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FERNANDO SFAIR KINKER
O LUGAR DO MANICÔMIO: RELATO DA EXPERIÊNCIA DE DESCONSTRUÇÃO DE UM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO NO INTERIOR DO
NORDESTE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
PUC-SP
SÃO PAULO
2007
FERNANDO SFAIR KINKER
O LUGAR DO MANICÔMIO: RELATO DA EXPERIÊNCIA DE DESCONSTRUÇÃO DE UM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO
NO INTERIOR DO NORDESTE
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Ciências Sociais, sob orientação da Profª. Doutora Caterina Koltai.
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
PUC-SP
SÃO PAULO
2007
BANCA EXAMINADORA
__________________________________ CATERINA KOLTAI
__________________________________ EDGARD DE ASSIS CARVALHO
__________________________________________ CARMEN LUCIA MONTECCHI VALLADARES
AGRADECIMENTOS À Lígia, Gabriel e Fernanda, por dividirmos a vida juntos. À minha mãe Elza, meu pai e meus irmãos, por tudo o que já dividimos na vida. À minha orientadora Caterina, pelo respeito, a paciência e os ensinamentos. Às grandes amigas Anita, Suzana e Vália, pela intensa experiência que vivemos juntos, com muita cumplicidade e reciprocidade. A todos os outros grandes amigos(as) e companheiros(as) que participaram comigo do processo de desinstitucionalização: Lívia, Geraldo, Erinaldo, Vitória, Aroldo, os artistas, Sara, Fernandinho, o bispo, Zélia, Assis, Jonas, Zé Edison e tantos outros companheiros(as), e a todos os trabalhadores em saúde mental de nossa cidade. Aos amigos(as) Fernanda, Silvana e Tyka, pelo generoso apoio e colaboração. A todos os companheiros do Ministério da Saúde, em especial Pedro Gabriel e Karime, pela trajetória que cumprimos juntos, sempre podendo contar uns com os outros. Aos pacientes do hospital, com quem pude compartilhar descobertas e projetos comuns. Aos trabalhadores e aos usuários dos serviços de saúde mental de Santos, por tudo o que me ensinaram, em especial Rô, Cibele, Aninha, Féfi, Lúcia R., Eliana, Parati, Sueli, Lúcia D., Beni, Marisa, Kátia, Neuza, Milene, Fátima, Ricardo, Stela,Toninho, Renato, Raimundo,Zé Dias, Susi, Marcelinho, Zé Roberto, Lúcia, Zé Luiz, Jacaré ... e tantos outros. Aos meus amigos da vida (Elcio, Rildo, Willian e tantos outros), com quem vivi belos momentos, serenatas e aventuras.
RESUMO
O objeto desta dissertação é a experiência de transformação de um hospital psiquiátrico
localizado numa cidade do interior nordestino. Seu objetivo é relatar a experiência da
intervenção federal que lá se deu em 2005 e tecer reflexões relativas ao papel do manicômio
na sociedade contemporânea.
Partiu-se da hipótese de que o hospital psiquiátrico atual funciona nem tanto a partir de uma
lógica disciplinar, que acompanhou durante anos o desenvolvimento do asilo, mas de uma
nova lógica do abandono, em sintonia com as novas formas de desregulamentação que
caracterizam os novos padrões de sociabilidade dos tempos atuais.
Seu estofo teórico são as contribuições de Franco Basaglia e colaboradores, na perspectiva
teórico-prática da desinstitucionalização, e a obra de Michael Foucault, no que se refere à
genealogia do hospital psiquiátrico e às relações saber/poder. Estão presentes também, ainda
que de forma fragmentada e pontual, vários outros autores e conceitos. Dentre esses
conceitos, destaca-se o de complexidade, presente nas idéias de Edgar Morin, que alerta
para a necessidade de não simplificar o fenômeno da loucura nem as respostas dadas a ele.
O corpo do trabalho é composto por um “diário de bordo”, escrito à época dos
acontecimentos, e de reflexões teóricas a ele associadas.
A aposta é que, ao demonstrar na prática o significado dessa nova lógica do abandono, este
relato possa também contribuir para a prática e a teoria da reforma psiquiátrica em
andamento no Brasil.
ABSTRACT This dissertation has as its object the transformation experience of a psychiatric hospital
located in an inland city of the Brazilian Northeast. It gives an account of the Federal
Government intervention performed by the Ministry of Health in that hospital that took
place in 2005 and makes some reflections about the role of the mental institutions in the
contemporary society.
We argue that nowadays psychiatric hospitals do not operate based on a disciplinary logic,
that supported the development of the asylums for many years, but under a new logic of
abandoning, tuned with the new forms of deregulation that characterize the new standards of
sociability of the present times.
The theoretic framework has contributions from Franco Basaglia and collaborators, in the
perspective of practical-theoretical deinstitutionalization, and from Michel Foucault’s works
on the psychiatric hospital genealogy and the relation between power and knowledge. Also
there are, although fragmentary and punctual, references to many others authors and
concepts within which we highlight the Edgar Morin’s concept of Complexity, that warn us
to not simplify neither the madness phenomenon, nor the responds given to it.
The body of the work is compounded by a logbook, written by the time of the events, and
reflections related to it. The stake here is that demonstrating this new logic of abandoning of
the mental institutions, this account may contribute to the practice and theory of the current
psychiatric reform in Brazil.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 1
DIÁRIO DE BORDO DA INTERVENÇÃO – PARTE I 12
Viagem ao centro do inferno ou (pedindo licença a Slavoj Zizek)
BEM-VINDO AO DESERTO DO REAL! 13
O início 13
Trocando as portas de ferro por pessoas e diálogos 24
Efeitos da institucionalização 46
Preparando a mudança 62
A mudança e o início de nova intervenção 72
DIÁRIO DE BORDO DA INTERVENÇÃO – PARTE II 74
Um novo contexto e novas subjetividades surgem, exigindo o acesso a
novas experiências 75
Adeus, manicômio! 75
A nova dinâmica do trabalho 84
DIÁRIO DE BORDO DA INTERVENÇÃO – PARTE III 93
Os desdobramentos: o começo da despedida 94
A terceira fase 94
Muitas mudanças ocorreram 97
DIÁRIO DE BORDO DA INTERVENÇÃO – PARTE IV 99
O dia seguinte: reflexões trazidas pela experiência 100
Momento de reflexão 1: O lugar do hospital psiquiátrico 101
Momento de reflexão 2: A psiquiatria, seus profissionais e seus
pacientes: simplificando existências 109
Momento de reflexão 3: Manicômio e ordenamento jurídico 114
Momento de reflexão 4: Saindo do manicômio para não mais voltar:
em direção ao território 117
Momento de reflexão 5: Reforma psiquiátrica: problematizando o poder e
superando a sociabilidade da mercadoria 120
Momento de reflexão 6: Uma crítica ao manicômio 124
CONCLUSÃO 127
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 131
NOTAS 138
Índice de ilustrações Entrada de pavilhão composto por celas fortes, desativado poucos meses antes da
intervenção, p. 13
Corredor de enfermaria masculina, p. 18
Interior de um quarto de enfermaria masculina: falta de colchões, p.18
Quarto de enfermaria feminina: mulheres contidas mecanicamente no leito, p. 23
Quarto de enfermaria masculina, p. 23
Parede de uma cela forte, com a seguinte inscrição: “Homem tem que ser homem”, p. 28
Porta de ferro de acesso a uma enfermaria, p. 48
Pátio masculino, p. 60
Interior de uma cela forte: destaque para a cama de alvenaria, p. 75
Festa com cooperativa de artistas, diante do prédio do novo serviço, no centro da cidade:
dança da ciranda I, p. 87
Festa com cooperativa de artistas, diante do prédio do novo serviço, no centro da cidade:
dança da ciranda II, p. 87
Festa com cooperativa de artistas, diante do prédio do novo serviço, no centro da cidade:
roda de capoeira, p. 87
Pátio interno que liga duas enfermarias do hospital que sofreu a intervenção, p. 100
* As fotografias do hospital, incluídas neste trabalho, foram encomendadas pela Comissão
de Intervenção ao fotógrafo Antônio Ronaldo e tiradas em 19 de abril de 2005. As
fotografias da festa com a cooperativa de artistas, por sua vez, são de autoria de Lígia
Cardoso Kinker e datam de julho de 2005.
2
O objeto desta dissertação é a experiência de transformação de um hospital
psiquiátrico localizado numa cidade do interior nordestino. Seu objetivo é relatar a
experiência da intervenção federal que lá se deu em 2005 e tecer reflexões relativas ao
papel do manicômio na sociedade contemporânea.
Para chegar a esse tema e definir o problema deste trabalho, percorri um
caminho delineado por minha história pessoal. Inicialmente, eu tencionava refletir sobre
temas relacionados à reforma psiquiátrica brasileira e ao confronto cotidiano com a
loucura.
Reforma psiquiátrica é o termo utilizado para designar o processo de
transformação prática e teórica no campo da assistência psiquiátrica, um processo que
se iniciou no Brasil no final dos anos 1970, influenciado por experiências desenvolvidas
na Europa e nos EUA depois da Segunda Guerra Mundial, a partir da crítica ao modelo
clássico do paradigma psiquiátrico focado no asilamento hospitalar (Amarante, 1995).
O elemento responsável pela escolha do tema foi minha trajetória em alguns
momentos dessa reforma, principalmente no processo de desinstitucionalização iniciado
com a intervenção, em 1989, num hospital psiquiátrico da cidade de Santos, a Casa de
Saúde Anchieta, – um marco para a reforma psiquiátrica no Brasil.
A experiência em Santos caracterizou-se pela desconstrução completa do
manicômio, com a concomitante implantação de uma rede de serviços comunitários
extra-hospitalares que, ao longo de poucos anos, eliminou da cidade os espaços de
segregação do doente mental, estabelecendo uma nova lógica de cuidado e mediação
das relações dos pacientes comprometidos com transtornos severos em seu território de
existência (Kinoshita, 1996; Nicácio, 1994).
Tendo participado ativamente da construção de uma rede material e relacional
em Santos que possibilitava ao doente mental tornar factível seu desempenho
existencial, passei a desenvolver projetos coletivos de trabalho junto com os pacientes,
dentro do que atualmente se chama de economia solidária. Ao longo do tempo, esses
projetos possibilitaram a criação de uma cooperativa de trabalho, talvez a primeira no
Brasil formada basicamente por pessoas com transtornos mentais graves e por pessoas
em situação de rua. Esses projetos sempre buscaram entrelaçar projetos comuns entre os
pacientes e outros atores, capazes de inventar condições concretas e favoráveis de vida,
3
que mudassem o imaginário social sobre a loucura, assumindo uma postura fortemente
crítica diante do mercado, uma vez que este obedece a regras relacionadas com os
valores de normalidade que justificam o internamento de quem vive uma experiência de
sofrimento psíquico.
Diante dessas experiências, minha pretensão inicialmente era discutir nesta
dissertação o tema do trabalho nos processos de reforma psiquiátrica, associando a ele
os temas da emancipação e do território, pois o território é o lugar privilegiado de
atuação dessas novas tecnologias de atendimento em saúde mental, que tentam superar
o espaço asilar.
Embora meus interesses e intenções pairassem por temas tão amplos, que
circulariam em torno de exemplos de práticas de saúde mental, um desvio de rota, ou,
como diria Gilles Deleuze, o desvio que possibilita o devir (Deleuze, 1998), ocorreu
quando fui convidado a ser o interventor num hospital psiquiátrico no interior de um
Estado do Nordeste. Esse convite também foi estendido a outras pessoas, que
comporiam, no futuro, uma equipe de intervenção.
Uma tarefa peculiar, que integrava uma série de procedimentos destinados a
retirar os hospitais psiquiátricos em diversos estados do Brasil de suas condições
precárias. No caso específico desse hospital, a intervenção foi precedida por um
importante trabalho de acompanhamento e fiscalização da instituição, realizado por uma
equipe local e supervisionado por uma consultora do Ministério da Saúde, que fez todas
as articulações para criar as condições necessárias para garantir sua operacionalização
(posteriormente essa consultora se juntou à equipe de intervenção).
A proposta das intervenções foi liderada pela Coordenação de Saúde Mental do
Ministério da Saúde e por pessoas dedicadas havia tempo à reforma psiquiátrica.
No entanto, além das incertezas sobre a viabilidade dessas intervenções, havia
temores pontuais ligados sempre às peculiaridades de cada região, como, por exemplo,
os relacionados às condições de segurança e de integridade física de quem tentasse
intervir em uma realidade composta por relações de poder familiares e locais, poderes
de hierarquia sobre as condições de vida de muitas pessoas.
Aceitei o desafio e, assumindo o papel de interventor federal nomeado pela
justiça federal num hospital psiquiátrico, passei a viver intensamente um processo de
4
mudança institucional que reverberou por uma cidade inteira e, com certeza, por dentro
de mim.
É do relato dessa experiência, e das reflexões produzidas a partir dela, que trata
este estudo.
O relato é “quente”, pois foi elaborado no decorrer da experiência que durou
poucos meses, meses que pareceram durar muito mais. Como continuei a fornecer apoio
à prefeitura local na construção da rede de serviços comunitários e na continuidade do
trabalho com as questões produzidas pela intervenção, o que se estendeu por vários
meses, o próprio relato vai até pouco tempo depois da intervenção, quando então realizo
um corte.
Não modifiquei muito o andamento do relato, para que não se perdesse o calor
do momento em que foi escrito. Gosto de chamá-lo de “diário de bordo da intervenção”.
Hipótese e método
Trabalho com a hipótese de que, na sociedade contemporânea, o manicômio tem
a função de gerir refugos sociais a partir de uma lógica do abandono. O projeto
disciplinador que as instituições asilares assumiram no decorrer de sua história já não se
aplica atualmente.
A instituição psiquiátrica resistiu às investidas dos projetos de reforma
psiquiátrica iniciados em vários países desenvolvidos do Ocidente desde o fim da
Segunda Guerra Mundial. E resiste até hoje, embora tenha se adaptado às novas
modalidades flexíveis de controle dos desvios operados na sociedade contemporânea.
Essas experiências de reforma foram produzidas em contextos socioculturais diferentes
e segundo diferentes referenciais teóricos (Rotelli; De Leonardis; Mauri, 1990).
Os referenciais teóricos, e as lições práticas delineadas pela experiência italiana,
desenvolvida a partir dos anos 1960 sob a liderança de Franco Basaglia, servem de
estofo teórico para esta dissertação. Elas já foram um referencial fundamental na
experiência de Santos (Kinoshita, 2001; Nicácio, 1994) e continuaram a influenciar o
meu olhar sobre o fenômeno da intervenção.
5
A perspectiva teórica de Basaglia e colaboradores (Rotelli; De Leonardis; Mauri,
1990) pode ser denominada de “desinstitucionalização”. Contudo, não se deve
confundir a perspectiva teórica da desinstitucionalização italiana com uma política de
desospitalização (como se caracterizou a experiência dos EUA), nem com a crítica à
existência das instituições, como era a perspectiva da antipsiquiatria (ibid., 1990).
A perspectiva americana estava vinculada a uma política de racionalização
administrativa e financeira no campo da saúde mental, viabilizando alternativas mais
baratas para atender à demanda neoliberal de revisão das custosas políticas do Welfare
State. Como não se tinha como horizonte um questionamento profundo do paradigma
psiquiátrico, de seus referenciais teóricos e de sua prática, manteve-se o hospital como
um lugar estratégico e necessário no atendimento à saúde mental, apesar da diminuição
do contingente de pacientes internados (Amarante, 1995).
A perspectiva da antipsiquiatria inglesa, de Laing, Cooper e colaboradores, veio
questionar a própria existência da doença mental e, a partir daí, toda série de instituições
sociais ligadas à produção do sofrimento, inclusive a família (ibid., 1995).
A perspectiva italiana é diferente, e dá um sentido singular à noção de
desinstitucionalização.
Segundo Nicácio (2003: 93),
como desconstrução dos saberes, práticas, culturas e valores pautados na
doença/periculosidade, a desinstitucionalização requer desmontar as respostas
científica e institucional, romper a relação mecânica causa-efeito na análise de
constituição da loucura, para desconstruir o problema, recompondo-o, re-
contextualizando-o, re-complexificando-o.
Não significa negar a doença, mas ter como objeto de intervenção a “existência-
sofrimento dos pacientes e sua relação com o corpo social” (Rotelli, 1990: 90). Significa
superar a simples modernização da assistência, que mantém o mesmo sentido
simplificador da experiência do sofrimento psíquico, anulando os pacientes e reforçando
sua anulação e invalidação social.
Envolvido com uma prática concreta de negação da instituição asilar, Basaglia
pôde questionar o papel do hospital psiquiátrico na manutenção das relações de
dominação próprias do sistema social, o papel dos profissionais (entre o cuidar e o
6
controlar através da segregação), a ideologia da psiquiatria enquanto produtora de
conhecimentos balizados na proteção da sociedade em detrimento do sujeito que sofre, e
a função da ciência como determinada pelos processos econômicos e suas formas de
dominação (Basaglia, F.; Basaglia, F. O., 1977).
Basaglia, tanto no manicômio de Gorizia como no de Trieste, utilizou o processo
de transformação das condições materiais e relacionais do manicômio como um
laboratório que forjava novas possibilidades de relação com os doentes, onde se
produziam e fortaleciam os laços de reciprocidade para se compartilhar o risco da
liberdade daqueles, fora do manicômio. A liberdade não como uma abstração, mas
como possibilidade concreta de se viver sem o manicômio, com todos os conflitos e as
mudanças necessárias que isso implicaria. Viver as contradições da realidade, como diz
Basaglia (1977), organizando as respostas terapêuticas a partir das necessidades reais
dos sujeitos, e não a partir da noção de um homem abstrato. Lidar com o sujeito que
vive uma existência de sofrimento, sem deixar que a forma simplificadora de traduzir a
doença, expressa na nosografia psiquiátrica, o rotule de forma a que ele passe a ter uma
presença negativa, passe a ser visto só como doença.
Uma segunda chave de leitura, que considero importante para o entendimento
dos caminhos que este trabalho trilhará, é a idéia de complexidade de Edgar Morin. Sem
pretender me aprofundar em seu pensamento, para mim ele sinaliza para a necessidade
de se evitar o reducionismo e a fragmentação. Ao propor a superação de um
determinismo mecanicista, a idéia de complexidade em Morin aponta para o
reconhecimento de polideterminações, subdeterminações, indeterminações, que
interferem no suposto determinismo cultural sobre as idéias, os valores e o
conhecimento. Como ele mesmo diz:
Em conseqüência, a sociologia do conhecimento não pode apenas detectar as
limitações sociais, culturais, históricas que imobilizam e aprisionam o
conhecimento. Ela deve também considerar as condições que a mobilizam ou
liberam, isto é, as condições que permitem a autonomia do pensamento e,
correlativamente, as condições sociais, culturais, históricas das possibilidades
de objetividade, de inovação e de evolução no domínio do conhecimento.
(Morin, 2002: 33)
7
Há espaços para os desvios, as invenções criativas e para certa autonomia
cognitiva, a conviver com a influência da normalização proveniente dos processos
culturais (Morin, 2002: 97). A complexidade dos fenômenos é o que leva à necessidade
de um conhecimento complexo, pois a realidade é mais complexa do que a ciência
cartesiana consegue explicar, embora não se possa prescindir da lógica dedutivo-
identitária desta última, que deve ser utilizada apenas até seu limite, transbordando
depois para outras formas de conhecimento. Assim, falar de complexidade implica
considerar as várias dimensões vinculadas às idéias e à construção do conhecimento.
Significa dizer não apenas que o menor conhecimento comporta elementos
biológicos, cerebrais, culturais, sociais, históricos. Quer dizer, sobretudo, que a
idéia mais simples necessita conjuntamente de uma formidável complexidade
bioantropológica e de uma hipercomplexidade sociocultural. Falar em
complexidade é, como vimos, falar em relação simultaneamente
complementar, concorrente, antagônica, recursiva e hologramática entre essas
instâncias co-geradoras do conhecimento. (Morin, 2002: 23)
Lidar com um fenômeno complexo como o do sofrimento psíquico exige um
olhar complexo, pontos de vista diversos e que superem a simplificação, viabilizando
um diálogo com variadas disciplinas. Essa lição, nada simples de seguir, influenciou a
atitude de tentar, neste trabalho, questionar tanto o lugar passivo e empobrecido dos
doentes, como o lugar dos profissionais de saúde mental, que podem estar envolvidos
em práticas igualmente simplificadoras de seu papel e de sua função e inibidoras de suas
potencialidades.
Outra presença freqüente nesta dissertação são as referências a Michel Foucault.
A influência desse filósofo no âmbito da discussão sobre a loucura e a psiquiatria é
inegável, até mesmo entre os autores italianos.
As descrições e análises apresentadas neste trabalho, portanto, têm também
como chave de leitura a genealogia do hospital psiquiátrico e a questão da relação saber-
poder, tão bem analisadas por Foucault. Essas relações saber-poder encontram-se na
origem do paradigma psiquiátrico, produzindo os efeitos de verdade que darão todo o
substrato para legitimar socialmente a psiquiatria enquanto única intérprete da
experiência da loucura, e a quem esta passa a estar totalmente submetida. Desse modo,
8
criticar o discurso psiquiátrico tradicional e o manicômio implica necessariamente
realizar uma profunda crítica das relações de poder (Foucault, 2006).
A função do hospital psiquiátrico já foi longamente discutida e elaborada, entre
outros autores, por Michel Foucault e Franco Basaglia, que se tornaram referências
fundamentais nesse campo.
O que tentarei apontar neste trabalho, e que a hipótese delineada procura
explicitar, é a importante presença de uma lógica do abandono no funcionamento da
instituição que sofreu a intervenção. Em outras palavras, apresentarei alguns matizes da
experiência que tive nesse hospital em particular, e que me levaram a refletir sobre o
funcionamento e o papel do hospital psiquiátrico hoje.
A técnica que utilizo para explicar essa lógica do abandono é a descrição de
minha vivência no hospital, relacionando-a com as contribuições teóricas de vários
autores, o que se dará principalmente sob a forma de notas, inseridas no final do
trabalho.
A minha aposta é a de que, aos poucos, à medida que eu for descrevendo os
acontecimentos, tornar-se-á compreensível o que quero dizer com lógica do abandono.
Trata-se de um abandono que, a meu ver, se combina muito bem com as novas formas
de controle capilar apontadas pelos autores que vêem uma nova configuração dos
mecanismos de controle, desta vez não mais focados na segregação e na separação das
pessoas que se desviam (Deleuze, 1992). Em outros termos, as novas formas de
controle, não mais baseadas na separação e na segregação, não substituem simplesmente
a segregação que hoje se dá sob a forma do abandono, mas se combinam com ela,
complementando-a.
Acredito que isso poderia ser útil para mostrar como, afinal, é um hospital
psiquiátrico por dentro. Este relato poderia ser útil mesmo para muitos dos profissionais
que trabalham nos novos serviços territoriais, mas que nunca tiveram a experiência de
trabalhar num manicômio, levando-os a ter um novo olhar sobre seu próprio trabalho e a
entender sua importância. Além disso, conhecer um hospital psiquiátrico torna mais
clara a crítica dirigida ao paradigma psiquiátrico, à sua lógica e aos seus conceitos.
Penso também que este trabalho poderia contribuir para aumentar o conhecimento do
processo de construção da prática e da teoria no âmbito da reforma psiquiátrica. O relato
9
poderia apontar um dos modos possíveis de enfrentar os desafios cotidianos
apresentados por um processo de desconstrução de um hospital, articulado com a
composição de uma nova rede de atendimento. Poderia demonstrar, ainda, como e com
qual intensidade um processo como esse pode produzir mudanças nas condições de vida
e na própria vivência do sofrimento dos pacientes, nos papéis profissionais e na parte da
sociedade que acompanha e participa dos fatos. Por fim, mas não menos importante,
este trabalho poderia constituir também uma leitura crítica da ciência positivista,
indicando as conseqüências concretas dessa visão de mundo quando ela passa a ser
aplicada de modo acrítico (como se tivesse vendas nos olhos).
Este “diário de bordo” está dividido em quatro partes, que se iniciam logo após a
introdução. Cada parte representa um corte no tempo e procura marcar conjunturas
distintas.
A primeira parte (abril a junho de 2005) relata desde o primeiro contato com o
hospital até as ações que passaram a transformá-lo. Apresenta várias situações vividas
internamente ao hospital, mas também os embates externos que se deram como forma
de garantir a legitimidade e a governabilidade da intervenção.
A segunda parte (julho a setembro de 2005, aproximadamente) marca o final da
intervenção oficial, quando se deu o descredenciamento do hospital do SUS e a
mudança de prédio para a continuidade do trabalho, já que ainda havia um grupo de
pacientes que exigiam um trabalho intenso, e a possibilidade de se permanecer no antigo
hospital tornou-se inconcebível, pelos motivos que relatarei no diário. Esta segunda fase
foi muito bela porque envolveu no contato com os pacientes muitos profissionais que
jamais haviam trabalhado com a questão da saúde mental. O resultado desse encontro
deles com os internos foi algo surpreendente.
A terceira parte (setembro a novembro de 2005, aproximadamente) relata uma
nova mudança sofrida referente ao grupo de profissionais que acompanhavam os
pacientes. Essa nova troca de equipe, necessária pelos motivos que expressarei
posteriormente, trouxe novas mudanças na dinâmica do trabalho, e significou o início da
completa desconstrução da estrutura hospitalar, em direção a uma nova rede de serviços
que se implantava.
10
A quarta parte do diário (a partir de fevereiro de 2006) diz respeito às reflexões
que a experiência de intervenção produziu. Esta parte foi escrita bem depois que o
processo terminou, e tenta aprofundar algumas das reflexões apresentadas nos capítulos
anteriores, abordando também a hipótese levantada neste trabalho. Procura ainda trazer
algumas discussões sobre o papel dos serviços comunitários na perspectiva da reforma
psiquiátrica, e propor questões críticas acerca de temas que poderiam ser mais bem
discutidos por ela.
Posteriormente, apresento uma breve conclusão.
O nome do hospital e dos personagens envolvidos, bem como sua localização
geográfica, foram omitidos intencionalmente, como forma de preservar a integridade
daqueles que participaram do processo e reforçar que a importância deste trabalho
reside nos debates teóricos que proporciona, e não na identificação ou em qualquer tipo
de julgamento dos atores envolvidos.
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Boa viagem, meu amigo! Ao tirardes os pés do chão, Agarra as mãos às estrelas. E não deixes O vácuo engolir teu corpo. Balbucie com teu corpo Besteiras. Que a boca engula as órbitas circulares, Os pés chutem os meteoritos. És um corpo ou tens um corpo? Nem sabes se és o mundo, Ou se estás nele. És um louco sonhador ou um sonho louco? És cabeça, pés, tronco e mãos? Ou és cérebro?
13
Viagem ao centro do inferno ou
(pedindo licença a Slavoj Zizek)
BEM-VINDO AO DESERTO DO REAL!
Entrada de pavilhão composto por celas fortes, desativado poucos meses antes da intervenção.
O início
Fui convidado pelo Ministério da Saúde para ser o interventor num hospital
psiquiátrico numa cidade do interior do Nordeste. Esse hospital havia sido reprovado
mais de uma vez nas avaliações anuais aplicadas em todos os hospitais psiquiátricos do
Brasil1. A intervenção havia sido solicitada pelo Ministério à Justiça Federal, não tendo
sido portanto realizada prontamente como o foram outras intervenções federais que
apontavam para a necessidade de remediar situações calamitosas e emergenciais. Assim,
o pedido de intervenção teve que aguardar alguns meses para ser julgado e deferido pela
justiça.
14
Acredito que esse fato se deva ao ínfimo poder contratual que os escondidos
pacientes psiquiátricos possuem nos hospitais psiquiátricos, esses calabouços da
existência social, em que o “Real” impera.
Convém observar que, na perspectiva lacaniana, não se deve confundir o “Real”
com a noção corrente de realidade. Para Lacan, o “Real” designa uma realidade
fenomênica imanente à representação e impossível de simbolizar. Em sua tópica de 3
elementos que abrange seu conceito estrutural de um inconsciente determinado pela
linguagem, o Real aparece ao lado do Imaginário e do Simbólico2, sendo um resto, uma
realidade desejante inacessível a qualquer pensamento subjetivo, ou mesmo a realidade
própria da psicose (Roudinesco e Plon, 1998).
Zizek (já mencionado no título deste capítulo) recorre a esse conceito lacaniano
para se referir ao ataque terrorista às Torres Gêmeas ocorrido em 11 de setembro de
2001 nos EUA (Zizek, 2003). Foi a esse “Real” que Zizek aludiu ao relatar os episódios
do 11 de setembro, episódios que levaram ao primeiro mundo as experiências
catastróficas vividas cotidianamente em países do terceiro mundo, como os da África,
por exemplo.
Alguns exemplos ajudarão a descrever um pouco a situação em que eu e a equipe de
intervenção encontramos o hospital psiquiátrico:
Vigilância
Um pan opticum3 um pouco desfocado (quase cego, talvez) e com muitos
tentáculos. Uma organização destituída de uma lógica centralizadora – embora não
faltasse ali a intenção de tudo controlar e dominar – mas uma lógica mais próxima do
caótico.
Em cada corredor uma porta de ferro. Em cada porta de ferro, seus seguranças (assim
eram chamados os atores mais próximos dos pacientes, com seus jalecos azuis que traziam
escrito em branco, com letras garrafais, para não deixar dúvidas: “S-E-G-U-R-A-N-Ç-A”).
A tarefa dos seguranças era manter sob controle as chaves e as portas, os poucos
fluxos de movimento existentes, entre o espaço da enfermaria e o espaço aberto do
“banho de sol”. Cabia a eles vigiar, não acompanhar nem dialogar.
15
Como pastores de ovelhas, conduziam seu rebanho para que a máquina da
instituição pudesse girar como um fim em si mesma (sem a noção do tempo – a não ser
o tempo marcado pelas refeições – e evitando qualquer ação capaz de produzir
instabilidade ou algo novo).
Vítimas do próprio controle que exerciam, que também os cronificava numa
condição de objetos ou ferramentas de uma máquina institucional, limitavam-se a abrir
e fechar portas como quem aperta parafusos numa esteira fordista: não sabiam ao certo
o que e por que faziam, mas seguiam a delegação dos “doutores” da ciência psiquiátrica,
os verdadeiros donos do poder da máquina, tão vítimas quanto os empregados por sua
alienação e falta de crítica, que pouco ficavam nas enfermarias ou apenas entravam
nelas de passagem para refazer as prescrições de medicamentos.
Como os rebanhos e as massas proletárias, também os pacientes deveriam ser
tratados como algo quase amorfo. Singularização ou resgate da história de vida pessoal
praticamente inexistiam4.
A prescrição das medicações também seguia a lógica de massa: igual para todos.
O pobre e insuficiente arsenal de medicações era distribuído igualitariamente por uma
enfermeira que, carregando uma bandeja repleta de comprimidos coloridos, depositava
nas mãos de cada componente de uma longa fila a ração química que lhe cabia.
Embora mecanizados e objetivados, contudo, esses profissionais não pareciam
submeter os pacientes a agressões físicas aleatórias. No entanto, a contenção mecânica
no leito era comum, e obedecia à lógica de manter a máquina em funcionamento.
Não seria simples mudar uma situação como essa.
As fagulhas de afeto, tão necessárias à posterior reflexão e produção de crítica,
poderiam surgir e virar um fogo acolhedor quando se desconstruíssem esses
mecanismos destrutivos, restabelecendo o diálogo a partir da crítica e do
compartilhamento de vivências e decisões, como foi o processo que eu e alguns
colaboradores posteriormente iniciamos com esses atores, modificando a dinâmica
institucional. Esse processo será descrito após a apresentação da instituição.
16
Infra-estrutura ou condições concretas de subsistência
A situação que encontramos era muito precária. Além de despojados da
condição de sujeitos, os pacientes também estavam despojados de colchões (em
algumas enfermarias não havia sequer camas), de água nos banheiros, de iluminação
nos quartos, de banheiros nos pátios, de roupas nos corpos, de sabonetes para o banho,
de comida decente. Estavam “apoderados” de fome, sarna e piolhos. Sua higiene era
precária, só tomavam banhos coletivos de mangueira, comiam arroz e carne com osso
no almoço, sopa de macarrão com osso no jantar. Os funcionários diziam, com
naturalidade, que os banhos coletivos com creolina eram prática comum para tentar
debelar a sarna, já que não existiam remédios próprios para isso.
