado que já não “serve” (verbo que dá conta da serventia dos objectos inanimados) Ou seja, se ele não fosse ser humano , talvez ainda “servisse”. Note-se, ainda, a inversão do sujeito no primeiro verso, pondo em situação de realce o estado da cigarreira: “inteira / e boa”; “Ele é que já não presta”. Verifique-se a ênfase a que também é sujeito o pronome pessoal “Ele” através das partículas enfáticas “é que”.

Todas estas características contribuem para realçar a oposição que se estabelece entre o soldado e a cigarreira: as figuras de estilo fundamentais são, portanto, a comparação e a antítese.

“Ela canta, pobre ceifeira...”

Trata-se de um poema assinado por Fernando Pessoa ortónimo. É composto por seis quadras, estrutura estrófica tão do gosto deste poeta, já que Fernando Pessoa ortónimo se deixa seduzir pelas estruturas poéticas (a rima cruzada por ex) e motivos populares, tais como o motivo da ceifeira, cantando no seu cenário campestre.

Relativamente à estrutura interna, podemos dividir o poema em duas partes: a primeira, composta pelas três primeiras quadras e a segunda, constituída pelas as outras três. É notória esta bipartição, na medida em que, na primeira parte, o sujeito poético se refere a um motivo exterior – a uma ceifeira e ao canto a que se entrega enquanto trabalha nas suas lides do campo: “Ela canta, pobre ceifeira” e “Canta e ceifa”; enquanto que na segunda é à interioridade do sujeito poético que se faz referência: “O que em mim sente ´stá pensando” e “Ah, poder ser tu, sendo eu!”

Contudo, esta divisão em duas partes deve ser completada com uma subdivisão da segunda parte. Se verificarmos, esta é realmente subdividida em duas subpartes: uma em que o sujeito poético se dirige directamente à ceifeira, em diálogo com ela: “Derrama no meu coração / A tua incerta voz ondeando!”; outra, a última, em que o sujeito poético já esquecido talvez da visão exterior e, cortando a sua relação com ela, se entrega completamente a si mesmo e aos seus pensamentos: agora em apóstrofes directas ao céu, ao campo, à canção, o sujeito especula sobre o peso da ciência e o mistério da vida, oferecendo-se de uma forma quase panteísta ao novo destinatário.

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Podemos pensar, então, que o sujeito lírico se serve do motivo exterior da ceifeira e do seu canto alegre e ingénuo para o interiorizar, problematizando-o intelectualmente e apresentar o seu próprio pensamento. Vejamos então melhor de que pensamento se trata.

A ceifeira que canta é uma realidade exterior, contudo, é apresentada através da subjectividade lírica do olhar que a observa: “pobre ceifeira”, “julgando-se feliz talvez”, “e a sua voz, cheia / De alegre e anónima viuvez.” Não há dúvida que todo o vocabulário utilizado remete para um retrato de índole subjectivista, filtrado, portanto, por um olhar exterior: o sujeito arroga-se o direito de interpretação do que observa – a alegria da ceifeira não é um sentimento de direito, não é real nem interior, ela apenas se julga feliz, segundo o sujeito lírico não o será. A expressão da comiseração utilizada – “pobre ceifeira” – torna-se até ambígua: o adjectivo pretenderá dar conta da sua vida difícil de trabalho tal como adiante se avança: “Na sua voz há o campo e a lida”, ou, antes, pretenderá traduzir a própria ingenuidade, pobreza de espírito que a caracteriza, pois ela não tem consciência plena do que é a vida nem das razões para se cantar: “E canta como se tivesse / Mais razões p´ra cantar que a vida. // Ah, canta, canta sem razão!”. A própria referência à “anónima viuvez” atribui à ceifeira uma certa indefinição, uma certa ambiguidade, mas, sobretudo, um nítido estado de abandono. A sua voz “ondula” e tem “curvas” como se perdida embora se entregue a si própria num corte de relação com tudo o que a rodeia. Daí o seu canto. Daí o sujeito lírico comentar que “ouvi-la alegra e entristece”. Alegra por um lado , pois que o canto se associa geralmente à alegria, ao prazer, à sensualidade dos sentidos; todavia entristece, já que não havendo, segundo o autor, razão para o canto da ceifeira, este radica apenas na inconsciência que a tipifica. E, sem a consciência, o ser humano está amputado de uma componente essencial: a consciência, a razão, a ciência, o pensamento fazem parte integrante da humanidade do ser e são, por isso, imprescindíveis. Por isso “a pobre ceifeira” inconsciente, entristece o sujeito lírico e torna-se móbil para a intelectualização do seu próprio sofrimento: “O que em mim sente está pensando”. O sujeito pensante bem deseja livrar-se do sofrimento que a razão acarreta, mas debalde: “Ah, poder ser tu, sendo eu! Ter a tua alegre inconsciência. E a consciência disso!” A alegria é, deste modo, incompatível com a consciência, visto que o pensamento traz, irreprimivelmente, sofrimento. E o lamento do sujeito estende-se, agora, a outros planos – aos da indefinição, do intangível: “Ó céu! / Ó campo! /Ó canção! A ciência // Pesa tanto e a vida é tão breve!” Esta antítese pretende talvez, acentuar o paradoxo da vida - incompreensão da vida. E é esta incompreensão, esta incapacidade que caracterizam o pensamento e a alma humana que, sedenta de absoluto, não cessa de buscar, que produz o sentimento. Daí o desejo do “eu” lírico se transformar em “sombra leve”, pois o pensamento dói e apenas dói, nunca almejando o que ambiciona.

Não há dúvida que este poema de Fernando Pessoa trata um tema caríssimo a este poeta e que é a “dor de pensar” tão recorrente na sua poesia. Aparentemente de forma simples - através de uma linguagem quase familiar, de um motivo e estruturas populares,- Fernando Pessoa trata um tema profundo, dos mais dolorosos da sua poesia.

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Alberto Caeiro

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Olá, guardador de rebanhos

1 – Através deste poema, expõem-se duas teorias filosóficas. Explicite-as.

Este poema desenvolve-se sob a estrutura de um diálogo em que participam dois interlocutores. Através do sistema pergunta – resposta, cada um destes interlocutores expõe a sua própria filosofia.

O interlocutor número um pergunta ao outro o que lhe diz o vento. E obtém, como resposta, o vento é o vento e que apenas passa e já passara antes e que há-de passar depois. Ou seja, o “guardador de rebanhos” considera que, para além do vento, que é simplesmente um elemento da Natureza, nada há: o vento passa apenas e nada há mais do que isso.

Entretanto, é a vez do “guardador de rebanhos” colocar a mesma questão ao seu interlocutor. E este respondeu-lhe de modo completamente diferente; para ele, já o vento lhe diz muito mais: “Fala-me de muitas outras coisas. / De memórias e de saudades / E de coisas que nunca foram.” Ora para esta personagem, um simples elemento da Natureza aparece dotado de capacidades completamente diferentes, diria transcendentes a esse mesmo elemento real, pois têm o poder de fazer sugerir, a sujeito observador, uma série de actividades intelectuais, uma série de sentimentos, uma série de sonhos.

O “guardador de rebanhos” responde, por último, acusando o seu parceiro que apenas se ouvira a si próprio e não ao vento que lhe era exterior; que aquilo que tinha ouvido, não sendo, portanto, o vento, só pode ter sido algo que é mentira, deturpação da realidade. E esta deturpação da realidade, por parte do próprio sujeito civilizado, que possui “o vício” de interpretar, de forma idealista, a realidade exterior, inventando-a, acrescentando-lhe qualidades que estão na sua imaginação apenas e não no objecto em si, altera a realidade verdadeira, só pode ser mentira.

Temos, então, um dos interlocutores a defender uma teoria materialista, através da qual se diz que os objectos reais só valem pelo que são, pelo que nos é dado percepcionar através das sensações; enquanto para o outro, a Natureza e os seus elementos sugerem e suscitam, no sujeito observador, uma série de actividades intelectuais e sentimentais que ultrapassam e transcendem a simplicidade material do objecto percepcionado. Trata-se, portanto, de uma perspectiva filosófica já idealista ou espiritualista da Natureza.

_____________________________________________________________________XXXVI

E há poetas que são artistasE trabalham nos seus versosComo um carpinteiro nas tábuas!...

Que triste não saber florir!

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Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muroE ver se está bem, e tirar se não está!...

Quando a única casa artística é a Terra todaQue varia e está sempre bem e é sempre a mesma.

Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira.E olho para as flores e sorrio...Não sei se elas me compreendemNem se eu as compreendo a elas,Mas sei que a verdade está nelas e em mimE na nossa comum divindadeDe nos deixarmos ir e viver pela Terra E levar ao colo pelas Estações contentesE deixar que o vento cante para adormecermos E não termos sonhos no nosso sono.

Considerado “ o mestre” por Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, apesar das limitadas bases literárias, demonstra possuir uma essência poética inata. Todas as suas obras reflectem uma involuntariedade e espontaneidade poéticas, que através de uma escrita simples nos transmitem a sua relação íntima de cumplicidade, identificação, apego e admiração pela natureza, pelo mundo exterior e por tudo o que o rodeia.

O poema acima transcrito, “ E há poetas que são artistas”, retrata-nos precisamente essa característica fundamental de escrita para Alberto Caeiro que é exposta pelo próprio poeta.

Formalmente o poema não pertence a qualquer tipo de forma regular, é escrito de forma livre e sem preocupações métricas, rítmicas ou formais, sendo também esta uma das características da poesia de Alberto Caeiro, que procura ser o mais natural possível, escrevendo de acordo com o próprio fluxo do seu pensamento.

Nas duas primeiras estrofes, o poeta dá-nos a conhecer um grupo particular de autores poéticos, aqueles que escrevem as suas obras de forma trabalhada e tratada, preocupados com a organização e forma de escrita, lapidando e desbastando cada verso de maneira a torná-lo uma autêntica obra de arte: “há poetas que são artistas / E trabalham nos seus versos / Como carpinteiros nas tábuas!...”. Para o poeta, esta é uma forma de criação poética infeliz “Que triste não saber florir!”, que triste para o autor não conseguir escrever naturalmente, à medida que os versos vão surgindo, sem censuras, sem repreensão, sem transformar ou modificar aquilo que naturalmente vai emergindo, sem receios ou preocupações em relação ao produto final, que, para estes poetas por ser construído e edificado “como quem constrói um muru”, transforma-se em algo artificial e mesmo impessoal.

Na estrofe seguinte, Alberto Caeiro parece deitar abaixo todo e qualquer esforço dos poetas em conseguir produzir arte, pois apenas a natureza, a Terra em si, é possuidora de tal talento: “a única casa artística é a Terra toda”; a capacidade da arte pura, variável e ao mesmo tempo imutável, apenas pertence à Mãe Natureza, ao mundo natural.

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Assim, Alberto Caeiro procura integrar-se nessa natureza, e fazer parte desse ciclo de vida, sem modificar ou alterar qualquer coisa relacionado com o natural, ou mesmo, sem pensar nisso, apenas deixar-se embalar e levar pela natureza e pelo mundo que o rodeia “De nos deixarmos ir e viver pela Terra / E levar ao colo pelas Estações contentes / E deixar que o vento cante para adormecermos”, sem preocupações de lógica e tempo, evitando o uso da razão, que acabaria por resultar em uma fortaleza em torno da naturalidade, impedindo que a verdadeira pureza e verdade, características da Terra e da Natureza, pudessem ser atingidas.

Diana Silva – Aluna do 12º ano

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O que nós vemos das coisas são as coisas

1- O texto desenvolve-se em dois momentos lógicos.1.1 – Determine-os, referindo a ideia principal de cada um deles.

Resposta:O texto desenvolve-se em dois momentos lógicos: um primeiro momento

composto pelas duas primeiras estrofes; e um segundo correspondendo a toda a última estrofe.

No primeiro momento, ou primeira parte, o sujeito lírico apresenta-nos um ponto de vista da realidade, ou melhor, uma filosofia do mundo. Realmente ao dizer que “o que nós vemos das coisas são as coisas”, o sujeito poético defende uma teoria materialista, sensacionista, que afirma que as coisas são essencialmente e integralmente aquilo que aparentam ser e são directamente como são percepcionadas pelos nossos sentidos: “Porque é que ver e ouvir seria iludirmo-nos / Se ver e ouvir são ver e ouvir?” As coisas são, assim, o que captamos delas. As coisas são para se ver e não para se pensar nelas. E neste sentido, o sujeito lírico colmata a sua exposição, fazendo notar que cada acto humano deve corresponder à sua essencialidade, ou seja,: não se deve pensar quando se está a ver nem ver quando se está a pensar.

O segundo momento apresenta as dificuldades e as implicações que decorrem da teoria inicialmente apresentada. A conjunção adversativa evidencia, exactamente, a oposição entre as duas partes que constituem o poema. Uma coisa é a teoria, outra, a prática a que ela obriga. “Mas isso (...) exige um estudo profundo / Uma aprendizagem de desaprender.” Realmente, o homem necessita de regressar a um estado inicial de “pureza”, de “infância”; regressar afinal ao estado da inocência, ao tempo de antes da aprendizagem e, para isso, terá de se esforçar por “despir-se” das vestes com que “ocultou” e “ofuscou” a alma original, substituindo o verdadeiramente existente por ideias e palavras e metáforas que apenas escondem as coisas verdadeiras.

1.2 – Refira e classifique morfologicamente as palavras que estabelecem a ligação entre esses dois momentos.

Resposta:

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As palavras que estabelecem a ligação entra esses dois momentos são a conjunção adversativa. “Mas” e o pronome demonstrativo neutro “isso”. A conjunção, como é sua função sintáctica, relaciona as duas partes do texto por uma ideia de oposição, que, neste caso, evidencia a dificuldade que pode obstar à realização do que se refere na primeira parte (o essencial é saber ver); o pronome “isso” é utilizado para representar e substituir-se, na sua frase, ao que fora enunciado na primeira parte, especificamente na segunda estrofe. A função do pronome é, como sabemos, substituir o nome; neste caso concreto, substituir as orações substantivas com função de nome predicativo do sujeito que constituem praticamente toda a segunda estrofe (“(...) saber ver, / .../ Nem ver quando se pensa”)

2- Conseguir a “simplicidade divina de ser todo só meu exterior” implica um difícil processo de aprendizagem.

2.1. Refira e interprete os elementos textuais que traduzem essa dificuldade.

Resposta:O sujeito poético diz-nos expressamente que nós “trazemos a alma vestida!” Ora

sendo a alma imaterial, espiritual, não se compadece este facto com a materialidade do vestuário. Significando, naturalmente, esta metáfora o absurdo da nossa vida: vestir o que se não pode vestir; ou seja, obstar à nossa pureza e inocência primitivas. O vestuário, fruto da civilização, significa, assim, o artificial, o produzido, aquilo que o homem foi acrescentando ao longo dos tempos e, neste caso, adulterando a nossa verdadeira essência inicial.

Contudo, porque ao longo dos tempos fomos sendo fruto da civilização e do conhecimento, fomos deixando esquecer essa nossa originalidade, esse nosso estado primordial. A aprendizagem constante obrigou-nos a deixar submergir essa essência primitiva e a assumirmos conceitos e preconceitos, visões e saberes sobre o mundo, sobre as coisas e sobre nós mesmos, mas que, todavia, desvirtuando-nos, nos afastou para sempre do que verdadeiramente ainda temos, obrigatoriamente, de nós próprios. Por isso, o sujeito poético refere a exigência dum “estudo profundo”, pois será mais fácil aprender coisas novas do que “despirmo-nos” de toda a aprendizagem que fomos realizando ao longo da nossa existência como humanidade e que neste momento nos tornou outros daquilo de que deveríamos de ser ou manter ser.// E é assim que teremos que realizar a “aprendizagem de desaprender”; e esta é realmente muito difícil, passa a metáfora, seria qualquer coisa como despirmo-nos, num dia de frio, procurando aprender o estado do corpo em que ele mesmo não sentisse esse frio.

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“Penso e escrevo como as flores têm cor(...)Olho e comovo-me (...)

E a minha poesia é natural como o levantar-se o vento.”

Estes versos de Alberto Caeiro intentam dar-nos a ideia de que o poeta pensa e escreve duma forma perfeitamente natural, tal como natural é o facto de as flores terem cor.

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Sabemos como este heterónimo de Fernando Pessoa afirma, através dos poemas, toda a sua atitude anti-metafísica. Desde de sempre, o homem se afirmou como um ser susceptível aos mistérios da vida; propenso à imaginação e atitude religiosa; esquadrinhador, enfim de filosofias e metafísicas. Ora a proposta de Alberto Caeiro é a de aceitarmos a vida e as formas da sua realidade do modo mais natural que nos for possível: devemos, assim, segundo o poeta, observar a natureza: no sentido em a olhamos e no sentido em que a seguimos, imitando-a, sendo, então, dignos dela, “nossa mãe”.

Toda a atitude humana mais intelectual, mais racional como pensar e escrever (poesia) devem aproximar-se o quanto possível da natureza. “Olho e comovo-me” diz-se nestes versos. A comoção é, assim, natural, directa, sem interferência do raciocínio, do pensamento que, forçosamente, a alterariam, porque haveria uma sobreposição, uma interferência sobre o olhar que, esse sim, é natural. O alerta de Caeiro manifesta-se na necessidade de evitarmos o que não é natural, mas, passo a expressão, “fabricado”. Natural é, pois, olharmos o real, não substituí-lo pelo não-real, produzido, seja pela imaginação, seja pelo raciocínio.

Se o sujeito poético se afirma como poeta (“escrevo”, “a minha poesia”)e se afirma cumprir as suas actividades de forma tão natural como “levantar-se o vento”, pretende, obviamente anunciar um modo de vida, uma postura perante a vida. A sua vida é a poesia, a de cada um dos leitores será outra coisa diferente. No entanto o apelo mantém--se: a nossa vida e as nossas atitudes devem vestir-se da naturalidade das coisas da natureza. Tratar-se-á de uma nova filosofia? Trata-se, em verdade, no mínimo, de um novo modo de encarar a vida. A nossa vida, realmente, cada vez mais distante da natureza, da simplicidade.

Pois é, caro leitor, deixe-se de imaginar e, quem sabe mesmo de criar problemas e confusões talvez desnecessárias; aceitemos melhor a vida; vivamo-la o mais integramente que for possível, de acordo com as suas. A nossa cabeça, sobrepondo-se ao real, tem sido realmente a responsável por muitos estranhos problemas da nossa vida, e do nosso mundo.

XIV

Não me importo com as rimas

Alberto Caeiro, ao dizer-nos que “Não [se importa] com as rimas. Raras vezes / Há duas árvores iguais”, está, ao fim e ao cabo, a transmitir-nos a sua teoria geral, a sua anti-metafísica.

Comente esta afirmação.

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Há versos de Alberto Caeiro que funcionam como autênticas ilustrações da sua atitude poética. Veja-se, por exemplo, a citação que o próprio David Mourão Ferreira faz: “ Há metafísica bastante em não pensar em nada”. Se analisarmos bem estas duas citações da poesia de Caeiro, verificamos que ambas apontam para a mesma filosofia: Alberto Caeiro recusa o pensamento (“... não pensar em nada”; “não me importo com as rimas”). Não se importar com as rimas é ou não a mesma coisa que recusar o pensamento? Fazer rimar duas palavras não é fazer recurso de uma actividade puramente intelectual? Parece-me realmente que é.

O pensamento é, segundo Alberto Caeiro, como sabemos, uma doença; porque manifesta a perda da inocência – “E a única inocência é não pensar...”. Só a inocência é natural. Todo o pensamento aparece, assim, como uma “mania” do homem civilizado, aquele que perdeu a relação com a Natureza: “Acho tão natural que não se pense / Que me ponho a rir as vezes, sozinho, / Não sei bem de quê, mas é qualquer coisa / Que tem que ver com haver gente que pensa...”.

Como vimos, para Caeiro, pensar é uma traição à Natureza: “O espelho reflecte certo porque não pensa. / Pensar é essencialmente errar.” Daí que a única solução seja, para Caeiro, sentir a Natureza através dos sentidos: “Pensar uma flor é vê-la e cheira-la / E comer um fruto é saber-lhe o sentido”.

Ora, voltando à nossa primeira citação, percebemos a razão por que Caeiro não pretende fazer rimas. As rimas não existem na Natureza : são fruto da imaginação do homem, pois tal como diz o poeta “várias vezes / Há duas árvores iguais uma ao lado da outra.” Então, porque contraria a Natureza, se Alberto Caeiro se afirma um poeta de Natureza? A Natureza deve ser pura e simplesmente percepcionada pelos sentidos, aquilo que alguns estudiosos de Caeiro chamam o Panteísmo sensualista do poeta.

Realmente, creio que a minha afirmação inicial pôde ser confirmada. Algumas afirmações de Caeiro valem pela sua filosofia toda: a sua constante rejeição da Metafísica, a sua obsessiva rejeição do pensamento. Pensar em rimas é tudo menos uma atitude natural.

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"Isto é o que/hoje é,E como hoje por enquanto é tudo, isto é tudo"

"A recordação é uma traição à Natureza. Porque a Natureza de ontem não é a Natureza. O que foi não é nada e lembrar é não ver."

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1- Comente estes versos de Caeiro, explorando a associação directa que se estabelece entre os tópicos realismo/ tempo passado e presente.

R: Os dois excertos constituem realmente uma paráfrase. Se no primeiro excerto se refere o tempo presente, no segundo, anuncia-se o tempo do passado, já que recordar implica obrigatoriamente um olhar atrás.

As afirmações contidas em ambos os excertos estão exactamente conformes às teorias realistas de Alberto Caeiro. Sabemos que este poeta defende que a única verdade é a realidade visível e palpável; aquela que se nos apresenta face aos nossos olhos. Se assim é, se nada existe para além dessa realidade, então, será plausível advogar que aquilo que foi já não é. O raciocínio silogístico evidenciado nos dois primeiros versos diz-nos isso mesmo. Daí que recordar seja trair a Natureza, pois a Natureza é o que se apresenta no presente aos nossos olhos. Todo o voltar atrás no tempo é a substituição do que existe e é visível pelo que já não existe, já não é recuperável, já não o é. Toda a recordação, sendo a substituição do presente pelo passado é o apagamento da verdadeira realidade por uma imagem fictícia duma realidade que já não é; é, portanto, a substituição do real pelo imaginário, ou a substituição do visível pela ideia.

Recordar é, deste modo, trair. Trair duplamente. Trair a Natureza, porque se subestima a sua presença, porque se prefere não a usufruir. Trair-se o Homem a si próprio, na medida em que, segundo Caeiro, a maior riqueza do homem é ver, e lembrar é olhar para o que já não é nem existe.

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"Eu não tenho filosofia, tenho sentidos"

Lemos este verso e sabemos perfeitamente que estamos face à poesia de Alberto Caeiro: O poeta sensacionista , o grande mestre da sensação.

Com a poética de Caeiro , aprendemos a ver, a ver essencialmente; aprendemos a percepcionar a Natureza na sua extraordinária diversidade e não através do filtro que constitui o nosso pensamento. Com Caeiro , aprendemos a despir-nos dos preconceitos da civilização que nos enforma e nos impossibilita de ver nitidamente.

E tenho estado a dizer "aprendemos". Aprendemos? Pelo menos é isso que se pretende que aconteça: o mestre ensina. Realmente assistimos, ao longo da sua poesia, a um discurso perfeitamente assumido didacticamente. E todos sabemos que há duas maneiras de ensinar: mostrando, fazendo na prática ou dizendo como devemos fazer na prática. Ora não temos dúvidas que Caeiro optou pelo segundo método. A poesia do poeta sensacionista é uma poesia didáctica, é um discurso pedagógico na sua verdadeira essência. Um discurso que se opõe a uma filosofia só pode ser outra filosofia. Se uma é metafisica e a outra se apresenta, por oposição, como anti-metafisica , não deixa, por isso, de se caracterizar como filosofia.

Realmente, a poesia de Caeiro não nos põe face aos nossos olhos ou aos nossos ouvidos ou ao nosso olfacto, as cores, os sons, os cheiros como o fizera Cesário em deambulação, pela cidade .( ele e nós, que com ele conseguíamos ir ). Com este poeta, mestre de todos os outros, ouvimos dizê-lo que devemos ver, ouvir, cheirar. Lembramo-nos que devemos utilizar os nossos sentidos, não os utilizamos. Na verdade, com Alberto Caeiro assistimos a uma aula de filosofia: pomos em causa as nossas experiências; reconhecemos a necessidade de voltar a aprender, despindo-nos das nossas velhas aprendizagens, surpreendemo-nos com a clarividência do pensamento; assistimos a um raciocínio límpido; mas realmente, se imaginarmos ver o que "vemos"

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são os nossos pensamentos, os do mestre e os nossos, como se de um rebanho se tratasse, mas não se trata realmente, são pensamentos apenas.

A filosofia de Caeiro está lá, inteira na sua poesia, e não há dúvida que muito aprendemos com ela e com ele, “o mestre”; sobretudo aprendemos que é difícil assumirmos os seus ensinamentos, "(triste de nós que trazemos a alma vestida!)" que exigem "um estudo profundo, / Uma aprendizagem de desaprender."

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Ricardo Reis

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio

Comentário de acordo com os seguintes tópicos:

. A ataraxia e a apatia definidoras do epicurismo e do estoicismo e que caracterizam o comportamento do sujeito lírico. . A efemeridade da vida e a importância desta aprendizagem. . Razões para que não enlacemos as mãos: compromisso e acção e sua inutilidade. . Relação: rio/vida; mar/fado. . O ideal de vida, o amor tranquilo e a presença das flores a suavizar o momento. . O papel da memória enquanto aguarda com calma a chegada da morte.

Ao longo do poema notamos aquela característica principal de Ricardo Reis: o equili'brio entre o pensar e o sentir, entre o objectivo e o subjectivo - nítida atitude clássica. É evidente a disciplina mental que o sujeito lírico se impõe a si próprio e à sua amada.

O ideal de vida é o dos epicuristas: a vida deve orientar-se para a felicidade; objectivo que só será alcançado através da tranquilidade e da serenidade. Veja-se como o sujeito lírico praticamente inicia o seu diálogo com Lídia ("sossegadamente fitemos o seu curso" (do rio)), apelando para a impassibilidade (note-se o advérbio de modo e a expressividade do verbo utilizado). Esta atitude verifica-se pela consciência da efemeridade da vida ("... e aprendamos que a vida passa 'j, daí que, reconhecendo ele e a sua amada não estão de mãos enlaçadas convida-a a que enlacem as mãos. Pressentimos aqui a atitude do carpe diem. No entanto, o processo de aprendizagem progride e o sujeito poético reconhece não só a transitoriedade da vida como a sua irreversibilidade ("a vida passa e não fica, nada deixa e nunca regressa. ", por isso aponta um novo comportamento: "Desenlacemos as mãos", justificando-o: "porque não vale a pena cansarmo-nos." Assume-se, nesta passagem, uma atitude também clássica, a atitude dos estóicos: a ideia de que existe um Destino contra o qual não vale a pena lutar e, portanto, deve aceitar-se, passivamente, as coisas tal como elas são: "Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio." Há, assim, que assumir aquela serenidade, uma espécie de confiança resignada: "Mais vale saber passar silenciosamente / E sem desassossegos grandes / / Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz... " É claramente a atitude do epicurismo: a apologia da ataraxia;

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mas também a atitude dos estóicos, pois que as paixões, os arrebatamentos só contribuem para ofuscar a razão, e escravizar o espírito.