Médicos e seguranças também me apresentaram justificativas bem deprimentes
para alguns acontecimentos, tais como:
a) a falta de colchões devia-se à “prudência” de não substituí-los
desnecessariamente num ambiente em que eram comuns as disputas e lutas corporais
por pedaços de espuma para evitar o contato do corpo com o chão gelado ou com a
madeira áspera e dura dos estrados das camas. Ou num ambiente em que as mulheres,
por falta de absorventes higiênicos, cortavam pedaços de colchão para utilizá-los como
tais;
b) a falta de lâmpadas era também pensada e “estratégica”. Os internos, segundo
alguns profissionais, “atacavam” as lâmpadas que, estilhaçadas, arriscavam cortar-lhes
as mãos. Tal falta de civilidade (afinal, quebrar lâmpadas para ficar no escuro, negando
todo o progresso tecnológico da humanidade, só poderia ser sinal de incivilidade) nada
tinha a ver com o abandono ao qual eram relegados os pacientes. Em outras palavras, os
profissionais não se davam conta de que tal justificativa era a prova do abandono dos
internos, do fato de estes permanecerem trancados à própria sorte, sem o
acompanhamento de alguém que deveria cuidar deles e com eles dialogar. Que outro
significado poderia ter essa “quebradeira” de lâmpadas, senão uma fagulha de vida, um
revoltar-se com a negação constante e perene do direito de viver em liberdade ou, pelo
menos, de poder ser visto como uma pessoa e não como um objeto, um móvel?
O cheiro de urina e fezes dominava os espaços de reclusão. No pátio havia um
cubículo, talvez muito próximo de um estábulo de concreto, onde os pacientes deviam
17
urinar e defecar. Não havia vasos sanitários nem locais certos para isso, o cubículo todo
era um vaso plano, feito de chão.
Era constante a presença de corpos nus, rodeados de moscas.
As condições de existência intra-hospitalar encontradas eram muito graves, e
tornavam-se ainda mais graves e inumanas por serem atribuídas aos quadros
psicopatológicos ou apenas às reações e aos comportamentos dos pacientes. Culpar a
doença ou os doentes não era uma novidade, e esse recurso já havia sido apontado por
Franco Basaglia desde o início dos anos 1960 (Basaglia, 1985), quando ele trabalhou no
manicômio de Gorizia, na Itália, e começou a produzir todo o conhecimento e a prática
do que chamamos de desinstitucionalização5.
Era a lógica da perpetuação e do aprofundamento da privação. A cada vez se
retiravam mais coisas (os colchões, as lâmpadas), ao invés de se pensar o significado de
tal situação e responder positivamente, oferecendo o que faltava. Novamente, cabe a
pergunta: o que denunciava a retirada das lâmpadas ou das espumas dos colchões?
O espaço de troca zero da instituição psiquiátrica, como afirmou o psiquiatra
italiano Franco Rotelli (Rotelli, 1990), pouco a pouco se configurava como um mundo
de engrenagens infernais. O hospital era uma máquina que construía uma mercadoria
abjeta, aquela que ninguém queria possuir (a não ser os empresários dos hospitais
privados).
18
Corredor de enfermaria masculina.
Interior de um quarto de enfermaria masculina: falta de colchões.
19
O hospital pré-pineliano
Vi-os nus, cobertos de trapos, tendo apenas um pouco de palha para se abrigar da fria umidade do
chão sobre o qual se estendiam. Vi-os mal alimentados, sem ar para respirar, sem água para matar
a sede e sem as coisas mais necessárias à vida. Vi-os entregues a verdadeiros carcereiros,
abandonados a sua brutal vigilância. Vi-os em locais estreitos, sujos, infectos, sem ar, sem luz,
fechados em antros onde se hesitaria em fechar os animais ferozes, e que o luxo dos governos
mantém com grandes despesas nas capitais. (Esquirol, Des établissements consacrés aux aliénés
en France,1818, in Des maladies mentales, Paris, 1838, apud Foucault, 2005: 49)
Tomo emprestadas aqui as palavras de Esquirol, citadas por Foucault, que
trouxeram as impressões desse importante reformador, alienista contemporâneo de
Pinel, sobre o estado geral dos primeiros asilos de alienados (descrito no relatório de
1818), que havia pouco tinham substituído os hospitais gerais, quando do início das
reformas que iriam dar na implantação do tratamento moral6.
Embora o contexto, a importância e a perspectiva das experiências dos primeiros
alienistas e da experiência que relato no diário da intervenção sejam totalmente
diferentes, as palavras de Esquirol poderiam muito bem ser aplicadas para descrever a
situação encontrada no hospital em que se deu a intervenção.
As camas sem colchões, as dependências sujas e insalubres, os grandes espaços
gradeados que se assemelhavam a grandes celas coletivas (sem falar das celas fortes
individuais, desativadas pouco antes de nossa chegada), a falta absoluta de diálogo com
os internos e a redução destes a uma condição de insignificância sem dúvida lembravam
as descrições do asilo-zoológico da era clássica.
Foucault, em História da loucura na era clássica, apontou que a loucura, até a
entrada dos reformadores no final do século XVIII (Pinel na França, Tuke na
Inglaterra), segregada sem voz nem imagem em conjunto com todas as formas de
desatino, podia ser entreolhada como espetáculo preso por grades de ferro, por diversos
curiosos e transeuntes, que pagavam para ver aprisionada nessas poucas imagens a
animalidade sempre possível do humano.
A loucura podia então existir e se expressar como força assustadora, sem diálogo
possível com o razoável, mas também sem necessidade alguma de se apresentar como
algo dialogável. O suplício que a aprisionava lhe dava força para se libertar de vez de
20
qualquer possibilidade de diálogo com a razão, e a mantinha como agente de medo e
terror.
Não é o que ocorria no hospital que estamos descrevendo. Aqui, os loucos não
serviam como espetáculo, nem tampouco possuíam a força e o encanto de causar medo,
de impor o medo pela força. Aqui eles estavam bem sujeitados pelos mecanismos de
segurança, muito embora, contraditoriamente, não houvesse um controle disciplinar
explícito, metodicamente estabelecido, que tentasse impor comportamentos, ações e
discursos, como eram todos os esforços dos primeiros alienistas nos embates do
tratamento moral7.
De fato, algo de estranho ocorre na atualidade: algumas de nossas instituições
guardam resquícios da era pré-pineliana e da era disciplinar dos alienistas, sem contudo
se enquadrar nem numa nem noutra categoria.
Uma psiquiatria congelada no tempo, à beira de um ataque de nervos
Uma história na cidade. Quarenta e poucos longos anos construindo aquilo que
seria uma referência de excelência na cidade para o tratamento dos loucos.
O manicômio construiu fama na cidade. Sempre acolhia as famílias angustiadas
que chegavam à porta de mala e cuia, trazendo seus parentes em crise. As famílias
sempre ficavam agradecidas, pois de forma paternal e com autoridade o hospital lhes
arrancava o membro familiar doente e o guardava a sete chaves, utilizando tudo o que a
ciência psiquiátrica produziu nos seus mais de dois séculos de existência, inclusive o
eletrochoque. Não haveria que se tecer reflexões e questionamentos sobre a crise
familiar expressa na doença do paciente, ou sequer caberia pensar estratégias que
viabilizassem o convívio social de todos os seus membros8.
Foi dessa forma que o hospital ficou muito conhecido, dando respostas
alienantes a necessidades legítimas de ajuda das famílias.
Lembro que, no primeiro dia da intervenção, em meu primeiro dia na cidade, fui
a um dos cartórios locais para registrar minha assinatura. Vendo uma pessoa como eu,
com os traços tão diferentes dos da população local, a funcionária não conteve a
curiosidade e perguntou o que eu fazia na cidade. Ao explicar que eu era o interventor
21
do hospital, a moça, sem aparentemente perceber o significado da palavra intervenção,
fez um elogio ao dono do hospital, chamando-o de um grande colaborador da cidade, e
fez questão de não cobrar pelo serviço que me prestou.
No entanto, a imagem que a população tinha do hospital sofreu um repentino
desgaste. Quando as fotografias do hospital vieram a público, numa das primeiras
reportagens sobre a intervenção, provocou-se uma comoção e uma indignação geral na
cidade. Ninguém antes sabia o que se passava dentro do hospital, ou não queriam
perceber, e a reviravolta de referências foi brutal. Quando ficou claro o que ocorria
dentro de seus muros, a imagem do hospício como instituição acolhedora desmoronou.
Não obstante isso,cabe observar que diversas famílias procuraram o hospital
preocupadas, não com o que se passava com seus familiares, mas com a possibilidade
de isso levar ao fechamento da instituição, o que os faria perder essa importante válvula
de escape da infernal situação existencial vivenciada por eles, particularmente da
situação de pobreza.
Eles nunca haviam tido a possibilidade de ser atendidos e apoiados por outros
tipos de dispositivos que fizessem as mediações necessárias para modificar a qualidade
de vida e das relações de que participam. Nunca haviam tido a oportunidade de ser
atendidos e apoiados por uma outra saúde mental, que compartilhasse seu cotidiano
existencial, encontrando formas positivas de existir em permanente diálogo com a
experiência da loucura.
Por outro lado, a entrada da equipe de intervenção no hospital não foi muito
simples. Havia muita dificuldade da administração anterior em entender o que implicava
a intervenção, sobretudo quanto à exigência de afastamento dela do comando da
instituição, e isso motivou a realização de inúmeras reuniões. De fato, a conjuntura
política da cidade (a influência política que a instituição exercia), o temor de que
pudesse haver resistência física e ameaças (uma possibilidade levantada por muitos
atores, que estavam nos apoiando durante esse processo de entrada) levaram-nos a
realizar a entrada no hospital com atenção redobrada. Agimos com o cuidado e o
respeito que manteríamos em qualquer circunstância, sem, no entanto, perder a firmeza.
No entanto, a crise existencial do hospital tornou-se pública, uma vez que
moradores da cidade passaram a vê-lo de outro modo e a não legitimá-lo
22
automaticamente como no passado. O hospital, então, que só conhecia o sofrimento
estampado em seus pacientes, passou ele mesmo a sofrer, chegando, por ironia do
destino, à condição de estar “à beira de um ataque de nervos”.
Um melão e um sabonete
Comida tem a ver com afeto. Nutrição tem a ver com humor e inteligência.
Quem disse que o estômago fica tão distante da cabeça e do espírito?
Um dos muitos comentários trazidos por pacientes aos profissionais da
intervenção:
— Nossa, eu não sabia mais o gosto da fruta, esta que veio no café da manhã.
Como é mesmo o nome dela?
A curiosidade e a vontade de viver, descobrir, construir, como diriam os
construtivistas, são possíveis só com a experiência e o contato com coisas e processos
externos.
Uma fruta adoça a vida, e põe combustível no ato de descobrir o mundo. Uma
pequena mudança que indicava que algo de novo entrava para pôr movimento numa
instituição moribunda.
Podia-se dizer o mesmo da perplexidade dos internos ao usar pela primeira vez
sabonetes no banho, ainda que esses sabonetes, específicos para a sarna, não tivessem lá
um cheiro muito agradável. Tratava-se da lavagem do corpo para um novo tempo que
começava e que, para poder usufruir de um potencial emancipador, precisaria caminhar
para a construção de ações e serviços de saúde mental fora da instituição asilar9.
23
Quarto de enfermaria feminina: mulheres contidas mecanicamente no leito.
Quarto de enfermaria masculina.
24
Trocando as portas de ferro por pessoas e diálogos Portões de ferro não podem substituir pessoas, a não ser que o confinamento e a
vigilância sejam os fins únicos e exclusivos de uma instituição.
Discutimos com os seguranças de jalecos azuis a forma de resgatar a sua
singularidade, o seu nome e a sua condição de atores de um diálogo (superando a lógica
da objetivação que faz deles apenas uma peça de engrenagem), de forma a também
obter a condição de atores de um diálogo para os internos10.
Primeiro passo: substituir aos poucos as portas de ferro pelo corpo físico, a
vigilância pelo acompanhamento, a violência pelo diálogo.
Alguns levaram ao pé da letra, perguntando se poderiam sair da porta caso
houvesse uma briga dos internos para separar. Não estavam entendendo que trocar as
portas por pessoas significava estar ao lado dos internos e dialogando com eles no
interior das enfermarias, ao invés de se manter atrás das portas fechadas, do lado de fora
delas. Outros ficaram muito perdidos, andando de um lado para o outro de mãos dadas
com as mulheres recém-libertas de quartos pequenos, que naquele momento estudavam
os espaços dos corredores próximos à porta de entrada do hospital para ver se valia a
pena aumentar seu espaço vital, social.
Foram os mesmos vigilantes que tiveram que retirar os jalecos para acompanhar
os internos nos primeiros passeios: uma visita ao grupo de egressas do hospital
psiquiátrico que faziam artesanato acompanhadas por uma Unidade Básica de Saúde do
Programa de Saúde da Família; uma festa do dia das mães no CAPS (Centro de Atenção
Psicossocial11) da prefeitura, onde fariam o acompanhamento terapêutico quando
saíssem do hospital, ou o passeio dos homens num parque com a participação de
estagiários de psicologia.
Propus que os seguranças passassem a ser chamados de cuidadores, ou
acompanhantes terapêuticos, e eles próprios propuseram a denominação de agentes de
saúde mental ou de monitores.
Mas o processo inicial compôs uma mescla em que cabiam, ao mesmo tempo, o
segurança e o cuidador, a porta e a pessoa, a força e o diálogo.
25
Embora essa contradição, essa convivência plena entre controlar e cuidar seja
implícita mesmo nas instituições de saúde mental que desejam ser transformadoras e
não opressoras, o foco ou a diretriz que definem uma “tutela emancipadora” (no lugar
da “tutela anuladora” do paradigma psiquiátrico tradicional) ainda estavam, neste caso,
sendo lentamente tecidos.
À comoção da cidade seguiram-se a perplexidade e o desequilíbrio dos
profissionais do hospício, que tentavam entender o que estava ocorrendo.
A perplexidade dos internos, por outro lado, se expressava mais pela via do
grito, pelo movimento do corpo exigindo ocupar novos espaços.
Na festa do CAPS, por exemplo, as mulheres do hospital dominaram o
microfone, foram o destaque da festa, queriam mostrar que existiam e que manteriam os
ânimos exaltados até sentir que pertenciam àquele grupo social diverso, até se sentirem
parte de um coletivo, sujeitos singulares de um sujeito coletivo.
Os funcionários, contudo, viviam uma situação conflituosa, pois, enquanto
produziam uma crítica sobre sua própria postura anterior que lhe era cobrada pela
instituição, eram também mobilizados pelo medo devastador de perder o emprego. E
essa insegurança deixava a todos no fio da navalha: até a equipe de intervenção, pois,
mesmo inserindo novos profissionais, novas personagens no hospital, envolvemos num
movimento de mudança os trabalhadores antigos, que eram a maioria do quadro do
hospital.Vários deles se comprometeram conosco e ajudaram a operar as transformações
positivas na dinâmica da instituição, e por isso seria justo que continuassem a trabalhar
na saúde mental, mesmo nos serviços que fossem implantados no caso de fechamento
do hospital (um fechamento que, até então, ainda não estava decidido, uma vez que a
decisão judicial dizia que a intervenção se daria até a “normalização” do funcionamento
ou até o descredenciamento do SUS, caso se concluísse que o hospital não apresentava
condições para continuar funcionando).
26
Lembranças de Santos I
Lembro-me que, no processo de desconstrução da Casa de Saúde Anchieta, em
Santos, o diálogo foi também a base do novo “estado de direito”, implantado após a
intervenção. Nesse “novo estado”, havia alguns parâmetros de sociabilidade instituídos.
Começou-se, pelo que me disseram (pois cheguei ao hospital cerca de quatro meses
depois do início da intervenção, que durou alguns anos), com a desativação das celas
fortes, a proibição do confinamento em qualquer espaço isolado, a abertura de espaços
para a circulação, e a instituição de um novo patamar ético de diálogo e não-violência
física, o fim do castigo (Capistrano Filho; Kinoshita, 1992; Kinoshita, 1996; Nicácio,
1994). As situações grupais eram freqüentes, exercitando-se a capacidade de produzir
críticas, de decidir questões sobre o funcionamento do cotidiano. Enfim, procurou-se
desestabilizar as relações de poder e violência cristalizadas na instituição, revendo e
colocando em crise os papéis socialmente estabelecidos e designados pela ciência
(Basaglia, F.; Basaglia, F. O., 1977). Toda essa movimentação, esse processo interno de
abertura e fechamento de portas, descobertas de potencialidades, reciprocidades,
compartilhamento de sofrimentos e de histórias de vida, transformaram internos e
profissionais, que pareciam ver o mundo de uma forma diferente, deparar-se pela
primeira vez com esse mundo em seus detalhes, em suas largas construções de valores,
em sua complexidade.
Imprensa todos os dias
A foto no jornal chocou a todos.
Nela, as mulheres, nuas, tomavam banho de mangueira ao ar livre,
coletivamente, num pátio aberto e sujo.
Outra foto mostrava os homens nos corredores da enfermaria, andando para lá e
para cá, muitos nus, sujos, prostrados no chão.
Sabíamos que a reportagem incluía fotos, mas imaginávamos que se teria o
cuidado de preservar a identidade dos internos, como havíamos orientado os jornalistas.
As fotos, bem como o tom sensacionalista da reportagem, deixaram-nos um
pouco de estômago embrulhado, um misto de mal-estar com o medo de que as famílias
27
viessem em defesa da privacidade de imagem de seus parentes (o que seria legítimo da
parte delas).
Foi uma opção da equipe de intervenção divulgar o que ocorria no hospital, para
que os moradores da cidade acompanhassem os fatos e nos apoiassem, e mesmo para
dar alguma resposta aos vários setores da sociedade, incluindo a própria imprensa, que
cobrava saber afinal da situação encontrada no hospital.
Fomos, de fato, bastante ingênuos em acreditar que a imprensa atenderia ao
nosso pedido e colocaria tarjas nas fotos, para evitar a identificação. Assumimos um
risco também ao não solicitar o conhecimento prévio do conteúdo da reportagem, pois
um tom sensacionalista, em vez de ajudar, politizando e criticando a questão da
segregação como resposta ao sofrimento psíquico, poderia pôr em risco o entendimento
do processo.
Afinal, na “sociedade do espetáculo” (Debord, 2000), as imagens e as
informações produzem realidade, uma realidade formulada pelos mais diversos
interesses e que nada tem de neutra ou imparcial. Nela, o “parecer” assume uma
centralidade fundamental.
No entanto, as mesmas fotos comoveram o povo da cidade a tal ponto, que a
imprensa passou a acompanhar cada passo da intervenção.
Afinal, as cenas mostradas eram reais e, apesar do tom sensacionalista do texto,
mostravam concretamente o que encontramos nos primeiros dias da intervenção.
Era necessário entrar em contato com essa realidade para tomar consciência da
necessidade de mudança, para recuperar a qualidade da indignação.
Um dos belos artigos escritos por uma jornalista descreveu a triste descoberta de
uma inscrição nas paredes de uma cela forte. A mensagem dizia: HOMEM TEM QUE
SER HOMEM, e estava escrita com... fezes. Fezes que se petrificaram nas paredes,
como que a perpetuar a força da expressão e o grau do sofrimento12. Sim, ganhamos
aliados na imprensa e na comunidade. Vários radialistas comentavam sua forte
indignação com o ocorrido e com a figura que até então se construíra do dono do
hospital. Sua revolta era diametralmente oposta à admiração que antes os contagiava na
paralisia das concepções prontas e tão intensa quanto ela. Em momentos como esses,
todos passam em revista seus próprios conceitos e visões de mundo.
28
A única matéria em defesa do antigo funcionamento do hospital foi redigida por
seus antigos colaboradores e publicada como matéria paga. Dizia que as fotos eram
montagens e que o tom do discurso do interventor era messiânico.
Diante de tal situação de destruição e no calor dos acontecimentos, era realmente
difícil que o discurso deixasse de assumir eventualmente tons messiânicos.
A intervenção, como o próprio nome indica, era uma ação de interferência
radical que produziria rupturas em processos em andamento, provocando desvios. Essa
ação, por si só, implicaria algum grau de agressividade e positividade das mensagens,
capazes de gerar a transformação das condições existentes. Embora não se garantisse
que, no futuro, novas relações de anulação pudessem acometer os internos violentados
naquele momento, não havia como negar, contudo, que essa ruptura, ao estimular a
mudança dos papéis cristalizados, produziria mudanças. Uma vez turbilhonadas as
cristalizadas relações de poder da instituição, pode-se dizer que se vivenciou um
instante de libertação de uma situação de opressão dada, com o estabelecimento de
outros diálogos, compromissos, dependências, independências.
Se me portei de maneira messiânica, aproveito este momento para fazer uma
autocrítica, deixando claro que provocamos apenas uma reviravolta pontual em
determinadas relações de poder, e não uma “salvação”.
Parede de uma cela forte, com a seguinte inscrição: “Homem tem que ser homem”.
29
Lembranças de Santos II
Em Santos, a imprensa também teve um papel importante. As informações
veiculadas sobre a morte de um interno e a atitude da prefeitura de promover a
intervenção tiveram intensa repercussão na cidade. O hospital também era muito
conhecido, como o lugar dos loucos, para onde se ameaçava levar alguém que insistisse
em se desviar muito dos caminhos normais. Posteriormente, no decorrer do processo,
outras formas de informação e de participação dos moradores da cidade foram forjadas,
de modo a repropor um outro contato com aqueles que vivem a experiência da loucura,
já preparando o terreno para a implantação dos serviços comunitários que cobririam
cada uma das 5 regiões em que a cidade foi dividida (Kinoshita, 1996).
A resistência dos trabalhadores e do sindicato
Enfrentamos também muitas resistências por parte dos trabalhadores e de suas
instituições.
Lembro que, certa vez, a Delegacia Regional do Trabalho, a pedido do sindicato
dos funcionários do hospital, convidou-me para participar de um debate para discutir
sobre a garantia dos direitos trabalhistas daqueles funcionários, bem como da
manutenção futura do emprego. Resolvi comparecer por considerar mais estratégico não
me esquivar (o melhor caminho seria continuar a debater a situação em todos os espaços
que surgissem), embora a situação me levasse a temer que eu poderia sofrer pressões.
Tentaram colocar-me contra a parede, de certo modo até exagerando na
intensidade. Orientado pelos advogados presentes – um deles vinculado à antiga
administração do hospital e até da confiança desta –, o sindicato, na presença de muitos
funcionários, tentou atribuir à intervenção toda a culpa pelas antigas irregularidades
concernentes aos direitos trabalhistas, além de acusá-la de reproduzir o mesmo olhar de
desprezo antes dirigido aos funcionários. Como desde o início conversamos com os
funcionários e os envolvemos no processo, a carapuça não serviu e foi veementemente
rejeitada por mim. Reafirmei que atendia como interventor a uma demanda judicial, e
que não poderia nunca garantir o emprego futuro dos funcionários, nem demiti-los para
garantir as indenizações, como chegaram a propor. Deixei novamente claro que,
30
enquanto estivesse na administração, atenderia a todos os preceitos da lei trabalhista, o
que não vinha ocorrendo havia meses, já que a instituição deixara de pagar as
contribuições sociais e previdenciárias dos funcionários (além de comprar férias por
uma bagatela, impor horas-extras com valores irrisórios e ilegais etc., como haviam
relatado os próprios funcionários).
No entanto, as resistências focadas na pressão para a garantia dos direitos dos
funcionários, sobrepondo-se a qualquer outro direito, até mesmo ao direito de vida dos
pacientes que viviam no calabouço, reverberaram em outros espaços de debate e de
decisão nos quais nos vimos obrigados a debater e a garantir a legitimidade política da
intervenção.
Um desses espaços foi o Conselho Municipal de Saúde13, que, desde antes da
deliberação judicial da intervenção, havia acompanhado todo o desenrolar dos
acontecimentos. De fato, a balança sempre pendeu para o apoio à intervenção e ao
futuro dos internos, mas em muitos momentos tivemos que ser incisivos e muito atentos
na defesa do processo. No caso da seleção pública para constituir os novos profissionais
que assumiriam os novos serviços comunitários de saúde mental que a prefeitura estava
implantando, por exemplo, enfrentamos algumas resistências por parte do conselho.
Inicialmente tentaram sustar o processo, embora ao final tivessem resolvido apenas
adiá-lo, inserindo representantes seus para acompanhar o processo de seleção. Essas
resistências do conselho foram resultado da influência dos representantes de sindicatos
de trabalhadores e dos donos de hospitais.
Conseguimos, por fim, convencer os sindicatos e os trabalhadores que a melhor
saída, e a única legal, seria estimular os funcionários a se preparar para a seleção
pública, argumentando até que a expansão dos serviços ampliaria a quantidade de
postos de trabalho. Conseguimos, também, garantir que o tempo de trabalho na área de
saúde mental fosse considerado na pontuação da avaliação dos currículos, o que lhes
traria um diferencial importante perante os demais candidatos.
Mas que futuro podíamos esperar para uma pequena parte desses trabalhadores,
cujo perfil pouco se adequava ao trabalho numa proposta que não fosse centrada na
segregação? Alguns modificariam seu olhar e sua prática participando do processo de
mudança ocorrido no interior do hospital, mas outros teriam dificuldades e precisariam
31
descobrir situações de trabalho mais saudáveis e enriquecedoras de sua existência e de
suas famílias, caso o hospital viesse a ser fechado.
Problemas políticos do Nordeste
No Nordeste, em geral, as pessoas costumam ser muito afáveis e afetivas.
Cuidam muito de você, da mesma maneira delicada com que chamam os parentes de
“painho” e “mainha”.
A política, contudo, também assume o calor das relações familiares.
Além da presença de gerações de políticos de famílias adversárias, travestidas e
utilizando a tarja de partidos diversos, que não apresentam ideologicamente projetos tão
distintos, o calor do afeto é muitas vezes substituído pelo calor da ofensa e da disputa.
É verdade que essas características não são exclusivas do Nordeste, pois em
todos os lugares as disputas da política partidária costumam produzir diferenças
artificiais entre os partidos. Além disso, a convivência entre o amor e o ódio é algo
constitutivo da subjetividade humana. Mas a forma como as disputas políticas se dão,
suas nuances, são diferentes em cada contexto. E aqui o afeto se expressa intensamente,
sem muitas mediações.
Várias vezes nos deparamos com situações políticas delicadas. A mais difícil
delas foi um movimento (protagonizado por atores internos e externos à Secretaria
Municipal de Saúde – SMS) de tentativa de enfraquecer o secretário municipal de
saúde, um economista corajoso e esclarecido, lutador do SUS, que era o nosso principal
apoio na cidade. Afinal, desde o primeiro dia, a SMS forneceu a comida, os remédios e
até os colchões para os internos do hospital, pois quando assumimos a direção da
instituição não havia recursos nem para a comida do dia seguinte.
Apesar desses problemas, conseguimos vê-lo mantido no cargo e fortalecido,
não pelas tentativas que ensaiamos fazer para tanto, mas por sua própria competência.
32
Lembranças de Santos III
Em Santos, o secretário de saúde também era uma figura muito forte, ousada e que se
indignava com as mais sutis formas de violência. A partir de sua ação, conseguiu-se
aglutinar força política, tanto dos diversos poderes públicos, mesmo de partidos
diferentes, como de setores “organizados” e “desorganizados” da sociedade. Esse
processo gerou força e energia suficientes para a prefeitura aplicar o ato da intervenção,
mesmo sem aguardar uma autorização ou uma decisão prévia da justiça. De fato, no
decorrer dos anos que se seguiram, por algumas vezes, principalmente no início, o
hospital voltou aos seus antigos donos por alguns dias, até que não houvesse mais
recursos jurídicos e uma declaração do tribunal tornasse a intervenção um fato sem
retorno. Essa força, o ímpeto de ousadia desse personagem, acompanhou e influenciou a
ação de todos aqueles que puderam trabalhar na intervenção. Era como que uma
autorização de que todos poderiam inventar formas criativas de se transformar a
condição de anulação dos internos, colocando sempre em primeiro plano a produção de
vida. Era também um posicionamento que lembrava a todos que não há uma ciência,
uma teoria ou uma tecnologia de tratamento destituídas de implicações políticas. Essa
lição me foi ensinada na prática em Santos.
Pequenos percalços do dia-a-dia manicomial
Certo dia, fui informado que um paciente, primeira internação e jovem, havia se
evadido do hospital. A família, indignada, ameaçava denunciar o fato à imprensa. A
assistente social, já antiga do hospital, mas que virou uma grande colaboradora nossa,
utilizando todo o conhecimento que tinha da história de vida dos internos para
contribuir nas mudanças que estavam ocorrendo (era uma das poucas pessoas do
hospital que possuía essas informações), não sabia o que fazer, se aguardava ou ia atrás
da família para explicar nossos esforços para encontrar o paciente. Optou-se pela
segunda alternativa, pois não tínhamos dúvidas da escolha que fizemos nem dos riscos
que assumimos ao gerenciar o hospital naquelas condições terríveis em que ele se
encontrava. É claro que temíamos o uso político da imprensa para nos enfraquecer, mas
isso não podia nos paralisar nem nos retrair. O moço voltou logo, assim como ocorreu
com vários outros pacientes que foram posteriormente trazidos pela polícia ou pelas
33
famílias. A opressiva condição de segregação lhes trazia a necessidade de escapar do
hospital. Todas as modificações que fizemos desde o início da intervenção não haviam
sido suficientes para mudar as condições físicas estruturais do hospital nem poderiam
superar a contradição patente no fato de os pacientes estarem segregados, ou seja, não
terem a liberdade de ir para casa quando quisessem (a não ser que estivessem de alta)14.
Ainda estavam internados numa instituição que, mesmo passando por mudanças,
possuía uma delegação social ambígua entre o cuidar e o controlar.
Em outra situação, quando de minha ausência por motivo de viagem, soube que
alguns pacientes arrancaram uma das pias da parede de uma das enfermarias, o que
prejudicou o abastecimento de água e fez com que todos tivessem que mudar de local.
Era uma pena, pois acabavam de ser transferidos para lá, por ser aquela a enfermaria
com melhores condições de infra-estrutura, já que havia passado recentemente por uma
pequena reforma. O que explicaria o ocorrido? Escassez de funcionários para
acompanhar os internos ou algum tipo de boicote?
O fato é que a equipe de direção resolveu, além de fazer a mudança, aumentar
em cerca de 20 funcionários o quadro do hospital, que era composto por cerca de 90.
Utilizou-se para isso de um contrato que a secretaria de saúde possuía com uma
cooperativa de prestação de serviços. Resolveu-se colocar cuidadores no lugar de
auxiliares de enfermagem, pois era a única categoria que poderia ser contratada.
A partir desse momento, esse grupo de funcionários passou a nos acompanhar,
sendo um contraponto para a presença dos antigos funcionários. Acompanharam-nos
mesmo depois que saímos do hospital, como veremos adiante.
A chegada dos cuidadores da cooperativa
Eram 20 os cuidadores da cooperativa que a Secretaria Municipal de Saúde
enviara para ajudar no acompanhamento, no cuidado aos internos.
Inicialmente a entrada desses novos atores deflagrou pequenos focos de crise,
pois os antigos cuidadores do hospital diziam secretamente pelos cantos que eles teriam
vindo para ocupar o seu lugar, e que no futuro seriam eles os escolhidos na seleção da
prefeitura que ora se encaminhava.
34
Por outro lado, percebemos que a presença dos novos atores trazia equilíbrio e
segurança para a equipe de intervenção, evitando os boicotes e os excessos dos antigos
funcionários. Por exemplo, um dos membros da cooperativa, numa reunião que fizemos
para discutir o trabalho, teve a coragem de dizer que um funcionário antigo teria
agredido fisicamente um interno.
Conversamos sobre as dificuldades de se ficar nas enfermarias por longos
períodos e pensamos em estratégias de revezamento (parece que só os internos mesmo é
que conseguiam permanecer ali). Disseram que faltava limpeza e que o cheiro fazia mal,
“embrulhava o estômago”. Sinalizaram para a necessidade de colocarmos mais pessoas
para trabalhar na limpeza, o que foi feito no mesmo dia.
Conversamos também sobre o estado dos internos, a dependência, o sentido da
falta de asseio, do aparente mutismo, das atitudes bizarras, da despreocupação com o
mínimo de cuidado consigo mesmos e com as coisas (defecar no chão, andar sem
roupa).
A partir do discurso de uma enfermeira, que dizia que o estado atual dos
pacientes se devia exclusivamente às conseqüências da doença, e que não conseguia
vislumbrar nenhuma possibilidade de melhora, mas apenas de piora, fizemos um amplo
debate. Discutimos o fato de os internos serem tratados de forma infantilizada, e que a
institucionalização produzia efeitos muito graves, que impossibilitavam discernir o que
seria exatamente o efeito da doença.
A institucionalização produz subjetividades anuladas, empobrecidas, sombrias.
Ela é bizarra e atinge também os profissionais que se adaptam a ela: empobrecidos, são
levados a ver a vida humana como um simples objeto de intervenção (a quem devem
nutrir, limpar e manter numa condição de nulidade). São também levados, pela vivência
institucional, a depositar a responsabilidade de toda essa situação na doença mental.
Basaglia (1985: 106) problematizou os efeitos da institucionalização,
argumentando que as conseqüências da doença, seu percurso, dependeriam do tipo de
abordagem adotado em relação a ela. Diz ele que,
tais “conseqüências” (refiro-me aqui ao nível de destruição e de
institucionalização do paciente internado nos manicômios provinciais) não
35
podem ser consideradas como a evolução direta da doença, mas sim do tipo de
relação que o psiquiatra, e através dele a sociedade, estabelece com o doente.
Depois de citar Goffman, que, em sua obra Asyluns, apontou para a “série de
contingências de carreira” estranhas à doença (Basaglia,1985: 109-10), Basaglia lembra
que os anglo-saxões, a partir de Main e Maxwell Jones, já haviam iniciado o importante
trabalho das comunidades terapêuticas, enfatizando a questão da institucionalização, ou
seja, os efeitos perversos da instituição sobre os internos.
Em outros termos, retomávamos com a equipe do hospital aquilo que esses
autores já há muito haviam problematizado, e que salta aos olhos quando se compara
um sujeito que teve a infelicidade de ficar durante anos num manicômio com um outro
que, com a mesma doença e gravidade, pôde receber outra forma de abordagem.
Discutimos também o papel terapêutico do fazer e cuidar compartilhados com a
pessoa cuidada, do estimular a produção de subjetividade, através de ações práticas que
dêem ao interno a possibilidade de ganhar autonomia, de ser protagonista, de ser um
ator numa relação. Quanto mais grave e dependente, mais individualizado o contato.
Não que o contato grupal não deva ocorrer, pois ele é fundamental. Mas alguém deve
emprestar seu poder, seu corpo, sua vontade e inteligência para que, usufruindo de um
pedaço dela, o novo ator construa seus próprios castelos, compartilhados com as
contribuições alheias.
Quanto mais grave e sofrida a pessoa, maior o gosto da conquista. Como disse
Franca Ongaro Basaglia:
entender a tutela como momento de emancipação e não mais de repressão;
emancipação no sentido de que a pessoa, quanto mais necessitada de proteção,
tanto mais deve ser colocada em condição de viver positivamente a própria
“minoridade” para reconquistar ou recuperar autonomia e responsabilidade.
(Basaglia, F.O.,1993: XXIV)
18 de maio: um mês da intervenção e a caminhada em comemoração
ao Dia Nacional da Luta Antimanicomial
No dia 18 de maio, assim como ocorre em vários locais do Brasil, desde meados
dos anos 1980, quando o movimento da luta antimanicomial criou o slogan “Por uma
36
sociedade sem manicômios”15, realizou-se uma importante manifestação na cidade onde
estávamos. Tratava-se de uma caminhada, do CAPS em direção a um parque popular,
com carro de som, camisetas alusivas, bexigas, convidando a população a participar
dessa importante luta.
Além dos pacientes e familiares do CAPS, e de outros aliados da comunidade,
como estudantes e artistas, a caminhada teve a importante presença dos internos do
hospital psiquiátrico.
Caminhada, bela caminhada, que terminou com um lanche comunitário e uma
quadrilha, já antecipando os festejos de São João, tão fundamentais nesta terra.
Uma mãe, que compareceu ao ponto de encontro, deparou-se com seu filho junto
ao grupo do hospital, que fora em um ônibus e, surpresa e admirada, chorou ao ver que
seu filho calçava meias e tênis novos. A roupa fazia parte do enxoval que o paciente
havia recebido para se mudar para a primeira residência terapêutica16, o que estava
prestes a acontecer. A mãe chorou porque nunca mais vira o filho vestindo qualquer tipo
de calçado. Era, antes, aquele farrapo humano que habitava o fantasmagórico espaço de
segregação do hospital, onde tanto fazia ter sapatos ou não, cuidar ou não dos pés e do
resto do corpo, ou demonstrar algum asseio diante dos outros e de si próprio.
Lembranças de Santos IV
Em Santos, realizavam-se muitas atividades fora do hospital. Eu mesmo vivia acompanhando
um grupo de internos até o horto municipal quando iniciamos as estratégias de inserção no
trabalho que posteriormente viraram projetos coletivos de trabalho e levaram à formação da
Cooperativa Paratodos (Kinker; Nicácio, 1996). Àquela época, eram os internos confinados
havia muito tempo que me ensinavam o caminho de ônibus até o horto, pois eu não era da
cidade e, graças a eles, não nos perdíamos muito. Além de atividades culturais externas,
exposição de fotos na praça promovida pelo próprio hospital, passeios e outros, vários eventos
culturais traziam o público para dentro do hospital (além, é claro, dos famosos bailes que
aconteciam, se não me engano, todas as sextas-feiras, com maciça e entusiasmada participação
de funcionários e pacientes). O diálogo dentro-fora era intenso, e visava modificar o imaginário
social sobre a loucura a partir de um convívio efetivo.
37
Inauguração das duas primeiras residências terapêuticas
Casas lindíssimas, mobiliadas, cada cama com um retrato de seu dono colado
acima, na parede. Casas com jardim de inverno, lençóis de cetim combinando com os
móveis e com o tom da cor das paredes. Alguns dos futuros moradores (que seriam
parte dos 60 pacientes internados havia anos, sem a possibilidade atual de retomar os
vínculos familiares) quiseram ficar, mesmo não havendo ainda a possibilidade da
mudança, já que a seleção dos cuidadores, bem como de todos os outros profissionais
necessários aos novos serviços que seriam implantados, havia sido adiada.
O adiamento foi motivado por resistências do Conselho Municipal de Saúde, que
representou tanto a pressão dos sindicatos dos trabalhadores do hospital, como o medo
do novo modelo que prescinde dos leitos em hospitais psiquiátricos.
Os sindicatos diziam estar preocupados com o emprego dos trabalhadores. Mas
outros setores expressavam certa desconfiança com a possibilidade real de os internos
daquele hospital serem atendidos por outras instituições, ou residirem em casas
espalhadas pela cidade.
O desconhecimento sobre outras formas possíveis de atendimento aos doentes
mentais facilitava a existência dessa dúvida. Temia-se que a transformação do
manicômio não passasse de uma aventura passageira, que apenas levaria ao seu
fechamento, deixando a cidade sem essa válvula de escape. Talvez se temesse também,
o que é natural, entrar em contato com o sofrimento, com aquilo que ninguém quer
encarar, mas que faz parte das possibilidades da condição humana: a loucura.
38
Lembranças de Santos V
Em Santos, havia também a problemática de alguns internos que haviam perdido o
contato familiar. As primeiras experiências de montagem de uma “república”,
inicialmente chamada simplesmente de “casa”, com 5 internas, num imóvel em outro
bairro que o do hospital, iniciaram-se já em 1990. Isso deu origem, anos depois, a uma
casa com um número maior de pacientes (Reis, 1998). Numa época em que eram raras
as experiências nesse sentido, pode-se dizer que essa foi uma experiência instigante e
uma das pioneiras. As 5 primeiras internas possuíam um grau de comprometimento de
suas habilidades de autocuidado bastante acentuado, devido ao longo tempo de
institucionalização, e muitos desafios surgiram a partir daí, já que elas começaram a
integrar a paisagem do bairro em que passaram a morar, junto com seus vizinhos. Aqui
também foi fundamental, além do apoio intenso dos profissionais do hospital, a figura
de uma ex-servente do hospital, que participava do dia-a-dia da casa, e que pode ser
considerada como que uma precursora do que depois se convencionou chamar de
cuidador. Por sua capacidade de acolher, de dar segurança e de mediar a relação entre as
novas moradoras e destas com os moradores do bairro, essa personagem teve um papel
crucial na implantação desse dispositivo. É óbvio que sua ação era sempre
potencializada pelo acompanhamento e a orientação fornecidos pelos profissionais. Essa
multiplicidade de olhares, viabilizada pela participação de pessoas com formações
profissionais, visões de mundo e histórias de vida diferentes, possibilitava um
enriquecimento muito grande. E o fato de alguns atores não pertencerem a categorias
profissionais da área “psi”, e serem também de diferentes origens de classe, era um
diferencial que incrementava as estratégias de ampliação da rede social dos pacientes,
que era de fato o húmus, a base onde se dariam os processos terapêuticos.
Enquanto isso, no hospital...
Enquanto isso, o hospital era reduzido a 86 dos 176 leitos existentes quando da
intervenção, sendo a maior parte moradores de longa data da instituição.
39
A porta de entrada ainda não estava fechada, o que se pretendia fazer por um
período aproximado de duas semanas, quando se daria a mudança de prédio e o fim da
intervenção, já que as circunstâncias em que o hospital se encontrava iam tornando
insustentável a permanência no local.
Eis o plano que então se afigurava: alugar um prédio, selecionar profissionais,
descredenciar o hospital do SUS e transferir os pacientes para o novo serviço, desta vez
um serviço público municipal. Esse serviço seria transitório, assim como o seria o
processo de intervenção no hospital. Deveria ser um laboratório de onde se propagariam
mais quatro residências terapêuticas, os novos CAPS da cidade, e os novos serviços dos
vários municípios. Deveria também abrigar uma emergência psiquiátrica, que regularia
o encaminhamento para os novos serviços territoriais.
Com o final do processo de transição, deveria restar dessa estrutura transitória
apenas a emergência psiquiátrica, a ser transferida para um dos dois hospitais gerais
públicos da cidade. Segundo minha avaliação, esta cidade deveria ter dois CAPS III
(naquele momento possuía um CAPS II e um CAPS ad). Desse modo, poderia
prescindir de hospitais psiquiátricos e seria preciso apenas formular a retaguarda para os
outros municípios, a ser constituída, como pensávamos eu e minhas companheiras de
intervenção, pela emergência psiquiátrica17 com leitos de observação, e por internações
de curta permanência, em um hospital geral.
Naquele momento, no entanto, estávamos a meio caminho da proposta de dividir
as enfermarias entre os profissionais e as duas regiões (uma formada pelo município em
que o hospital se localizava; a outra pelos demais municípios de sua macrorregião), o
que facilitaria o contato dos profissionais com as características e com os recursos de
cada região, possibilitando respostas cada vez melhores. Além disso, continuávamos
com o processo de substituir as portas por pessoas e singularizar a abordagem aos
pacientes, resgatando a história de cada um, para entender e descobrir as possibilidades
de se criar novas histórias.
Tivemos dificuldades com relação à participação dos médicos, que em sua
maioria não se engajaram no processo de mudança. Deram poucas altas (a maioria delas
quem deu de fato foi a nossa co-interventora e psiquiatra da equipe de intervenção e
mais um médico colaborador), mas não fizeram nenhum outro esforço de participação
40
engajada, até porque havia um conflito de visões entre eles e nós, e o questionamento do
hospital que operávamos implicava um questionamento do saber/poder médico
tradicional.
A maioria dos poucos médicos plantonistas possuía um vínculo de muitos anos
com a instituição e via com muitas reservas os processos de mudança. Não quiseram de
fato se envolver. Talvez pesasse o fato de o hospital pertencer a um médico, o que os
faria ir contra a corporação caso apoiassem a intervenção. Talvez, para alguns, apoiar a
intervenção significasse ter que estar disponível mais tempo e com mais energia para a
instituição, o que não os interessava naquele momento. E, no entanto, o manicômio
enquanto instituição de segregação continuava a funcionar “normalmente” mesmo com
a pouca participação deles, os atores capazes de dar respaldo científico ao seu
funcionamento enquanto hospital18. No entanto, os poucos médicos com quem
contamos tiveram um papel primordial no processo, tomando uma posição corajosa
quanto à necessidade de mudança daquele estado de coisas.
Nesse meio tempo, o processo deveria continuar, envolvendo mais profissionais
e preparando a mudança para outro prédio, com outro regime e contexto. Tentava-se
também vincular os internos e dividir seu acompanhamento entre os profissionais, para
que estes fossem de fato referências terapêuticas.
Para alguns casos muito graves, de comprometimento muito intenso, singularizar
o acompanhamento seria a única forma de resgate da produção contínua de
subjetividade, do desejo, da projetualidade, do contrato. Só constituindo um vínculo
seria possível estabelecer um diálogo na língua necessária, na respiração conjunta e
coordenada, no ser o espelho que reflete o movimento da descoberta e da transformação
da subjetividade.
41
Lembranças de Santos VI
Em Santos, a estratégia de regionalização das alas do hospital foi fundamental e
consistente (foi pensando nos efeitos positivos dessa estratégia, que tentamos reproduzi-
la no hospital sob intervenção cujo processo de transformação é o objeto desta
dissertação). A regionalização viabilizou e foi a base para a construção dos serviços
comunitários com lógica territorial. Uma vez que as equipes de cada ala atendiam os
internos de determinada região da cidade, os laços com as famílias e com o território
foram se intensificando. Uma simples visita domiciliar à família de um interno já
representava o início de um intercâmbio que se aprofundaria e se concretizaria com a
implantação dos serviços territoriais. Após acumular o conhecimento sobre os internos e
sobre as características socioeconômicas e os valores sociais de cada território no
trabalho interno do hospital, cada ala era gradualmente desmontada para dar lugar a um
serviço territorial (o que durou cerca de 5 anos até que o hospital fosse totalmente
desativado). Nesses momentos, a mesma equipe do hospital se transportava para a
região de origem dos pacientes que já acompanhava no hospital, dando início às
incursões do novo serviço nas tramas e na história de cada região. Esse percurso foi
similar ao empreendido por Franco Basaglia e colaboradores na experiência de
desconstrução do manicômio de Trieste (Barros, 1994; Nicácio, 2003: 149).
Uma visita surpresa
Entre 19 e 21 de junho, nossa cidade foi sede de um evento organizado em
conjunto com o Ministério da Saúde, e as Secretarias de Saúde de três estados do
Nordeste.
Tratava-se do I Encontro Regional sobre a Reforma Psiquiátrica: construindo o
cuidado e ampliando o acesso à saúde mental, cujo objetivo era aglutinar os
profissionais dos três estados, cada qual possuidor de um hospital psiquiátrico em
processo de intervenção, para fortalecer o impulso à criação de novos serviços e reforçar
a idéia de que as intervenções poderiam ser os catalisadores da estruturação de uma
42
ampla rede de atenção à saúde mental nessa parte do Nordeste. Nossa cidade foi sede do
encontro, pois era onde o processo de intervenção já havia se iniciado e avançado.
Aproveitando o evento, que foi muito importante para a região, levei uma colega
consultora do Ministério da Saúde, que então estava realizando seu trabalho de
consultoria em saúde mental, para conhecer o hospital e os pacientes. Essa consultora
havia tido um importante papel na intervenção de Santos.
Ao chegar ao hospital, deparamo-nos com algumas surpresas.
As grades ainda estavam fechadas. Como observou minha colega, os homens
estavam mais abatidos e destruídos que as mulheres, e talvez este fosse o motivo de
tamanha passividade. As mulheres reivindicavam mais, exigiam respostas. Acomodadas
no refeitório, comiam no jantar apenas pão, batatas-doces cozidas e chá.
Dentro da cozinha, no almoxarifado, bem perto das mulheres esfomeadas, uma
quantidade muito grande de toda a sorte de gêneros alimentícios, frutas, verduras, grãos,
e muita carne no freezer, tudo pronto para ser usado. As cozinheiras se justificaram
dizendo que a administração havia solicitado que a sopa da tarde fosse substituída por
outros pratos. É claro que a administradora do hospital havia solicitado o preparo de
pratos mais consistentes e diversificados, e não que se piorasse a alimentação, já que
quantidades cada vez maiores de alimentos de diferentes qualidades continuavam a ser
disponibilizadas. Ao que se devia a infâmia de deixar com fome pessoas que precisavam
comer, e a quem estavam sendo destinados todos aqueles alimentos? Tivemos a sorte de
presenciar o fato in loco, apoiados pelas reclamações das mulheres, que cumpriam sua
função reivindicando providências.
Na verdade, essa situação rendeu uma suspensão administrativa à chefe da
cozinha. No decorrer de toda a intervenção, aplicamos duas suspensões. Uma para esta
funcionária e outra para a chefe da rouparia que certa vez jogou várias roupas doadas,
em bom estado, na lata do lixo, enquanto os pacientes passavam frio. Coincidência ou
não, as duas funcionárias eram pessoas de confiança da antiga direção do hospital, que
não havíamos afastado como o fizemos com outros atores como os familiares do dono, e
o antigo administrador. Moral da história: alguns enfrentamentos devem ser feitos até o
fim e é preciso sempre rever as estratégias que tentam vincular pessoas antigas aos
novos projetos. Ou seja, parece que para algumas pessoas que partilhavam da confiança
43
da antiga administração era muito conflituoso contribuir com o novo processo e
estabelecer novas relações de confiança. A impressão era que esses funcionários
continuavam a manter contato com a administração antiga, interessada em saber o que
se passava durante a intervenção.
Quando, nos primeiros dias, afastamos algumas personagens fortemente ligadas
à antiga administração, optamos por manter esses outros funcionários, porque, de fato,
para mim era difícil fazer esse tipo de enfrentamento, que não só poderia desestabilizar
a vida dessas pessoas, como poderia criar uma atmosfera negativa de insegurança entre
todos os funcionários. Desse modo conseguimos manter um equilíbrio tênue, mas que
também trouxe alguns problemas, como o citado acima. Mesmo assim, não seria
possível afirmar que a necessidade de afastar pessoas ligadas à antiga administração se
impusesse como regra. Parece-me que dependeria de cada caso: do nível de
proximidade, de como cada pessoa lida com essa nova situação, e de qual é enfim a
opção que faz.
Lembranças de Santos VII
Em Santos, nas assembléias realizadas após a intervenção, e por um longo tempo, os
internos falavam da péssima alimentação que antes recebiam, e que eles chamavam de
“lavagem”. Esse era o termo comum, empregado por todos os internos, e não foi
possível descobrir quem resolvera batizar assim aquele projeto de comida. Eram
comuns também os banhos coletivos de mangueira, igualmente presentes na experiência
do hospital que agora relato.
Embora em tempos e realidades geográficas bem diferentes, esses fatos parecem
corroborar a idéia de que os hospitais psiquiátricos são quase todos iguais. Não tanto
pela infra-estrutura (alimentação, forma de lidar com a higiene), porque alguns deles
possuem comida melhor etc., mas talvez por seus próprios pressupostos, baseados na
necessidade da segregação como resposta a situações complexas de vida, que assim se
tornam “simples”. São esses pressupostos, baseados na segregação, que levam várias
características infra-estruturais a sofrer esse nível de deterioração, numa lógica mais
econômica que técnica. Pois o hospital é instado a segregar a todo o custo,
independentemente de como se dão as condições internas dessa segregação.
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Consolidação de apoios
Após uma das entrevistas a uma rede de televisão, desta vez de abrangência
estadual, muitas pessoas no hotel, e companheiros de trabalho, comemoraram a defesa
das mudanças no hospital e da necessidade de desinstitucionalização e de implantação
de serviços comunitários.
Foi um médico, diretor do Hospital Universitário, o responsável pela articulação
dessa entrevista no principal canal de televisão do estado em que fica nossa cidade.
Mesmo afirmando que não tinha familiaridade com a área de saúde mental, esse médico
vinha também propondo uma reunião com os psiquiatras que lá trabalhavam, para
discutirmos dificuldades no atendimento à saúde mental do ambulatório daquele
hospital e estava muito envolvido na defesa da intervenção.
Abria-se a possibilidade, tão desejada por nós, de discutirmos a montagem de
uma emergência psiquiátrica naquele hospital universitário.
Mais tarde, quando saíamos de um restaurante, à hora do almoço, uma senhora
me parou para elogiar o equilíbrio da entrevista, que superou as questões políticas
locais. Apresentou-se como psiquiatra, diretora da faculdade de medicina e pró-reitora
da Universidade Federal de nossa cidade. Havíamos conquistado um novo apoio.
Nossa co-interventora e psiquiatra da equipe de intervenção propôs a ela uma
discussão sobre a possibilidade de se criar uma residência médica em psiquiatria, para
formar psiquiatras tendo como referencial as questões discutidas pela reforma
psiquiátrica.
A ampliação do número de atores envolvidos na questão da intervenção, e a
formação de alianças e parcerias, seria a melhor forma de desconstruir saberes
cristalizados e propor um outro olhar atrelado à experimentação de novas respostas
práticas para a questão do sofrimento psíquico. Este era, a meu ver, o sentido mais
amplo do trabalho que iniciávamos dentro do hospital: modificar os olhares sobre a
loucura, num processo dialético de mudanças nos internos, nos profissionais e nos
demais atores sociais.
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Ana do Desterro: a necessidade de se criar raízes
Numa de minhas visitas às enfermarias, converso com uma paciente grave, que
gritava pedindo que se afastassem dela, usando um vocabulário muito restrito,
balançando o corpo e olhando para o chão. Às vezes, arregalava os olhos e dirigia o
olhar para cima, passando por mim. Tentei conversar, perguntar seu nome e o que a
incomodava.
Cabelos curtos e lisos, corpo forte, nem magro nem gordo, sempre envergado
numa curvatura que lhe era própria. Punhos sempre cerrados, olhos que às vezes se
arregalavam, boca gritando alto: “sai, sai, sai...”.
Voz forte, que ecoava pelos corredores, a partir de um canto da sala onde ficava
enraizada, balançando para frente e para trás.
Por vezes o grito era para pedir água aos outros. Mas era só o que pedia, pois
quase todos gritos eram para afastar os outros de si, ou pelo menos para que achassem
que era uma pessoa que os queria distantes.
Perguntei seu nome. Respondeu com palavras embrulhadas, meio grito meio
palavra.
Disse-me depois que massagem doía. Respondi que massagem também podia ser
uma forma de carinho. Mantive-me afastado dela, perguntando se queria segurar minha
mão. Dizia que não, mas voltava a gritar, ora com as outras mulheres, ora comigo ou
com o mundo todo, o espaço todo.
No momento em que eu disse que iria embora, avançou e segurou fortemente
meu braço, dizendo: “Fique aqui, fique aqui!”. Mas logo o soltou, e não queria ser
tocada. Parou de reclamar quando eu disse que poderia voltar amanhã, e liberou-me
deixando por instantes de gritar e chorar.
Não voltei no dia seguinte, mas no outro subseqüente.
Dessa vez, o contato haveria que ser restabelecido, e foi, mas a força das
circunstâncias fez com que eu tivesse de abandoná-la para ajudar, acompanhado por
nossa co-interventora, as mulheres a transferir umas camas vazias de um quarto para
outro: por quererem ficar juntas, algumas delas haviam retirado os colchões dos outros
quartos, colocando-os no chão do quarto de preferência. Portanto, agora todas que assim
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queriam estavam no mesmo quarto em camas com colchões, juntas. Mas Ana do
Desterro ficou aguardando que tivéssemos gente suficiente para se aproximar dela,
dialogar, descobrir quem era ela, enfim, retomar o trajeto de descoberta do
desvendamento do mundo, que em algum momento passou a ser vivido com alta carga
de sofrimento e congelou-se em torno de repetições. Congelou-se a ponto de levá-la a
dizer que “massagem dói”, que o contato dói porque sempre foi dolorido, e o remédio
dessa relação dolorida com o mundo sempre foi o castigo e a violência inerente ao
hospital psiquiátrico.
Ana do Desterro clamava, aos gritos, que lhe arrancassem os grilhões que a
prendiam ao mundo subterrâneo, queria conhecer o ar puro, as plantas, as paisagens e,
quem sabe com mais esforço, as diferentes pessoas e a si própria (ela já estava internada
havia mais de 30 anos ininterruptos). Mentira, esse era o nosso desejo e o que
queríamos impor, convictos de que aos poucos conseguiríamos. Era com os nossos
desejos que ela haveria de entrar em contato para poder fazer suas escolhas, construir
seus próprios projetos de vida. Haveríamos de tomar todos os cuidados para que o nosso
poder de técnicos lhe abrisse as possibilidades de fazer as próprias escolhas e não
decidisse por ela quais caminhos tomar.
Eu torcia para que um dia tivesse condições de me dedicar mais ao contato e ao
resgate dos pacientes do que ter que empreender, como interventor, cotidiana e
diariamente, uma luta de idéias, valores e ações para garantir a governabilidade, a
viabilidade e a legitimidade dessas mudanças, atuando em campos sociais mais amplos
(no contato com outras instituições, com a imprensa, com a câmara de vereadores, com
a prefeitura, com o bispo diocesano, com a justiça, com o Conselho Municipal de
Saúde, e com tantos outros atores cujo contato exigia dedicação quase integral), para
que nossa equipe pudesse trabalhar e ser sempre multiplicada por novos atores.
Efeitos da institucionalização
A institucionalização produz seres especiais.
Seres produzidos pelo isolamento e pela opressão das rotinas e dos espaços e
tempos fechados e cíclicos, pelo cheiro de suor, de fezes, de urina, pela umidade
entranhada nas paredes, paredes e portas introjetadas que imobilizam e paralisam o
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fluxo de afeto. O conteúdo das mensagens de afeto encaminhadas aos internos é
representado pela parede: “não pode fazer isso, não gostamos de você, seu sofrimento
nada significa para nós”.
Como escreveu Basaglia (1985: 120):
coagido a um espaço onde mortificações, humilhações e arbitrariedades são a
regra, o homem, seja qual for o seu estado mental, se objetiva gradualmente
nas leis do internamento, identificando-se com elas. Assim, sua couraça de
apatia, desinteresse e insensibilidade não seria mais do que o seu último ato de
defesa contra um mundo que primeiro o exclui e depois o aniquila: é o último
recurso pessoal que o doente, assim como o internado, opõe, para proteger-se
da experiência insuportável de viver conscientemente como excluído.
Para começar a reverter essa situação, seria preciso singularizar a abordagem e
propor uma modificação das rotinas, dos espaços, lugares e tempos, bem como a
individualização do acompanhamento, definindo também um ou mais terapeutas que se
colocassem como o outro, o ego-auxiliar, aquele que completa e que traduz o desejo, o
sofrimento e a necessidade aos outros e ao ambiente19. Haveria que se criar uma
paridade entre os atores envolvidos, produzindo situações de co-responsabilização,
processos decisórios reais, exercício de reflexão, discurso, e crítica que politizassem a
existência.
Caberia aos terapeutas emprestarem o poder e as capacidades para que as
experiências dos internos com o mundo das coisas e das pessoas se transformassem,
adquirindo graus de protagonismo cada vez maiores. Esse movimento teria que se dar
em direção ao mundo de fora do hospício, no fluir das experiências sociais, que é onde a
vida se desenrola, e onde se situa todo o material que pode se tornar terapêutico.
Como diz Benedetto Saraceno, diretor de saúde mental da Organização Mundial
de Saúde ao discutir a questão da reabilitação psicossocial de pacientes graves, as ações
devem se dar nos espaços do hábitat, da casa, do trabalho e da rede social (Saraceno,
1996).
Essas ações de mediação, que a meu ver são o papel fundamental dos serviços
territoriais comunitários de saúde mental, devem ser executadas a partir do espaço vital
das pessoas institucionalizadas. A princípio ao redor da casa, ilha de segurança que se
tornou todo o continente e o universo, para aos poucos alçar os espaços da cidade, para
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ressignificar experiências vividas, histórias de vida positivas e destrutivas, desastrosas,
que na balança das vantagens tiveram como resultado a opressão e o isolamento.
Esse papel de mediação transforma também o terapeuta, que não sairá o mesmo
dessa vivência, e transformará a cultura, os valores e as pessoas que assistem aquele ser
diferente produzir e ocupar um espaço social novo, de dimensão nunca vista, criando
um novo contexto. Esse processo de negociação, tão bem descrito por Saraceno (1999),
a meu ver, se visa tornar-se crítico e não reproduzir formas de vigilância e de
invalidação, deve ter condições de rechaçar as novas formas de controle dos desvios que
a modernidade produziu depois das tecnologias da sociedade disciplinar. A capilaridade
do controle e da vigilância, as novas formas de normalização pautadas em estratégias de
des-confinamento (Deleuze, 1992) devem servir de substrato para a produção de crítica
e de uma prática que possam continuar a produzir estratégias que sempre coloquem em
xeque o poder20.
Porta de ferro de acesso a uma enfermaria.
49
O homem que desentupia vasos sanitários
Ele era pequeno, mas velho. Tinha mirrados 1,50 m de altura, talvez menos,
idade avançada, oitenta e poucos anos. Muito magro, pele escura e enrugada, marcas de
quem trabalhou muito na vida. Calças bem curtas e sandálias, um pequeno boné, e o
instrumento de trabalho, dos quais usou vários modelos nesses 40 anos de serviço: o
desentupidor de vasos sanitários.
Veio procurar-me para pedir a aquisição de seu instrumento de trabalho, que
estava em falta havia tempos.
Mas frisava com empenho que não se intimidava com a falta de condições de
trabalho: pegava um plástico para forrar as mãos e os braços e, “tchibum”, submergia-os
no vaso, para desentupi-lo.
O trabalho era constante e intenso, pois os vasos viviam entupidos.
Dizia-se que ali, no encanamento dos esgotos do prédio, havia uma bem
aquinhoada coleção de espumas de colchões, que os internos anos a fio utilizavam para
substituir o inexistente papel higiênico.
O encanador disse que anos atrás teve que abrir o chão para desentupir o
encanamento, e a quantidade de espuma encontrada era tão grande, que poderia render
uma fábrica de colchões.
Mas nosso personagem manteve durante 40 anos sua exclusiva função, das mais
curiosas, que fazia com orgulho.
Digamos que, se os internos não eram bem tratados, os vasos, pelo menos, muito
embora sem descargas a funcionar adequadamente, possuíam um cuidador exclusivo,
pago com mirrados dinheiros.
Ele contava que, durante todos esses anos, acordava cedo e vinha trabalhar a pé,
percorrendo vários quilômetros, sem perder a disposição para o trabalho.
Como os outros funcionários, perguntava-se o que faria no futuro sem a merda
do hospício, que representava para ele o sentido da existência. Não havia como não se
preocupar com o futuro desse homem bom aprisionado pelo hospício, e limitado a ele.
50
Curtas...
• Fazia frio, e compramos cobertores para todos, bolas e jogos...
• A mulher disse: “agradeço ao Lula por ter melhorado a comida”. Ou: “em
quem o senhor quer que eu vote na próxima eleição?”. É a lei do “voto-cesta
básica”, com a diferença de que aqui os alimentos já vinham preparados!
• Bela e terna a carícia das mãos de uma mulher de pele grossa e cabelos
curtos. Pegou a palma da minha mão e passou sua palma de uma forma
maternal, como se estivesse acariciando um bebê. Embora pouco de
feminino houvesse sobrado em sua fisionomia, seu carinho delicado era o de
uma mulher, uma mãe. Só queria acariciar e depois seguir o seu caminho.
• Era gratificante ver que, depois das primeiras semanas de intervenção, era
cada vez mais raro encontrar internos contidos mecanicamente no leito,
quando das visitas que eu fazia às alas.
O hospício no escuro
Como uma noite sem luar, de repente o hospício ficou no escuro. Como se não
bastasse a falta de roupas adequadas, a falta de um chão seco (já que os vazamentos
imperavam), agora a falta de luz.
Ficaram por cerca de duas horas sem luz, instalados nas enfermarias repletas.
Nossas poucas luzes, formadas por velas e lanternas dos celulares, construíam
apenas vultos no espaço vazio.
As mulheres começaram a gritar das janelas que davam para a frente do hospital.
Ao verem que eu estava próximo, acompanhado de uma das pessoas da equipe
de intervenção, uma grande companheira, psicóloga do Ministério que nos acompanhou
durante todo o tempo e liderou os momentos anteriores à intervenção (na verdade, foi
ela quem me convidou para esse trabalho), gritavam lá de cima, chamando por meu
nome. Uma delas disse: “Por que fez isso conosco? Você é o diretor, então resolva logo
isso, homem. As mulheres estão com medo!” – e ria.
51
Respondi com a mesma intimidade com que ela me dirigia a palavra,
explicando-lhe que o eletricista já estava resolvendo o problema, apesar do atraso e de o
acesso à caixa de força ser distante, no meio do mato.
A prefeitura novamente nos ajudou com prontidão, cedendo o eletricista com
rapidez (até os funcionários do departamento de compras e do departamento de
informática da Secretaria de Saúde, tocados e mobilizados pela intervenção, saíram de
imediato até o eletricista e foram acompanhá-lo até o hospital, tão logo lhes pedi ajuda).