A tranquilidade é, pois, a atitude mais sensata perante as forças inexoráveis do Fado, porque, ao fim e ao cabo, , "O rio sempre correria, / e sempre iria dar ao mar. "Portanto, mas vale aceitar as coisas tal como se nos apresentam, pois, só assim, o indivíduo poupará os esforços inúteis de se bater contra o imbatível. A vida é como o rio, cujo curso é imparável e se orienta sempre para o mar. Esta é a natureza intrínseca a todas as coisas. Tudo está organizado pela grande Lei do Fado: ""...) a vida vai para um mar muito longe, para o pé do Fado, / Mais longe que os deuses. " É a lei inexorável do Destino. Daí que tudo o que se levante para o contrariar caia inevitavelmente pela raiz.

A resposta adequada e inteligente é a da sensatez da busca da felicidade possível. É a da racionalização das atitudes mais temerárias. É a da moderação dos sentimentos e dos desejos: "Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos, / Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias, / Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro / Ouvindo correr o rio. "

Este ideal de tranquilidade, de felicidade contida e serena tem muito a ver com o papel condicionador da memória. Ou seja: a vida passa; a vida altera-se; o dia de hoje é diferente do de amanhã. A felicidade de hoje pode ser a tristeza de amanhã. Se este pensamento do futuro e da Morte estável presidir a todos os momentos da vida, poupar- se-á o sofrimento do futuro, porque "se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois / Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova." Por um lado o exercício mental e disciplinador da contenção, por outro a atitude do carpe diem numa intenção de esforçado e dialéctico equilíbrio. Equilíbrio que será o factor da melhor garantia para a felicidade, não a desejada, mas a possível: "Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as / No colo, e que o seu perfume suavize o momento -" Cada dia será, então, tranquilo e suave. No futuro, a memória de cada dia será, também, tranquila e suave.

Trata-se em toda a evidência de um ideal clássico de harmonia e equilíbrio em que a felicidade roça a própria tristeza da aceitação necessária do inevitável: "Ser-me-ás suave à memória, lembrando-te assim - à beira-rio, / Pagã triste e com flores no regaço. "

“ Uns, com os olhos postos no passado,Vêem o que não vêem; outros, fitosOs mesmos olhos no futuro, vêem

O que não pode ver-se.

(...) Este é o dia,Esta é a hora, este, o momento, isto

É quem somos, e é tudo.”

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– Relaciona estes versos de Ricardo Reis com os que acabaste de analisar de Alberto Caeiro, procedendo ao inevitável comentário.

Se tivermos em conta, e acabamos por tê-lo sempre, que estes dois poetas são dois heterónimos.

Não sentimos a menor dúvida que existe uma perfeita intertextualidade entre “Isto é o que é hoje é,” /E como hoje por enquanto é tudo, isto é tudo” e “Este é o dia, / Esta é a hora, este o momento, isto / É quem somos, e é tudo.”

Em ambos, sente-se, assim, a presença do “Carpe diem”, da fruição do momento presente. E naturalmente que assim é; ambos sensacionistas, vivem apenas a sensação colhida no momento. O passado não pode, senão pelo pensamento (pela memória) ser captado. Por isso, “a recordação é uma traição à Natureza”. O presente, é mais do que uma categoria temporal, pois, se as coisas se alteram com a passagem do tempo, a realidade adquire o estatuto da temporalidade. E, assim, as coisas são, verdadeiramente, no momento presente; este é o único tempo real: o passado e o futuro não existem em verdade, senão por um esforço da imaginação e essa, essencialmente subjectiva, não pode constituir, nem tão pouco reconstituir, a realidade.

De acordo com estes dois poetas da sensação, o real reduz-se ao momento presente. A filosofia epicurista que lhes é subjacente amplia-lhes, por isso mesmo, a grandeza do momento presente, real e irrepetível.

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Álvaro de Campos

Ode Triunfal

Relacionar o título com o conteúdo do poema.

Uma Ode é um género ou uma forma poética que remete para o elogio de um determinado objecto: é o cântico de determinado assunto: ideia, pessoa, etc. .O adjectivo “triunfal” vem, de forma pleonástica, acentuar o valor do seu conteúdo e, assim, valorizá-la sobre outras odes eventualmente existentes.

Realmente, o poema é o cântico da vida moderna; e a modernidade é considerada como triunfando de todos os tempos: o presente é o produto final de todos os tempos do passado, daí o seu valor da fusão dos tempos: “Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro/ Porque o presente é todo o passado e todo o futuro.” A tecnologia moderna é a obra suprema da Humanidade, visto ser o fruto de todos os tempos, o produto de todos os saberes acumulados. O poema pretende retratar de forma espectacular (através de uma ode triunfal) um conteúdo que espelha uma realidade considerada, também, perfeitamente espectacular.

A “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos constituir realmente quer pela invocação formal quer pelo ineditismo temático, o ponto culminante da ruptura com a tradicional poesia portuguesa.

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Já Fernando Pessoa ortónimo assinara “Impressões do Crepúsculo”, poema que revolucionara, em parte, a poesia, já pela estranha sintaxe utilizada, já pela extensão dos seus versos, não tanto pelo vocabulário, pelo que já recuperava um pouco a linguagem do simbolismo.No entanto, “Ode Triunfal” rompe completamente, a todos os níveis, com a tradicional poesia portuguesa: veja-se a originalidade da coexistência de versos muito longos e de versos muito curtos; veja-se a acumulação exagerada de apóstrofes e exclamações: “Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos! Ò artigos que toda a gente quer comprar!”; a inusitada utilização de onomatopeias e interjeições: “Eh-la-hô !”.A linguagem utilizada perverte totalmente o senso comum, e os motivos tradicionalmente considerados poéticos: “Ah, poder exprimir-me todo como motor se exprime!”; “Poder ir na vida triunfante como um automóvel último modelo.”; “Eh-lá as ruas, hé-la as praças, he-lá-hô la foule!”.O recurso a comparações e a advérbios que associam deliberadamente um sentimento excêntrico quase escandaloso: “Amo-vos a todos como uma fera, amo-vos carnivoramente, pervertidamente.”. A exacerbação dos sentimentos influenciados pelo mundo exterior que conduzem a toda esta linguagem exuberante de excêntrico e escândalo, a enumeração de verbos como: “rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, perreando”. A utilização de paradoxos: maravilhosa beleza das corrupções políticas, deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos.Ora, toda esta linguagem fora comum, pelo menos fora do comum do literário é a forma como se traz para a literatura a presença do real, da vida moderna, do barulho, do ritmo do mundo exterior.O poeta, discípulo de Caeiro, logo sensacionista como ele, apreende, no entanto a sensação como principal relação do sujeito com o objecto, mais do que a verdade existencial do objecto percepcionado, para Álvaro de Campos, é a sensação a única realidade. Sentir é tudo. Mas este sentir sobrevalorizado em relação ao objecto acaba por se subjectivar irremediavelmente.

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Dobrada à moda do Porto"

1. Identifique as partes que constituem o texto, tendo por base os elementos morfossintáticos que considere mais pertinentes

A divisão deste poema pode ser feita em três partes distintas: a primeira, que corresponde às duas primeiras estrofes; a segunda parte, respeitante às duas estrofes seguintes; e, por fim, o terceiro e último momento, constituído apenas pela última estância.

Em relação à primeira parte, o sujeito poético relata-nos uma pequena história, na qual ele participa, um episódio vivido ou imaginado e que se encontra relacionado com o mau serviço que lhe é prestado num restaurante, uma vez que lhe servem dobrada à moda do Porto fria. Este episódio constitui assim o motivo necessário ao sujeito lírico para apresentar a sua tese, as suas ideias.

No que diz respeito ao segundo momento da acção, verificamos que o sujeito lírico entra no campo da reflexão, interrogando-se sobre o significado da história por ele contada. Relembra, a esse propósito, saudosamente, a infância

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alegre e despreocupada que todas as crianças têm e que o deixam, assim, num estado melancólico, face à tristeza que hoje o atinge.

Finalmente, quanto à terceira e última parte, o sujeito poético responde de forma concludente à sua própria pergunta, retomando o incidente da história inicial: "Mas se eu pedi amor, porque é que me trouxeram/Dobrada à moda do Porto fria?".

2. A partir do segundo verso e possível identificar o tema e o assunto do poema. Explicite a metáfora que os relaciona e se desenvolve ao longo do texto do poema.

O tema e o assunto deste poema encontram-se relacionados pela expressão metafórica "Serviram-me o amor como dobrada fria", presente no segundo verso da primeira estrofe deste texto lírico.

Esta metáfora revela, sem dúvida, a falta de sintonia latente na relação do sujeito poético com a sociedade. É por essa razão que ele compara o amor que lhe é "servido", isto é, valores como a generosidade, o respeito, a consideração, a bondade, que lhe são "oferecidos" no restaurante (metáfora - imagem do mundo social), a um prato de dobrada à moda do Porto, fria. Ora, a dobrada não deve ser nunca servida fria. Daí que o sujeito lírico intente explicar-nos, através desta metáfora, o seu desagrado pelo facto de o mundo que o rodeia não ser capaz de lhe oferecer a verdadeira essência do amor, que é nitidamente contra o frio, mas apenas desprezo, desdém, falta de estima, enfim, dobrada à moda do Porto fria.

3. Refira-se à coerência/incoerência deste aparte do poeta, no corpo do texto do poema.

À primeira vista, poderíamos afirmar que o parte feito pelo sujeito lírico e bastante incoerente com o restante poema, visto que se trata de uma estrofe cujo sentido é muito distinto relativamente ao assunto daquele. Contudo, após uma análise mais cuidada, verificamos que assim não o é. Na realidade, este aparte é extremamente coerente com o poema, precisamente pela existência dessa mesma relação de oposição, pois só desta forma o texto lírico pode ser entendido na totalidade. Verificamos, deste modo, que a tristeza que o sujeito poético hoje sente, devido à falta de valores morais e sentimentais entre ele próprio e o mundo que o rodeia, leva-o a recordar, com saudade, a infância, que nos é descrita nesse aparte. Esta infância é, antes de mais, um mundo simpático, onde as crianças brincam alegremente e onde reina a felicidade. De tal modo que a tristeza que o sujeito lírico presentemente sente, só seja verdadeiramente compreendida pela saudade com que recorda esta bela infância e, que, para ele, já não mais existe.

Lisbon Revisited (1923)

Faça o comentário ao poema com base nas seguintes linhas de leitura:

- A autodefinição de “eu” ao longo do poema;- A relação estabelecida pelo «eu» com a cidade – “todos”; O uso obsessivo de expressões de negatividade; A representação do leitor no poema como destinatário da enumeração.

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Neste poema, o sujeito lírico afirma-se como uma pessoa que é contrária a tudo e a todos, uma pessoa um tanto orgulhosa de si mesmo “Não quero nada...”, “Não me peguem no braço!”. O “eu” é um ente anti-social, é um ser diferente regido pela contrariedade; é uma pessoa que não quer nada dos outros, negando a sua cultura geral, dita de Todos. “Não, não quero nada (...) Não me tragam estéticas! / Não me tragam moral! / Tirem-me daqui a metafísica! (...) Se têm a verdade, guardem-na! (...) Não me peguem no braço! (...) Quero ser sozinho.”. É pela contrariedade que se rege, nega os outros para ser ele, original, mas só (“Vão para o diabo sem mim, / ou deixem-me ir sozinho para o diabo! / Para que havemos de ir juntos?”). Daí a marca da negatividade no texto, ele é o que os outros não são, ele quer o que os outros não querem, ele vive como os outros não vivem, ele é original em relação aos outros, consegue ser o que eles não são.

Durante o seu discurso, o sujeito lírico consegue diferenciar-se dos outros, bem como de nós leitores. Os seus apelos, as suas questões, fazem com que nós próprios nos afastemos dele, ou seja, nos fazem responder negativamente, e quase automaticamente, às perguntas retóricas que faz. Ele pede que o deixemos em paz, quase que nos leva a deixar de lê-lo; pede que não o macemos, e invoca Deus, utilizando uma linguagem mais corrente, e logo mais convincente. No fundo, ele, ao usar este tipo de discurso, cria em nós uma acção voluntária de deixá-lo viver a sua vida em paz, e na sua solidão profunda.

Rui Pacheco (aluno 12º ano)

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Não, não é cansaço

O sujeito poético tenta, neste poema, expressar o seu estado de espírito. Contudo, ao logo da enunciação, manifesta hesitação, um certo vacilar da definição deste mesmo estado.

“Não, não é cansaço” é como se inicia o discurso poético. Trata-se, portanto, de uma frase negativa. Segue-se uma enumeração,, imediatamente nos associa o estado de espírito ao pensamento, pois a “quantidade de desilusão” com que se define “entranha[-se] na espécie de pensar”. Trata-se, por conseguinte de uma espécie de cansaço, ou uma desilusão intencional. As suas definições seguintes, de expressões conotativamente antiéticas, indicam-nos um estado de alma caracterizado pela complexidade e pela contradição : “É um domingo ás avessas / Do sentimento. / Um feriado passado do abismo”. As expectativas criadas pelos primeiros vocábulos semanticamente positivos (“domingo” e “feriado”) saem goradas com o sentido negativo que, neste contexto, adquirem as expressões de sentido negativo (“às avessas” e “no abismo”). É como se as potencialidades intelectuais do sujeito poético se confrontassem com os obstáculos que as fariam cair por terra (“no abismo”). Trata-se, assim, duma espécie de tédio ou náusea intelectual.