O mais interessante, contudo, era perceber a facilidade com que as internas
dialogavam comigo e me cobravam coisas, o que significava que estavam vivas e
interessadas pelo que ocorria.
A fuga de um detento: existe diferença entre o presídio e o manicômio?
No mesmo dia da falta de luz, mas um pouco antes, havia ocorrido algo
inusitado: um apenado, que estava internado por ordem judicial, antes mesmo do
período da intervenção, e acompanhado sempre por dois policiais num quarto próximo
ao corredor de entrada, fugiu.
Ele soube, por alguns funcionários, que estávamos prestes a solicitar seu retorno
ao presídio, já que não havia o que justificasse seu tratamento num manicômio. Ao
saber disso, providenciou logo a sua fuga. Os policiais foram tomados de surpresa, pois
já estavam acostumados com o fato de ele ser uma pessoa serena, e lhe davam certa
liberdade de movimento, achando que nunca fugiria.
Era prática do hospital receber apenados em tratamento. Aliás, desde os
primórdios da psiquiatria, sempre houve um importante casamento desta com a justiça
(Castel, 1978; Foucault, 2002)21.
Em nosso caso, o hospital parecia pensar que isso lhe atribuía status. E é por isso
que lá se viam vários apenados, ou pessoas que precisavam de perícia. Lá se viam
também os laços entre o manicômio e o presídio sempre mais estreitos e apertados.
52
A audiência pública na Câmara de Vereadores
Fui participar de uma audiência pública patrocinada por um vereador para
discutir a situação do hospital.
Interessante ver os antigos psiquiatras da cidade, todos conhecidos do dono do
hospital, divididos entre defender o modelo centrado no hospital e defender o
indefensável: aquele hospital.
Os representantes dos donos de hospitais privados tentaram caracterizar a
intervenção como um desnecessário risco à liberdade da propriedade privada.
Os aliados do dono do hospital tentaram defender a instituição, aproveitando-se
do pânico gerado pela desinformação que sugeria o risco de desassistência (qual
assistência! Aquilo era assistência?!).
E cada qual defendia os seus interesses. Cabia a nós defender a intervenção
através do simples método de mostrar o que pode o homem fazer do homem.
A mulher voltada para dentro: o círculo vicioso
Cheguei ao hospital para uma visita no final de semana e, ao passar pelo
corredor, ouvi uma interna, dentro de um quarto, chamar pela psiquiatra da equipe de
intervenção.
A auxiliar de enfermagem dissera que a interna estava contida no leito, pois,
desde o dia anterior, quando recebera a visita do filho, havia ameaçado voltar a comer
fezes, além de jogá-las nos outros.
Aquela paciente tinha um histórico de comportamento não só de ingestão de
fezes, mas de atos destrutivos, suicidas. No entanto, a meu ver, não se tratava
unicamente de uma regressão a estágios anteriores do desenvolvimento afetivo, da
descoberta do corpo ou do círculo vicioso de voltar o produto do corpo para dentro dele.
A paciente também assumia atitudes manipuladoras, visando provocar reações
esperadas nas outras pessoas.
Eu já havia convivido antes com pessoas que, através de chantagens ou de
ameaças explícitas, tentavam “arrancar” dos outros o afeto que, na fantasia, preencheria
53
o vazio existencial em que elas viviam. Por ser manipulador, esse comportamento
gerava nos receptores sentimentos ambíguos de raiva, desprezo, piedade, além do
movimento forçado de tentar expressar apreço.
Bem, acontece que nossa psiquiatra me pediu para tentar ter uma séria conversa
com a paciente, tentando encontrar um ponto de autenticidade no diálogo, capaz de
superar a condição de manipulação em que nos encontrávamos, para que aquele
episódio pudesse produzir mais mensagens desinstitucionalizadoras no diário que
vínhamos construindo. Talvez nossa psiquiatra, que já vinha freqüentemente discutindo
essas questões com a paciente, esperasse que minha intervenção no caso pudesse
produzir alguma mudança uma vez que eu ocupava o papel de diretor do hospital e de
autoridade. Talvez fosse mais uma fantasia nossa acreditar nessa possibilidade, já que,
nesse caso, vivíamos a sensação de impotência por não conseguirmos viabilizar
modificações no comportamento sempre repetitivo da paciente. Entendíamos que esse
processo de tentar capturar o reconhecimento, o afeto das outras pessoas, faz parte da
condição humana e do funcionamento da subjetividade. O excesso de manipulação e o
uso de estratégias destrutivas por parte da paciente, no entanto, acabavam mais
afastando as pessoas do que as aproximando, e isso explicava nossa necessidade de
fazê-la mudar o seu comportamento (sua tática para conseguir afeto e reconhecimento
não funcionava, e teríamos de ajudá-la a encontrar outras formas de obter o
reconhecimento dos outros).
Cheguei até a cama onde a paciente estava atada e comecei a conversar. Ela
disse que estava amarrada porque queria fumar muito e não a deixavam. Retomei o
episódio da ameaça que ela havia feito de jogar fezes nas pessoas. Ela tentou me
convencer de que a doença a levava a comer fezes, afirmando que tinha alucinações
auditivas em que lhe ordenavam que o fizesse. Insistia em frisar que era doente e que
não controlava seus comportamentos. Aceitei sua avaliação, mas disse que parte de seu
comportamento, o de jogar fezes nos outros, podia ser controlado, pois não significava
necessariamente uma compulsão da doença (de fato, pela avaliação do quadro psíquico
que ela apresentava nesse contato, e considerando o contexto em que se deu o ato de
jogar fezes, eu tinha dúvidas se de fato ela tivera aquelas alucinações auditivas). Afinal,
quanto do ato de comer fezes não visava provocar reações nas pessoas? Pedi que ela
tentasse se colocar no lugar de quem recebe fezes dos outros na cara.
54
Em seguida, ela manifestou sua tristeza com o fato de o filho ter ficado
assustado com ela e não a ter levado para casa. Combinamos que todos nos
esforçaríamos para criar as condições de sua ida para casa, a começar por ela, que
evitaria multiplicar qualquer tipo de ameaças. Negociei então com ela, para que pudesse
sair do leito e andar comigo fora do hospital. No entanto, ela dizia que queria ir ao
banheiro, garantindo que não comeria as fezes.
Acompanhei-a ao banheiro e, enquanto aguardava ao lado da cabine, ela foi
contando trechos de sua história, dos filhos, dos pais, das experiências de sofrimento
pelas quais havia passado.
Carregava sempre consigo uma sacola muito importante, cujo interior era
composto por cigarros e muito, muito papel higiênico, que era uma arma para substituir
a compulsão de ingerir fezes.
Passamos a passear e a conversar na área externa ao hospital, e ela me contou os
estupros que havia sofrido na adolescência, seu envolvimento com drogas, os episódios
de psicose pós-puerperal e as várias internações psiquiátricas a que fora submetida.
Logo, combinei que ficasse na recepção do hospital com um dos cuidadores,
sentada.
Outro cuidador veio logo e saiu com ela para buscar água.
O que eu tentava marcar com essas ações com os pacientes era a necessidade de
outros funcionários se aproximarem, assumindo um outro olhar e novas estratégias para
lidar com o sofrimento.
Eu não tinha respostas prontas nem sabia o jeito correto de lidar com todas as
situações, mas queria estimular que a busca por mudanças, através da ampliação do
diálogo com os internos, substituísse o jeito geralmente simplista de lidar com essas
situações, presente na lógica coercitiva do hospital: conter mecanicamente no leito, para
não atrapalhar o funcionamento da instituição, e só. Esse tipo de resposta violenta, que
os internos até já esperam receber, devido a suas experiências anteriores, apenas reforça
e reproduz a sua nulidade, a impossibilidade de assumirem acordos e responsabilidades,
a sua invalidação como sujeitos de discurso. Era a necessidade do diálogo e da
descoberta de novas respostas que justificava minha participação, e dos membros da
equipe de intervenção, em episódios como esse, para que não ficássemos limitados
55
apenas às questões administrativas do hospital, reproduzindo a mesma divisão de
papéis, impermeáveis uns ao outros, que a antiga estruturação hierárquica mantinha.
O médico hospitalar que quase nunca entrou numa enfermaria
Nossa psiquiatra da equipe de intervenção pediu a um dos médicos que se
responsabilizasse por uma das alas que havia sido desmembrada. Para realizar esse
trabalho, o médico naturalmente teria de adentrar o espaço interno para avaliar os
internos.
Parecia simples. Mas não foi tão fácil de resolver. O profissional ficou bastante
angustiado com essa possibilidade. Esclareceu que havia muitos anos não entrava nas
enfermarias, pois atendia apenas parte daqueles internos-moradores que têm certa
liberdade e perambulam pelos corredores do hospital, próximos à saída (e cujas famílias
pagavam, ilegalmente, uma “mesada” ao hospital – além do que já se recebia do SUS,
para mantê-los perpetuamente por lá, conforme fomos informados por pacientes,
familiares e funcionários do hospital).
Seguindo a rotina de vários outros médicos, com raríssimas exceções, qualquer
plantonista só atendia a alguma situação de emergência do lado de fora das alas,
prescrevendo sem ver o paciente ou adentrar o espaço onde ficam confinados. Achavam
deprimente e perigoso ficar com os internos. Esse era um trabalho para os seguranças da
cadeia-mental. Por que não se colocavam no lugar dos internos e ficavam cinco minutos
que seja segregados, para ver o que a psiquiatria produziu? A psiquiatria também os
produziu, como atores alienados de uma engrenagem, que fazem seu trabalho numa
esteira mental fordista22.
A divisão de papéis e a forma de desempenhá-los parecem corresponder a uma
lógica baseada na inviabilidade de conseguir melhoras nos pacientes e na função
mecânica de manter a máquina institucional funcionando sem nenhum desvio ou
questionamento. O envolvimento afetivo e intelectual exigido para o exercício
profissional é muito limitado, e se baseia muito mais na negação do que na proposição
de novos tipos de intervenção, de novas modalidades de atendimentos que buscassem a
melhoria dos pacientes.
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Essa lógica de funcionamento vincula-se a uma forma peculiar de ver a doença
como algo que deve ser extraído da vida concreta dos sujeitos, para ser lidado
separadamente como única dimensão que interessa ao diálogo. Algumas dessas questões
serão retomadas na última parte deste diário.
Justiça do trabalho, sempre ao lado dos trabalhadores
Num só dia, compareci, junto com a administradora hospitalar da equipe de
intervenção e também co-interventora, a sete audiências trabalhistas. Os funcionários
tinham a expectativa de que a intervenção regularizaria todas as dívidas da
administração anterior, mas preferiram tomar caminhos tortos, recorrendo a alegações
falsas (como a de dizer que foram dispensados e demitidos pela direção da intervenção,
quando continuavam a trabalhar normalmente) para obter as indenizações.
Esse era mais um flanco de luta política que a intervenção engendrava e, embora
concordássemos com a delicada situação dos trabalhadores, teríamos de enfrentar as
reivindicações que eles faziam, pois todas as dívidas existentes eram do período
anterior.
Com efeito, durante a intervenção, nenhum trabalhador havia sido demitido e
eles continuavam a trabalhar, o que fazia que parte de suas reivindicações caísse no
vazio.
Além da proliferação de audiências trabalhistas, fomos surpreendidos com uma
decisão judicial de bloqueio de recursos para saldar a dívida com um médico, o que
inviabilizaria o pagamento mensal dos demais funcionários.
Diante de todas essas situações, tivemos de agir juridicamente para poder dar
continuidade à intervenção, tentando apresentar aos juízes nossos argumentos e provas.
Conseguimos conversar com o juiz que determinou o bloqueio de recursos.
Relatamos a ele a dificuldade que teríamos de manter o hospital e mostramos as fotos
que tínhamos, referentes ao primeiro dia da intervenção, para que ele entendesse a
gravidade da situação que estávamos empenhados em modificar.
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O juiz sugeriu que fizéssemos uma proposta de parcelamento, que fosse
razoável, de forma a não inviabilizar o pagamento dos demais trabalhadores, nem
prejudicar o médico que tinha direito à indenização.
Audiências, audiências ...
Os funcionários eram unânimes em dizer que, ao entrarem com processos
trabalhistas contra a instituição, o faziam pensando no dono do hospital como
adversário, e não em nós que os respeitávamos e os estávamos valorizando.
O fato é que, como administrador interino e transitório da instituição, eu
respondia também na esfera jurídica por todas as demandas apresentadas, mesmo que
relativas ao passado.
Tive de comparecer a nada menos que três dezenas de audiências trabalhistas,
fazendo acordos que perdurariam até o futuro, ou seja, combinando para o futuro o
pagamento das dívidas trabalhistas que, dessa forma, retornariam às mãos do dono do
hospital. Afinal, quem as produzira fora ele, que parecia manter a esperança de que o
Ministério da Saúde utilizasse recursos do SUS para saldar tais dívidas, devolvendo-lhe
a instituição saneada, sem que tivesse que arcar com os prejuízos.
Faxinas
É comum nos hospitais psiquiátricos que alguns dos espaços sejam mais
conservados que outros. Principalmente os espaços cujo acesso não está limitado apenas
aos internos e a parte dos funcionários. Um desses espaços especiais são áreas de
visitação.
Aqui as coisas não eram diferentes, e os funcionários da limpeza seguiam essa
lógica para orientar seu trabalho, cujo hábito fora construído em anos e anos de
instituição.
Essa era a principal dificuldade para convencer uma das funcionárias da limpeza
de que os lugares que necessitavam de limpeza constante eram as enfermarias, os
banheiros usados pelos internos, os espaços reais do manicômio e não os fictícios, os
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retóricos e sofistas como as áreas de recepção e visitação. Mesmo depois dessa
orientação, tivemos de intervir várias vezes para que o pessoal da limpeza abandonasse
o corredor externo, tão brilhante e limpo quanto vazio.
Esta pode ser uma imagem metafórica do ambiente hospitalar: um lugar que
possui espaços sujos e limpos, bonitos e feios, de vida e de morte, valorizados e
desvalorizados. Onde se investe naquilo que é menos necessário, em detrimento das
necessidades reais de quem deveria ser o foco das intervenções: os internos.
Zâmbia e a dominação sexual
Sedutora. Primeiro, no espaço da enfermaria feminina, deu-me um abraço, ao
qual retribuí com meus braços a ampará-la. Apertou, não largou e, por fim, segurando
ao redor de meu pescoço, deu um salto com as pernas abertas fazendo-me prisioneiro.
Estava de fato pendurada em mim, as pernas penduradas como uma tesoura que deixa o
chão levitando ao redor de meu tronco. Não soltava e, temendo não suportar o peso,
além de estar incomodado com aquela situação, fui dando pequenos passos, os únicos
possíveis, até a cama em que poderia soltá-la e me soltar também.
Certamente era uma cena cômica, pois demonstrava o quanto ela se colocava
como um ator, com poder para me deixar constrangido e semidominado.
Ela que, com seus lindos olhos azuis e o rosto de quem já tivera muitas faces na
vida, ocupando papéis sociais diversos, até poucos dias antes se negava a sair de um
quarto onde, com outras internas, consideradas problemáticas (uma que mordia, outra
que jogava fezes nos outros, outra que “nada” compreendia), permanecia fechada e
amarrada à cama, agora “aterrorizava” ou animava o ambiente sombrio e destruído da
enfermaria feminina.
Basaglia já dizia que, ao serem objetivados e coisificados pela psiquiatria, que
não os compreende nem mantém com eles uma relação de reciprocidade, os pacientes
encontram reforço para se manter objetos alienados reproduzindo todas as negações que
tiveram que operar para sobreviver numa sociedade que os vê como o pólo negativo de
uma contradição que não deve ser superada.
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Tal como a realidade que não conseguia contestar, a instituição à qual não se
pode opor deixa-lhe uma única saída: a fuga através da produção psicótica, o
refúgio no delírio, onde não existem nem contradições nem dialética...
(Basaglia, F., 1985: 118-9)
Assim, manter-se desligado, louco e irresponsável, exercitando o alheamento
que outrora aprendera a operar para ocupar o pólo negativo de uma contradição que não
se deve enfrentar, sob pena de provocar mudanças em todos os atores envolvidos, é o
único lugar que cabe ao “doente do espírito”.
Zâmbia, nesse sentido, estava perfeitamente adaptada a seu papel, assim como o
estavam os funcionários da instituição.
Tentava olhar para seus olhos azuis com a esperança de conseguir que ela
olhasse os meus, não como um personagem ameaçador, mas como alguém que se
negava a ser objetivado e idealizado como o reprodutor de sua objetivação. Como
alguém que queria entrar em contato com seu sofrimento, com a dor de ter vivido tantas
perdas e tanta violência.
O pasto
Não é que descobri, já passadas semanas da intervenção, que por vezes algumas
mulheres continuavam a ser trancadas em um dos pátios para permanecer isoladas, ao ar
livre, de modo a permitir o funcionamento sereno da instituição? Descobri isso quando
caminhava até a cozinha, e vi um cuidador guardando a porta de uma área aberta
contígua a ela.
Assim como no pátio dos homens, havia mato, barro, partes cobertas para se
proteger da chuva. Havia sujeira, não havia banheiros que funcionassem, não havia
funcionários. Havia a porta de ferro, gradeada, a separar os funcionários dos internos.
Havia outras portas que separavam os vários estratos sociais: a porta que separava os
funcionários dos enfermeiros, a porta da parte nobre da instituição (a administração, a
recepção), o quarto dos médicos (já citei que os médicos não entravam muito nas alas e,
por isso, não conheciam o manicômio por dentro. Eles “passavam” pelas bordas das
alas, mas não era nada permeável). Na seqüência de cada porta, em cada estrato de uma
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pirâmide hierárquica, o último degrau cabia aos internos, é claro! (Basaglia, F.;
Basaglia, F.O., 1977).
No pátio havia também uma sala trancada, igualmente caindo aos pedaços.
Perguntei ao funcionário o que era, e ele respondeu que era a sala da pedra. Pedra?! Que
pedra?! Era a pedra onde antigamente se colocavam os pacientes que faleciam. O
hospital, de fato, pensava em tudo, na garantia do processo de destruição de seus
internos. E os pátios eram, enfim, o lugar destinado aos pacientes, estivessem eles vivos
ou mortos.
Pátio masculino.
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Cela forte: a revanche!
Um dos funcionários em quem mais confiávamos procurou-me certa manhã para
dizer que havia uma paciente trancada numa das celas fortes havia muito desativadas.
Segundo ele, a paciente teria fugido no dia anterior, tendo sido trazida pela
polícia. Era madrugada, de acordo com informações que havia recebido de outros
funcionários, e ela poderia ter sido colocada na cela.
Fomos ao local a que se referiu, mas não a encontramos lá (o lugar estava
totalmente vazio, ou melhor, só havia ratos). Encontramos a paciente junto das outras
internas, numa outra área aberta e limpa (que substituiu aquele pátio sujo e horrível que
citei acima), onde se divertiam e interagiam junto com os funcionários, utilizando as
bolas que havíamos adquirido.
À noite a situação era mais difícil, pois havia menos funcionários. E era mais
difícil saber o que se passava, até mesmo saber se esse caso havia realmente acontecido
ou não. E boatos assim corriam e criavam fatos.
Pelo menos, ao colocarmos os trabalhadores novos da Cooperativa, abriu-se a
possibilidade de haver entre ambos os grupos (funcionários do hospital e cooperados)
um controle que tendia a evitar abusos, embora no decorrer do processo pudesse haver
acordos entre eles.
Mas estava sendo preparado para breve um passo estratégico fundamental que
iria desmantelar essa cristalização: a mudança de prédio e de funcionários.
Dada a situação difícil em que o hospital se encontrava, principalmente porque
vinha sendo vítima de bloqueios de recursos financeiros pela justiça visando ressarcir
antigos funcionários por dívidas contraídas pela administração anterior, e porque o
prédio estava extremamente deteriorado, o que dificultava qualquer melhora para o
conforto dos pacientes, optamos por levar os pacientes para outro prédio, que ficaria sob
a responsabilidade da prefeitura. Esta utilizaria os recursos antes repassados ao hospital
para a manutenção desse novo serviço, que deveria ser transitório, durando cerca de 6
meses, até que todos os pacientes tivessem alta, ou fossem para residências terapêuticas,
e que novos serviços comunitários fossem implantados.
62
Quando isso ocorresse, os funcionários da Cooperativa nos acompanhariam
durante o período de transição, até a chegada das equipes novas, selecionadas pela
prefeitura. Isso seria positivo, pois eles já conheciam os pacientes e poderiam ajudá-los
a se adaptar a um espaço físico destituído de grades sem a possibilidade de
trancafiamento de pessoas (lá não haveria grades nem salas isoladas, e as portas dos
quartos não teriam chave – um espaço menor seria mais adequado por possibilitar mais
diálogos, encontros, e uma administração do cotidiano discutida, negociada entre todos
os atores).
Preparando a mudança
A correria para fazer a seleção, e a chuva ininterrupta que alagou
nosso novo prédio
A seleção dos profissionais que viriam a trabalhar nos novos serviços de saúde
mental (inclusive no novo prédio para onde os pacientes seriam transferidos) exigiu um
grande esforço. Durante mais de uma semana, a coordenadora interina de saúde mental
de nossa cidade, bem como outros membros da equipe de intervenção, juntamente com
um grupo de entrevistadores de outros dois estados, as universidades da cidade, a equipe
do Ministério e do município, desdobraram-se para avaliar os mais de mil candidatos
que se apresentaram para preencher as vagas.
Além de entrevistá-los, tiveram de elaborar e aplicar uma prova escrita e avaliar
todos os currículos. E isso tudo às pressas para garantir a mudança para o outro prédio e
a finalização da intervenção, devolvendo assim o problemático hospital ao seu dono,
desta vez sem o convênio com o SUS.
Queríamos muito que a maioria absoluta dos funcionários do hospital fosse
selecionada, mas apenas uma parte deles passaria na seleção.
No entanto, a correria da seleção foi freada pela água, que encheu o prédio novo
de infiltrações.
Como chove em nossa cidade nessa época! Que sertão molhado é esse, que faz
um belo festejo de São João enredado de cobertas e agasalhos?
63
O adiamento da seleção
Essa pequena interrupção no processo de mudança foi provocada não só pela
necessidade de reformar o prédio, pois as chuvas obrigaram a substituição do telhado,
mas também por outras questões.
Um parecer jurídico havia considerado arriscado fazer uma divulgação parcial
do resultado da seleção dos profissionais, sem que todo o processo estivesse concluído
(havia-se priorizado completar a seleção dos profissionais de saúde mental para depois
realizar a dos funcionários administrativos e de serviços gerais).
Isso atrasou muito a conclusão do processo seletivo e levou-nos a ter de lidar
com mais uma fase transitória, antes de formar a equipe que deveria cuidar dos internos
até dezembro, quando esse futuro hospital transitório deixaria de existir.
Essa nova fase intermediária teria como característica a implantação de uma
equipe composta por servidores públicos de outros serviços da prefeitura, em conjunto
com os trabalhadores da Cooperativa, esta que já atuava no hospital trazida por nós.
A equipe permaneceria no local até que o processo de seleção fosse finalizado e
os trabalhadores selecionados assumissem os cargos.
Era igualmente urgente definir os procedimentos burocráticos que embasariam o
descredenciamento do hospital e garantir a continuidade dos recursos financeiros
repassados pelo Ministério da Saúde para uso do município nas outras ações de saúde
mental.
A mudança se daria entre os dias 27 e 30 de junho. Seriam 86 leitos dos 176 que
encontramos no hospital quando da intervenção.
Após esse período de transição, o novo hospital seria fechado e substituído por
residências terapêuticas (para os pacientes-moradores), por novos CAPS que fariam o
acompanhamento de todos os pacientes (inclusive com a criação de CAPS III, que é
aquele que possui leitos e funciona 24 horas) e por um serviço de emergência
psiquiátrica.
64
Lembranças de Santos VIII
Em Santos, como já mencionei, os serviços territoriais foram se formando à medida que
se dava o processo de desativação das alas regionalizadas. Ao final do processo, haviam
sido criados 5 NAPS (Núcleos de Atenção Psicossocial), que corresponderiam aos
atuais CAPS III, que funcionam 24 horas/dia, 7 dias na semana, 1 Unidade de
Reabilitação Psicossocial (que desenvolvia projetos de inserção no trabalho), 1 Centro
de convivência (que atuava no campo da arte e na criação de espaços de sociabilidade,
incluindo o Projeto TAM-TAM, que tinha um programa de rádio), a República (ou Lar
Abrigado) Manuel da Silva Neto que era o espaço de moradia de alguns usuários do
sistema (usuário era o termo utilizado em Santos para designar os pacientes), o Núcleo
de Apoio ao Toxicodependente e a equipe de saúde mental do Pronto-Socorro, que dava
suporte a todo o sistema (Kinoshita, 1996; Nicácio,1994). Cada NAPS funcionava tendo
o suporte de 6 a 8 camas, destinadas a oferecer acolhimento integral em situações que
necessitassem da momentânea separação física do usuário de sua residência, o que era
negociado com tensões e contratensões, já que os pacientes não ficavam trancados ou
isolados em nenhum espaço especial. Esse importante dispositivo, utilizado em
sincronia com todo o trabalho territorial, de parceria e de agenciamentos que
multiplicavam as experiências de convívio social dos usuários (Nicácio, 2003), era
suficientemente sensível e flexível para produzir poucos dias de distanciamento do lar.
Segundo Kinoshita (1996), isso dizia respeito à garantia do “Direito de Asilo”, quando
era necessário um distanciamento estratégico do local de moradia e do bairro para que
todos os atores envolvidos pudessem avaliar as bases da crise sob outros ângulos, de
forma a não permitir que o tecido social se esgarçasse. E o melhor é que os usuários
poderiam, nessas condições, continuar a ser acolhidos e acompanhados, mesmo em
momentos de crise, pela mesma equipe que conhecia sua história e seu contexto de vida,
e que os apoiava na construção cotidiana de seus projetos de vida. Aliás, mesmo estando
em hospitalidade integral, a permeabilidade com o espaço externo era constante. A
consistência do acompanhamento e do diálogo com a pessoa que vivia a experiência da
loucura fazia com que não houvesse mais nenhum sentido nem necessidade de se obter
o apoio de qualquer hospital psiquiátrico.
65
As mulheres dominam tudo
Interessante o movimento das mulheres.
Após as chuvas que invadiram o junho de nossa cidade, a ala das mulheres,
muito bem guardada e escondida, teve de ser interditada, após uma noite em que as
infiltrações dominaram as paredes e as gotas de chuva avançaram pelas janelas sem
vidro, molhando colchões, cobertores e pessoas.
Os funcionários, então, resolveram levar as mulheres para a “ala aberta”, um dos
lugares mais preservados, limpos e iluminados, historicamente ocupado pelas internas-
moradoras (aquelas cujos parentes pagavam aos antigos administradores uma
mensalidade destinada a perpetuar a internação), que têm mais autonomia, cuidam do
local e de si mesmas.
Foi como se a periferia tivesse ocupado o centro da elite, ou como se o “povão”
chegasse em peso à festa dos “mauricinhos”.
O tempo e a chuva deram o impulso espontâneo à mudança que um dia haveria
de ser provocada pelo discurso, pela forma de escutar, de refletir e de se relacionar com
os internos que vimos implantando e tecendo a cada dia com pequenas ações no
cotidiano.
Muito além do contato com os internos da elite, dessa microssociedade que
reproduzia hierarquicamente as mesmas relações de classe ou de castas, os pacientes
mais pobres e mais “instáveis” (ou seriam aqueles que gritam mais, ocupam espaços e
expressam com mais furor seu sofrimento?) chegaram mais próximos dos corredores de
entrada do hospital, daqueles brilhantes corredores que servem aos profissionais e aos
visitantes.
Se era difícil levar os médicos, o posto de enfermagem e os outros profissionais
até o interior das enfermarias, o interior das enfermarias veio aos profissionais, e a todos
aqueles que trabalhavam na área de apoio (farmácia, administração) e que muito pouco
contato tinham com os internos.
A circulação de pacientes engendrada mudou a dinâmica do hospital. A partir
daquele momento, era comum ver em portas e corredores um entra-e-sai e cuidadores se
organizando para acompanhar de fato o movimento dos internos, principalmente dos
66
mais graves e que apresentavam mais dificuldades de conviver com os outros, o que
gerava situações de violência (violência produzida pela dinâmica institucional de anos a
fio, como espelho da violência perenemente sofrida por essas pessoas).
Pelos corredores e pelas portas, pela rua vazia do estacionamento do hospital,
onde ficava a entrada, havia um movimento frenético de profissionais e pacientes
tentando se entender e construir um processo de diálogo.
Algumas contenções mecânicas ainda continuavam a acontecer, mas com o
objetivo de proteger os próprios pacientes e seus companheiros, e não como castigo e
abandono.
Sempre discutimos a necessidade de se acompanhar o paciente quando da
contenção, de explicar e refletir com ele o significado daquela medida, de compartilhar
o sofrimento para que dele pudessem nascer novos projetos (ficar o tempo todo ao lado
do paciente, comprovando que o objetivo da contenção não é se livrar do incômodo que
seu sofrimento representa, não é atender a uma necessidade de paz de quem está
amarrando).
Pouco a pouco, as contenções diminuíram, sendo substituídas pelos passeios e
pelo acompanhamento pessoa-pessoa, mesmo naqueles casos como o de uma paciente
(a mesma que tem uma singular relação com as fezes) que socou as vidraças e se cortou,
tentando fazê-lo várias vezes, como se pedisse ajuda, afeto, às vezes contenção física,
medicação sedativa de emergência, mas, sobretudo, alguém para compartilhar o
sofrimento muito intenso.
Algumas pacientes permaneciam em quartos individuais (como era o caso
daquela moça com fama de morder a qualquer momento muitas pessoas), mas desta vez
eram quartos munidos de cama, colchão, cobertor, banheiro próprio, limpeza várias
vezes ao dia, em contraste com as antigas celas fortes.
Enquanto se desconstruía a idéia de que aquela paciente era uma mordedora
inveterada e de que seu contato com outras pessoas só poderia ser viabilizado com a
presença de cuidadores homens para intimidá-la, muitos passeios foram reproduzidos
pelos corredores, não só com profissionais homens, mas com mulheres.
Por muitas vezes desamarrei as faixas que continham essas pessoas, começando
os passeios pela parte nobre e aberta do hospital. Isso pôde ser reproduzido pelos outros
67
funcionários, já que questionávamos o sentido da violência e propúnhamos a
possibilidade de um novo tipo de abordagem.
No entanto, era bem limitado o nosso potencial de transformação na dinâmica do
trabalho, uma vez que estávamos trabalhando com profissionais que se encontravam
havia anos no hospital e com alguns cuidadores que nunca tinham exercido função
semelhante. Além disso, tínhamos poucos quadros e líderes, a equipe de intervenção era
pequena, para reproduzir com mais força as transformações.
Apesar disso, os atos que fizemos em poucos tiveram efeitos estrondosos, cuja
responsabilidade foi dos próprios profissionais que, com mensagens emitidas em baixa
freqüência, espalhadas, múltiplas e simultâneas, souberam captar e descobrir por si, com
pouca supervisão, novas formas positivas de se relacionar e dialogar com os pacientes.
Tudo era ainda bem intuitivo, muito mais no campo do contato corporal que
propriamente do discurso.
A agressividade do paciente a que Basaglia se referia, necessária para produzir
transformações na instituição e nas pessoas (Basaglia, 1985), ainda se manifestava pelas
relações primárias, pelo contato corporal, pela relação de descoberta do próprio corpo
traduzida pela relação com o corpo do outro. Não pudemos ainda ver manifesta a
agressividade pelo discurso das pessoas no coletivo, pela reflexão e produção de crítica
através de participações em reuniões e assembléias.
Como disse Basaglia (1985: 116),
para reabilitar o institucionalizado que vegeta em nossos asilos seria, portanto,
mais importante que nos esforçássemos para despertar nele um sentimento de
oposição ao poder que até agora o determinou e institucionalizou, antes
mesmo de construir em torno dele o espaço acolhedor e humano do qual
também ele necessita. Despertado esse sentimento, o vazio emocional em que
o doente vem vivendo há anos voltará a ser tomado pelas forças pessoais de
reação e de conflito, ou seja, o único ponto de apoio possível para sua
reabilitação: sua agressividade.
A velocidade do processo e a necessidade de responder a tantas demandas
exteriores relacionadas à governabilidade e legitimidade públicas da intervenção, além
do fato de a equipe de intervenção ser muito pequena, não permitiram que neste
primeiro momento fizéssemos muitas assembléias e reuniões com os pacientes. Esse
68
momento poderia fazer parte da segunda etapa da intervenção, depois da mudança para
o novo prédio, com nova equipe e nova dinâmica. As assembléias seriam fundamentais
para que se exercesse uma reflexão crítica do processo, para se tomar decisões coletivas
sobre o funcionamento da instituição, ou seja, para forjar e fortalecer os laços de
reciprocidade e responsabilidade entre todos os atores envolvidos, o que seria
extremamente terapêutico para os pacientes.
Preparávamo-nos para essa mudança, enquanto as pacientes circulavam pelos
corredores e alguns funcionários, como vi ocorrer com uma do setor de administração,
se trancavam em suas salas, internavam-se voluntariamente, pois, segundo diziam, “os
loucos estavam soltos”.
Lembranças de Santos IX
Em Santos, as assembléias, os espaços de discussão entre os trabalhadores, as reuniões
para estudo, eram freqüentes e intensas, ocorrendo desde o interior do Anchieta, até nos
serviços territoriais que foram sendo criados. Essa prática de discussão representava um
dispositivo fundamental de exercício de poder, de questionamento de papéis
cristalizados, enfim, de construção de projetos coletivos e de produção de crítica sobre o
que estava sendo produzido com o trabalho. A voz dos pacientes sempre foi valorizada,
e podia ter lugar em todos os momentos de seu processo de vida. Muitas vezes algumas
falas eram traduzidas por outros atores, pacientes ou profissionais, o que possibilitava a
criação de nexos e o desenvolvimento de um método eficaz de comunicação. A
participação maciça dos funcionários e dos diretores das unidades fazia com que este
fosse um espaço legítimo de poder e decisão, o que produzia intensas modificações
naqueles cuja voz antes era considerada um grunhido (ou simples sinal de sintomas
psicóticos), talvez, nunca uma enunciação de conteúdo precioso.
A festa de São João
Já se disse que o São João em nossa cidade e no Nordeste é tão importante
quanto os festejos de Natal nas regiões Sudeste e Sul.
Na véspera de São João, as famílias se encontram e as fogueiras na porta de cada
casa proliferam. Sem querer ser exagerado, as fogueiras que vi na noite de São João de
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2005 geraram na cidade uma fumaça bem parecida com a neblina da Serra do Mar na
estrada São Paulo-Santos (litoral sul).
No hospital dizia-se que o São João também era comemorado anualmente, com
uma pequena festa.
E foi isso que fizemos, mas do nosso jeito.
Encomendamos comidas típicas (muitos quitutes derivados do milho e da
farinha de mandioca, lá chamada macaxeira) e contratamos o trio de forró.
Mas, diferentemente dos outros anos, a festa, que desta vez se deu em frente ao
hospital, na parte externa, muito embora fosse uma festa caseira destinada aos internos,
funcionários e familiares, levou para a rua 100% dos internos, e não apenas aqueles
“que têm condições”, como era prática nos anos anteriores.
Trazer para fora do hospital, de forma negociada, alguns pacientes extremamente
cronificados que não aceitavam ver a luz do dia e receber o ar num espaço aberto
também foi um desafio, e parte e objetivo da festa.
Os funcionários se envolveram, dançaram com os internos, e as mulheres
novamente tiveram o microfone à disposição para cantar e se manifestar.
Para a equipe dirigente da intervenção, que preparava para breve a mudança de
prédio, a festa soava como uma despedida. Pareceu até que os funcionários percebiam
isso, alguns deles se emocionando, assim como se emocionaram quando foram conhecer
as residências terapêuticas que os pacientes iriam ocupar, durante a inauguração das
casas. E assim como se emocionariam, ao vê-los saindo para ocupar as casas quando da
mudança.
Já estava claro para os funcionários que a manutenção do hospital se tornara
inviável, tanto que todos se preparavam para participar da seleção da prefeitura, e outros
já procuravam outros empregos. O que não se sabia, no entanto, era a data exata de
fechamento do hospital.
O fato é que, nesses momentos de comemoração, reinava um sentimento misto
de alegria por ver os pacientes deixarem sua condição de segregação (que talvez muitos
dos funcionários, no duro dia-a-dia do hospício, sabiam ser necessário) com a
70
preocupação futura com a possibilidade de não ter emprego e de ter que sobreviver sem
o trabalho no manicômio, fazendo outras coisas.
O preâmbulo da mudança
Para a mudança de prédio tivemos que fazer muitos esforços para viabilizar
todas as condições a tempo, pois estávamos pressionados pelas demandas judiciais
relativas aos passivos produzidos historicamente pela administração anterior, que
vinham como bombas, através da tentativa de seqüestros e bloqueios dos recursos que o
hospital recebia do SUS.
Enfrentamos também muita resistência do sindicato dos funcionários. Uma das
questões mais difíceis nas discussões corporativas dos sindicatos é a dificuldade de estes
terem uma visão de processo das mudanças sociais. Ao não identificar os pacientes
destruídos pelo hospital como parceiros de um lumpemproletariado tão próximo da
origem de classe de seus filiados, eles querem garantir o emprego e o direito destes (até
para se legitimar politicamente perante a categoria) a qualquer custo, sem nem
questionar a violência que sofrem por terem de desempenhar o papel policial e opressor
do manicômio.
Eis aí uma questão que merece atenção: Como desinstitucionalizar pacientes e
funcionários num movimento que produza mais ganhos e que evite perdas demasiadas
(como o emprego) para alguns dos atores?
A equipe de intervenção sempre ponderou que os novos serviços de saúde
mental que seriam implantados produziriam um número de empregos superior ao do
hospital psiquiátrico, e esta era uma questão importante que deveria se conectar à
necessária modificação de valores que o processo de desinstitucionalização implicava.
Depois de todos os esforços para viabilizar a mudança de prédio (reforma,
compra de equipamentos e formação da equipe de transição com funcionários da própria
prefeitura, até que a seleção fosse totalmente finalizada), era chegado o momento de
discutir com os profissionais do hospital e com os internos sobre a mudança, de dizer a
eles que a hora do descredenciamento chegara, que o hospital psiquiátrico deixaria de
existir, pelo menos enquanto componente do SUS.
71
No hospital havíamos chegado a um limite claro. Era como se as internas, com
seu intenso movimento de acessar os corredores externos, antes só habitados por
funcionários, indicassem a necessidade de um passo maior em direção ao exterior.
Pouco a pouco, os espaços físicos de um prédio lúgubre, em muito semelhante a
um calabouço, foram sendo conquistados e descartados. Eram inabitáveis.
Aliando-se à diminuição da receita financeira, devido à diminuição do número
de internações durante a intervenção, ao crescente desaguar de bloqueios judiciais dos
recursos do SUS que o hospital deveria receber, a mudança do processo de
desinstitucionalização para outro prédio, o descredenciamento do hospital do SUS e o
fim da intervenção tornaram-se urgentes.
Mas o passo para a mudança, em seus vários aspectos, foi angustiante para a
equipe de intervenção. A restauração do prédio novo demorava a ser concluída, devido
ao ritmo lento da empresa contratada pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS) para
executar a obra. Fazer o descredenciamento, conjugado à mudança, também não foi
uma tarefa simples.
O gestor municipal era o responsável pela ação, e imaginava que haveria a
possibilidade de um dia ter de realizá-la, mas nunca havia passado por tal situação e por
isso teve de estudar os procedimentos adequados para levá-la a termo.
Corremos atrás de documentos de autoridades do Ministério da Saúde (Área
Técnica de Saúde Mental e Secretaria de Assistência à Saúde) que embasassem o ato,
somando também um documento do Conselho Municipal de Saúde, para embasar o ato
do gestor local.
Os documentos do Ministério foram obtidos com facilidade. Embora a
velocidade na obtenção dos documentos tivesse de depender dos caminhos burocráticos,
o empenho da Área Técnica de Saúde Mental (que foi a área do Ministério que de fato
tomou para si a tarefa da intervenção e a qual eu estava vinculado) foi fundamental para
viabilizá-los no prazo que queríamos.
Com relação ao Conselho Municipal de Saúde, ao qual o gestor local resolveu
consultar, havia ainda disputas de legitimidade com relação ao pedido de
descredenciamento, já que o conselho era constituído por várias facções, tais como os
72
donos de hospitais, os sindicatos corporativos dos trabalhadores de hospitais, e o
segmento dos usuários que sempre estiveram do nosso lado.
Tendo conseguido esses dois documentos, pressionei por dois dias o gestor local,
que parecia tomar os cuidados necessários para não dar um passo errado que poderia
levar o processo a retroceder, e também porque tal ação poderia gerar algum
enfrentamento político.
A mudança: e o início de nova intervenção
O descredenciamento ocorreu e, posteriormente, numa outra negociação com o
juiz visando garantir a velocidade adequada, a decisão que levou ao fim da intervenção.
Tive ainda que ir ao hospital, após convocar o antigo administrador, devolver-
lhe a instituição. Tive também de discutir várias vezes com os funcionários, explicando-
lhes o que ocorria, para que entendessem bem.
O fato é que fizemos a transferência dos pacientes um dia antes do término da
intervenção, e tivemos de solicitar aos funcionários do hospital que permanecessem no
local, sem os pacientes, pois o novo prédio era um equipamento da prefeitura e deveria
ser mantido apenas pelos funcionários municipais.
No dia anterior ao da mudança, tivemos uma longa reunião com todos os
funcionários, para explicar o que ocorreria no dia seguinte. Seguramos a informação
sobre a mudança o quanto pudemos, tentando evitar resistências ou possíveis boicotes,
mas era inevitável que fizéssemos uma reunião para discutir a mudança antes que ela
ocorresse. Alguns médicos, na reunião, tentaram questionar a medida, dizendo que
recorreriam ao Conselho Regional de Medicina, pois entendiam que a transferência de
pacientes só poderia ocorrer com seu consentimento.
Mas fizemos a mudança mesmo assim, pois entendíamos que, com o hospital
descredenciado, a administração não teria como manter os pacientes, já que eles não
teriam condições de pagar pela internação. Além disso, era responsabilidade do gestor
local e das outras instâncias do SUS (inclusive do Ministério da Saúde) zelar pelo bem-
estar dos internos, criando as condições para que fossem atendidos adequadamente.
73
A mudança fez com que os funcionários permanecessem no hospital vazio, até
que o dono reassumisse seu posto e decidisse o que fazer. Essa situação gerou dúvidas e
até a mobilização dos funcionários que chamaram a imprensa para dizer que estavam
abandonados. Eles temiam sobretudo que não receberiam pelo último mês trabalhado na
intervenção, caso os recursos para o próximo pagamento fossem para as mãos do
proprietário. A situação toda ficou mais clara quando a intervenção foi encerrada no dia
seguinte (nesse momento o hospital, sem pacientes e descredenciado do SUS, voltou
para as mãos do proprietário, que teria a responsabilidade também por seus
funcionários) e quando o juiz orientou que os recursos para o pagamento do mês que
havia terminado fossem para as mãos da equipe de intervenção, que deveria operá-lo
pela última vez.
75
UM NOVO CONTEXTO E NOVAS
SUBJETIVIDADES SURGEM, EXIGINDO O
ACESSO A NOVAS EXPERIÊNCIAS
Interior de uma cela forte: destaque para a cama de alvenaria.
Adeus, manicômio!
A mudança foi épica.
A maioria dos pacientes entrou alegremente no ônibus, sem saber ao certo o
destino, mas felizes por deixarem a masmorra. Outros foram absolutamente tomados
pela dúvida e, perplexos, obedeceram à ordem de retirada, como mais uma das tantas
ordens a que outrora haviam sido obrigados a obedecer.
Por fim, duas mulheres negaram-se a sair. De nada adiantaram os diálogos e as
negociações para tentar convencê-las da necessidade de mudar. Diante da negação
reticente, elas tiveram de sair carregadas. Tivemos de recorrer à força física, que a
psiquiatria tem legitimidade para usar e o faz com freqüência quando é preciso internar
76
alguém que não concorda com a internação, para garantir a vida, para libertar as pessoas
da anulação, para instaurar um novo processo: a mudança foi um parto “a fórceps”.
Recorremos ao contato físico, dramático e “forte” para assinalar também
simbolicamente o que Dell´Acqua e Mezzina23, num contexto diferente, chamaram de
“a abertura do cerco da psicose, o ingresso de pessoas reais, o fim do pesadelo”,
garantindo assim a continuidade de um processo de diálogo baseado na reciprocidade e
na confiança, e a responsabilidade da equipe pelo cuidado das pessoas em questão.
Além disso, como equipe responsável por um equipamento de saúde, éramos
também responsáveis pelos pacientes internados, e não poderíamos deixá-los isolados
num prédio vazio, sob pena de respondermos legalmente por esse abandono (deixá-los
isolados num prédio vazio não seria garantir sua liberdade de escolha, mas apenas
promover seu abandono). Em outras palavras, a contradição da psiquiatria, que recebeu
a delegação social de garantir o tratamento e ajudar a manter a ordem, também dizia
respeito a nós, também estava presente em nossa prática, mesmo que questionássemos a
forma como o manicômio operava.
O novo espaço era digno e infinitamente superior: quartos para 3 a 5 pessoas,
dotados de armários embutidos, banheiro com chuveiro quente e, em alguns, ar-
condicionado.
Os funcionários eram novos e essa situação era extremamente inovadora: a
maioria dos funcionários, em especial os auxiliares de enfermagem, as enfermeiras, a
maioria dos médicos (clínicos, pediatras, socorristas etc.), não possuíam experiência no
trabalho com saúde mental.
Outros possuíam outras experiências em saúde mental (psicólogos, assistentes
sociais, os 2 psiquiatras que dividiam os plantões com os outros médicos, em horários
diferentes, mas que ajudavam na capacitação dos colegas), incluindo os cuidadores da
Cooperativa que haviam sido admitidos já no antigo hospital e que nos acompanharam
na mudança.
Essa nova junção de atores com experiências diversas foi essencial para a
desconstrução da prática segregadora do antigo hospital e para a construção de uma
nova imagem dos novos sujeitos, que voltaram a ter uma perspectiva de existência
social futura diferente e conquistada com o parto que representou a mudança.
77
Tudo permitia o encontro: o espaço físico não possibilitava a restrição e a
separação (o prédio já havia sido uma maternidade, voltado, portanto, ao cuidado da
mãe e do bebê) e não havia como os funcionários se separarem dos pacientes,
trancando-os em celas ou enfermarias.
Os funcionários venceram o medo e a perplexidade (alguns desistiram, também)
e passaram a construir uma nova imagem dos pacientes, imagem de fragilidade e de
singularidade, através do encontro e do conhecimento, substituindo a imagem de
periculosidade do louco.
Os pacientes sentiram de imediato que o espaço era confortável e digno, muito
embora vários tivessem desaprendido a utilizar os banheiros, a ter asseio pessoal etc.
Outra novidade era o convívio entre os sexos, homens e mulheres dividindo os
espaços comuns, menos os quartos.
Essa situação, além de estimular a sexualidade, de produzir estímulos para a
vida, também os levava a cuidar mais de si, a vigiar o próprio comportamento, a querer
estar melhor.
Agora os pacientes considerados “casos-bomba”, que sempre tendiam a ser
segregados pelos demais e pelos funcionários, também estavam dispersos no coletivo e
sua fama já também estava dispersa: não eram mais os marcados-perigosos.
Muitas discussões e alguns treinamentos foram necessários para acompanhar a
intensidade da experiência, que apaixonou muitos dos profissionais, acho que a maioria.
Lembranças de Santos X
Em Santos, a paixão também “rolou solta”. Enquanto os internos mudavam a olho nu (foi
quando comecei a entender o significado de “produção de subjetividades”), estimulados
pela ação positiva de lenta e gradual desconstrução do hospital (com suas assembléias,
reflexões e diálogos coletivos), os funcionários também se modificavam. Muitos mudaram
totalmente de vida, embalados pela energia dos acontecimentos que lhes abriram a visão
para outros aspectos do mundo (ou seriam os mesmos aspectos do mundo vistos sob outra
ótica?). O processo de metamorfose ambulante que atingiu determinadas pessoas seguia
uma trilha nômade, marcada por desvios ininterruptos, decorrentes de um desvio inicial e
por outros desvios (Deleuze e Guattari, 1997, 2004)24.
78
A mudança II
A mudança de espaço e dos atores envolvidos com os internos, bem como a
mudança da dinâmica relacional, desconstruiu de fato os mitos construídos
historicamente, enquanto novas imagens de novos sujeitos foram sendo construídas.
A pessoa que ficava isolada num quarto no antigo hospital (mesmo durante a
intervenção, porque se chegara num limite de até onde os funcionários agüentariam as
mudanças), muito embora eu e outros a tirássemos constantemente do isolamento (ela
resistia sempre e queria ficar trancada, chutando a porta e gritando – quantas vezes eu
lhe disse que iria arrancar a porta para sempre, e assim ela não teria como se trancar), já
havia algumas semanas não possuía os dentes da frente, pois os dentistas onde a
levamos os extraíra por estarem podres, e já não tinha a fama de mordedora. Uma nova
imagem sobre ela começou a ser construída, embora ainda não soubéssemos bem qual
seria ela.
As imagens podem ter movimento, e podem se cristalizar. Queríamos o
movimento, que tudo cria e abre possibilidades.
A nova equipe, transitória até que os funcionários selecionados assumissem seus
postos, passou muitos momentos de angústia e dúvidas. Um deles, mais intenso do que
o problema da agressividade dos pacientes, era o da sexualidade25.
Situações em que pacientes eram encontrados flertando ou namorando traziam
aflições: e se houver relação sexual? E se alguém engravidar? E as DSTs?
Discussões sobre separar as alas feminina e masculina e sobre o insuficiente
acompanhamento oferecido aos pacientes foram muito presentes nesse momento. Os
profissionais mais experientes entendiam que os riscos de situações de sexo eram muito
baixos, ligados a poucas pessoas, já que a maioria dos pacientes estava muito
comprometida e embotada e o convívio com o outro sexo apenas serviria como um novo
estímulo para superar o embotamento, sem riscos de relações sexuais (mesmo que
houvesse riscos, o acompanhamento contínuo de uma equipe numerosa evitaria tais
situações).
O número de pacientes estava reduzido: cerca de 55, pois, dos 86 previstos, 31
puderam receber alta e voltar para casa, inclusive alguns que já eram considerados
79
moradores por estarem no hospital havia anos. O ato da intervenção e o
acompanhamento posterior abriram com os familiares canais de diálogo e apoio antes
fechados.
O número de plantonistas por turno (em torno de 15) havia aumentado, o que
possibilitaria um acompanhamento mais intensivo e uma proximidade maior.
Mas a dinâmica movimentada e constante de separar brigas e de intervir em
situações de violência deslocava o foco da atenção, e a inexperiência dos profissionais,
bem como as dificuldades iniciais de refletir coletivamente sobre a experiência e o papel
dos profissionais, tornavam difícil aprofundar e desmistificar a questão da
sexualidade26.
Algumas resistências do senso comum
A mudança de prédio foi motivo de muitas dúvidas por parte da Prefeitura. Se,
por um lado, diversas vezes criou-se um clima de terror pelo fato de o prédio ter muitos
vidros, por comprarmos garfos e facas e copos de vidro, algo considerado perigoso
devido ao estereótipo dos pacientes, considerados “incontroláveis”, se a convivência
muito próxima de homens e mulheres gerava aflições equivalentes, por outro lado a
Prefeitura teve algumas dificuldades iniciais para assumir a direção do serviço e a
liderança do processo.
Havia também um temor legítimo de que qualquer problema que ocorresse no
novo prédio poderia ter reflexos negativos na opinião pública, o que dificultou o
desenrolar do processo sem “derrapagens” ou “sinuosidades”.
Obrigados muitas vezes a “pisar em ovos”, também tivemos de construir junto à
Prefeitura, a partir de agora promotora dessa reforma na saúde mental, o mesmo caldo
de cultura para desmistificar os valores negativos atribuídos ao louco, além de deixar
bem clara a necessidade ética de um posicionamento que desviasse os pacientes da
destruição social e psíquica.
Não adiantaria acelerar demais os passos, exigindo que o que fora construído em
décadas de experiências na reforma psiquiátrica, e em especial em nossa experiência na
intervenção em Santos, fosse assimilado em semanas por atores que havia pouco
80
começaram a implantar ações em saúde mental (o primeiro CAPS de nossa cidade
tinha pouco mais de um ano de existência).
O que mais importava, no entanto, era o interesse e a crença de que o que
propúnhamos enquanto Ministério da Saúde era um caminho que apostava na
autonomia e na superação da invalidação como prática da área de saúde mental, o que
era primordial para superar as ambigüidades e hesitações, as indefinições e incertezas.
A incerteza faz parte do trabalho e envolve riscos.
Se consideramos mais terapêutica a experiência das relações sociais, onde a vida
se dá, não ignoramos que a vida é recheada de riscos e incertezas, que abrem as
possibilidades para as diferentes conquistas e para soluções inusitadas. O risco é,
portanto, inerente ao processo terapêutico, que engloba a vida do doente mental
enquanto membro de uma coletividade. O espaço da morte, representado pelo
manicômio, nada traz de novo ou de arriscado. O que se cria são sujeitos cada vez mais
anulados e dependentes, sem brilho nem projetos.
Como lembra Nicácio (2003), Basaglia já afirmava em 1981 que, para rever o
papel profissional e desinstitucionalizar, seria preciso produzir uma paridade entre o
profissional e o doente, dividindo-se entre os dois o “risco” da liberdade do doente
mental. Se, para o profissional, a experiência do trabalho intra-hospitalar não traz os
mesmos riscos que o trabalho territorial, de mediação de relações, para o paciente a
experiência hospitalar é repleta de riscos inerentes à violência e à destruição
institucional.
A vida exige ser vivida, portanto. E o que é a vida se não a construção de
projetos, sempre novos e desafiadores?
Mas haveria ainda um desafio a enfrentar: a mesmice do cotidiano da moderna
sociedade produtora de mercadorias preocupa por se parecer tanto com o nada do
manicômio, com o esvaziamento de sentido da vida. Outras tantas semelhanças podem
ser percebidas entre a “sociedade dos vivos” e os manicômios.
É por isso que mudar o manicômio exige mudar a “sociedade dos vivos”, para
que ela seja habitada de fato por pessoas vivas, com brilho e sentido de existência. O
que se quer é que os doentes mentais possam participar do debate sobre qual vida
81
queremos para a “sociedade dos vivos”, e que forma de cuidado em liberdade se deve
exigir para se ter uma vida repleta de sentidos.
Maria Eugênia e os vidros, ou “como arrancar afeto à força?”
Maria Eugênia continuava a quebrar vidros (e este novo prédio tinha muitas
portas de vidro), dizendo que queria acabar com a própria vida, ou que gostaria de ir
para casa.
Mensagens ambíguas, que tentávamos discutir com ela: quer mesmo ir para casa,
quebrando os vidros (pois quebrar vidros significava não estar em condições de ir para
casa)? Quer mesmo se matar? Sabe que pode mesmo conseguir numa dessas tentativas?
As quebradeiras de vidros passaram a ser quase diárias, e os machucados foram
maiores ou menores (posteriormente a paciente feriu a perna gravemente, deixando
aparecer a gordura, e exigindo cirurgia plástica com enxerto de pele).
A contenção mecânica no leito, associada à contenção química, veio depois de
vários vidros quebrados.
Eugênia pedia para ser contida, às vezes verbalizando o pedido antes de quebrar
os vidros. E, de fato, nem sempre conseguíamos ouvi-la, ou decifrar o seu pedido. Por
certo faltaram ainda nesse processo muita discussão e elaboração por parte dos
profissionais, e destes com os pacientes. A expectativa que eu tinha de que os processos
de reflexão coletiva se multiplicariam a partir da mudança não se concretizou, pelo
menos na intensidade que eu desejava. Acredito que vários fatores dificultaram o
exercício das reuniões: a falta inicial de definição da direção da unidade (não estávamos
mais, eu e a antiga equipe de intervenção, no papel de gerentes da unidade, e a
Prefeitura demorou um pouco para definir alguém para esse papel); a falta de prática de
discussão entre os profissionais (que fazia com que o agitado dia-a-dia não fosse
interrompido para se valorizar as discussões). A troca de experiências entre
profissionais que têm histórias e formações tão diferentes (o que é uma riqueza para o
processo) certamente poderia conferir mais sentido ao trabalho, permitir que as
situações fossem mais bem compreendidas e aumentar a escuta das mensagens enviadas
pelos internos (como era o caso de Maria Eugênia).
82
Lembranças de Santos XI
Em Santos, ainda dentro do hospital, ou, entre o hospital e o espaço externo, vivia-se
muitas situações-limite. Lembro de um interno que, aproveitando-se da possibilidade de
sair e voltar ao hospital, enquanto sua alta era negociada com a família que insistia em
não querer seu retorno, certo dia resolveu beber bastante, pois assim se sentia com
coragem suficiente para dar cabo da própria vida ou, melhor dizendo, para nos ameaçar
de dar cabo da própria vida. Tentava arrancar-nos afeto à força e, por várias vezes,
depois de horas de negociação em que tentávamos convencê-lo a largar um caco de
vidro que friccionava contra um dos punhos, voltávamos para casa exaustos, sem saber
o que ele faria depois de o termos convencido.
Naquele dia, embriagado, o paciente quebrou com força um dos vidros e atingiu uma
artéria, fazendo o sangue jorrar. Automaticamente, tapei com minhas mãos o fluxo de
sangue, deixando-as ao final encobertas por uma luva vermelha, feita de sangue seco.
Enquanto eu e outros colegas o socorríamos, outro paciente passava mal, por ter
aspirado líquido, tendo tido uma convulsão logo depois de comer. Saí arrasado, dizendo
a mim mesmo que não voltaria mais ao hospital (eu vinha de São Paulo todos os dias,
perfazendo muitas horas de viagem e trabalho dentro do hospital). Mas voltei no dia
seguinte, e descobri que as histórias felizes convivem com as tristes quando se quer
mexer com a vida das pessoas de fato. Viver implica riscos, e quando os assumimos a
tendência é que a vida fique cheia de sentido.
Curtas...
• Depois das primeiras semanas no novo prédio, a equipe passou a realizar mais
passeios com os pacientes, ocupando os espaços comunitários. Mas a composição de
mini-equipes ainda estava sendo realizada. Seria preciso resgatar a história de cada
paciente. Dois deles, por exemplo, estavam no hospital desde os 12 anos de idade,
totalizando entre 20 a 30 anos de internação. Dizia-se que um desses pacientes, que
possuía um déficit intelectual e um alto grau de impulsividade e agitação, havia
dado um soco numa mulher quando garoto e o marido dela exigira sua internação. E
lá estava o sujeito desde os 12 anos de idade, mas muito diferente do que era, não só
83
por agora ser adulto, mas por ter passado mais de vinte anos institucionalizado, o
que o tornava uma pessoa dependente, anulada, apagada, sem projetos.
• Havíamos conseguido manter uma trégua, deixando de internar novos casos naquele
período de transição e adaptação do novo serviço.
Um desabafo
Foi necessário um grande esforço para reorganizar o meu novo papel naquele
processo. Não era mais o interventor, mas os profissionais e a SMS ainda esperavam de
mim e da psiquiatra da equipe de intervenção a liderança do processo.
Insistimos muito na designação de profissionais que se encarregassem da direção
do novo serviço. No entanto, não foi fácil convencer alguém da equipe de
acompanhamento da intervenção (equipe local formada antes da intervenção, que fez
algumas importantes mudanças no hospital mesmo com a presença do proprietário) a
assumir a direção e a liderança técnica do processo.
De imediato, conseguimos apenas a adesão da ex-administradora do hospital sob
intervenção, que naquele momento cumpria, assim como a psiquiatra da equipe de
intervenção, o papel de co-interventora e que se apaixonou pelo trabalho com saúde
mental. Essa mulher, extremamente corajosa, só foi avisada pelo secretário de saúde de
que seria a administradora do hospital sob intervenção, apenas no próprio dia em que
esta se iniciou.
Junto com essa crise local, que muito dificultou a transição da liderança do
processo do Ministério da Saúde para a gestão local (problemas políticos locais
evitaram que outros membros da comissão pudessem assumir a direção do processo),
ocorreu nesse período uma mudança ministerial, e o ministro da Saúde foi substituído.
Isso trouxe certa insegurança quanto ao nível de apoio que continuaríamos a ter
do Ministério. Até então, e durante todo o processo de intervenção, o Ministério estava
fortemente presente principalmente através da Área Técnica de Saúde Mental, que havia
assumido e protagonizado a intervenção, enquanto os outros departamentos do
Ministério estavam um pouco mais distantes. Mas, ao final das contas, continuamos
tendo todo o apoio para continuar a acompanhar o processo em nossa cidade.
84
A nova dinâmica do trabalho
Pouco a pouco os profissionais, todos agentes transitórios desse mutirão,
pareciam se apropriar do trabalho. Alguns deles, psicólogos e assistentes sociais,
chegaram a se apaixonar por ele.
A sensação de libertar pessoas de alguns grilhões (representados pela violência
do antigo hospital) e de participar da construção de novos sujeitos sociais parece ter
tomado conta deles, como um elixir que desperta para uma outra dimensão da vida,
antes adormecida, latente e escondida.
Eu fazia um esforço para me colocar no lugar deles, para entender melhor o que
sentiam.
De certa forma, eu já vivenciara situações como essa, ocorridas com
profissionais e comigo mesmo, em especial quando da intervenção na Casa de Saúde
Anchieta, em Santos, a partir de 1989.
Mas cada pessoa exala um brilho e um envolvimento próprios, singulares, e é
muito bonito assistir a esse processo.
Novamente, lembrei-me de que em Santos os profissionais envolvidos na
intervenção, num movimento congruente ao dos pacientes que nasciam para a cena
social, muito mudaram, tornando-se outras pessoas, num processo de intensidade
brutal, numa radicalização que chegou a todos os ramos da existência.
Sabe-se que a vida das pessoas e a formação de suas subjetividades não param, a
não ser que estejam patologicamente parasitárias em situações fixas, petrificadas no
tempo e no espaço. A vida é uma constante construção e desconstrução, mas algumas
situações impactam por fazer mudar tudo intensa e rapidamente.
É quando o polifonismo da experiência social assume contornos alucinantes,
exigindo que os ouvidos sejam adaptados, quem sabe produzindo sinapses inéditas.
Mas, voltando à dinâmica geral do trabalho na nova e transitória instituição,
pôde-se observar que alguns profissionais foram “acertando a mão”, começando a
perceber a necessidade de singularizar os processos, de conhecer a história de vida dos
85
internos para vislumbrar as possibilidades de mudança e até para conhecê-los melhor,
tentando montar o quebra-cabeças que os havia produzido como eram naquele
momento.
Perceberam também a necessidade de conhecer os familiares, dialogar e
promover encontros que também os singularizassem. Criar espaços das famílias e para
as famílias, onde estas poderiam se fortalecer e descobrir novas possibilidades de
existência.
Uma nova transição, no entanto, se aproximava.
A seleção dos novos profissionais, terminada havia semanas, caminhava para a
convocação dos selecionados. Promoveríamos encontros iniciais para discutir as
premissas do trabalho a ser construído coletivamente.
Estudar-se-ia ainda a possibilidade de manter parte da equipe atual no serviço,
seguindo a lógica cumulativa que vínhamos implantando desde o início da intervenção,
na qual cada mudança carregava um pouco da herança da fase anterior, do
conhecimento e da cultura construídas, como base para a nova construção a ser operada
pelos novos atores.
A festa da cooperativa dos artistas (tão esperada!)
Antes de relatar a nova fase inaugurada com a entrada dos profissionais
selecionados no novo hospital, vale a pena lembrar alguns momentos vividos com a
primeira equipe de transição, aquela composta por servidores públicos e criada a partir
da mudança do antigo hospital.
Um dos momentos importantes e significativos foi o da festa realizada em
conjunto com a cooperativa dos artistas de nossa cidade. Essa cooperativa era uma
associação informal de jovens artistas, preocupados em divulgar a cultura e a arte local,
em promover mudanças estéticas capazes de influenciar as condições concretas de
vida, inclusive das populações vulneráveis socialmente.
Fomos procurados por representantes da cooperativa já desde o início da
intervenção, quando propuseram a realização de um evento dentro das dependências do
hospital.
86
O evento seria público, e teria como objetivo geral trazer as pessoas comuns
para conhecer os internos e conviver com eles, levando a entender a necessidade de se
mudar o atendimento em saúde mental e os valores que ajudam a afastar e a excluir os
loucos do convívio social.
Os artistas também queriam sensibilizar e envolver seus pares no trabalho de
transformação do hospício, desenvolvendo oficinas culturais com os internos, além de
obter doações em espécie que pudessem atender a necessidades básicas dos pacientes,
tais como roupas e produtos de higiene.