Este tédio ou esta náusea têm origem no facto de o sujeito poético “estar existindo” “e também o mundo”. Ou seja, é a proposta vida, o modo como o sujeito lírico se sente existindo que o perturba, o desassossega, mas o cansa. Note-se a

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utilização expressiva da perifrástica verbal (“estar existindo”) que alonga esse sentimento da duração apenas. O sujeito vai durando e sobrevivendo à náusea do mundo “com tudo aquilo que contém / com tudo aquilo que nele se desdobra / E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.” O mundo é, afinal uma repetição de coisas, uma monotonia que dura sem variedade, nem surpresas. E o sujeito poético acompanha, tediamente, esse fluir repetitivo, durando apenas sobre o curso monótono do tempo e do mundo a que assiste. O mundo que lhe é exterior surge-lhe, deste modo, por oposição, porque é o facto de o mundo se caracterizar por essa monótona invariedade que transtorna o sujeito lírico. Contudo essa existência exterior é contagiante, já que o sujeito poético, contaminado por ela, se deixa cair nessa apatia de “estar existindo”.

A vida deixa, deste modo, se fazer sentido. O estado em que o sujeito se deixa estar caracteriza-se pela frustração: “Qualquer coisa como um grito / Por dar, / Qualquer coisa como uma angústia / Por sofrer.” As afirmações feitas caracterizam-se, por um lado, pela indefinição do que se diz; por outro lado, pela anulação do que se diz. A partição dos versos é extremamente elucidativa e expressiva neste sentido. A existência que o sujeito experimenta é qualquer coisa que não faz sentido mesmo; qualquer coisa como uma vida em potência, mas uma vida que não se vive. As dúvidas e as hesitações que caracterizam o discurso do final da segunda estrofe, através das frases suspensas e reticente traduzem-nos a própria indefinição do estado do sujeito.

Contudo, o parêntesis que se abre e interrompe o fluir do pensamento, num autêntico monologo interior leva o sujeito poético a concluir do seu estado de espírito. A exclamação panegírica relativamente aos cegos que passam na rua revela uma espécie de acordar para a realidade. Quer da realidade que o rodeia quer do seu verdadeiro cansaço. Parece que os três cegos – aqui referidos por extensão metonímica dos outros que o cercam – compõem o quadro da alegria possível, mas estranha ao sujeito poético, dos outros. A cegueira, ou desconstruindo a metáfora, a ingenuidade e a inconsciência dos outros entristecem o sujeito lírico, desmotivam-no cansam-no da vida. Ele que vê e, sobretudo, ouve o “formidável relevo” (humor irónico do sujeito) que constitui a vida dos “cegos” que o rodeiam, não pode comungar desse alegre canto, antes confessa que sente verdadeiro cansaço da vida e dos outros.

É clara a associação que podemos estabelecer com a poesia ortónima de Fernando Pessoa. É evidente a relação que existe entre este poema e o poema: “Ela canta, pobre ceifeira”. A consciência que o homem tem da vida e de si mesmo, bem como de si nessa mesma vida. A consciência que o homem tem do incomensurável que caracteriza cada uma dessas duas coisas leva-o irremediavelmente ao sofrimento, à angústia existencial. O conforto que se estabelece entre a consciência pessoal do sujeito e a inconsciência dos outros conduz muitas vezes à sensação de desistência; àquela “sensação abstracta “ / Da vida concreta “ que realmente existe, se repete, perdura e não faz qualquer sentido a quem, com angústia, pense nisto.

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Mensagem

(...) Não deixa de ser expressivo que o primeiro e único livro em português que Pessoa publicou em vida tenha sido Mensagem. Tratou-se de um «livro de versos

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nacionalista» (Páginas Íntimas - p.437), um livro «abundantemente embebido em simbolismo templário e rosicruciano» (idem, p.437), ao mesmo tempo marcado por tonalidades épicas e messiânicas.

Pessoa publicou o livro em 1934. E ele mesmo afirma que o pôs à venda, propositadamente, em 1 de Dezembro (idem, p.433). Este propositadamente é deveras significativo, dada a carga simbólica que o dia da Restauração encerra, pretendendo o poeta com esse gesto dar o tom das intenções patrióticas que o dominavam. Aliás, a composição do livro arrastou-se – e também significativamente – ao longo de vários anos. Poderemos mesmo adiantar, na base de uma entrevista que Pessoa concedeu ao Diário de Lisboa de 14 de Dezembro de 1934, que o desejo de compor esse livro vinha já do tempo de Orpheu, tendo ele adquirido forma entre sensivelmente o ano de 1913 e o de 1934 – com principal incidência nos anos de 1928 e de 1934, dos quais data uma parte considerável das composições que são dele parte integrante (repara-se que muitos dos poemas se encontram datados).

Não deixa de ser ainda significativo (mas aqui já não foi, está claro, senão a mão do acaso a funcionar) que tenham constado dos primeiros textos críticos que Pessoa publicou as linhas orientadoras que dariam a Mensagem. Tratou-se dos cinco trabalhos críticos saídos em A Águia (a partir do seu nº 4 – Abril de 1912), sob o título A nova Poesia Portuguesa.

Aliás, o sonho de Pessoa tem bastante que ver, pelo menos inicialmente, com o ideal da Renascença Portuguesa. Pessoa mostra integrar-se em «aquelas intuições proféticas do poeta Teixeira de Pascoaes», como ele diz, antevendo o ressurgimento assombroso de Portugal, um período de criação literária e social como poucos o mundo tem tido, em que a alma portuguesa encerraria a alma recém-nada da futura civilização europeia, que será uma civilização lusitana. E afirma ainda Pessoa: «A futura criação social da Raça Portuguesa será qualquer cousa que seja ao mesmo tempo religiosa e política, ao mesmo tempo democrática e aristocrática, ao mesmo tempo ligada à actual fórmula da civilização e a outra cousa nova».

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Em Mensagem, Pessoa assume-se como cantor do fim do império português, como Camões se havia imortalizado como cantor do seu início. Um e outro se colocam numa posição temporal simétrica em relação ao império: Camões, um pouco depois de o império se ter levantado, Pessoa um pouco antes de ele se desmoronar.

Mas apesar de alguns paralelismos possíveis entre ambos os ‘épicos’, deverão esclarecer-se entre eles algumas diferenças consideráveis. É que Pessoa já não canta, como Camões cantou, o império real, o expansionismo material para o oriente, a cruzada religiosa contra os infiéis, a ultrapassagem dos obstáculos físicos que se erguiam aos portugueses por terra e por mar.

Para Pessoa, o império material é antes «um obscuro e carnal antearremedo». O seu objectivo é perseguir uma «Índia que não há». Ele considera-se investido por alguém superior no cargo de anunciador de um novo Quinto Império (de que já havia falado Vieira): o primeiro império foi o da Babilónia, o segundo o Medo-Persa, o terceiro o Grego, o quarto o Romano, e o quinto... o Português. Ele refere que é vítima

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de um intenso sofrimento patriótico: «O meu intenso sofrimento patriótico, o meu intenso desejo de melhorar o estado de Portugal, provocam em mim (...) mil projectos (...). O sofrimento que isto produz não sei se poderá ser definido como situado aquém da leitura» (Diário – 1908).

O Portugal que ele antevê no futuro situa-se além do material. Escreve ele: «E a nossa grande raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas daquilo que os sonhos são feitos. E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal antearremedo, realizar-se-á...» (em A Nova Poesia Portuguesa).

É preciso que Portugal se cumpra (poema ‘Infante’), depois que se desfez o império real: «O império do mar, antearremedo do que há-de vir, dá lugar a um ciclo de desintegração que abrirá caminho ao Encoberto, ao Messias que fará cumprir-se Portugal».

Portugal não será assim grande em domínio territorial, mas em valores espirituais e morais. Será talvez um império da língua portuguesa (que dentro em breve se prevê que seja falada por mais de 200 milhões de pessoas, nos cinco continentes), um império do modo de ser português, do culto da solidariedade e capacidade de adequação às situações mais imprevistas, que sempre caracterizou esse «modo de ser português» em todas as longitudes, da vocação especificamente portuguesa de se repartir em diáspora por todo o mundo, pacificamente, abnegadamente, empenhadamente, através da emigração, de um certo ideal de Europa, ou até de lusitanidade. Talvez fosse em qualquer coisa relacionada com isto que estaria a pensar Fernando Pessoa ao manifestar o seu patriotismo messiânico.

O objectivo do poeta é portanto espiritualista, desligado do espaço e do tempo reais; uma Índia nova, que não há, para onde só se viaja em naus construídas daquilo que os sonhos são feitos...

Numa entrevista ao Jornal do Comércio e das Colónias (Junho de 1926), Pessoa afirmou: «Não podendo Portugal ser potência militar, nem económica, nem cultural, pode contudo vir a ser uma potência criadora de civilização, pela construção do Quinto Império de que o Sebastianismo seria a sua encarnação». Aliás, esta associação do Sebastianismo ao Quinto Império volta a fazê-la ele no prefácio que escreveu para o livro «O Quinto Império», de A. Ferreira Gomes (1934), e sempre mostrou possuir uma forte propensão para o visionarismo e as ciências obscuras – por exemplo, ao traduzir para português o compêndio de teosofia de C. W. Leadbeater (1915), ao confessar à tia Anica os seus momentos de ‘escrita automática’ e ao fazer-lhe afirmações como: «Já sei o bastante das ciências ocultas para reconhecer que estão sendo acordados em mim os sentidos chamados superiores para um fim qualquer...» (Carta à tia Anica, 24-6-1916).

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As 44 composições que constituem o livro encontram-se repartidas por três partes:

1ª parte – Brasão I – Os campos ( O dos Castelos, o das Quinas)II – Os Castelos (Ulisses, Viriato, O Conde D. Henrique, D. Teresa,

D. Afonso Henriques, D. Dinis, D. João o Primeiro, D.Filipa de Lencastre)

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III – As Quinas (D. Duarte, Rei de Portugal; D. Fernando, Infante de Portugal; D. Pedro, Regente de Portugal; D. João, Infante de Portugal; D. Sebastião, Rei de Portugal)

IV – A Coroa (Nun’Álvares Pereira)V – O Timbre (A Cabeça do Grifo: o Infante D. Henrique; Uma asa do

Grifo: D. João o Segundo; A Outra Asa do Grifo: Afonso de Albuquerque)

2º parte – Mar Português (O Infante, Horizonte, Padrão, O Monstrengo, Epitáfio de Bartolomeu Dias, Os Colombos, Ocidente, Fernão de Magalhães, Ascensão de Vasco da Gama, Mar Português, A Última Nau, Prece)

3ª parte – O Encoberto I - Os Símbolos (D. Sebastião, O Quinto Império, O Desejado, As Ilhas Afortunadas, O Encoberto)

II – Os Avisos ( O Bandarra, António Vieiera, Screvo meu livro à beira mágoa)

III – Os Tempos (Noite, Tormenta, Calma, Antemanhã, Nevoeiro).

São nítidas as intenções ocultistas disseminadas por todo o livro, à mistura com referências à Cabala e Rosacrucismo e variadas alusões esotéricas.

Na primeira parte de Mensagem, referem-se mitos e figuras históricas de Portugal, significativamente até D. Sebastião, que são identificados com elementos de heráldica (campos, castelos, quinas, coroa, timbre) presentes no brasão português. É uma certa imagem de Portugal que se pretende transmitir – um Portugal erguido à custa do esforço abnegado de muitos heróis, que muitas vezes não agiram por seu próprio expediente, mas instigados por forças sobrenaturais; um Portugal predestinado a grandes feitos, que tem como «cabeça do Grifo» o Infante D. Henrique, e como suas asas D. João II e Afonso de Albuquerque – precisamente três das personalidades mais determinantes na formação do império, na sua consumação e na sua consolidação. Um Portugal que há-de ser rosto da Europa, que esta não desdenhará de ter.

Na segunda parte, o poeta vai referir personalidades e factos dos descobrimentos portugueses, sempre encarados na perspectiva de missão que competia a Portugal cumprir. É posta em destaque a projecção universal que os descobrimentos portugueses implicaram, e os esforços sobre-humanos que foi preciso desenvolver na luta contra os elementos naturais, hostis e desconhecidos. E embora Portugal ainda não se tenha cumprido, tudo valeu a pena, porque foi feito com grandeza de alma...

Na terceira parte, o poeta quer referir que Portugal parece estar encerrado numa prisão servil, parece estar envolto em trevas, estar a entristecer. Mas apesar disso, um novo império se erguerá, anunciado pelos símbolos e pelos avisos. O Portugal que hoje é nevoeiro regenerar-se-á. O povo que hoje se mostra entristecido transmutar-se-á num outro povo que erigirá uma outra Pátria. Será essa a Índia que não há, mas é preciso que seja edificada. Só com a loucura e a abnegação dos heróis (esses nadas que afinal são tudo) será possível pôr esse sonho de pé. Um novo Camões virá (um Supra-Camões, que Pessoa acreditava poder vir a ser ele mesmo), para transformar o medíocre em grandioso e guiar a pátria portuguesa no caminho da dignidade merecida mas que ainda não lhe foi possível alcançar. É precisamente a hora.

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E o livro termina com a saudação rosacruciana: «Valete, frates» - sede fortes, perseverai, passai bem, irmãos...

In Lino Moreira da Silva, Do Texto à Leitura

Parece certo que, em determinada altura da vida, Fernando Pessoa se deixou contaminar pelo saudosismo e por uma espécie de messianismo esotérico do tipo sebastianista. Seria sob essa influência que, entre 1913 e 1934, veio escrevendo os poemas épico-líricos do belo livro Mensagem, todos eles significativos quadros místicos da História de Portugal, emergindo do passado luminoso ou do hoje nevoeirento e apontando para um futuro de esperança a descobrir.

Toda a obra assenta em três fulcros:

1. sentido providencialista da História da Portugal;2. elogio do português, descobridor dos Mundos;3. a projecção e sobrevivência da Pátria num universo escatológico, espiritual e

cultural, a encontrar ainda.

Podemos ver estes três pilares de Mensagem nas três partes em que a obra se divide: Brasão, Mar Português, O Encoberto. A estas partes chama António Quadros (Mensagem, Introdução, Europa – América, pág. 73) três grandes andamentos, como se de um poema sinfónico se tratasse.

No primeiro andamento – Brasão – Fernando Pessoa «representa-nos o Portugal profundo, o Portugal arquétipo, o Portugal Rosto da Europa, o Portugal que se firmou na guerra santa, o Portugal de uma febre de Além», numa palavra: o Portugal fadado para oferecer ao mundo uma “proposta” específica. No segundo andamento – Mar Português – “quis dar-nos uma radiografia, simultaneamente épica e dramática, do que foi a grandiosa, contudo dolorosa, conquista dos mares”. A «proposta» tomou assim feição prática. No terceiro e último andamento – O Encoberto – Pessoa «afirma a possibilidade de uma regeneração nacional pelo mito e pelos seus símbolos». Segundo o Poeta, nem é preciso criar o mito; basta renovar o de D. Sebastião – já o temos e é válido. Se nos embebedarmos do mito sebastianista, gerar-se-á na alma da Nação a atmosfera de onde nascerão «as Novas Descobertas, a criação do mundo Novo, o Quinto Império», um império que talvez não venha a ter espaço no mundo sensível, mas que, sendo quimera, mito, fome do impossível, não deixará nunca paralisar a Pátria, revitalizando-a indefinidamente.

O providencialismo levou o poeta à convicção de que Deus traçou o destino do nosso povo:

Todo o começo é involuntário.Deus é o agente.O herói a si assiste, várioE inconsciente.

Mas este herói fez tudo quanto estava ao seu alcance; o resto será com Deus.

Este padrão sinala aos ventos e aos céus

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Que, da obra ousada, é minha a parte feita:O por fazer é só com Deus.

O elogio dos Portugueses fez com que Pessoa nos tenha considerado desvendadores dos mundos, não tanto por termos ânsias de dominar a terra como por sentirmos insaciável fome do Absoluto:

E a cruz ao alto diz que o que me há na almaE faz a febre em mim de navegarSó encontrará de Deus na eterna calmaO porto sempre por achar.

Daí que ele cante o que se fez e sobretudo o que ainda está por fazer - «o passado de um futuro a abrir». Aqui retoma, Pessoa o mito do sebastianismo. O infeliz monarca D. Sebastião, por um lado símbolo da decadência e, por outro, símbolo da ressurreição nacional, tem tentado mais do que um poeta moderno: Junqueiro, António Nobre, Lopes Vieira, Jorge de Sena, Natália Correia. Pessoa também. Depois dos Medalhões do Mar Português, explora em Mensagem os símbolos e avisos do Encoberto, do que partiu sem realizar o que sonhou e que tanto pode ser D. Sebastião como o malogrado Presidente Sidónio Pais. Mas o Desejado voltará, porque ainda há Índias por descobrir, porque há o futuro, porque foi «percursor do que não sabemos».

Não passa como o vento o heróiSob o eterno céu.Tornará, nova forma clara,Ao tempo e ao espaço.

Os poemas de Mensagem poderão apresentar-se-nos à primeira vista como épicos, pois cantam pessoas e factos grandiosos da história de Portugal. Essa objectividade épica está lá, de facto; contudo, profundamente carregada de lirismo, interiorizada, reduzida muitas vezes a imagens simbólicas. Deste modo, essa objectividade deixa frequentemente de ser matéria expressa, significada, para se transformar num significante através do qual o Poeta se exprime.

Mensagem é um livro fascinante. Nele se reflecte, não há dúvida, o questionável nacionalismo mítico de que Fernando Pessoa se confessa partidário. Mas é inegável que muitos versos que lá estão se tornaram lapidares da cultura portuguesa e com este estatuto se incrustaram já na alma da gente lusa. É difícil que um português os leia e não lhe digam nada.

In História da Literatura de Portugal

A obra “Mensagem” de autoria de Fernando Pessoa, foi a única obra publicada pelo próprio poeta. Com esta, o poeta procura como que relatar a história de Portugal passado, presente e futuro, podendo mesmo ser possível afirmar que desenvolve temas relacionados com a criação, a vida, a desintegração, o possível renascer da grande pátria portuguesa.

A obra, que é uma espécie de compilação de vários poemas e está dividido em três partes principais: o “Brasão”, o “Mar Português” e o “Encoberto”.

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Na primeira parte, o “Brasão”, o autor procura dar a conhecer todo o processo de criação da pátria portuguesa: fala dos reis, dos governadores, dos grandes nomes da história passada, fazendo ressaltar as personagens que na sua própria opinião conseguiram realmente imortalizar-se devido à sua participação nesta etapa da vida da nação portuguesa.

Na segunda parte o “Mar Português”, o poeta procura enaltecer uma das épocas mais importantes da “vida” de Portugal, os Descobrimentos. É com orgulho que Fernando Pessoa procura descrever a fase em que Portugal dá “novos mundos a conhecer ao mundo”, em que Portugal mostra ser uma pátria com homens de coragem, valor e poder, que conseguem marcar de forma definitiva o mundo que os rodeia..., homens de grande poder físico e espiritual que, para o poeta, representam aquilo que Portugal realmente consegue alcançar quando tem a coragem e perseverança para partir em busca dos seus sonhos, ultrapassando os próprios limites da natureza humana e, quem sabe, até da realidade.

Na terceira e última parte, “Encoberto”, Fernando Pessoa relata-nos a desintegração da pátria portuguesa e do seu papel no mundo, existe como que uma morte da nação portuguesa, que em parte, na opinião do auto, se deve aos homens acomodados que parecem ter perdido as características da grande alma do povo português, contentando-se com vidas, simples, normais e banais, cujo único rumo é a morte. Face a este cenário, o autor vai fazendo menção de forma subtilmente disfarçada a um possível renascer do espírito português, como se fosse um profeta. Através de pressentimentos e presságios, o poeta vai dando a conhecer ao povo português que nem tudo está perdido, e que a pátria portuguesa irá despertar para um novo período da sua história, uma nova fase; será um amanhecer, um acordar para uma nova forma de vida e de pensar do povo português, será o ressurgir da “vida” de Portugal, será a construção de um novo império, o Quinto Império.

Assim, Fernando Pessoa, com esta obra, para além de referir-se ao passado da pátria portuguesa com os seus grandes feitos, procura dar uma lição da vida ao país, fazendo-o despertar da sua fase de letargia e preparar-se para uma nova fase que há-de vir.

Teste / Comentário – Diana Silva (Aluna 12º ano)

Expõe de forma clara e concisa sobre os aspectos estruturais, temáticos e simbólicos que caracterizam o poema “Mensagem”

O poema Mensagem é um poema que é constituído por um conjunto de pequenos poemas que estão organizados da seguinte forma: uma primeira parte sob o nome “Brasão”, uma segunda sob o nome “Mar Português” e, finalmente, uma terceira parte cujo nome é “O Encoberto”.

No que diz respeito ao conteúdo temático, a primeira parte apresenta os heróis portugueses, mesmo os lendários, desde Ulisses a D. Sebastião. Estes são apresentados de acordo com o que cada um simboliza dentro do contexto mítico global da Pátria. Eles

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constituem o brasão português com “Os campos”, “ “Os castelos”, “As Quinas” , “A Coroa” e “O Timbre”.

A segunda faz referência à demanda dos mares pelo povo português. A maioria dos poemas relaciona-se, exactamente, com este tema, associando as descobertas ao grande sonho português, à missão divina que este povo deveria cumprir, apesar do esforço, do sacrifício, da dor. Como é claro no poema “Mar Português”.

Quanto à terceira parte, todos os poemas apontam praticamente para a superação do estado de tristeza que caracteriza a Pátria pós – Descobrimentos. Percorre todos os poemas desta última parte um “sopro” de esperança, de ânsia na chegada de D. Sebastião. Não no D. Sebastião físico, homem, mas na chegada do sonho que ele representa. O sonho, a quimera no Reino espiritual que há-de erguer Portugal das sombras e da ruína.

É exactamente este o valor simbólico da “Mensagem”, a crença num mundo superior, de uma civilização diferente da que tem caracterizado os povos. A crença na União dos países e dos homens, anseio divino: o Quinto Império.

Contudo, apesar do teor mítico e épico do poema, da linguagem de exaltação dum povo, dos seus heróis e da sua acção, não se pode considerar a “Mensagem” um poema épico, no sentido rigoroso do termo. A estrutura fragmentária, os poemas curtos, o discurso essencialmente lírico de muitos poemas, o discurso poético na primeira pessoa verbal que, aparentemente, identifica e projecta a figura do autor sobre o herói em causa; facto que acentua o valor lírico e simbólico da Mensagem.

No entanto, é evidente a apologia épica da Pátria e da sua missão, da alma do ser português, facto que, aliado ao lirismo atrás referido, justifica para este poema o nome de poema epo-lírico.

A estrutura da Mensagem é a de um mito. Transfiguração da História duma pátria como um mito.

Mito do nascimento da vida e da morte dum mundo. Morte que será seguida de um renascimento. Daí a sua estrutura tripartida que, simbolicamente, representa a idade cósmica ou as três idades: o Brasão, Mar Português, o Encoberto: ou seja, os fundadores ou o nascimento; a realização ou a vida; o fim das energias ou a morte, essa que conterá já em si, como gérmen, a próxima ressurreição, o novo ciclo que se anuncia - o Quinto Império.

Na Mensagem, todos os heróis surgirão assumindo, na sua vida efémera e humana, a missão de procurarem e revelarem, neste mundo, uma realidade que os transcende; ou seja, uma realização terrestre do transcendente. A realização humana é dever de procura e, nessa procura, incessante, insatisfeita, procurar, adivinhar Deus. Diogo Cão dirá:

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“E a cruz ao alto diz que o que me há na alma / E faz a febre em mim de navegar / Só encontrará de Deus na eterna calma / O porto sempre por achar.”

O fundador, o conde D. Henrique, nos primórdios da nação é visto como um instrumento nas mãos de uma força superior que o transcende: “Deus é o agente. / O herói a si assiste , vário / E inconsciente.” No poema “O Infante” , dir-se-á também: “ Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.” ( in Sebenta) .

O verdadeiro ser (o ser eterno) alcança-se a través da obra. Através dela, o homem vê-se a si próprio como num espelho, e, através disso, vê a verdade transcendente: o Absoluto. É esta febre de alcançar a verdade absoluta, o Além, que caracteriza a vontade dos heróis da Mensagem, ou a subjectividade do eu da enunciação que, muitas vezes, se identifica com o eu do herói, numa simbiose simbólica entre o eu individual do sujeito poético e o eu individual do herói que se auto-refere. Aliás, esta simbiose vai mais longe: pretende mesmo fundir eu-individual e eu-colectivo como se de uma única alma se tratasse:” Aqui ao leme sou mais do que eu : / Sou um povo que o mar que é teu! “. Ao fim e ao cabo a alma pátria - o ser português.

Estrutura de “MENSAGEM”

1. BRASÃO - onde desfilam os heróis lendários ou históricos, desde Ulisses a D. Sebastião, ora invocados pelo poeta, ora definindo-se a si próprios.

2. MAR PORTUGUÊS - com poesias inspiradas na ânsia do Desconhecido e no esforço heróico da luta com o Mar.

3. O ENCOBERTO - onde se afirma um sebastianismo de apelo e de certeza profética (“Ó Portugal, hoje és nevoeiro (…) É a Hora!”)

Concepção pessoana de Literatura

“A história de uma literatura é a história da evolução de uma consciência nacional. Assim há-de ser entendida, se há-de ser de qualquer modo compreendida”

F.P., Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literária

A ideia dominante é a de que a literatura consubstancia, encerra a interpretação que um povo faz de si mesmo, do universo e da vida. Segundo esta teoria, o escritor, muito para além de revelar o inconsciente individual , exprime fundamentalmente o inconsciente colectivo.

O contexto histórico-literário: o sentimento de decadência e sua relação com o Saudosismo e o Sebastianismo messiânico.A ditadura de João Franco (1907-1908) desencadeia em Pessoa o “patriotismo literário” (conforme carta sua), numa altura em que, regressado de África, tenta integrar-se na pátria da sua primeira infância.

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O facto de ter crescido longe de Portugal poderá ter contribuído para exacerbar nele, na hora do regresso um processo de “naturalização” lusa, despertando-lhe a profética convicção de que “a pátria de Camões (estava) destinada a criar no mundo uma nova civilização lusitana” e a ver surgir um “supra-Camões”.

A vertente patriótico-nacionalista encontra-se já delineada em dois poemas dramáticos: Portugal (1910?) e o Encoberto, onde começam a esboçar-se motivos que se enquadram na atmosfera característica da Mensagem.