A aproximação dos artistas, iniciada pelas lideranças da cooperativa, traduzia
uma certa curiosidade na descoberta dos internos, daquelas vidas reclusas que
expressavam uma produção social, ou seja, que eram também o reflexo de processos
sociais que as haviam produzido.
O limiar em que se encontra a arte, a vivência da criação, comunica-se
diretamente com as ilusões e os fantasmas que cada interno produz, na tentativa de
percorrer o mundo vivenciando o que muitos de nós deixamos de conhecer ao nos
entregar ao pobre mundo fantasmático da mercadoria e do consumo. Esse limiar vibra
na vivência dos artistas. E os internos vivem essa fruição intensamente, às vezes sem
limites e até de modo atordoante. As vozes das mensagens sociais lhes aparecem por
vezes de modo ensurdecedor, em decibéis quase insuportáveis.
Jovens artistas e internos que residiam num manicômio havia anos
compartilharam a rua defronte ao novo hospital – localizado bem no centro da cidade -,
que foi fechada para o trânsito de veículos numa tarde de domingo.
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Festa com cooperativa de artistas, diante do prédio do Festa com cooperativa de artistas, diante do prédio novo serviço, no centro da cidade: dança da ciranda I. novo serviço, no centro da cidade: dança da ciranda II.
Festa com cooperativa de artistas, diante do prédio do novo serviço, no centro da cidade: roda de capoeira.
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No palco, embalados por um potente som, ocorreram muitos shows musicais,
apresentação de dança, um debate, mostra de trabalhos gráficos e documentários em
vídeo.
Ainda havia muitos pacientes com os pés descalços no chão de asfalto porque,
devido à velocidade dos acontecimentos, conseguimos muitas roupas, mas não
calçados suficientes para todos os pés. Além disso, alguns pacientes também resistiam
a vestir sapatos (por que os pés no chão resistiram até agora? Será que eles representam
uma forma de estar na realidade?). Poderia haver alguma correlação entre os pés
descalços e a necessidade de sentir o corpo, como forma de evitar a sensação de
desintegração deste. O contato da pele com o chão poderia intensificar a sensação tátil,
assim como o uso simultâneo de várias blusas de lã em pleno calor (como às vezes
fazem certas pessoas) poderia intensificar a sensação térmica, de forma a reproduzir a
intensificação das percepções que ocorre durante uma alucinação (ou seria um excesso
de realidade?), por exemplo. Os pés no chão poderiam ainda representar um rechaço
dos pacientes ao processo de normalização, um sinal de resistência, nem tão
consciente, que informa que depois de tantos anos reclusos à força, a própria sociedade
deve olhar e lembrar da violência que cometeu. O fato é que nenhuma dessas hipóteses
basta para explicar a opção pelos pés descalços, e seria desejável que todas as pessoas
pudessem ter a sua disposição um par de calçados, para usá-los ou não. A partir daí
haveria a negociação e a produção de sentidos sobre colocar ou não os pés nos
calçados.
Mas o encontro desprezou os calçados nos pés e outras carapuças que sempre
evitaram o convívio com os loucos: os mitos de periculosidade e de irracionalidade.
Artistas e pessoas comuns dos arredores conheceram enfim os ex-internos do
antigo hospital, estes últimos utilizando, junto com pessoas da equipe e alguns artistas,
camisetas com o lema do evento: “FECHEM AS PORTAS DO HOSPÍCIO, ABRAM
AS DO CORAÇÃO”.
89
Lembranças de Santos XII
Em Santos, o envolvimento de artistas foi um dos aspectos que permitiu metamorfosear
a imagem cristalizada que historicamente se produziu com relação à loucura. Através
dos “loucutores”, como eles próprios se denominavam, da Rádio TAM-TAM (que tinha
um programa numa rádio comercial), as novas mensagens, produzidas também nas
situações concretas em que os pacientes participavam (as experiências de inserção no
trabalho que ocupavam espaços diversificados, a freqüência em eventos públicos de
lazer e cultura etc.), eram potentemente emitidas pelas ondas do rádio (Nicácio, 1994).
Além desse tipo de intervenção focada na emissão de mensagens (pelo rádio), ocorriam
também muitas festas tentando trazer as pessoas para dentro do manicômio. Lembro até
de uma grande festa com vários grupos musicais, no pátio do Anchieta, em que um
interno conseguiu subir no alto muro da instituição e, lá de cima, tirava o pênis de
dentro da calça tentando provocar um escândalo, com cara de quem estava fazendo arte.
De certa forma, era como se ele lembrasse que ainda se separavam os loucos dos
normais, pois depois da festa ainda persistia o manicômio para alguns, enquanto outros
voltavam para casa. Enquanto isso, uma legião de colaboradores tentava convencer o
rapaz a descer, pois uma queda seria perigosa. E logo ele desceu. Grandes lembranças
estas de Santos!
E o mudo falou...
Alvoroço no novo hospital: Livinaldo falou.
Era um sujeito jovem com comportamentos bizarros, cabeça geralmente voltada
para baixo, embalada pelo movimento sempre inquieto do corpo, andando de um lado
para outro, sempre na direção da porta de saída. E que não falava; era tido como mudo.
O limite era a porta que, nesse hospital, era sempre acoplada a uma pessoa que a
gerenciava, dirigindo o movimento de dentro para fora e de fora para dentro.
Era a forma de manter o dialético movimento de vai e vem do fluxo entre o
hospital e o mundo lá fora. Ambíguo também por barrar a saída de pacientes e, em
alguns momentos, estimulá-la, quando dos passeios ou outras saídas. Era a porta por
onde alguns internos já saíam sozinhos, fazendo suas viagens pelas ruas da cidade. E
90
era a porta da contradição entre o controle e o cuidado, que aqui conviviam em
permanente tensão.
Mas o fato é que o alvoroço era geral e, quando cheguei de viagem, os
profissionais vieram trazer a boa nova como quem acabava de presenciar um milagre.
Ou mais, como quem presenciava um milagre operado pelas próprias mãos e ficava
estupefato.
Santos milagreiros é óbvio que não eram, nem tampouco se consideravam tais.
Mas o “milagre” operado era nada mais que uma das conseqüências do empoderamento
da equipe, que não parava de ver mudanças positivas nos sujeitos abandonados à
própria sorte por anos a fio.
Primeiro a construção do vínculo, e o uso de instrumentos de comunicação
diversos: o corpo que tocava, o olhar que acreditava, as pinturas, papéis, pincéis, o
entorno, o coletivo que desbravava um mundo novo, o mundo de dentro de cada um
deles, massacrados e anulados na pobreza existencial do manicômio.
Primeiro as pinturas, o corpo, depois uma palavra, várias palavras e as frases.
É, Livinaldo voltara a ser um sujeito que fala.
E eram esses sinais que demonstraram o que estava sendo produzido a partir do
momento em que se valorizou seu modo de expressão, seu discurso sem palavras, que
se tentou rechaçar sua condição de anulação, de objeto, sua inexistência social, de
homo sacer (Agamben, 2002)27.
A intervenção no interior de cada um de nós
Comentava com minha companheira de intervenção, psiquiatra guerreira da
vida: quando fazemos uma intervenção como esta, sofremos também uma intervenção.
Era como se a experiência que produzimos retornasse potentemente para nós, como um
raio eletrificante que produzia mudanças profundas.
Não se saberia quais seriam essas mudanças, mas elas existiam, e a todo
momento provavam sua existência.
91
Essas mudanças andavam por dentro da gente e eram depuradas pelo tempo, que
criava os nexos necessários para que elas fossem entendidas.
No decorrer do processo de intervenção, não se sentia uma diferença muito
nítida entre o dia e a noite.
Nem o telefone celular nem o corpo que dormia à noite eram desligados das
baterias, diariamente recarregadas à noite, às vezes de dia.
Mas a consciência percebia que iam se acumulando sentimentos, conhecimentos,
valores culturais em formação numa bola de neve sempre crescente que, se não poderia
ter um significado claro no processo, certamente seria ruminado posteriormente.
Era nesse momento pós-intervenção que o interventor se sentia alvo de uma
intervenção, e não menos desorientado, instável, perdido quanto aos novos caminhos
que deveria construir para trilhar, ou melhor, trilhar construindo.
A nova fase do processo se iniciava.
Para entrar nela, foi realizado um primeiro encontro com os profissionais
aprovados na seleção da prefeitura, cerca de 160 pessoas. Parte deles passaria a integrar
as equipes dos serviços já existentes, enquanto os demais comporiam novas equipes de
novos serviços. No encontro tivemos a participação de pessoas experientes na reforma
psiquiátrica, vindas de Recife e do interior de São Paulo, que nos ajudaram a discutir
temas como:
• Desinstitucionalização
• Projetos terapêuticos
• Reabilitação psicossocial
• Diagnóstico sindrômico
• Uso racional de psicofármacos
• O morar
• O trabalho
• O terapêutico como mediação das relações dos pacientes no território
• A construção dos projetos de vida
92
Os profissionais estavam muito entusiasmados, com muita energia e vontade de
operar as mudanças que lhes dizíamos ser possível realizar, conscientizando-se do valor
de seu trabalho.
Estavam também ansiosos, perguntando toda sorte de questões que só ficariam
claras quando se deparassem com a prática do trabalho.
O clima propício para a construção e a invenção estava dado. Como me disse
nossa psiquiatra da equipe de intervenção, se antes partimos do –100, agora estávamos
no marco-zero, na construção simultânea de vários serviços que comporiam todo um
sistema de saúde mental.
Em novo papel, nós, agora como consultores do Ministério da Saúde, e não mais
como interventores, dividiríamos entre nós essas unidades para acompanhá-las
sistematicamente.
Mais uma vez, uma nova fase se encerrava, dando lugar a um novo contexto.
94
OS DESDOBRAMENTOS: O COMEÇO DA
DESPEDIDA
A terceira fase
Esta nova fase do processo que estou relatando começou com a entrada dos
novos profissionais, aqueles que foram aprovados na seleção pública. Eles começaram a
trabalhar no novo hospital tão logo as condições de contratação estiveram dadas. Alguns
dos que haviam entrado na segunda fase, todos funcionários públicos, continuaram no
processo. Alguns poucos, da Cooperativa, também continuavam, mas logo deixariam de
pertencer ao quadro de profissionais. Havia também profissionais do antigo hospital sob
intervenção, que haviam passado na seleção. Mas vários dos profissionais que
trabalharam brilhantemente na segunda fase deixaram definitivamente o hospital.
O entusiasmo inicial expresso durante a capacitação dos profissionais
selecionados contrastava com as dificuldades de adaptação apresentadas pelos mesmos
atores.
A princípio, parecia dominar uma falta de sintonia sobre a prática do trabalho.
Era difícil perceber uma noção de conjunto na equipe, e as atuações eram muito
fragmentadas.
Isso se expressava mais fortemente no comportamento dos pacientes.
Alguns entraram em crise e passaram a reproduzir comportamentos muito
parecidos com os que tinham no antigo hospital. Entrar em crise faz parte da
experiência da loucura, mas espera-se que, tendo recebido novas respostas às suas
necessidades e sendo participantes de um novo diálogo sobre sua própria experiência, as
pessoas passem a ter crises um pouco diferentes, demonstrando o movimento de
transformação da subjetividade, que é formada por esse diálogo permanente. Então,
quando se reproduzem comportamentos conhecidos do antigo manicômio, isso vem a
ser um sinal de alerta de que as respostas talvez estejam em um círculo vicioso. É claro
que não se pode esperar que todos os sintomas e comportamentos ligados à doença
desapareçam pelo simples fato de se estar num contexto diferente. Não se trata de
95
esperar uma espécie de cura mágica, mas apenas de poder modificar um pouco esse
padrão de repetição que caracteriza a doença e a institucionalização, mesmo sabendo
que o sofrimento conviverá com a pessoa no decorrer de sua vida, expressando-se das
mais variadas formas. É o que dizem Rotelli, De Leonardis e Mauri (1990: 33):
Depois de ter descartado “a solução-cura” se descobriu que cuidar significa
ocupar-se, aqui e agora, de fazer com que se transformem os modos de viver e
sentir o sofrimento do “paciente” e que, ao mesmo tempo, se transforme sua vida
concreta e cotidiana, que alimenta este sofrimento.28
Mas alguns fatos chamaram a atenção.
Um deles foi Jussara, que chutava a porta e queria ficar só no antigo hospital.
Voltou a chutar portas e a ameaçar os outros pacientes, quebrou dois filtros de água,
pedia sem palavras para ser contida química e mecanicamente.
Num final de semana chegou a ser contida várias vezes, e se desamarrou também
várias vezes, o que denunciava uma situação que depois foi muito discutida: a de que
ficava contida sem o acompanhamento contínuo de algum profissional, e a de que os
profissionais não sabiam como conter de fato os pacientes, ou ficavam inseguros na
hora de amarrá-los.
O fato é que Jussara chegou a arrancar a pia do banheiro de seu quarto, o que
deixou claro que ela de fato estava sem acompanhamento.
Isso nos levou a convocar reuniões gerais para discutir a fragilidade do trabalho
em equipe, o sentido da contenção, o fato de que, ao ser contidos, os pacientes mostram-
se os mais necessitados de atenção. Um paciente é contido no leito precisamente por ser
um dos que mais precisam de cuidados. Deixá-lo sozinho significa abandonar quem
mais precisa, apenas livrando-se do incômodo que provoca nos outros.
As reuniões foram boas, fortalecendo os profissionais. Os “erros” cometidos,
que denunciavam que as coisas não iam tão bem assim, eram fundamentais para que
conseguíssemos rever caminhos, papéis, formas de atuação. Denunciavam a falta de
diálogo e de reflexão acerca do trabalho. Eram sempre sinais de que precisávamos re-
pactuar o projeto de trabalho, reiterando as relações de reciprocidade e a
responsabilização coletiva. O trabalho devia ser problematizado, sem esquecer nunca
que a contradição representada no afastamento e na segregação dos internos na
96
instituição sempre produzirá tensões, que nos farão lembrar da necessidade de superar
essa condição, caminhando para uma forma de cuidado que não se baseie na segregação
nem se dê por meio dela.
Mas outro fato ajudou a tornar ainda mais frágil esse difícil início do trabalho.
Numa tarde de segunda-feira, a médica e a pedagoga do CAPS que atendia
pessoas com transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas trouxeram ao
hospital um paciente que freqüentava aquela unidade havia tempos, e que vinha
apresentando comportamentos destrutivos: ingerira vários comprimidos de uma só vez,
exigindo uma lavagem estomacal, e dizia temer agredir algum familiar seu. Tinha em
casa, aliás, um filho recém-nascido.
Não apresentava sintomas psicóticos (delírios, alucinações, nem alterações no
fluxo do pensamento ou no humor) e estava orientado, mas tinha alguns sinais de
comportamento obsessivo.
Pedia para ficar internado no hospital à noite, retornando durante o dia ao CAPS.
Apesar de não estarmos internando casos novos, concordamos em dar esse
suporte ao CAPS, até porque a mesma médica que solicitava a internação também
trabalhava no hospital e estaria de plantão naquela noite.
Mas aquela noite estava mesmo diferente, e com um certo ar macabro.
Às 3 horas da madrugada a plantonista me ligou no hotel, pedindo ajuda, pois
ainda se sentia insegura por estar no início de sua experiência na área de saúde mental (é
médica clínica, que vinha sendo treinada por nossa equipe).
O paciente que internou havia conseguido, não se sabe como, um pedaço de pau
e agredira gravemente a cabeça de um dos pacientes mais institucionalizados e antigos
do hospital, e indefeso demais para se proteger, o Sertão Bonito.
O sangue havia espirrado e manchado as paredes, e a dúvida que se tinha era
quanto à possibilidade de ter ocorrido um traumatismo crânio-encefálico.
Haviam chamado a ambulância, mas não haviam conseguido medicar o
agressor. A equipe ficara desmobilizada, várias profissionais tinham medo de se
aproximar e um cuidador saíra correndo, abandonando o local e o emprego.
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Orientei por telefone que a plantonista chamasse a polícia para que se utilizasse
da autoridade dos policiais para medicar e conter o paciente no leito.
Em horas de muita desestabilização e violência, a polícia pode servir como uma
referência de autoridade que ajuda a fortalecer a equipe, num momento específico, para
que ela retome o poder e a liderança do processo.
Sertão Bonito não teve traumatismo craniano, mas foi preciso suturar sua cabeça
em muitos pontos.
A equipe recuperou o controle da situação, e fomos bem cedo ao hospital fazer
uma reunião com eles.
O rapaz, na manhã do mesmo dia, um pouco sedado, insistia em dizer que não se
lembrava de nada. Pensamos tratar-se de um possível transtorno de personalidade com
traços obsessivos ou de um quadro ainda encoberto e escondido de psicose.
O fato é que, eu soube mais tarde, pois já havia retornado para São Paulo, a
equipe atendeu ao pedido do paciente e de sua família de ter alta do hospital e de
abandonar o tratamento do CAPS ad. Considerei a iniciativa complicada e estranha, pois
não se refletira suficientemente sobre o que havia ocorrido, tentando-se apenas afastar o
problema29.
Naquele momento, como um consultor e não mais como interventor, sugeri que
se discutisse mais o caso e que se fosse novamente atrás do paciente, tanto para entender
melhor o que se passara como para acompanhá-lo e evitar outras possíveis explosões de
agressividade. Afinal, a função de controle e de cuidado continuavam a andar juntas.
Muitas mudanças ocorreram
Escrevo esta última parte vários meses após o trecho anterior do diário de bordo.
A intervenção começou em abril de 2005 e durou até o final de junho. A segunda e a
terceira fases do diário relatam o processo iniciado entre julho e novembro de 2005.
Agora escrevo em fevereiro de 2006.
Vou muito menos a nossa cidade para acompanhar o trabalho, agora tocado pela
equipe local.
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Nesse momento já são 4 as residências terapêuticas. Muitos outros pacientes
voltaram para seu lar de origem, sendo que apenas 20 pessoas aguardam a inauguração
das próximas residências, o que deve ocorrer em breve. Os funcionários da unidade
levam hoje o trabalho com muita tranqüilidade: conhecem bem os pacientes e seu papel;
atendem já casos novos de emergência, e aguardam a definição de um hospital geral
para lá se instalarem como uma emergência psiquiátrica30.
O CAPS 3 e o CAPS infantil foram inaugurados, e a rede começa a tomar corpo.
O número de CAPS nos outros municípios mais que dobrou, e está num movimento
contínuo de crescimento. Alguns municípios também criaram algumas residências
terapêuticas para abrigar ex-internos.
O antigo dono do hospital tentou ainda entrar com ações judiciais contra mim,
alegando questões sem nenhum fundamento, e não teve sucesso em nenhuma.
Mas tudo continua em pleno momento de ebulição, com descobertas e invenções
contínuas.
Tudo ficará vivo em minha memória, atualizarei o que vivi em novas
construções, embora cada experiência seja singular.
O relato acaba aqui, mas o processo continua a todo vapor.
Como tudo que se vive se revive, contraditoriamente sempre de forma igual e
diferente, prolongo um pouco o diário de bordo, criando uma quarta parte para abrigar
“momentos de reflexão”, que esticam algumas das questões surgidas no decorrer do
relato, aprofundando-as.
Essa é uma forma de assinalar questões fundamentais trazidas pela experiência,
percorrendo aquele caminho já apontado de que tornar complexo um fenômeno
estudado significa incluir e considerar a implicação inevitável do observador nela.
100
O DIA SEGUINTE: REFLEXÕES TRAZIDAS PELA EXPERIÊNCIA
As imagens dizem tudo.
Pátio interno que liga duas enfermarias masculinas do hospital que sofreu a intervenção.
A foto acima, assim como boa parte das demais, foi tirada no primeiro dia de
intervenção no hospital psiquiátrico. Apresento-a porque entendi melhor o seu
significado ao ler as teses Sobre o conceito de História de Walter Benjamin (Benjamin,
1994: 222-232). Na tese n. 9, ele cita um quadro do pintor Paul Klee, que mostra um
anjo olhando atordoado para os despojos do passado. Neste caso não é um anjo que olha
atordoado para as ruínas e os restos dos corpos deixados amontoados pelo progresso,
como se quisesse acordá-los e redimir a catástrofe produzida, como nas alegorias que
Benjamin monta ao analisar o quadro de Klee. No caso, o homem em pé, um segurança
que trabalha no hospital, vê com naturalidade e até mecanicamente o corpo despojado
do objeto da psiquiatria. Esse homem uniformizado representa a delegação antiga e
101
atual recebida pela psiquiatria das demais instituições. O corpo combalido, por sua vez,
não tenta levantar, pois sua voz emudeceu após anos e anos de institucionalização, já
que se tentou transformá-lo num simples corpo movido pela necessidade, pelos fluxos
metabólicos internos, pelas excreções que garantem ao corpo animal funcionar.
Assemelha-se muito aos corpos mortos vistos pelo anjo do quadro de Klee. Não aparece
aqui a tempestade (o progresso) que leva o anjo ao futuro, de costas, enquanto este tenta
acudir o que foi destruído sem poder entender quais processos demoníacos dominam o
tempo. Mas o futuro também se insinua aqui, embora a aparência seja a de um presente
petrificado e eterno. Afinal, a ciência psiquiátrica tem passado e é uma das conquistas
do progresso, embora muitos dos atores da Reforma Psiquiátrica em andamento queiram
introduzir a voz do louco nos mecanismos de participação social a serem inventados,
forjando formas criativas de se viver os conflitos que a loucura traz à tona. A psiquiatria
ultrapassada dos manicômios é parte da imagem do progresso denunciado por
Benjamin, sendo que sua condição de barbárie convive com pesquisas tecnológicas
avançadíssimas na área dos psicofármacos e da neurociência que dão a ilusão de um
progresso inabalável e incontornável, mas que tem na fotografia exposta o resultado
concreto de suas pretensões de legitimação social.
Momento de reflexão 1
O LUGAR DO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO
A intervenção, na sua dimensão física, terminou, mas persiste tudo aquilo que
ela provocou em forma de reflexões e idéias.
Esta nova experiência de confronto com o hospital psiquiátrico me fez pensar no
lugar que este tem ocupado na sociedade contemporânea.
Afinal, há muito não estamos numa sociedade puramente disciplinar. Como
ressaltou Deleuze (1992: 219-226), as formas de combater os desvios, a presença maior
ou menor de métodos disciplinares dentro das instituições, as diferentes instituições e
dispositivos de controle também se transformaram. As formas de combate aos desvios
flexibilizaram-se, e formas mais capilares de controle social pouco a pouco passaram a
conviver com a pura e dura segregação dos espaços fechados.
102
Caberia refletir se os manicômios possuem uma função específica na sociedade
de controle, ou se eles seriam apenas resquícios de uma sociedade disciplinar em
extinção, o que, portanto, os levaria também a um processo futuro de extinção.
A discussão sobre as variadas formas de controle ou de combate aos desvios,
desde as mais violentas e explícitas às mais maleáveis e contínuas, não é tão nova.
Basaglia (1977: 82) já apontava que, a cada degrau do desenvolvimento
tecnológico e produtivo da sociedade capitalista, correspondiam estratégias mais ou
menos diferenciadas de dominação e manipulação, de modo que o nível da estrutura
econômica e a organização institucional sempre coincidiam. Por isso, não era à toa que
o manicômio enquanto tal tivesse se estruturado no início da revolução industrial. Em
países mais desenvolvidos, apontava ele (1977: 86-7), como era o caso dos EUA, já se
percebia que o caráter mais comunitário das ações de combate aos desvios (que deu
origem à psiquiatria comunitária ou preventiva)31 estava associado às formas duras da
segregação no manicômio e no cárcere. Nos países europeus, a tendência à utilização
das instituições duras e segregadoras surgia não só como resposta concreta à
necessidade de separar os indesejáveis, mas como perpétua ameaça aos que um dia
pudessem desviar. Basaglia assinalava ainda que, nos países menos desenvolvidos da
América do Sul, na época das ditaduras, a tortura podia institucionalizar-se como prática
e como ameaça, convivendo com a dura segregação, já que a ameaça isolada de
segregar em asilos não funcionava tão bem em situações de vida desafortunadas, onde
muitos não tinham o que comer nem onde dormir, e onde não havia nenhum movimento
forte de contestação e de luta capaz de explicitar as contradições (Basaglia, 1977: 82).
A própria noção de norma e o conceito de homem acompanham esses processos
de desenvolvimento econômico. E é em nome desses conceitos abstratos de homem, em
detrimento do homem real, com suas necessidades reais, que se constroem as formas de
combater os desvios. Em nome desse homem abstrato é que existe o progresso das
ciências e da civilização, diz Basaglia (1977: 79).
Por que é necessário o manicômio: a questão do trabalho
A questão da necessidade atual do manicômio é muito complexa, e não posso ter
a pretensão nem teria condições teóricas de esgotá-la. Contudo, algumas das reflexões
103
trazidas pela experiência, esta sim passível de ser investigada por mim, podem
contribuir para indicar aspectos que, se não explicam ou atingem o cerne das
explicações (e haveria algum cerne?), podem, de raspão e marginalmente, tocar em
aspectos importantes da questão.
As mudanças relativas ao lugar do trabalho e à centralidade que este sempre
ocupou na vida social, a meu ver, continuam a se relacionar com o papel desempenhado
hoje pelo manicômio.
Houve muitas mudanças no mundo do trabalho desde o surgimento da
industrialização nas sociedades ocidentais.
Hoje não são mais necessárias técnicas disciplinares para nos inculcar a
importância do trabalho e a disposição para executá-lo, como foi preciso fazer na época
de consolidação da sociedade disciplinar.
Enquanto as sociedades foram adaptando os modos de vida às necessidades do
trabalho e do mercado (o que durou séculos), o avanço das forças produtivas, o
desenvolvimento da microeletrônica e as novas técnicas de gerenciamento de pessoal no
decorrer do século XX (que aumentaram a produção) ampliaram o desemprego, não
obstante os surtos de crescimento que, em alguns momentos, incrementaram os postos
de trabalho. Mas a possibilidade de crescimento da empregabilidade e do consumo é
sempre limitada, devido a vários fatores econômicos: dificuldade de angariar
investimentos, pois o capital volátil procura se reproduzir pela especulação nas bolsas;
distribuição desigual de riquezas que afeta a capacidade geral de consumo; limitação
nas inovações de produtos num ambiente em que há uma inflação de necessidades
artificiais de consumo já criadas; substituição do homem produtor e consumidor pela
tecnologia de ponta. Atualmente vemos um desemprego estrutural e não pontual se
impor fortemente no momento mesmo em que a idéia de que o trabalho é a base da
organização dos modos de vida já está consolidada (Kurz, 1993). O aumento na procura
por trabalho e a diminuição da oferta de empregos têm levado a uma forte precarização
geral das condições de trabalho.
Ao mesmo tempo, os Estados parecem adotar uma posição ambígua quanto aos
investimentos nas políticas de inclusão social que seguem a lógica do Estado de bem-
104
estar social, alegando que estas ficaram muito custosas e prejudicam a atual dinâmica de
crescimento do mercado que gera mais riquezas para esses mesmos Estados.
Está mais presente que nunca a tendência sempre existente de tornar os
trabalhadores peças descartáveis, o que vem sendo acompanhado de mudanças nas
formas de hierarquia nas próprias empresas.
O sociólogo Z. Bauman faz uma bela metáfora sobre essa questão, quando diz
que, em várias situações, como a das empresas atuais, por exemplo, em vez de se
providenciar tecnologias disciplinares que organizem hierarquicamente os trabalhadores
em pelotões ou colunas em marcha, a ser milimetricamente vigiados por chefes e
subchefes, como num regime panóptico, é mais comum encontrar uma nova
configuração em forma de enxames, onde os trabalhadores por si sós seguem as normas
da empresa, concorrendo entre si, movidos pela sedução da premiação, pela incerteza e
insegurança (em que o passado meritório não garante o futuro), pela necessidade de
demonstrar fervor à empresa, sem necessidade de controles rígidos (Bauman, 2003:
115-6). O movimento se dá de forma inversa: em vez de se intervir e impor aos
trabalhadores normas e modos de ação, exercendo uma força disciplinar, são os próprios
trabalhadores que passam a perseguir a direção esperada pela empresa e a se
movimentar em direção a ela (mais vale se ocupar das flores do que das abelhas, uma a
uma, para fazer com que o enxame siga na direção esperada).
Acrescentando algo a essa imagem de Bauman, pode-se lembrar que as
condições flexíveis de trabalho, no que diz respeito aos horários e ao trabalho
empresarial que, em algumas situações, pode ser realizado nos domicílios dos
trabalhadores, só fazem aumentar ainda mais a produtividade, diminuindo o número de
trabalhadores inseridos no mercado formal de trabalho.
O trabalho informal também se multiplica, enquanto os programas de
transferência de renda para a população de baixa renda, no caso de países como o
Brasil, cada vez encontram mais dificuldades para inserir seus usuários no mercado de
trabalho, até porque vai ficando claro que a qualificação exigida pelas empresas não
pára de aumentar.
Essa lógica de descartabilidade das pessoas no mercado corrobora a alegada
necessidade de haver espaços para incluir os refugos, para além das técnicas de controle
105
flexíveis. Isso porque o desemprego em massa causa distúrbios sociais difíceis de
contornar apenas com dispositivos de controle flexíveis dispostos capilarmente nos
espaços sociais. Mas essa função do manicômio, vinculada à defesa dos padrões de
existência pautados no trabalho, não é nenhuma novidade. A invenção do manicômio,
pelo menos em parte, pode ser explicada pela necessidade de consolidar as normas e
modos de vida inaugurados pelo trabalho assalariado. Assim, outros fatores,
característicos de nosso tempo, devem ajudar a explicar a necessidade da existência do
manicômio. Um deles, a meu ver, é a desregulamentação imposta como padrão em
todos os âmbitos da existência e da vida em sociedade.
Por que o manicômio é necessário: a desregulamentação
A desregulamentação como regra, que passa pelo mundo do trabalho, mas
também o ultrapassa, apontada por autores que tentam caracterizar a sociedade pós-
moderna, como Bauman32, é um fator que, a meu ver, fala a favor da necessidade de um
espaço de reclusão nas sociedades de controle flexível.
A desregulamentação é geradora de insegurança. Todo o investimento que as
instituições da sociedade disciplinar fizeram para enraizar as populações em modos de
vida estáveis, centrados no trabalho e no mercado, e mediado pelos Estados, agora é
descartado e toda a sua construção desaba como um castelo de cartas de baralho.
A velocidade das mudanças é acelerada, e muitos dos pontos de referência se
modificam constantemente: os valores culturais e morais; a forma de funcionamento e o
tipo de respostas das instituições; as formas de se obter o ganho material que garante a
sobrevivência (mesmo que para uma existência muito mais física do que política). O
que poderia parecer a possibilidade de usufruir um grau elevado de liberdade é vivido
como exasperação, angústia e insegurança. Essa virtualização das referências, associada
a todo o processo tecnológico das empresas, mas também assentada nas mudanças da
percepção do espaço e do tempo que o aumento das velocidades da comunicação e do
transporte propiciaram, produz um aumento da insegurança. Esse novo tipo de
insegurança (diferente da vivida pelos camponeses que deixavam os feudos e chegavam
às cidades quando do início da industrialização) faz os indivíduos perderem o chão e
clamarem por autoridade, por estruturas antes conhecidas que aos poucos vão
106
desaparecendo. A insegurança de quem se sente andando em areias movediças produz a
necessidade de espaços estáveis e estanques, de instituições que possam simbolicamente
representar uma referência sólida ou que concretamente se fechem sobre si mesmas,
como cubos de paredes hermeticamente fechadas.
Instituições totais podem tornar-se um simulacro de solução tanto para os
desafortunados quanto para aqueles que se movem muito bem na instabilidade das
areias movediças, mas que não suportam presenciar outras pessoas afundando em areias
tão volumosas.
Instituições duras e pesadas podem ser então um contraponto necessário à
instabilidade permanente dos processos sociais. Elas sabem muito bem se combinar com
a fluidez perene dos controles ininterruptos.
Contudo, os espaços de segregação, que se combinam aos mecanismos de
controle flexível, assumem características diferentes daquelas que expressavam sua
vocação disciplinar, já que sua função como máquina de combate aos desvios também
sofreu transformações.
Os espaços de confinamento, para além de recuperar e disciplinar
cuidadosamente, como era o desejo dos alienistas, podem muito bem ser espaços
inertes, passíveis de ser usados ou rapidamente descartados, dependendo das
circunstâncias, o que os caracterizaria como uma forma de dispositivo segregador
adaptado a uma sociedade como a de controle.