Em 1912 escreve artigos n´ A Águia, nos quais profetiza a iminência de um super - Portugal e de um Super – Camões, continuando a revelar vocação patriótica e propensão épica, estimuladas pelas doutrinas do Saudosismo.

A ditadura de Sidónio Pais (1918) deve ter contribuído para dar um decisivo impulso à génese da obra.

Segundo uma entrevista de 1934, foi na época do Orpheu (1915) que a obra começou a definir-se, apesar de a ideia de publicar um livro de natureza da Mensagem se situe em 1928, altura em que redige um grande número de composições que integram o poema.

A sua conclusão foi em 1934, ano em que Pessoa compõe vários poemas e articula finalmente a obra.

De acordo com esta concepção de literatura, afigura-se plausível que Mensagem espelhe um sentimento de decadência reinante na sociedade portuguesa no final do século XIX e princípio do séc. XX, aparecendo como antídoto à “miséria portuguesa”, já que anuncia uma nova era de grandeza para Portugal.

A grande maioria dos escritores da última metade do séc. XIX, com destaque para os da Geração de 70, como Eça de Queirós, haviam centrado a sua análise na agonizante realidade nacional. O Ultimato Inglês fez ressurgir o sentimento patriótico e a defesa dos valores nacionais. No final do século, esta crise política e a humilhação sentida por Portugal, impotente perante as exigências do gigante Inglês, despoletou nos Portugueses sentimentos nacionalistas, que surgem como reacção à evidente decadência nacional, exaltando o que de mais característico e grandioso tinha dado a Nação. Raro é o escritor desta altura que não se empenha em cantar Portugal: Guerra Junqueiro, António Nobre e Afonso Lopes Vieira são alguns dos que tentaram engrandecê-lo e valorizá-lo, com o seu ardor poético, em poemas de pendor nacionalista.

Teixeira de Pascoaes empreende uma obra mística, idealizante e patriótica e superando a concepção poética, então vigente, de uma pátria histórica visível, a imagem de uma nação acabrunhada, medíocre, submissa e incrédula nas suas capacidades, “rasura ou dissolve a nossa pequenez objectiva, onde enraízam todos os temores pelo nosso futuro e identidade, instalando Portugal (…) fora do mundo e fazendo desse estar fora do mundo a essência mesma da realidade” 1

Embora convicto de que o Universo e o Homem se acham sujeitos a uma metamorfose constante, conferiu, no entanto, a essa evanescência a categoria do real através da

1 Eduardo Lourenço

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saudade, que seria “o próprio sangue espiritual da Raça: o seu estigma divino, o seu perfil eterno”, que facultava ao seu país o estatuto de Pátria-Saudade e que nutria a sua Raça do passado e do futuro. Em Pascoaes alia-se, por vezes, ao saudosismo um outro elemento tradicional da nossa cultura, o mito sebastianista, que o poeta considera de capital significado na Idiossincrasia lusa, e em que insufla um excepcional vigor metafísico, próprio de quem crê na transformação e regeneração da Pátria.

“Somos hoje um pingo de tinta seca da mão que escreveu Império da esquerda à direita da Geografia. É difícil distinguir se o nosso passado é que é o nosso futuro, ou se o nosso futuro é que é o nosso passado.”

In “Sobre Portugal”

A estrutura da “Mensagem” apresenta-se como uma estrutura trinitária como a estrutura dos mitos: nascimento, vida e morte, prevendo-se o próximo nascimento (renascimento ou redenção). É o conjunto das três idades, ou idade cósmica.

O título de cada uma enquadra-se perfeitamente no trinitarismo da sua estrutura e da sua simbologia.

“Brasão” é o nome da 1ª parte. Nome que nos remete para as origens, para o gérmen caracterizador e emblemático da pátria. No brasão, estão presentes os símbolos que identificam a nação: os Campos, os Castelos, a Coroa, as Quinas e o Timbre. Em termos heráldico-históricos, simboliza exactamente o carácter e a alma essencial da pátria. Ela é a encarnação duma missão transcendente; ela é o agente material de uma vontade divina.

Daí que, logo nos dois poemas primeiros, o papel de Portugal no contexto da Europa seja evidente: “ O rosto com que fita é Portugal.” A alma pressente-se e projecta-se através do olhar. Portugal é a parte que fita; é o espelho da alma que sonha. “A Europa jaz”, estática, aguardando. O olhar perscrutador, atento, perspicaz pertence à parte mais avançada da Península Ibérica – o rosto – cujo olhar, “esfíngico e fatal”, adivinha o futuro. Mas este futuro é um “futuro do passado”. O momento do presente não funciona senão na perspectiva em que, estático, perscrutando-se o silêncio que o caracteriza, pretende vislumbrar os sinais do futuro. O passado foi a semente, foi a prestação das provas necessárias que a nação necessitou realizar para a consecução da grande obra do futuro. Portugal é, neste momento presente, esse fitar-olhar parado, mas atento, que aguarda o sinal dos tempos – a Hora!

Contudo, a obra arrojada “compra-se com desgraça.” Os heróis da grande obra sabem-no e sofrem conscientemente o papel que lhes cabe na História da construção pátria: “ A vida é breve, a alma é vasta” e “ Ai dos felizes, porque são / só o que passa.” O herói, ciente do grande projecto anímico, sabe que “Ter é tardar.” (in segundo, o das Quinas) Também tem consciência que o verdadeiro “porto” é aquele que se mantém distante, sempre posicionado na indefinível e inalcançável linha do horizonte: “o porto sempre por achar.”

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É este o espírito que subjaz presente à alma da pátria. Este é o espírito do ser português, simbolizado no mítico Ulisses: “Este, que aqui aportou, / foi por não ser existindo, / sem existir nos bastou”, “O mito é o nada que é tudo.” Aquele que sem existir nos fundou, lendariamente nos crismou na esfera dos grandes planos míticos. Assim, Viriato fez valer, pela resistência, a lusitanidade da raça que criou, raça feita menino infante que nascerá em cada herói. D. Teresa será a mãe eterna dessa raça cujos filhos terá de constantemente abençoar. O poema “D. Tareja” é uma autêntica prece “Uma Ave-Maria” nacionalista. “Ó mãe de reis e avó de impérios, / Vela por nós.” Só deste modo, o antigo seio, vigilante, reforçará animicamente o “eterno infante”. “D. Afonso Henriques” é outro poema que constitui também outra oração: “Pai, foste cavaleiro. / Hoje a vigília é nossa. / Dá-nos o exemplo inteiro / E a tua inteira força!”

Todos os heróis possuirão o seu papel, a sua quota-parte da missão nacional definida por Deus: “que farei eu com esta espada?”. “Deus é o agente”, contudo, a obra é humana, e se a espada ou o gládio são postos nas mãos dos heróis, é para que estes as usem, cumprindo com a sua missão: “Ergueste-a, e fez-se” (in O Conde D. Henrique), ou é a partir do momento em que o herói reconhece ou intui nele a vontade divina: “Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me / A fronte com o olhar; / E esta febre de Além, que me consome / , E este querer grandeza são seu nome / Dentro em mim a vibrar” (D. Fernando, Infante de Portugal). O dever da missão passa a ser intrínseco ao ser do herói: “Cumpri contra o Destino o meu dever. / Inutilmente? Não, porque o cumpri. (D. Duarte rei de Portugal)” 1. Também em “D. Dinis”, é evidente a intuição do dever. D. Dinis intui, pressentindo, os sinais duma natureza que não é a natureza exterior, antes é uma espécie de voz ouvida interiormente: “E ouve um silêncio múrmuro consigo: / É o rumor dos pinhais que, como um trigo / De Império, ondulam sem se poder ver.”

O sentido íntimo do dever é a marca distintiva do herói: “ O homem e a hora são um só / Quando Deus faz e a história é feita. / O mais é carne, cujo pó / A terra espreita.” (in D. João, O Primeiro). No poema D. Pedro, Regente de Portugal, o sujeito poético assume-se e explicita: “Dúplice dono, sem me dividir, / De dever e de ser”. O ser português afirma-se, assim, nos poemas do Brasão, constituindo a alma ascendente do povo, da raça, do homem português. Em D. João, Infante de Portugal, define-se, emblematicamente: “ (...) é do português, pai de amplos mares, / Querer, poder só isto: / O inteiro mar, ou a orla vã desfeita - / O todo ou o seu nada.” Por isso, em D. Sebastião, Rei de Portugal, se afirma, através do sujeito lírico do poema: “ Sem a loucura que é o homem / mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?”

O sentido do dever do homem que se eleva acima do simples sobreviver, aguardando, inevitavelmente, a morte é a loucura, o sonho, a capacidade de ver para além do tangível, a força de ousar grandeza “ qual a sorte a não dá.” Esse é o verdadeiro homem-herói e é essa índole do homem português que perpassa os poemas de “Brasão”.

Assim, esta primeira parte do poema é como se constituísse o baptismo, a sagração dum povo, a promessa ou a profecia: a anunciação: “ ´Sperança consumida, / S. Portugal em ser, / Ergue a luz da tua espada / Para a estrada se ver!” Esta é a simbologia dos poemas de “Brasão”: o nascimento. Mítica e misticamente, o

1 que constituem as cinco partes em que se subdivide a primeira parte do poema.

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aparecimento de alguma coisa que veio ao mundo para “fitar além do mar”, para perscrutar esse “mar que possa haver além da terra.” 2

A segunda parte de “Mensagem” obteve o nome geral de “Mar Português”. A realização, afinal, do sonho embrionário, anunciado em “Brasão”. “Mar Português” é o fruto da vontade divina: “ Deus quer, o homem sonha, a obra nasce / Deus quis que a terra fosse toda uma / Que o mar unisse já não separasse”. A acção portuguesa foi-se, assim, concretizando, “desvendando a espuma” e “correndo, até ao fim do mundo”, vendo-se, por fim, “a terra inteira, de repente, / surgir, redonda, do azul profundo”. (in O Infante).

Ser capaz de sonhar como o homem português feito nauta foi, é possuir a capacidade de “ver as formas invisíveis / Da distância imprecisa, e , com sensíveis / Movimentos da esp´rança e da vontade, / Buscar na linha fria do horizonte / A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte / Os beijos merecidos da Verdade.” Em “Mar Português” perpassa a epopeia portuguesa: a acção gloriosa do povo que partiu na demanda do desconhecido e, por isso, da verdadeira aventura que é a demanda em si. O espaço de acção do navegante português é o “mar sem fim”, o objectivo “o porto sempre por achar”. O percurso em si torna-se o verdadeiro escape da alma inquieta do nauta lusitano: “É a Magia que evoca / o Longe e faz dele história (...).” Mesmo que a história seja feita de sofrimento e dor: “Ó mar salgado, quanto do teu sal / são lágrimas de Portugal”. (in Mar Português) O percurso e a história do herói são feitos de sacrifício. Já nos poemas “O das Quinas” e “D. Fernando, Infante de Portugal” de “O Brasão” se afirmara respectivamente: “Compra-se a glória com desgraça” e “sagrou-me seu em honra e em desgraça.”

“Mar Português” antepenúltimo poema da segunda parte, e curiosamente com o seu próprio nome, afirma axiomaticamente: “Quem quer passar além do Bojador / Tem de passar além da dor.” Dor e esforço hão-de ser a marca do herói nauta português: “O esforço é grande e o homem é pequeno, (...) A alma é divina e a obra é imperfeita”.

Por isso, por mais arrojada que seja a obra humana, a ideia que Pessoa nos pretende deixar, mesmo relativamente à nossa maior epopeia como nação é que ela está incompleta. Realmente, a segunda parte do Poema abre com “O Infante” poema que termina, afirmando: “Cumpri-se o Mar, e o Império se desfez. / Senhor, falta cumprir-se Portugal!” Também o último poema desta parte, parece, exactamente, a continuação daquele, constituindo agora uma autêntica “Prece” “Senhor, a noite veio e a alma é vil.” O sentimento de degradação moral da pátria é evidente. Mas a esperança de a ressuscitar é mais forte ainda: e se o final de “Prece” é disto mesmo prova (“E outra vez conquistemos a Distância - / Do mar ou outra, mas que seja nossa!”) em “A Última Nau”, o sujeito poético assume-se o último reduto vivo nacional: “Ah, quanto mais ao povo a alma falta, / Mais a minha alma atlântica se exalta (...)”.

É nítida a sensação e a vivência interior de um sujeito que se assume arauto e profeta da regeneração nacional: “Não sei a hora, mas sei que há a hora (...). O sujeito, responsável pelo pensamento místico que percorre o Poema, faz a trajectória da pátria ,

2 E independentemente do facto de a galeria de heróis se estruturar organicamente como uma cronologia, subjacente à enumeração dos retratos, nunca está a narração dos factos acontecidos e de que os heróis foram os agentes principais, mas a alma, a essência heróica que os define como símbolos, como os próprios padrões que deixámos pelas praias desse mundo fora. Eles constituem, realmente, a materialização da alma pátria: o emblema e a bandeira nacional. Eles são os vários signos dum amplo pensamento e da concepção mítica e mística que Fernando Pessoa tem da Pátria.

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através do discurso poético. O Brasão refere a essência dum Povo capaz da grande obra: o Império. Mas este povo que escreveu o mapa “da esquerda à direita da Geografia” não passa hoje, “dum pingo de tinta seca”.