Em outras palavras, os manicômios e os demais espaços de confinamento podem
ser depósitos de pessoas, que lá chegam voluntariamente ou à força e, dependendo da
situação existencial, elas próprias e suas famílias podem desejar ativamente uma
internação perpétua – o que é comum no Brasil33.
Contudo, o que encontram como resposta a seu pedido de cuidado e abrigo, que
pode resgatar a sensação de segurança perdida, é nada mais que o abandono.
107
Da “lógica disciplinar” à “lógica do abandono”
Reflito a partir de minha experiência no hospital psiquiátrico.
O abandono se reproduz no interior do manicômio, configurando uma situação
em que parece não haver nenhuma expectativa de melhorar os pacientes, ou de inseri-
los novamente nas suas comunidades. É como se a própria autoridade científica do
manicômio enquanto espaço de tratamento (um dos pólos da função psiquiátrica que
convive com o outro pólo associado ao controle, compondo, segundo Castel [1977], a
“contradição psiquiátrica”) tivesse sido abandonada, e como se a des-responsabilização
sobre o presente e o futuro dos pacientes tivesse sido assumida, na prática mas não no
discurso, pela própria psiquiatria e pelas famílias dos doentes. É como uma situação de
inércia gerada pela lógica do abandono. Uma situação ambígua, uma vez que se reforça
o pólo da pura função de controle social através de uma tecnologia do abandono. Ou
seja, um controle pelo abandono.
Nesse sentido, internar ou não um doente mental pode ser uma alternativa entre
outras, pois há outras formas de abandono, como deixar as pessoas vivendo nas ruas ou
mesmo mantê-las em cárcere privado, amarradas ou trancadas, o que é uma cena
comum e freqüentemente presenciada por agentes de saúde dos programas de saúde de
família, por exemplo.
A lógica do abandono prevalece e se soma à insegurança vivenciada.
Se o Estado, e depois a empresa, e depois a família, dizem ao indivíduo que
agora não estão interessados em seu destino, na direção de seus passos atuais e futuros,
ou seja, se se abre mão de um tipo de abordagem que, através da disciplina, gerava
segurança e estabilidade (ainda que fossem uma segurança e estabilidade
subalternizadoras), o mesmo indivíduo cai no buraco cinzento e vazio da angústia e da
insegurança, no movimento obsessivo e compulsivo de pedir autoridade, de pedir que
cuidem dele, que continuem existindo por ele.
É por isso que muitos doentes mentais que vivem processos de
desinstitucionalização resistem em sair do hospital para viver em residências
terapêuticas ou mesmo com suas famílias. Não é só por terem esquecido de como lidar
com a própria liberdade, mas porque o deserto de relações e de sentidos de vida com
108
que se deparam quando em contato com os territórios de existência não os deixa
vislumbrar possibilidades promissoras de existência.
Todas aquelas estratégias do Estado e da sociedade para garantir um novo
enraizamento (para substituir aquelas formas medievais de pertencimento servo-senhor),
as instituições, os valores e práticas do trabalho34, essas mesmas estratégias é que estão
sendo superadas, ou melhor, saindo do campo do fornecimento de respostas, e
produzindo toda a insegurança atual.
E, nesses termos, o manicômio, na essência, não precisa produzir tecnologias
sofisticadas para garantir o manejo e o resultado terapêutico no interior das instituições.
Ele passa a ser um daqueles espaços de refugo pós-moderno de portas giratórias
semifechadas, onde a antiga e problemática ética do cuidar imposta e delegada à
psiquiatria perde um pouco de seu sentido quando se delega o controle não tanto à
disciplina, mas ao abandono.
Atualizam-se aqueles processos em que Basaglia identificava a função da
psiquiatria como funcionária de um tipo de sociedade em que o valor não é o homem
em sua singularidade, mas os processos econômicos, em que ele identificava a
construção da ideologia médica – ideologia, sim, por propor construções teóricas
atreladas unicamente à manutenção dos termos da dominação, sem qualquer vínculo
com as necessidades reais dos pacientes. Mas esse é um controle que se dá pelo
abandono e não mais pela disciplina (como ocorria nos primeiros hospitais
psiquiátricos), embora ainda se baseie na pobre e abstrata grade nosográfica que foi
sendo construída em torno da noção de doença mental.
Mantém-se a correspondência na lógica de funcionamento entre as estruturas do
desenvolvimento econômico e as instituições: à estratégia de abandono nas relações de
produção (vide o “enxame” que citei e a desregulamentação) corresponde o abandono
como tática do manicômio.
Na lógica do abandono, o hospital psiquiátrico é também uma virtualidade.
Porque ele existe, mas é como se não existisse, já que os indivíduos que abriga são
quase inexistentes.
Se os hospitais existem é também por terem eventualmente um papel
econômico, por gerarem valor e lucro para alguns de seus proprietários, mas nem todos,
109
pois os que se cansam de manter pacientes em condições de existência altamente
precárias passam a investir seus recursos em “negócios” mais rentáveis.
Parece-me, então, que o hospital psiquiátrico é hoje um refugo, que continua a
existir na inércia dos acontecimentos, não sabemos até quando. Contudo,
contraditoriamente, ele parece continuar a ser muito necessário.
Momento de reflexão 2
A PSIQUIATRIA, SEUS PROFISSIONAIS E SEUS PACIENTES: SIMPLIFICANDO EXISTÊNCIAS
Minha experiência no hospital psiquiátrico apontou também que ao abandono se
associa uma forma extremamente simplificadora de lidar com o fenômeno da loucura.
A história da psiquiatria, que começa no interior do asilo, já apontava para o
processo de especialização que reduziria a experiência do sofrimento psíquico a um
conjunto de sinais e de sintomas que deveriam ser combatidos para que se atingisse a
“cura” (Foucault, 2006).
A genealogia do hospital psiquiátrico realizada por Foucault (2005) demonstrou
como as primeiras abordagens da loucura, agora institucionalizada, remetiam a um
julgamento das falhas morais, a uma problemática restrita ao movimento das paixões, e
como o poder moral, como estratégia e força dos alienistas, se estabeleceu como a base
da prática e da teoria da medicina, acompanhando-a até hoje.
É que o poder moral foi o primeiro e mais forte sustentáculo da psiquiatria
nascente, que ainda não possuía conhecimentos específicos capazes de legitimá-la como
ciência e justificar sua missão de combate aos desvios.
Quando um conhecimento específico sobre a doença, então pautado sobre bases
organicistas, pôde associar-se ao permanente poder moral da medicina, este operou
através de paradigmas positivistas que impuseram uma brutal simplificação da
experiência da loucura e do sofrimento psíquico. Trocou-se a simplificação em torno da
moral e das paixões descontroladas dos internos (que explicava o caráter mórbido da
doença) pela simplificação de base organicista.
110
Toda a construção teórica da especialização psiquiátrica ocorrida durante sua
história, com seus códigos, diagnósticos e prescrições, teve como principal objetivo
garantir uma formalidade científica destinada a preencher esse vazio ocupado apenas
pelo poder moral, segundo nos diz Foucault (2005)35.
Esses conteúdos da psiquiatria tradicional e organicista são, em essência,
redutores, pois tentam decifrar uma experiência complexa como a da loucura em
explicações simples e mecanicistas, baseando-se num modelo que tenta se mirar nas
especialidades médicas do corpo. As respostas pré-formadas desenharam o próprio
fenômeno da doença mental, ou seja, criaram-se os padrões da doença e o papel dos
doentes, separando a doença de seus contextos, e impossibilitando o real entendimento
das necessidades que ela expressa (Basaglia, 1977). Assim separada, a doença se torna
incompreensível e inabordável, porque não se tem a possibilidade de conhecer todos os
elementos relacionados a ela, que fazem dela uma experiência existencial complexa. O
espaço da abstração, então, pode tomar conta do fenômeno inteiro, que passa a se
reproduzir conforme as vozes que o comandam36: no caso, a voz da psiquiatria (basta
lembrar da relação de Charcot com as histéricas, que respondiam com seu
comportamento a tudo o que ele esperava – para que conseguisse comprovar suas
hipóteses sobre o funcionamento das doenças – manipulando-o enquanto ele também as
manipulava) (Foucault, 2006).
A loucura é então guindada à condição de simples objeto esquadrinhado de uma
ciência que procura ser o mais exata possível, mas que tem como principal instrumento
a prática da segregação e da anulação.
Muitos profissionais não são capazes de superar através da crítica essa condição,
que para outros é motivo de profunda exasperação.
Nenhum metaponto de vista (Morin, 2002), nenhum desvio ou linha de fuga
(Deleuze, 1998) podem ter acesso ao cotidiano, sob pena de gerar a insegurança, o não
saber o que fazer, a culpa por ter desobedecido a uma delegação social de controle
disciplinar.
Toda essa simplificação utiliza como suporte os corpos dos internos. É na
inscrição dos corpos que se dará o exercício desse poder gerado pelo saber psiquiátrico.
111
Os corpos
Os corpos dos internos dos hospitais são os receptáculos dessa simplificação
exercida com uma mistura de rigor esquadrinhador com o “laissez-faire” caótico do
abandono: da porta de ferro para dentro, lá onde poucos médicos, por pouquíssimo
tempo, chegam, ali onde ficam os projetos de homem, é o lugar do vale-tudo, onde os
micropoderes e as pulsões podem entrar em choque pela posse de pequenas coisas,
como os tocos de cigarros do chão e coisas do tipo.
A mistura de rigor e caos, no entanto, gera um fruto homogeneizador.
O caos deixa fluir a singularidade, mas a porta é mais forte e indica formas
brutas e massificadas de comportamento que devem ser obedecidas, e que são
expressas, sobretudo, na submissão, na anulação do desejo, nos corpos produzidos em
série delineados pela sarna, pelos piolhos, pela sujeira, pela robotização medicamentosa,
pelos movimentos involuntários colaterais37.
Pouco a pouco, as palavras perdem o sentido de existência, o vocabulário se
empobrece, a ponto de quase não precisar ser usado, pois não há nada de novo a
comentar e a restrição violenta da liberdade mata o interesse por tudo o que a vida pode
ter de novidade.
A existência é reduzida ao mais básico dos processos, o do funcionamento
metabólico dos corpos (à vida nua), nutridos muitas vezes, como é o caso do hospital a
que me refiro neste trabalho, com uma alimentação tão pobre de nutrientes que também
torna miserável e simplifica o trabalho das células.
Assim, ao se tratar de complexidade, é óbvio que a vida asilar é das mais
simplificadoras, retrato e expressão da ciência clássica e de sua lógica
dedutivo/identitária no campo da psiquiatria.
O paradigma psiquiátrico pertence ao grande paradigma do Ocidente apontado
por Morin (2002)38, e sua superação prática e gradual deverá estar vinculada a outras
práticas e teorias, de forma que se produza vida num movimento sempre constante.
As possibilidades de surgimento de desvios, nesse caso, estão ligadas não só à
crítica da simplificação e ao papel dos profissionais, mas também à motivação destes.
112
A motivação
Por deterem um saber e um poder que os tornam sujeitos sobre um objeto (o
louco), os profissionais estão numa posição privilegiada e seu comportamento pode
alterar o papel de outros personagens.
Os profissionais que trabalham nos manicômios geralmente vivem a falta
absoluta de entendimento do que fazem num local obscuro e fechado (onde também se
vêem presos).
Uma ambigüidade de sentimentos se faz presente e expressa contradições nas
formas de atuar, de tomar decisões, de se relacionar com os pacientes.
Sentimentos de desprezo pelos pacientes e pelo próprio papel profissional
convivem com a consternação provocada pela miserável situação existencial dos
primeiros, ou mesmo com a total negação do que vivem e a que são submetidos.
Os profissionais que não conseguem expurgar qualquer nível de crítica, tornando
natural e “parte do trabalho” aquela situação asilar degradada, não conseguem também
permanecer nesses locais ou, pelo menos, vivem o dia-a-dia com grande carga de
sofrimento. Sua autocrítica os corrói e tenta tirá-los do circuito da violência, que é maior
do que eles, e que eles não conseguem modificar. A tensão é máxima e contínua entre o
abandonar o trabalho e o resistir, embora o monstro seja muito maior e poderoso do que
eles. Talvez vivam uma situação de tensão semelhante à que vivem os agentes
carcerários, porque, em última instância, devem atender a uma delegação social de
controle e segregação, mesmo que esta venha associada a uma demanda de cuidado e
tratamento.
Há sempre o risco, principalmente por parte daqueles profissionais que só
possuem a experiência hospitalar e que não produzem nenhuma crítica sobre sua
prática, de se reproduzirem relações em que estes acabam por assumir o papel de juízes
soberanos que aplicam as regras do “estado de exceção”39 individualizadas nos
pacientes que os procuram. Não que apreciem esse estado de coisas, mas eles
respondem ao sistema que espera deles esse tipo de resposta, negando-se a entrar em
contato com o significado de tal função. Muitas vezes não percebem que estão agindo
destrutivamente sobre aquele objeto de sua intervenção científica, já destroçado por
sucessivas internações psiquiátricas.
113
Não estou, de forma alguma, generalizando minha percepção a todos os
profissionais que trabalham em hospitais psiquiátricos. Não posso deixar de afirmar, no
entanto, que essa percepção se fez fortemente presente em meu confronto com o
hospital psiquiátrico, quando tentava entender o que lá se passava.
É bem provável que a origem de classe social opere sub-repticiamente, uma vez
que as condições de vida, bem como as motivações de quem pôde freqüentar uma
faculdade de medicina, de psicologia, de terapia ocupacional, são bem diferentes das da
maioria dos habitantes dos hospitais psiquiátricos. Aqui opera o que Pierre Bourdieu
chamou de habitus, o que tem muito a ver também com os estilos de vida40.
Mas mesmo os auxiliares e técnicos de enfermagem, que teoricamente possuem
uma origem de classe mais próxima à dos internos, parecem reproduzir essa forma de
lidar com os pacientes41. Sem cair na armadilha de generalizar essa percepção a todos os
funcionários, é como se a reprodução dessa forma acrítica de lidar com os doentes fosse
um sinal de maior prestígio em direção ao que é socialmente valorizado, ou seja, à
forma cientificamente correta e moralmente avançada de agir dos profissionais que têm
mais poder.
Mesmo assim, as diferenças de classe parecem operar nas relações de todos
esses atores, que buscam alcançar uma posição socialmente valorizada, que mantém os
internos no último degrau da escala hierárquica.
Basaglia (1985: 108-9) por diversas vezes apontou o fato de que, nos
manicômios, muito mais do que doentes, há pessoas das classes subalternas, que são
vistas como irrecuperáveis e cuja história considerada se resume à própria história da
doença. Aquelas de outra classe que adoecem podem ter suas experiências e sua história
singularizadas, o que favorece o retorno ao lugar de valor que ocupam, ou ao menos a
intenção de conseguir esse retorno é mais explícita, e se lança mão de toda sorte de
recursos para obtê-lo. Porque, muito mais que a doença, no tratamento está em jogo o
lugar que a pessoa que vivencia um sofrimento psíquico ocupa socialmente e seu “poder
contratual”42.
114
Reinventando a prática
As respostas clínicas tradicionais que os profissionais operam baseiam-se num
paradigma da anulação e, portanto, pensar novas práticas significa reinventar o papel
dos profissionais que atuam na área.
Entender o papel profissional como um elemento do projeto disciplinador,
policial e formulador do consenso, como um instrumento da biopolítica ou como um
dispositivo complementar das máquinas de controle flexível, é o primeiro passo para se
criar novos horizontes de atuação.
Se o profissional de saúde mental é o funcionário do consenso que exerce seu
poder sobre um objeto inerte e anêmico, isso se dá pela força com que o manicômio
arrebata e arrefece o estado de espírito questionador e denunciador da pobreza
existencial apresentado pelo homem em crise. O manicômio esconde aquilo que os
homens querem expurgar de si mesmos, e que cintila na existência tumultuada da
pessoa em crise.
Por isso, uma forma de tornar complexo o fenômeno do sofrimento psíquico é
considerar e trabalhar a crise no contexto em que está inserida, ou seja, no próprio
território de existência do paciente, tendo como substrato as contradições sociais.
Esse papel de mediação de relações no território é de fundamental importância
por poder propor a todo o momento um questionamento das bases da crise, ou seja, uma
avaliação também da cultura e de seus valores normativos, bem como da qualidade das
relações sociais e de poder.
Momento de reflexão 3
MANICÔMIO E ORDENAMENTO JURÍDICO
Se existem vínculos entre segregação no manicômio e as normas jurídicas que
protegem a sociedade, estes se baseiam no apoio que a ciência psiquiátrica deu
historicamente à justiça, que legitima o exercício desse poder anulador de determinar o
confinamento e, posteriormente, de definir anomalias e patologias naqueles que
cometem crimes, ou que apenas podem “teoricamente” cometê-los, oferecendo riscos à
sociedade. Os loucos não podem ser presos como criminosos comuns, no caso dos que
115
não cometeram crimes (porque aos que cometeram, resta o manicômio judiciário), mas
estão submetidos a um “isolamento terapêutico” (Castel, 1978: 188), que pode a
qualquer momento determinar seu seqüestro.
O “isolamento terapêutico” é uma forma de subtrair alguém do convívio social,
flexibilizando um pouco as regras universais do ordenamento jurídico. Tudo dependerá
mais da avaliação psiquiátrica do que de uma avaliação jurídica, no caso dos que são
internados sem ter cometido nenhum delito. Esta seria uma forma de participar do
ordenamento jurídico sem exigir os penosos e lentos processos de interdição.
A conjuntura interna aos manicômios também aponta, num outro sentido, para a
ausência efetiva de um ordenamento jurídico, pois o dia-a-dia dessas instituições não
garante o mínimo de direitos, é uma “terra de ninguém”, onde a vida nua impera.
Então, há uma ambigüidade que leva essas instituições a se moverem para dentro
e para fora do ordenamento jurídico.
O louco afastando-se do homo sacer
O conceito de “vida nua”43, formulado por Agamben (2002), leva a pensar se os
sinais da loucura não seriam também uma forma política de resistir a um não-ser, a uma
existência social anulada. Uma forma de resistência que pode receber como resposta o
aprofundamento da anulação pela segregação imposta à experiência do sofrimento
psíquico intenso. No entanto, pode-se transformar essa forma de resistência, se as
condições criadas para dar voz e espaço de existência social ao louco puderem forjar
formas de participação social capazes de aumentar o poder dos doentes de estabelecer
relações, produzindo valor social e assim modificando a própria forma de viver o
sofrimento psíquico, de modo a ajudar a converter a dimensão política do
comportamento do louco em formas que lhe permitam agregar poder.
O louco, que representa a antítese do trabalho, por ser em princípio o
antiprodutor, aquele que surpreende e não se submete continuamente à engrenagem do
mercado, muito tem a contribuir nesse processo de superação da anomia44 que parece se
impor na existência do corpo social (devido ao fato de haver todo um investimento para
politizar os corpos, reproduzindo cada vez mais camadas de homo sacer).
116
O sofrimento do louco é autêntico e pede apoio para mediar e construir os laços
sociais que o produzem como sujeito.
Sua experiência também ajuda-nos a entrar em contato com novas formas de
existência e questionamentos sempre novos sobre aquilo que o mercado valoriza.
O contato com o conflito e o sofrimento do louco, sem a anulação de um dos
pólos do conflito operada pela internação psiquiátrica, permite tornar complexo o
fenômeno do conflito e do sofrimento (Basaglia,1977; Rotelli, 1990). Como diz Rotelli,
o objeto da psiquiatria passa a ser
“a existência-sofrimento dos pacientes e sua relação com o corpo social”. O
mal obscuro da psiquiatria está em haver constituído instituições sobre a
separação de um objeto fictício – a doença – da existência global, complexa e
concreta do paciente e do corpo da sociedade. (Rotelli, 1990: 90)
A circulação social desse novo ator, antes escondido atrás dos muros do
manicômio, modifica sistemicamente os outros pólos da relação social, representados
não só pelos profissionais, mas pelas famílias e por todos os grupos sociais.
O louco considerado perigoso, incapaz para o trabalho e estranho aos
comportamentos comuns, surge como um elemento produtor de desvios e mudanças
enriquecedoras na sociedade a partir do momento em que o poder científico da
psiquiatria seja usado para fazer uma mediação das relações sociais, produzindo um
cuidado emancipador em contraste com a tutela anuladora dos manicômios.
O foco a ser tratado passam a ser as próprias concepções do que é perigoso, do
que é ser capaz para o trabalho, de que tipo de trabalho falamos, e de que
comportamentos e por quais motivos esses comportamentos são considerados normais.
O lugar simbólico da loucura pode ser esse que alimenta positivamente o
enriquecimento cultural da pólis e que faz lembrar que o sofrimento e a experimentação
subjetiva visceralmente intensa fazem parte da trágica experiência humana. Desse
modo, tira-se o louco de sua condição anêmica perante a existência social.
O sofrimento psíquico passa a ocupar um outro lugar: uma experiência que gera
conflitos entre partes diferentes de uma mesma sociedade (em vez de uma das partes ser
anulada e inexistente como Sacer), entre a impotência do vazio e a potência do desejo.
117
Momento de reflexão 4
SAINDO DO MANICÔMIO PARA NÃO MAIS VOLTAR: EM DIREÇÃO AO TERRITÓRIO
O que vivi em Santos, e que foi atualizado agora, foi me ensinando, com lições
muito claras e graduais, o que significa na vida de uma pessoa que vive a experiência do
sofrimento psíquico passar da condição asilar para um outro tipo de cuidado baseado em
sua experiência concreta de vida. Significa deixar de ser um objeto submisso a seus
sintomas (pois no hospício a psiquiatria dá aos sintomas o estatuto de verdadeiro sujeito
de diálogo – ela só se relaciona com os aspectos da doença) para ser um sujeito que tem
vez e voz, e que interfere no dia-a-dia de sua vida, ou seja, exerce poder.
É clara essa modificação que faz brotar novas subjetividades, novos atores que
até então não existiam: as mudanças corporais e subjetivas são percebidas a olho nu,
quando esses atores podem viver uma construção coletiva que de fato põe sob foco as
questões concretas da vida, as relações familiares, a forma como a pessoa é vista em seu
bairro, as condições físicas de sua casa etc.
E é por isso que a discussão do território como o espaço do terapêutico tem sido
fundamental no contexto da reforma psiquiátrica.
É também pela importância dessa discussão, que a cada momento se impunha na
vivência que tive no interior do hospital psiquiátrico sob intervenção, que me sinto
inclinado a levantar alguns pontos com relação ao papel dos serviços comunitários no
território.Território considerado não apenas como um espaço, mas como um espaço
vivido, onde a vida flui em sua complexidade, onde é possível construir os nexos
capazes de impor um outro sentido à globalização dominante, gerando uma globalização
de baixo para cima (Santos, 2000).
Fincados nos territórios, os novos serviços territoriais surgiram como uma
alternativa que se propunha substituir o paradigma e a prática da psiquiatria centrada no
hospital psiquiátrico.
Esses serviços, que tentam substituir o manicômio, podem ou não significar
adaptações de uma outra espécie na perspectiva do combate aos desvios, dependendo do
movimento que imprimem a suas práticas, e do grau de produção de crítica e de
experimentações sociais a que se dispõem.
O serviço possui tentáculos para exercer a mediação que lhe é característica.
118
Mas os tentáculos devem ser operados pelos próprios pacientes (ou usuários dos
serviços), que devem utilizá-los para ocupar espaços e tempos com seus conteúdos
próprios; os tentáculos não devem servir para aprisionar o movimento dos pacientes,
embora a função de controle nunca deixe de existir.
Trata-se, contudo, de um controle que tenta resultar, de alguma forma, em mais
força ao próprio paciente, nos embates da vida. É como que um controle, ou um recuo
estratégico, ou um segurar provisório e não estanque, não simples, mas complexo, que
pode possibilitar futuros avanços, e que se dá na base da reciprocidade, da confiança na
construção coletiva de um projeto comum45.
As novas instituições tentam promover os agenciamentos para viabilizar o
convívio social com a complexidade da experiência da loucura e acolher o sofrimento
psíquico. Eis o desafio da produção contínua de novas subjetividades, que concerne aos
diversos participantes da empreitada de conviver com a complexidade da loucura: os
pacientes, os profissionais, as pessoas comuns.
Essa tessitura cotidiana fincada no território de existência das relações sociais, e
não no subterrâneo das relações sociais representado pelo espaço do confinamento, é
algo que provoca profundas alterações microfísicas, porque altera e faz movimentar as
micro e macrorrelações de poder.
Microrrelações no âmbito da relação cotidiana do louco, de seus familiares, dos
profissionais de saúde mental (Saraceno,1996), e dos atores das cidades no dia-a-dia do
desafio de produzir flexibilidade nas relações existenciais de convivência, e
macrorrelações no âmbito da própria fratura que é operada na psiquiatria, no seu status
e qualificação de ciência, e nos seus aparatos e instrumentos, quando se declara a
necessidade de uma nova maneira de lidar com a loucura.
A forma como se dá o diálogo com a experiência da loucura é algo importante a
ser considerado quando se avaliam as práticas dos serviços territoriais e comunitários,
que devem se fazer presentes no acompanhamento do cotidiano existencial de seus
pacientes, nos espaços geográficos em que vivem.
Esse diálogo deve deixar de ser de uma única voz, deve contemplar todas as
vozes que a experiência da loucura possui e não só a voz das instituições ligadas ao
cuidado do louco. Mais ainda, as instituições ligadas ao cuidado da loucura devem tecer
119
a rede que possibilite ao doente mental multiplicar os seus interlocutores; ela deve se
negar a ser a única interlocutora do louco, superando essa condição através de
agenciamentos.
É evidente que o serviço territorial pode reproduzir a lógica da disciplina e da
normalização da velha psiquiatria, ou a nova lógica do abandono. E, para evitar tal
armadilha, a liberdade dos pacientes e dos profissionais não pode ficar restrita às grades
nosográficas ou às respostas e procedimentos profissionais já prontos. As respostas dos
serviços não devem se petrificar e se reproduzir de forma sempre igual antes até de as
perguntas surgirem, demonstrando a surdez e a falta de diálogo e de sensibilidade para
com os seus usuários.
Não creio que os serviços territoriais possam ser simples herdeiros do velho
hospital psiquiátrico, reproduzindo apenas uma atualização do papel de vigilância e
controle (uma modernização, que mantém os mesmos conteúdos originais)46, mas eles
certamente podem se cristalizar e reproduzir elementos que, no seu conjunto,
configuram uma lógica da invalidação e da minoridade, do puro entretenimento47, em
vez de politizar e mover as contradições sociais que envolvem a loucura.
No entanto, a lógica do cuidado que invalida não pode ser superada apenas
mudando o espaço das intervenções. É necessário, e aqui faço referência novamente a
Saraceno (1999), avaliar bem as situações em que os pacientes melhoram ou pioram,
para tentar entender os porquês, e perceber que o que mais opera geralmente são fatores
extrínsecos ligados indiretamente à terapêutica. Por exemplo: mais que a técnica
específica, às vezes o que mais opera nas mudanças são as características do contexto de
vida do pacientes (suas possibilidades de escuta, de diálogo, de gerar valor social, de ser
acolhido) e algumas características gerais dos serviços, tais como a motivação dos
profissionais sobre o trabalho e a melhora dos pacientes.
No que diz respeito ao contexto de vida como determinante do prognóstico,
Saraceno cita pesquisas de grande fôlego que inseriram a epidemiologia na questão da
saúde mental e que demonstraram, entre outras coisas, que a esquizofrenia pode ter
prognósticos muito melhores do que se costumava acreditar; que em contextos sociais
diferentes se produzem níveis de melhora diferentes. Em países em vias de
desenvolvimento, por exemplo, as melhoras e os prognósticos positivos em pacientes
120
esquizofrênicos costumam ser mais freqüentes que em países desenvolvidos (Saraceno,
1999: 27-30).
Então, é necessário considerar a importância dos contextos nas práticas de
tratamento e reabilitação psicossocial, e isso explica por que a questão do trabalho no
território, da desinstitucionalização, não é só uma questão ética, mas também uma
questão técnica, que consegue resultados profícuos. (E isso explica por que, na
discussão de modelo, a intervenção no contexto de vida deve ser o fator preponderante,
modificando a lógica do tratamento baseada no abandono e na invalidação.)
O trabalho territorial, dessa forma, deve envolver uma ação fortemente integrada
a processos materiais, simbólicos e conceituais em construção, parte de um constante e
inacabado enfrentamento das contradições da realidade.
Como conseqüência disso, muda-se o contexto, e muda-se também a pessoa que
faz uso do serviço.
Novas sinapses e relações entre as diversas células do corpo se entrelaçam.
O funcionamento cerebral dos antigos internos abatidos e anulados é
modificado, e isso também explica por que, quando saem da situação asilar para a vida
participativa nas comunidades, muitos voltam a falar, a expressar os desejos, a enxergar
novamente, a cores e ao vivo. Grandes mudanças nas habilidades corporais são
percebidas.
Todas essas transformações são possíveis porque se vivem de fato as
contradições no próprio território; e as tecnologias e as referências teóricas para o
exercício dessa prática dos serviços territoriais necessitam ser permanentemente
aprofundadas, para que não sucumbam a uma alienação cronificante que se limita a
reproduzir a anulação.
Momento de reflexão 5
REFORMA PSIQUIÁTRICA: PROBLEMATIZANDO O PODER E SUPERANDO A SOCIABILIDADE
DA MERCADORIA
Para arrematar o caminho destas reflexões, que partem da crítica ao manicômio à
importância que atualmente é dada ao trabalho territorial num contexto de
desinstitucionalização (de práticas, saberes e valores), opto por finalizar levantando um
121
problema que, a meu ver, se coloca como um desafio teórico-prático à reforma
psiquiátrica. Essa questão se refere ao padrão de sociabilidade produzido sob a
influência do fetiche da mercadoria e à necessidade de lidar com a questão das relações
de poder como algo central nos processos de desinstitucionalização e de crítica ao
paradigma psiquiátrico tradicional.
Basaglia (1985: 105) esclareceu que o que estava por trás do desenvolvimento
da psiquiatria e de suas instituições eram os processos econômicos. As formas de
dominação – mais suaves ou mais pesadas, diretas e transparentes ou ocultas em sua
apresentação e performance – estavam subordinadas a esses processos.
Ocorre que os processos econômicos, e a dominação que geraram, sempre
estiveram submetidos a uma necessidade de tudo tornar abstrato e desprovido de sentido
(a mesma contradição que Basaglia apontava ao se referir às necessidades reais versus
as necessidades artificiais). Em todo esse tempo de modernização das civilizações, o
objetivo foi fazer dos homens quantidades de trabalho abstrato que se relacionam entre
si, como um fim em si mesmo e, portanto, sem possibilidade de existir projetualidade.
Uma lógica da reificação, em que tudo, do afeto ao contato com o meio ambiente, se
torna mercadoria. A mercadoria tornou-se uma presença onipotente, tendo no trabalho
seu mais nobre súdito ou seu mais poderoso instrumento. Aos projetos de vida se
sobrepôs o fim em si mesmo da valorização do valor, para usar a linguagem de Robert
Kurz (1999a).
Para Kurz, no que se refere às formas de dominação,
o fato de os sujeitos-mercadoria utilizarem-se reciprocamente para os seus
objetivos individuais não é o X da questão e muito menos a sua explicação.
Antes, é a mera forma fenomênica de algo diverso – a saber, do fetiche sem
sujeito – que se manifesta nos sujeitos que agem. Seus objetivos individuais
não são o que parecem ser; segundo a sua forma, não são objetivos individuais
e voluntários, e por isso também o conteúdo é distorcido e desemboca na
autodestruição. O essencial não é os indivíduos se utilizarem mutuamente para
seus objetivos individuais, mas sim, na medida em que parecem assim fazer,
executarem em si mesmos um objetivo totalmente diverso, supra-individual e
sem sujeito: o movimento autônomo (valorização) do capital. (Kurz, 1999b: 9)
No que tange ao tema das instituições que servem a dominação (e que são o
reflexo das manipulações que criam os novos conceitos abstratos de homem associados
ao progresso econômico), Basaglia (1977: 79, tradução nossa) lembra também que
122
As ideologias científicas e as instituições tem a tarefa de garantir esta
manipulação, unindo no mesmo jogo (apesar de, obviamente, com graus
diferentes de possibilidades e de alternativas) a manipuladores e manipulados,
controladores e controlados, uns através da identificação com seu papel,
aparentemente ativos e autônomos, outros no sofrer aquilo que não têm a
possibilidade de rechaçar.
Ou seja, dominados e dominadores, explorados e exploradores, funcionários do
consenso e seus objetos de intervenção, todos são submetidos a formas de dominação
pouco conscientes.