A afirmação é de Fernando Pessoa no momento presente em que ele próprio escreve a “Mensagem”. O presente, como já foi dito é marcado pelo “silêncio hostil” pela ausência da alma. E o futuro é neste interregno que tem de construir-se. O “Encoberto” é a terceira parte do Poema, e corresponde à consciência amarga que se tem deste presente “frio” e “morto”. No primeiro poema “D. Sebastião”, primeiro de “Os símbolos” , diz-se: “É o que eu me sonhei que eterno dura, / É esse regressarei”. Ou seja, o sonho e a loucura que se inscreveram na alma do povo português hão-de regressar, hão-de renascer. O passado que a pátria provou, nela inscreveu o futuro que há-de desempenhar: foi para renascer sublimemente como futuro do Homem que esta pátria realizou o seu passado. Este é o garante do seu próprio futuro e do futuro do mundo inteiro; será o V Império, segundo Pessoa: “E assim, passados os quatro / Tempos do ser que sonhou, / A terra será teatro / Do dia claro, que no atro / Da erma noite começou.”

É esta a notícia profética da “Mensagem”: o presente que se caracteriza pela hostilidade de um silêncio e uma alma vil; que nos relembra a “apagada e vil tristeza” já identificada por Camões, no sec. XVI, perdura e, por isso, chegou a hora de sair dessa ignara letargia em que o povo português se deixou cair. No terceiro Aviso, poema que significativamente não possui nome próprio, como os dois anteriores, o sujeito poético questiona-se ao longo do discurso sobre o momento exacto desse renascimento que há-de acontecer com o regresso do Encoberto: “Mas quando quererás voltar? / Quando é o Rei? / Quando é a hora? (...) Quando virás, ó Encoberto, / Sonho das eras português, / Tornar-me mais que o sopro incerto / De um grande anseio que Deus fez? (...)” E será apenas no último poema da “Mensagem” que o sujeito poético, já sem dúvidas, anuncia: “(Que ânsia distante perto chora?) / (...) Ó Portugal, hoje és nevoeiro... // É a hora!”

Será então a hora em que o Passado ressuscitado se actualiza e concretiza em futuro: são as potencialidades confirmadas no Passado que se revitalizam e, tal como Fernando Pessoa diz, “É difícil distinguir se o nosso passado é que é o nosso futuro, ou se o nosso futuro é que é o nosso passado.”

Dissertação

Como se faz uma dissertação

Tipo de Texto

A dissertação é um texto de tipo argumentativo. O que, à partida, equivale a dizer que se trata de um texto que requer, para além dos conhecimentos que o aluno possui, capacidade de argumentação, capacidade de fundamentação.

O aluno já sabe que argumentar é persuadir, ou seja, convencer o nosso interlocutor da nossa razão. Levá-lo a aceitar os nossos pontos de vista, depois de os apresentarmos e os confirmarmos. Deste facto, devemos deduzir que o tema e os pontos

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de vista devem ser polémicos e que, por isso mesmo, o autor terá que defender uma posição convicta de modo a ser convincente.

A dissertação é ainda um texto de “largo fôlego”, pressupondo, por isso, capacidade de exposição e de aprofundamento, facto que requer, sem dúvida, bastante treino.

Conclui-se, assim, que a dissertação é um texto de tipo expositivo-argumentativo.

Tipo de discurso

O discurso da dissertação é de tipo dialéctico e dialógico. Dialéctico, porque se trata de um texto complexo em que se confrontam

opiniões. Ou seja, trata-se de um texto em que se devem apresentar os argumentos favoráveis à tese (ideia) que se defende, e também contra-argumentos, ou seja, opiniões diferentes da do autor da dissertação. A intenção será sempre a de combater as ideias dos adversários ideológicos que existem real ou imaginariamente. A estruturação do discurso faz-se, então, segundo um eixo sintagmático: tese – antítese – síntese.

É também um discurso dialógico, porque se institui uma espécie de diálogo na apresentação dos diferentes pontos de vista, prevendo-se, imaginariamente, a interferência no discurso de outros interlocutores. (Ex: “Sabemos que algumas pessoas nos podem responder que …” ; “a este respeito, poder-se-á pensar de outro modo …”; “outros dirão que…”; “o leitor pensará, tal como …”.)

Estrutura textual

1º parágrafo: deve ser a apresentação da tese, afirmação, em princípio polémica, que o aluno tem de defender, justificando ao longo da dissertação:

A- Se for dada uma afirmação, o aluno deverá assumir uma posição face a essa afirmação, assumindo-a, rejeitando-a, identificando-lhe reservas…

B- Se for dado apenas um tema, o aluno, a seu propósito, deve construir uma afirmação mais ou menos simples, mas polémica, que constituirá a sua tese.

2º parágrafo: deve ser a apresentação de uma antítese (anti-tese; contra-argumento) que, eventualmente, opinião de alguns, será aqui apresentada com a intenção de ser fortemente “destronada”, combatida com os argumentos convincentes do autor do trabalho. (É mais fácil convencermos o leitor da nossa razão, convencendo-o da falta de razão do nosso adversário ideológico, do nosso opositor no tal suposto diálogo). É a esta espécie de diálogo imaginário, em que se apresentam as ideias opostas que obrigarão o autor a apresentar deduções, conclusões (através dos conectores frásicos e textuais) que se dá o nome de discurso dialéctico (tese - antítese - síntese).

A antítese ou contra-argumentação pode aparecer mais vezes ao longo do texto. Contudo, dever-se-á ter o cuidado de não a sobrevalorizar sob o risco de se perder a coerência textual e a própria intenção de fazer passar a nossa tese.

Parágrafos seguintes

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Desenvolvimento da dissertação: desenvolvimento da defesa temática – fundamentação da nossa tese com recurso à argumentação, em que o recurso ao raciocínio dedutivo e à exemplificação é fundamental. (O corpo da dissertação é muito semelhante ao texto do comentário que o aluno já conhece).

Último parágrafo: Conclusão

Deve ser extremamente conclusiva; deve fazer referência e reafirmar a convicção dos argumentos.

Deve reafirmar a tese, reafirmando-a.

O Resumo

Como se faz um resumo

O resumo é a operação mental mais utilizada na vida quotidiana e uma das actividades escolares que mais problemas levanta.

1. Definição:

Comecemos por dizer o que o resumo não é:

- O resumo não é uma paráfrase, pois isso seria dizer o mesmo por outras palavras, uma espécie de explicação do texto original;

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- O resumo não é um comentário, pois isso seria tecer opiniões face ao texto original;

- O resumo não é análise de texto, pois isso seria trabalhar as ideias principais, mas também as acessórias; seria também questionar essas mesmas ideias, os termos utilizados, procurar-lhes significados menos óbvios, etc..

O resumo é referir as ideias principais do texto. É a “miniatura” de outro texto, devendo reproduzir-lhe o sentido, a intencionalidade, a tipologia, a estrutura.

O resumo é comummente considerado uma técnica de estudo. Uma técnica eficiente, mas que, como qualquer técnica, exige treino. É ainda uma actividade linguística e textual . Para tanto, exige conhecimentos e rigor àqueles dois níveis: o aluno deve possuir vocabulário (e a técnica do resumo é uma das que lhe desenvolve essa aptidão), conhecimentos gramaticais de ordem morfológica e sintáctica; bem como conhecimentos textuais, ao nível da sintaxe do texto, dos aspectos da coesão e da coerência textuais, fazendo hábil recurso de conectores textuais, da pontuação, etc..

2. A Técnica do Resumo:

2..1. Fases do trabalho:

2.1.1. Leitura e compreensão do texto original

- Como qualquer actividade sobre o texto, o trabalho preliminar é proceder a uma primeira leitura geral, mas atenta e muito lenta, visando apenas uma apreensão geral.

- Realizar uma segunda leitura, ainda muito lenta, com o objectivo de captar os signos ou segmentos de significação essencial (atentar nas orações coordenadas e subordinantes, bem como nos articuladores lógicos) tentando uma boa compreensão global.

- Efectuar ainda uma terceira leitura com o objectivo de sublinhar os signos e segmentos de significação essencial, realizando deste modo, através da supressão da informação não relevante (redundâncias, informações acessórias), a contracção do texto ao seu mínimo essencial.

- Dividir o texto em partes , com o objectivo de lhe identificar o plano subjacente. Nesta fase, terás de atribuir uma importância muito grande aos articuladores do discurso já identificados.

Esta é a actividade crucial para a compreensão de qualquer texto. Depois de a realizares, estás apto a elaborar qualquer trabalho sobre ele.

- Dar um título-resumo a cada parte . Através da leitura dos segmentos sublinhados, és obrigado a compreender a ideia essencial de cada uma das partes em que dividiste o texto. Deves identificar essa ideia através de uma frase nominal.Estas frases devem ser dispostas por baixo uma das outras, numa folha de rascunho. O que acabaste de fazer constitui o plano do texto original.

2.1.2. Reelaboração do texto e construção do Resumo

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A primeira etapa é a construção do plano do teu resumo. Este objectivo deverá estar condicionado às dimensões do resumo. Quanto menos reduzido for o resumo, mais próximo o teu plano pode estar do plano do texto original.

Na medida do possível, fazer corresponder a cada uma das partes do texto um parágrafo do resumo.

Para o plano do teu resumo, terás de considerar essencialmente duas coisas: as palavras-chave do texto e os articuladores lógicos do discurso que lhe dão coesão e coerência interna e são os responsáveis pela fidelidade ao texto original.

Para a construção do teu texto, há a considerar ainda regras de redução da informação semântica e elas são, de acordo com Maria Teresa Serafini, as seguintes:

1. Supressão: Apagamento de palavras, expressões ou proposições que constituem informação de pormenor ou acessória, não relevante para a transmissão da mensagem essencial;

2. Integração: (ou selecção por integração) Selecção de palavras, expressões ou proposições cujo significado integre outros que sejam seus componentes (causa, condição, etc.);

3. Generalização: Substituição de termos específicos por termos genéricos de inclusão semântica (hiperónimos, por exemplo);

4. Construção: Substituição de várias expressões ou proposições por uma apenas, ou menor número, que traduza o seu sentido geral. Trata-se de uma reelaboração do enunciado, numa apreensão global de sentidos.

3. Principais erros a evitar

- Imitação ou transcrições do texto original. (Depois da contracção do texto pela técnica do sublinhado, tem de se reelaborar o discurso. Pode utilizar-se, contudo, vocabulário do texto, com especial incidência para as consideradas palavras-chave do texto /base.

- Deturpação do texto original. De modo algum se pode acrescentar informação, mesmo que com as ideias do texto se relacionem ou as complementem, Também é erro grave alterar as ideias do texto, pois isso prova incompreensão da leitura.

- Intromissões do autor do resumo, comentários ou juízos de valor. Mesmo que se trarte de um texto de comentário a resumir, o autor do resumo não pode incluir nele opiniões suas (pois isso seria outro comentário e não um resumo de um comentário).

- Destruição da lógica e estrutura internas do texto/base.

- Utilização dos diálogos ou das citações constantes do texto original. Estes devem ser submetidos às regras linguísticas do discurso indirecto.

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Resumo - Ficha prática

Resumir o texto seguinte para um quarto do seu tamanho (de 125 palavras para + 32).

“Os poemas da Mensagem poderão apresentar-se-nos à primeira vista como épicos, pois cantam pessoas e factos grandiosos da história de Portugal. Essa objectividade épica está lá, de facto; contudo, profundamente carregada de lirismo, interiorizada, reduzida, muitas vezes a imagens simbólicas. Deste modo, essa objectividade deixa frequentemente de ser matéria expressa, significada, para se transformar num significante através do qual o Poeta se exprime.

Mensagem é um livro fascinante. Nele se reflecte, não há dúvida, o questionável nacionalismo mítico de que Fernando Pessoa se confessa partidário. Mas é inegável que muitos versos que lá estão se tornaram frases lapidares da cultura portuguesa e com esse estatuto se incrustaram já na alma da gente lusa. É difícil que um português os leia e não lhe digam nada.” (123 palavras)

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1 - Leitura e compreensão do texto original.

A contracção do texto através da técnica do sublinhado será:

“Os poemas da Mensagem poderão apresentar-se-nos à primeira vista como épicos, pois cantam pessoas e factos grandiosos da história de Portugal. Essa objectividade épica está lá, (…) contudo, (…) carregada de lirismo, (…) reduzida, (…) a imagens simbólicas. (…)

[No poema] reflecte-se (…) [um] questionável nacionalismo mítico (…) Mas é inegável que muitos versos (…) se tornaram frases lapidares da cultura portuguesa (…). É difícil que um português os leia e não lhe digam nada.” (64 p.)

Este texto (contracção do anterior) não é ainda um texto resumo porque apenas foi submetido a cortes e não à reelaboração pelo autor do resumo. Trata-se, pois, de uma transcrição seleccionada do texto original. Se a contracção produzida, através da técnica do sublinhado, tiver sido correcta (fiel à principal estrutura significante do texto), podemos confiar nela e instituí-la, como o “corpus” textual a trabalhar daqui para a frente. A nossa actividade até aqui fez recurso da primeira regra de redução da informação: a supressão. De 123 palavras originais passámos a 64.

De seguida, sublinhamos as palavras – chave e destacamos os articuladores do discurso.

“Os poemas da Mensagem poderão apresentar-se-nos à primeira vista como épicos, pois cantam pessoas e factos grandiosos da história de Portugal. Essa objectividade épica está lá, (…) contudo, (…) carregada de lirismo, (…) reduzida, (…) a imagens simbólicas. (…)

[No poema] reflecte-se (…) [um] questionável nacionalismo mítico (…) Mas é inegável que muitos versos (…) se tornaram frases lapidares da cultura portuguesa (…). É difícil que um português os leia e não lhe digam nada.”

Procedendo, agora, à divisão do texto em partes, verificamos que é notória a sua bipartição: cada parágrafo corresponde (como aliás era de esperar) a uma parte distinta. Podemos identificar para a primeira parte o seguinte título-resumo:

“Mensagem, um poema épico – lírico”.

E para a segunda parte:

“Nacionalismo mítico, mas versos lapidares da cultura portuguesa.”

A primeira parte apresenta uma questão tipológica no que se refere à classificação do poema. A segunda faz referência à matéria ideológica, às questões do conteúdo temático e seu efeito e funcionalidade pragmática.

O plano subjacente ao texto será, portanto:

1. Mensagem: um poema épico-lírico .

1.1. poema épico: porque cantam pessoas e factos grandiosos da história de Portugal.

Contudo

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1.2.objectividade épica carregada da lirismo, reduzida a imagens simbólicas.

2. Mensagem: nacionalismo mítico, mas versos lapidares de cultura portuguesa .

2.1. poema de um questionável nacionalismo mítico.

Mas

2.2.muitos versos tornaram-se versos lapidares da cultura portuguesa susceptíveis da emoção de qualquer português.

2 – Reelaboração do texto/construção do resumo.

Para a construção do resumo vamos considerar as ideias-chave esquematizadas no plano que se acabou de identificar e elaborá-las em prosa correcta de modo a construir um texto coeso e coerente. Já sabemos que estas qualidades dependem em grande medida da utilização correcta dos conectores e da propriedade vocabular.

Vamos então construir o Resumo, considerando as principais regras da redução e evitando os erros mais comuns.

Os poemas da Mensagem (1) apresentam-se-nos como épicos (2), pois cantam (3) a grandiosidade da história de Portugal (4). Contudo, a objectividade épica aparece carregada de lirismo, reduzida a símbolos.

O poema expressa um questionável nacionalismo mítico, mas os seus versos tornaram-se lapidares da cultura portuguesa e nenhum português os lê sem emoção. (49 p.)

Neste momento, temos um texto que corresponde ao mínimo do plano original. A sintaxe gramatical foi rigorosamente seguida, pois mantivemos as estruturas coordenadas adversativas que estruturavam o esquema do texto de origem.

Em termos de economia sintáctica, o aluno sabe que as estruturas coordenadas, pela independência e autonomia das proposições que as compõem, são estruturas menos económicas do que as estruturas da subordinação sintáctica. Tentaremos, portanto, a sintaxe da subordinação e, dentro desta, a redução das proposições subordinadas circunstanciais a complementos circunstanciais (5) ou uma frase única, cujos verbos transmitam essa mesma relação existente entre as proposições (6). Operação que, por si só, levará a uma redução significativa do número de palavras sem diminuir a principal informação. Esta operação é a operação que segue a regra de construção (reelaboração por economia), que é a regra que requer maior capacidade linguística do aluno, porque manipula vários exercícios mentais ao mesmo tempo, embora essencialmente de carácter sintáctico.

Vamos, então, proceder a essa actividade:

Apesar da figuração épica dos poemas da “Mensagem”, (5) os versos caracterizam-se por um lirismo expresso numa linguagem simbólica.

O controverso nacionalismo mítico do grande Poema não impediu que alguns versos se tornassem lapidares da cultura portuguesa (6) e nenhum português lhes será emocionalmente indiferente. (43 p.)

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(“Mensagem” é um grande poema. E nem o controverso nacionalismo mítico impediu que alguns versos se tornassem lapidares da cultura portuguesa e susceptíveis de emoção patriótica. (43p.))

(1) As primeiras informações de um texto têm de ser suficientemente informativos. Nunca poderíamos omitir, por exemplo, a identificação dos poemas.

(2) Substituir a perífrase verbal por um único verbo, com o mesmo significado geral (Regra da selecção)

(3) Não substituir a forma do verbo “cantar” por possuir, como o aluno sabe, valor épico. (Trata-se de uma questão de propriedade vocabular, ou seja, o vocábulo mais adequado.)

(4) Substituição de termos específicos e concretos (substantivos e adjectivos) por um nome abstracto que os inclui. (Regra da generalização).

(5) Aplicação da regra da construção.

(6) Aplicação da regra da construção.

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O valor expressivo das várias classes morfológicas

O verboFormas verbais:

O verbo indica a acção ou o estado do sujeito. É, portanto uma classe morfológica muito importante. Se a intenção do discurso for essencialmente narrativa, predominarão os verbos de acção, de movimento, e o discurso é sobretudo dinâmico. Se a intenção for descritiva, far-se-á recurso de verbos de estado. A descrição acarreta, por isso, uma certa monotonia pelo estatismo das suas formas verbais.O que acontece, todavia, muitas vezes, com o objectivo de minorar, exactamente, a monotonia deste modo de expressão, é o recurso a verbos de acção, sugerindo um certo movimento que, não sendo apanágio da descrição, a torna mais expressiva e com maior poder sugestivo.

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Ex: Ao fundo, com uma árvore em frente, tão ramalhuda que quase a ocultava, erguia-se a capela, que ligada embora ao edifício, destacava-se dele, avançando sobre o jardim e dando ao todo a forma dum grande L.

Tempos e modos verbais:

O presente: (ando, corro, sorrio)

O presente do indicativo utiliza-se semanticamente para indicar:

- uma acção actual e/ou permanente: “Leio o livro”- uma acção habitual: “Leio todos os dias”- uma verdade universal: “O homem é racional”- uma acção passada (presente histórico): “Portugal alcança em 1143 a sua

independência” - uma acção futura (mas certa): “ Vou amanhã a Lisboa”- a atenuação de uma ordem: “Fazes-me esse trabalho?”

O presente, na narração, adquire geralmente um efeito estilístico, já que o tempo da narração é, por excelência, o tempo pretérito, visto que a narração implica o já acontecido. O presente adquire, assim, em contextos literários e narrativos, o seguinte valor expressivo:

- presentificação e/ou duração da acção , aumentando a capacidade visualista do texto e contribuindo para o seu realismo:

- maior implicação e atenção do leitor, pois que ele está assistindo à acção que decorre perante os seus olhos.

-“Vazam-se os arsenais e as oficinas; Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as

obreiras”; Cesário Verde“Nas janelas que dão para a praça estão as mulheres, vestidas e

toucadas a primor (…)” José Saramago

O pretérito imperfeito: (andava, corria, sorria)

O pretérito imperfeito utiliza-se, do ponto de vista semântico e pragmático, para indicar:

- uma acção que dura (durava) no passado: “Ela bebia o licor, quando ele entrou.”

- uma acção habitual no passado:“Eu costumava ler quando era pequena.”

Este tempo verbal apresenta o aspecto durativo ou frequentativo das acções. Tal como o presente, sugere continuidade e presença da acção, intensificando a impressão visualista e o realismo do discurso:

“As gentes que esto ouviam, saiam aa rua veer que cousa era; e começando de falar uns com os outros, alvoraçavam-se nas vontades, e começavam de tomar armas cada uu como melhor e mais asinha podia”.

(Fernão Lopes)

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O Gerúndio: (andando, correndo, sorrindo)

O gerúndio é considerado a forma adverbial do verbo, pelo facto de desempenhar o modo de uma outra acção, (é geralmente uma circunstância de outra acção, desempenhando, por isso, a função de oração adverbial).

Em contextos poéticos e literários, o recurso ao gerúndio contribui para uma visualização muito concreta das circunstâncias das acções apresentadas. O gerúndio apresenta também a acção a decorrer, contribuindo, por isso, à imagem do presente e do pretérito imperfeito, para o realismo do texto.

Os textos realistas e impressionistas patenteiam, como se sabe, uma frequente utilização desta forma adverbial do verbo, pois através dela se sugerem sensações, modos, impressões, sentimentos, etc., toda a variedade de circunstâncias que acompanham a caracterizam as acções do sujeito.

“(…) olhar esta cidade saindo de suas casas, despejando-se pelas ruas e praças, descendo dos altos, juntando-se no Rossio para ver justiçar a judeus e cristãos – novos, a hereges e feiticeiros (…).”

(José Saramago)“E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,/ correndo com firmeza, assomam as varinas” (C. Verde)

O Pretérito perfeito: (andei, corri, sorri)

O pretérito perfeito indica uma acção localizada no passado, pontual e acabada. É, por isso, o tempo verbal mais recorrente na narrativa. Sugere a instantaneidade de uma acção completamente passada. Pode ainda sugerir literariamente estados de irreversibilidade ou fatalidade.“Deus quis que a terra fosse toda umaQue o mar unisse já não separasse.E a orla branca, foi de ilha em continente.Clareou correndo até ao fim do mundoE viu-se a terra inteira de repente (…)” (Fernando Pessoa)

O Futuro: (andarei, correrei, sorrirei)

O futuro é utilizado para indicar uma acção posterior ao momento da fala ou da escrita (muitas vezes é substituído pelo presente): “Ver-te-ei amanhã.” Mas serve também para exprimir dúvida: “O autor pretenderá transmitir-nos a ideia de …”O valor expressivo do futuro mais explorado em contextos literários é exactamente o estado de dúvida que o futuro transmite.

O conjuntivo: (ande, corra, sorria)

É o modo que exprime as possibilidades, os desejos e as incertezas.

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Está, portanto, directamente associado à função emotiva da linguagem, função predominante em enunciados literários, contribuindo para traduzir estados de alma do sujeito da enunciação.

O infinitivo: (andar, correr, sorrir)

O modo infinitivo apresenta a acção propriamente dita na sua abstracção. Na poesia modernista e pós – modernista é bastante utilizado aparecendo com valor de substantivo, pretendendo-se transmitir estados abstractos. A intencionalidade será a de complexificar e aprofundar emoções, sentimentos e sensações, intuições, ou humanizar acções.“Claro em pensar, e claro no sentirEnche de estar presente o mar e o céu.E no desembarcar, há aves, floresSem que um sonho no erguer da asa …”

O Nome

Os nomes ou substantivos indicam os vários elementos da realidade, que podem ser concretos ou abstractos.Um texto literário que manifeste um predomínio de substantivos concretos é, naturalmente, um texto de intenções realistas. Um texto que recorre sobretudo a substantivos de índole abstracta é um texto de carácter subjectivo, que apela para estados de alma ou da Natureza, abstractos, complexos, profundos, inefáveis.

“O choro de uma felicidade mais que longínqua” Fernando Pessoa

“Quando virás, ó Encoberto,/Sonho das eras português,/Tornar-me mais que o sopro incerto/De um grande anseio que Deus fez?

Fernando Pessoa

“Tempo de solidão e de incerteza; / Tempo de medo e tempo de traição / Tempo de injustiça e de vileza / Tempo de negação.”

Sophia de M. B. Andressen

Por vezes, pode acontecer, com intencionalidade estilística, o contrário, ou seja, o mais inesperado (sobretudo em metáforas ou comparações): a utilização de substantivos concretos, por exemplo, para significar estados abstractos, na intenção estilística de intensificar ou sugerir ideias originais.

“Na sua voz há o campo e a lida.” F. P.

“E há curvas no enredo suave / Do som que ela tem a cantar”F.P.

“E eu sou um mar de sargaço.” F.P. “E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas com que me finjo

mais alto.”“Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada.” F.P.“O meu olhar é nítido como um girassol.” Alberto Caeiro

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O Adjectivo

O adjectivo utiliza-se para caracterizar o nome, ou melhor, a entidade por ele nomeada. É uma das classes morfológicas mais subjectivas que existe, pois traduz sempre o ponto de vista do sujeito que o utiliza. Mesmo nas situações mais concretas, a qualidade que ele manifesta é sempre relativa. É, por este facto, uma classe morfológica de enormes potencionalidades estilísticas e sugestivas.Em regra geral, o adjectivo é posposto ao nome. Todavia, utiliza-se muitas vezes em anteposição. Esta liberdade torna-se sobretudo preciosa quando o autor recorre a uma dupla ou tripla adjectivação, podendo, assim, variar a colocação dos adjectivos e evitar uma enumeração mais monótona de adjectivos:

“Uma deliciosa cadelinha escocesa” Eça de Queirós

“longos, espessos, românticos cabelos grisalhos.” Eça de Queirós

Contudo, algumas vezes a anteposição do adjectivo altera o seu valor significativo. (“Um homem pobre” é diferente de “um pobre homem”.

O adjectivo, responsável pela caracterização da realidade, fornece aspectos de índole material ou física, psicológica, moral, social, etc., facto que enriquece de sobremaneira a apresentação que se pretende da realidade:

“Deu sinal a trombeta castelhana / Horrendo, fero, ingente e temeroso.” Camões

“Espalhou pela nora o seu olhar azul e doce.” Eça de Queirós

“Uma gente feíssima, encardida, molenga, reles, amarela, acabrunhda.” Eça de Queirós

O aluno terá, pois, de identificar esse valor do adjectivo. Pode ainda acontecer o inesperado, ou seja, fazer-se uma utilização inadequada, à primeira vista, do adjectivo relativamente ao substantivo. É o caso da hipálage, em que o adjectivo se relaciona apenas metonimicamente com o substantivo, por interposição ou subentendimento de outro substantivo (outra realidade):

“Ó visão, visão triste e piedosa! Fita-me assim calada, assim chorosa (…)”

Antero de Quental

“Tricotava umas meias sonolentas.” Eça de Queirós

“Entre uma fumaça lânguida, a voz de Carlos ergueu-se de novo na paz dormente do quarto.” Eça de Queirós

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Poderá, ainda, presenciar-se a substantivação do adjectivo, facto que pretenderá intensificar a qualidade por ele expressa:

“ A mesma pena que na frieza nos espanta, no ardente do amor grande alegria nos dera.”

A professora: Maria da Conceição Crispim

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