Por caminhos que até certo ponto se cruzam com os de Basaglia, mas que
também se desencontram destes, Michel Foucault analisa a dominação a partir das
relações de poder.
Desta vez, não se trata tanto de um poder absoluto, perene e de uma só direção,
representado pelo Estado ou pelos aparelhos de Estado, na manutenção e proteção dos
interesses econômicos, mas de um poder que se encontra em forma de relações de força
e por toda a parte, desde microrrelações e microlutas, até nas grandes estratégias do
Estado. Esse poder, sempre instável e em permanente relação com resistências que
surgem como contrapoder, e que, dessa forma, direcionam o poder e lhe conferem
forma e lugar, pode ser manipulado pelas grandes estratégias dos aparelhos de Estado
para a dominação, pelas instituições, mas não pode ser explicado apenas como sendo
dependente delas.
Se o grande poder do Estado e das instituições pode enraizar-se nos microporos
da sociedade, é porque microrrelações produzem excessos de poder na mesma direção
(Foucault, 2003a: 231), mobilizados mais pelo desejo que pelo simples interesse
(Foucault, 2003b: 45-6).
O poder, para Foucault, é o grande problema e a grande questão do século XX.
Se o grande problema que mobilizou a investigação teórica no século XIX foi a
exploração econômica e a miséria dela decorrente, explicando o excesso de poder da
época, deve-se dizer – e é Foucault quem o faz – que no século XX já não é possível
explicar o excesso de poder somente por causas econômicas. Se o campo de
concentração representava, em seu excesso de poder, o mesmo que as vilas operárias
representavam no século XIX, e se a violência do fascismo e do stalinismo ainda
123
poderiam ser vinculados a causas econômicas, depois de 1955 os conflitos violentos se
impuseram sem uma justificativa real fincada no campo econômico (Foucault, 2003a:
225-6).
Nessa caracterização do poder, não apenas na linha de um poder soberano do
Estado, mas de um poder localizado em micro e macrorrelações, Foucault aponta alguns
pontos sobre o poder importantes para o que estou discutindo:
[...]
– que seu entrecruzamento delineia fatos gerais de dominação, que esta
dominação se organiza em estratégia mais ou menos coerente e unitária: que
os procedimentos dispersados, heteromorfos e locais de poder são reajustados,
reforçados, transformados por essas estratégias globais, e tudo isso com
numerosos fenômenos de inércia, de intervalos, de resistências; que não se
deve, portanto, pensar um fato primeiro e maciço de dominação (uma
estrutura binária com, de um lado, os “dominantes” e, do outro, os
“dominados”), mas, antes, uma produção multiforme de relações de
dominação, que são parcialmente integráveis a estratégias de conjunto;
– que as relações de poder “servem”, de fato, porém não porque estão “a
serviço” de um interesse econômico dado como primitivo, mas porque podem
ser utilizadas em estratégias;
– que não há relações de poder sem resistências; que estas são tão mais reais e
eficazes quanto mais se formem ali mesmo onde se exercem as relações de
poder; a resistência ao poder não tem que vir de fora para ser real, mas ela não
é pega na armadilha porque ela é compatriota do poder. Ela existe tanto mais
quanto ela esteja ali onde está o poder; ela é, portanto, como ele, múltipla e
integrável a estratégias globais.
A luta de classes pode, portanto, não ser a “ratio do exercício do poder” e ser,
todavia, “garantia de inteligibilidade” de algumas grandes estratégias.
(Foucault, 2003c: 248-9)
Se associarmos a crítica à dominação ampliando, como faz Foucault, à questão
do poder, e se, como faz Kurz, aceitarmos que, como efeito do poder, existe toda a
produção de uma sociabilidade vinculada à lógica da mercadoria, veremos que o fato de
os processos de reforma psiquiátrica colocarem o tema da singularidade e da liberdade
124
no centro do debate garante por certo um lugar especial nos questionamentos da
dominação.
Mas, segundo esse viés, tais questionamentos podem estar limitados, se a
sociabilidade pela forma-mercadoria não é enfrentada e radicalmente criticada, e se não
se lidar com a questão do poder em seu exercício perene, presente também nas relações
entre a ciência, seus profissionais e instituições, e no objeto de sua intervenção, ou seja,
o doente mental.
A superação do manicômio e a desinstitucionalização, como processo complexo
de desconstrução de saberes, práticas e valores, deveria enfrentar a centralidade da
presença da forma-mercadoria na vida de todos, já que essa presença fantasmática, do
campo do fetiche, talvez esteja subjacente aos processos econômicos, envidando uma
dominação sem sujeito48. Enfrentar as contradições da realidade seria, então, nesses
termos, identificar e enfrentar esse tipo de dominação que parece ter um importante
papel na composição das demais formas de opressão.
Esse desafio, portanto, deve fazer parte das preocupações daqueles que
questionam o paradigma psiquiátrico, para que este, tão vinculado à forma-mercadoria,
possa ser superado.
Momento de reflexão 6
UMA CRÍTICA AO MANICÔMIO
A experiência de transformação do manicômio trouxe-me insights que o estudo
da teoria já assinalava, mas que apresentaram outras facetas quando roçaram a pele até
arder, colocando do avesso e abrindo diante de mim o interior da instituição até que suas
vísceras aparecessem.
Embora já tivesse vivido a experiência de Santos como uma longa tempestade
que irrigou novas percepções acerca da realidade, esta nova experiência portou-se mais
como um rápido tufão que, mesmo provocando desordens de todo o tipo (em especial as
desordens ou os atordoamentos das subjetividades), foi mantida sob certo controle, por
onde então foi sendo possível, como em Santos, dotar a prática de sentido.
125
Algumas lições ensinadas pelos vários autores que aqui foram citados – como a
de Foucault, que diz que a melhor forma de estudar o poder é partir do estudo do seu
exercício concreto, descrevendo as tecnologias de poder, e a de Basaglia, que aponta
para a construção da idéia de um homem abstrato com necessidades abstratas,
distanciado de suas necessidades reais e traduzido pelas ideologias da ciência – serviram
como pistas para trilhar o caminho de elaborar uma crítica ao manicômio, a partir da
descrição de seus efeitos concretos num determinado contexto.
O método que utilizei para criticar o manicômio foi a descrição de algumas
facetas da realidade: aquelas das relações de poder, que mascaram as necessidades reais
dos internos submetidos a internação psiquiátrica.
Como disse em outro momento, o método utilizado nos debates que se
realizaram no contexto da intervenção foi o de mostrar, a partir da descrição das
condições gerais do hospital, o que o homem pode fazer do homem, lançando mão de
uma ciência legitimada socialmente que reproduz em suas instituições uma dupla e
contraditória função.
Haveria várias formas de interpretar os fatos vivenciados e narrados neste diário,
que falam de como era aquele hospital por dentro. Esta é apenas uma delas.
Sei que a verdade, ou os efeitos da verdade, podem produzir determinadas
relações de poder. E, nesses termos, como um exercício de poder, este trabalho pretende
ser também uma forma de alerta, contrariando em alguns momentos o que se tornou
secularmente hegemônico no campo da psiquiatria.
O cuidado em saúde mental pode se dar de forma a tornar complexos os
fenômenos e a enriquecer a existência das pessoas.
É isso que se espera de um novo saber e de uma nova prática sempre em
movimento: que não se petrifiquem em doutrinas e ideologias que sufoquem a criação,
cristalizando identidades para um exercício de poder como uma tautologia, um fim em
si mesmo.
Não se trata da negação da doença, mas de tornar a experiência existencial que
ela engloba um fenômeno complexo. Não se trata de negar a psiquiatria, mas de
estimulá-la a se abrir às outras disciplinas, a se tornar uma disciplina complexa e
126
criativa, baseada nas necessidades concretas de seus pacientes, nas contradições
concretas da realidade.
É verdade que esta é apenas uma forma possível de ver a questão da assistência
psiquiátrica e da relação com o fenômeno do sofrimento psíquico grave.
A reforma psiquiátrica em andamento também provoca resistências, fazendo
conviver movimentos a favor e contra. No Brasil e na Itália (onde a perspectiva de
trabalho e o efetivo nível de implantação da reforma psiquiátrica nas diversas regiões
são diferentes entre si, gerando vários tipos de questionamento), a reforma psiquiátrica
sofre questionamentos de variados matizes. A meu ver, os mais importantes são, sem
dúvida, os que apontam para o risco de se reproduzir a simples desospitalização e o
abandono dos pacientes e de suas famílias. No caso italiano, ainda, a crítica feita por
alguns setores sociais para buscar a melhoria dos serviços de saúde mental, e a efetiva
implantação da reforma psiquiátrica, também são importantes e peculiares. Isso porque,
no âmbito das diferenças entre as regiões, ainda há em alguns lugares uma fragilidade
dos procedimentos de inclusão, das políticas intersetoriais, uma insuficiência da
sustentação econômica e política, o que leva a diferentes formas de regressão, inerentes
a um processo que visa ao enfrentamento efetivo com o hospital psiquiátrico e à
restituição da loucura à cidade (Rotelli, 2000 apud Nicácio, 2003).Todos esses
questionamentos são legítimos e fazem manter aceso um alerta, uma vez que várias
propostas históricas de reabilitar o caráter terapêutico da psiquiatria através de um
conjunto de serviços comunitários parecem ter enfrentado muitos problemas (Rotelli,
De Leonardis, Mauri, 1990)49. Esse risco é muito presente e sempre existente.
Dependerá muito, a meu ver, das perspectivas de trabalho dos serviços e das ações de
saúde mental, além de sua suficiente sustentação econômica e política, a construção de
uma outra relação de cuidado com a pessoa que vive o sofrimento psíquico. Assim, a
efetividade de uma mudança não está dada de pronto, assim que possam ser produzidos
serviços comunitários. O desafio é complexo e parece exigir respostas sempre em
movimento.
Mas, em minha opinião, a questão hospitalar ainda é um ponto central que deve
ser enfrentado, no Brasil como em outros lugares. Foi essa a realidade que eu quis trazer
à tona, e compartilhar neste diário.
127
CONCLUSÃO
A proposta inicial desta dissertação era fazer uma reflexão sobre temas atuais da
reforma psiquiátrica, como a questão da inserção no trabalho e a questão do território,
tendo em vista minha participação no projeto de saúde mental desenvolvido na cidade
de Santos a partir de 1989.
Houve um desvio de rota quando recebi um convite para ser o interventor federal
num hospital psiquiátrico em uma cidade do interior do Nordeste, no ano de 2005. Esse
novo desafio trouxe-me novas questões acerca do lugar que o hospital psiquiátrico
ocupa socialmente na atualidade, levando-me a pensar que tal discussão poderia
também ser útil para os processos de desinstitucionalização em andamento na reforma
psiquiátrica brasileira.
Tomando como tema o processo de desconstrução desse hospital psiquiátrico,
preparei um texto para apresentar à banca de qualificação, composto por um “diário de
bordo” e vários outros capítulos mais teóricos. Era uma boa quantidade de material que
ainda necessitava de uma organização mais sistemática.
Ao apresentar esse texto à banca, recebi várias sugestões de modificação e
coloquei em prática as seguintes:
• Transformei o diário em eixo central, intercalando em forma de notas as
principais questões teóricas, de modo a destacar a experiência vivenciada
e a evitar a separação entre a prática e a teoria;
• Inseri fotografias, para trabalhar com os recursos da imagem;
• Introduzi o relato de momentos da experiência em Santos, de forma que
se pudesse identificar sua influência sobre a forma como se direcionou a
intervenção;
• Dei maior destaque às contribuições de Franco Basaglia, já que os
pressupostos da desinstitucionalização foram também fortes balizadores
da experiência desenvolvida tanto em Santos como no caso aqui
apresentado.
Embora a perspectiva teórica e prática da desinstitucionalização esteja sujeita a
críticas e resistências, optei por tê-la como eixo central por entender que ela traz uma
importante contribuição no questionamento e no enfrentamento prático da existência do
128
hospital psiquiátrico. Sem desconsiderar as dificuldades e os desafios que essa
perspectiva tem enfrentado mesmo no âmbito italiano, ela é sem dúvida a mais próxima
da perspectiva do trabalho desenvolvido durante a intervenção, permitindo assim
estabelecer um interessante diálogo. Por ser uma experiência que de fato pôs em questão
o hospital psiquiátrico, produzindo toda sorte de novos desafios, ela teria muito a dizer à
experiência de desconstrução ocorrida no hospital sob intervenção.
Outro eixo teórico destacado foi o pensamento de Michel Foucault, que
representou uma ruptura sem precedentes no campo da discussão sobre a loucura. Sua
inserção como um teórico nesse campo diferencia-se de todas as outras perspectivas dos
autores que ocupavam um lugar de técnicos da área de saúde mental, tanto dos ingleses
da antipsiquiatria, como dos próprios italianos da psiquiatria democrática, abrindo
questões que ainda estão por ser trabalhadas.
E, por fim, preocupado em não simplificar o objeto deste estudo, fiz algumas
referências à contribuição de Edgar Morin acerca da questão da complexidade, como
um tema que percorre indiretamente o corpo deste trabalho. Além de atender tal
preocupação, a noção de complexidade ajuda aqui a enfatizar que não é possível lidar
com o fenômeno da loucura de uma forma reducionista e fragmentada. Lidar com um
fenômeno complexo como esse exige respostas complexas, que abram novas
possibilidades de entendimento e de interação entre diversas disciplinas, constituindo
assim novos diálogos com a própria experiência do sofrimento psíquico.
Trabalhei com a hipótese de que o hospital psiquiátrico segue hoje uma nova
lógica do abandono, que substituiu a lógica disciplinar presente na origem do hospital
psiquiátrico e da psiquiatria. Essa lógica do abandono constituiu-se pouco a pouco, em
conexão com os novos parâmetros de desregulamentação (Bauman, 2003) que vêm
modificando as referências existenciais na sociedade contemporânea. Os obstáculos
para se estabelecer compromissos e contratos de longo prazo são uma das marcas
fundamentais de nossa época. A desregulamentação traz implicações também no papel e
na função das instituições, no funcionamento das empresas, nos aparatos forjados
historicamente para dar sustentação aos padrões existenciais da modernidade, pautados
na centralidade do trabalho assalariado e do consumo de mercadorias (Kurz, 1999b).
Por outro lado, a partir da discussão trazida por Gilles Deleuze (Deleuze, 1992)
sobre a sociedade de controle e sobre as novas formas de controlar os comportamentos
baseadas não mais no confinamento e na segregação, mas em certa capilaridade da
129
vigilância e do controle, pude defender a idéia de que, embora se dêem através de uma
forma inerte de abandono, as formas duras de combate aos desvios pela segregação,
representadas também pelo manicômio, são complementares e fundamentais para o
funcionamento das formas flexíveis de controle.
Embora não tivesse condições de produzir um aprofundamento teórico sobre a
questão do que chamei de lógica do abandono, acredito que, indiretamente, o próprio
transcorrer do relato pôde trazer à luz muitas das características pertencentes a essa
lógica. Assim, no decurso do relato é possível identificar as características dessa lógica
do abandono. Essa é, a meu ver, uma das formas de explicar um conceito: através da
descrição de algumas de suas características e de seus processos.
Enfrentei algumas dificuldades no transcorrer deste trabalho. A primeira delas
foi o fato de eu estar totalmente imerso na experiência. O relato foi composto por
impressões pessoais, advindas de um dos participantes diretamente envolvidos no
processo, uma vez que vivi a história relatada no papel de interventor federal na
instituição. Trata-se, portanto, de um viés possível entre muitos, fruto da imersão do
observador em seu objeto de pesquisa. Se, contudo, esse fato traz dificuldades
adicionais, porque não é simples considerar e avaliar nossas próprias condutas e nossos
pensamentos, pode tornar-se também uma boa condição para abordar o fenômeno
estudado de uma forma complexa, evitando a assepsia que corre o risco de fragmentar e
simplificar o objeto de estudo. Afinal, a própria presença do observador em determinado
campo de relações parece já produzir novas configurações. E, para mim, esse fato
importante deve ser levado em conta, e não negado.
Outra dificuldade encontrada foi a de conseguir generalizar uma reflexão em
torno do hospital psiquiátrico, partindo de uma realidade particular. Para superá-la,
procurei centrar minha análise nessa experiência particular, tomando os devidos
cuidados antes de generalizá-la. As referências teóricas utilizadas ajudaram-me a
entender os processos internos ao hospital, seu sentido, suas funções, seus dispositivos
de funcionamento, permitindo obter também algum nível de generalização. Se foi
possível chegar a algo de geral, isso se deveu ao fato de o hospital psiquiátrico estar
imerso num campo de saber em que se inscreve o paradigma psiquiátrico. O fenômeno
expresso – o modo de funcionamento do hospital que sofreu a intervenção – apresenta-
se, portanto, como uma das possibilidades do próprio discurso da psiquiatria.
130
Por fim, faltou uma reflexão mais aprofundada sobre o vínculo entre a questão
da desregulamentação e a questão psiquiátrica. Faltou aprofundar os novos caminhos
que o discurso e a prática psiquiátrica vêm tomando como alternativa para seguir seu
caminho em busca de legitimidade social e científica. Aqui poderiam entrar as novas
tecnologias e investigações científicas expressas pela neurociência e pela
psicofarmacologia. Não houve espaço neste trabalho para aprofundar essa discussão
(pois o foco era analisar o hospital psiquiátrico enquanto dispositivo da psiquiatria) e eu
tampouco teria condições teóricas para fazer dele um eixo de discussão. Acredito que
outras pessoas estejam mais habilitadas a empreender tal investigação.
Algumas das questões levantadas, entre as quais a que aponta para os efeitos da
presença de uma sociabilidade construída em torno do trabalho e da mercadoria e sobre
a própria noção do cuidado no âmbito da reforma psiquiátrica, poderão ser
aprofundadas em novos trabalhos, estes sim a serem empreendidos por mim.
A intenção deste trabalho era de que ele pudesse servir como contribuição
prática e teórica aos projetos de desinstitucionalização em andamento no processo de
reforma psiquiátrica brasileira.
Espero que os problemas e os desafios apontados possam ter demonstrado a
importância que a questão hospitalar, como tema de discussão, mantém ainda hoje no
campo da saúde mental. Essa é uma questão que ainda precisa ser enfrentada com
seriedade hoje, considerando todas as implicações, contradições e desafios que traz à
tona.
131
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NOTAS_______________________________________________________________
1 O Ministério da Saúde tem criado, no decorrer das duas últimas décadas, as normas para a criação de
serviços e ações de saúde mental em direção à reversão do modelo centrado nos hospitais psiquiátricos.
Um dos procedimentos adotados refere-se ao controle da situação nesses hospitais. Através do PNASH
(Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria), são realizadas avaliações que
servem para incluir os hospitais em determinadas categorias, definindo até a viabilidade de eles manterem
convênios com o SUS (Brasil, 2004a). É a essa avaliação do PNASH que me refiro. Mas outros
elementos caracterizam a reforma psiquiátrica em andamento no Brasil. A lei federal de reforma
psiquiátrica (Brasil, 2004b; Delgado, 2001), que determina a desativação progressiva dos hospitais
psiquiátricos e sua substituição por recursos extra-hospitalares, foi aprovada em 2001 depois de quase 12
anos tramitando sob pressões e discussões, tanto por parte dos movimentos sociais, sindicatos e conselhos
profissionais, que criticavam a situação dos manicômios e propunham investimentos na rede extra-
hospitalar, quanto por parte dos donos de hospitais e de suas organizações representativas. Como fruto de
todo esse processo, também foi sendo implantada no âmbito do Sistema Único de Saúde uma política de
desinstitucionalização e de criação de redes de atendimento extra-hospitalares. Atualmente nos novos
esquemas de financiamento de serviços extra-hospitalares do Ministério da Saúde predominam os Centros
de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os leitos de observação
para dependentes químicos em hospitais gerais, e começam a ser criadas formas de incentivo a propostas
de geração de trabalho e renda junto aos usuários dos serviços de saúde mental (Brasil, 2005), bem como
incentivos para projetos de redução de danos na área da dependência química (Brasil, 2004c), além de se
incentivar a formação de centros de convivência e de equipes matriciais de saúde mental para dar apoio às
equipes dos programas de saúde da família. Também foi implantado, desde 2003, a partir da lei 10.708
(Brasil, 2004d), o programa “De volta para casa”, que institui o auxílio reabilitação psicossocial para
pacientes que deixam o hospital após períodos longos de internação (mais de 2 anos). A política nacional
de saúde mental, que viabiliza os recursos e normatiza as ações da reforma psiquiátrica no Brasil, enfrenta
muitos desafios quanto à qualidade e resolutividade dos serviços implantados, no que concerne a sua
capacidade de substituir os hospitais psiquiátricos, ou de evitar a necessidade da segregação como
resposta a situações de crise. Não obstante, no que tange ao número de serviços e aos recursos utilizados
na reforma psiquiátrica, é nítida a tendência de reversão do modelo assistencial, muito embora os
hospitais ainda recebam uma grande fatia dos recursos e tenham uma presença quase preponderante. Um
relatório da área técnica de saúde mental do Ministério da Saúde divulgado em agosto de 2006 apontou
dados muito significativos (Brasil, 2006):
• Se, em 1997, 92,07% dos recursos destinados para o atendimento em saúde mental eram
direcionados ao pagamento dos hospitais, em 2005 esse número diminuiu para 55,47%, sendo os 44,53%
restantes destinados aos serviços extra-hospitalares (o que inclui tanto os CAPS, como atendimentos em
ambulatórios, gastos com medicamentos, incentivos para a implantação de serviços, incentivos para
139
projetos de geração de trabalho e renda, convênios com municípios, recursos para capacitação de pessoal,
etc.). Em 31 de dezembro de 2006, diz um novo relatório, essa divisão já se encontrava assim: gastos
hospitalares – 48,67%; gastos extra-hospitalares – 51,33% (Brasil, 2006a).
• O número de CAPS, que em 1999 era de 179, passou para 882 em julho de 2006.
(Brasil, 2006). Em 31 de dezembro de 2006, o número de CAPS passou a ser 1.000 (Brasil, 2006a).
• O número de pacientes residindo em SRTs é ainda pequeno, chegando a 2.100 pessoas
distribuídas em 426 residências em julho de 2006. Em 31 de dezembro do mesmo ano o número de SRTs
era de 475 (Brasil, 2006a). Entre 2003 e 2005 foram reduzidos 6.227 leitos psiquiátricos, devido ao
Programa de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica Hospitalar, que modificou a forma de
financiamento, aumentando o valor das diárias de hospitais de pequeno porte em relação aos hospitais que
possuem muitos leitos, como forma de incentivar a diminuição do porte das instituições e assim melhorar
o acompanhamento oferecido. Ainda assim, em 2005 existiam no Brasil 42.076 leitos em hospitais
psiquiátricos (Brasil, 2006). Em dezembro de 2006, contudo, o número de leitos em hospitais
psiquiátricos era de 39.567, sem contar os leitos psiquiátricos em hospitais gerais, que eram cerca de
2.300 (Brasil, 2006a).
2 Complementando os 3 elementos que compõem a tópica formulada em 1953 por Lacan, o Imaginário
(termo utilizado a partir de 1936) não seria um simples fato psíquico, mas uma imago, ou seja, um
conjunto de representações inconscientes que aparecem sob a forma mental de um processo mais geral; o
lugar das ilusões do eu, onde se situam todos os fenômenos ligados à construção do eu (Roudinesco e
Plon 1998: 371; 645). O Simbólico (termo igualmente utilizado a partir de 1936), também inseparável dos
conceitos de Imaginário e de Real, é um sistema de representação baseado na linguagem, isto é, em
signos e significações que determinam o sujeito à sua revelia; designa a ordem (ou função simbólica) a
que o sujeito está ligado (ibid.: 714). A preponderância de um dos termos sobre os outros variará no
decorrer da trajetória teórica de Lacan.
3 Pan opticum é um sistema de vigilância, ou um mecanismo disciplinar, inventado por Jeremy Bentham
em 1787 (Foucault, 2006: 92), muito utilizado em projetos arquitetônicos de cadeias e prisões no século
XVIII, que garantia um lugar privilegiado de observação ao vigilante. A forma circular da distribuição
das celas, e o ponto alto e central da cabine de observação, que não permitia ao preso saber se estava ou
não sendo vigiado, produziam um efeito muito potente gerador de disciplina. Michel Foucault apontou a
importância dessa concepção de vigilância, muito utilizada no que ele chamou de sociedade disciplinar.
“Sociedade disciplinar” é um termo cunhado por Foucault para caracterizar os processos desencadeados
nas sociedades ocidentais nos interstícios dos séculos XVII e XVIII (Foucault, 2000). Para Foucault, a
disciplina veio a se estabelecer como uma tecnologia de poder, utilizando-se de instrumentos que, mais
que operadores negativos de repressão e sujeição, produziam positivamente corpos dóceis e úteis (Ewald,
140
1993). Em Vigiar e punir, Foucault (2000) constrói a genealogia da disciplina, e da sociedade disciplinar,
iniciando sua trajetória a partir da sociedade de soberania, descrevendo as cenas de suplício que
garantiam a vingança do soberano e a manutenção da ordem pelo medo provocado nas pessoas a partir do
excesso da vingança. Lentamente, mas por artérias comunicantes que vão e vem, o que é uma
característica da genealogia de Foucault, as formas de punição se transformam e procuram alcançar
melhores resultados, já que os suplícios, em seu excesso, tornam-se demasiado caros e pouco rentáveis,
pois as pessoas passam a manifestar um sentimento ambíguo em relação à soberania, sentimentos de
medo e de ódio. Começa-se então a substituir a idéia de vingança pela de recuperação do infrator, como
uma estratégia mais forte para estabelecer a ordem. A disciplina passa então a se desenvolver como
tecnologia, no interior das prisões, mas também nas escolas, nas fábricas, nas famílias. O modelo
panóptico pode se enraizar e disseminar para várias outras organizações. O modelo do combate à lepra,
baseado na pura exclusão e no confinamento, pode ceder lugar ao modelo do combate à peste, com a
segregação acompanhada, trabalhada, esquadrinhada no tempo e no espaço, controlada e consumida. Um
consumo que produz corpos, dóceis e úteis. Os corpos, muito embora possam oferecer resistência, depois
de certo tempo sujeitados ao poder disciplinar, também incorporam o poder e se autodominam, se auto-
submetem, uma submissão voluntária, associada aos processos de normalização. É no âmbito da
sociedade disciplinar em formação que o asilo de alienados, como uma configuração primitiva do hospital
psiquiátrico que hoje conhecemos, vai se estabelecer, tendo como personagens centrais os alienistas, a
quem dedicarei uma nota mais adiante.
4 Pode-se chamar esta forma massificada de lidar com a experiência da loucura de “simplificação”. A
psiquiatria, com suas grades nosográficas (fortemente influenciadas atualmente pela neurociência e pela
indústria farmacêutica), objetiva uma exatidão muito difícil de ser obtida em situações subjetivas que
envolvem sobretudo padrões de existência e uma multiplicidade de fatores. Diante de um fenômeno
complexo como o da loucura, é preciso agir também de forma complexa, de modo a não mascarar
elementos existentes e essenciais dessa realidade. Edgar Morin é um autor que traz o discurso da
complexidade em contraposição à simplificação da ciência cartesiana. Defende a constituição de um
paradigma da complexidade, que parta da própria incompletude e insuficiência da lógica dedutivo-
identitária, atingindo seu limite para chegar a outras facetas da realidade. Para tanto, diz ele, é necessário
usar as contradições ao invés de negá-las. Deve-se incorporar a lógica, através de uma translógica, mas
operando também de uma forma alógica, supralógica, infralógica. E viabilizar também metapontos de
vista que possam vislumbrar novos movimentos do real, dialogando portanto com outros âmbitos do
pensamento e do discurso, como o mito, a poesia, a arte, e integrando os vários âmbitos e disciplinas
científicas.Nas palavras de Morin, “o metaponto de vista complexo objetiva o conhecimento (neste caso a
teoria), isto é, torna-o sistema objeto, linguagem objeto. Ponto de vista crítico, burila, limpa, purifica a
teoria, devolve-a aos seus componentes fundamentais, evidencia a sua organização interna. Ponto de vista
englobante e construtivo, integra e ultrapassa a teoria pela reflexividade que elabora conceitos de segunda
141
ordem (aplicáveis a conceitos) e conhecimentos de segunda ordem (que se aplicam ao conhecimento). A
reflexividade é, portanto, um circuito de objetivação/subjetivação que, ao mesmo tempo, excentra e
recentra, necessitando de um duro caminho para elaborar o circuito de segunda ordem, onde se
constituem os metapontos de vista” (Morin, 2002: 249). Esta seria a forma de se considerar os fenômenos
em sua complexidade, tornando-os cada vez mais complexos, mas sabendo que o real não pode ser
totalmente apreendido pela idéia. Essa intenção de tornar complexo e de evitar a simplificação é o que
persegue também este trabalho, quando incluo a relação do observador em suas implicações com o objeto
de sua investigação como uma importante forma de evitar a fragmentação e a mutilação do real.
5 Franco Basaglia liderou um processo de transformação institucional do hospital psiquiátrico da cidade
de Gorizia, na década de 1960, e posteriormente pôde concluir em Trieste um processo de total
desconstrução de um asilo, o que levou à criação de um novo sistema de saúde mental composto por
serviços territoriais e outros dispositivos de apoio pautados na idéia de mediação da relação dos pacientes
com o espaço social, prescindindo da existência do hospital psiquiátrico. O processo lento de
desconstrução do hospital serviu para desconstruir saberes e práticas, ao mesmo tempo em que se teciam
outras tecnologias, embasadas numa forte crítica da psiquiatria como um instrumento de controle dos
desvios que nega as contradições sociais absolutizando e naturalizando a doença e o desvio. Em outros
termos, o comportamento anormal é isolado de maneira que o indivíduo que o expressa “se converte
somente neste fenômeno, como se não se tratasse de um momento de um processo no qual estão
implicados a história, o ambiente, os valores, as relações e os processos sociais nos quais cada vida
individual está sempre implicada” (Basaglia, F.; Basaglia, F. O., 1977: 91, tradução nossa). Assim, a
psiquiatria simplifica a existência-sofrimento do doente, colocando-o entre parênteses (“Isso significa,
porém, que o doente foi isolado e colocado entre parênteses pela psiquiatria para que fosse possível nos
dedicarmos à definição abstrata de uma doença, da codificação das formas, da classificação dos sintomas,
sem precisar temer eventuais possibilidades de sermos desmentidos por uma realidade que já havíamos
negado...”, Basaglia,1985: 125). Ela só se relaciona com a doença e não com o sujeito, e para isso tem
respostas prontas, construídas sobre a nosografia das doenças, sem dar espaço para que as perguntas, as
necessidades reais e a experiência existencial do doente apareçam (“Liberar as necessidades reais do
usuário de um serviço, das necessidades artificiais, produzidas de tal maneira que a resposta à necessidade
se traduza no controle da classe subordinada, significa romper este mecanismo e fazer explícita, na
prática, a função da ideologia científica como suporte falsamente neutro da ideologia dominante”,
Basaglia, F. ; Basaglia, F. O., 1977: 17, tradução nossa). Nesse contexto, para a experiência italiana, a
desinstitucionalização não significa apenas a desospitalização, pois as instituições não são apenas
organizações, mas são também práticas e saberes que produzem determinadas formas de perceber e de
entender os fenômenos sociais e históricos e de com eles se relacionar. Isso implica um constante
movimento de ruptura e de construção (Nicácio, 1990; 2003).
142
6 O tratamento moral, para Foucault (2000, 2005), foi a tecnologia desenvolvida pelos primeiros
alienistas, representados por Pinel, na França, e Tuke, na Inglaterra, e aperfeiçoada posteriormente por
vários de seus seguidores. Para chegar a entender como o asilo de alienados foi implantado, o autor
seguiu um longo percurso. No caminho seguido por Foucault em História da loucura (Foucault, 2005),
alguns momentos são marcantes: a existência trágica e cosmológica da loucura na arte e no imaginário
nos anos anteriores ao Renascimento e seu complementar ingrediente de interiorização (a loucura como
parte de uma mesma vivência subjetiva comum a todas as pessoas); a “nau dos loucos” e a
semipericulosidade social da loucura no imaginário das pessoas no período próximo ao Renascimento; a
substituição, na era clássica (séculos XVII e XVIII) da velha noção da caridade e da “santidade”
associada à miséria e por extensão à loucura, por modalidades de internamento e de moralização da
miséria (assistência mais castigo); a entrada da medicina mental enquanto especialização no trato com a
loucura, principalmente a partir do século XIX, buscando associar o castigo e a gratificação à recuperação
dos alienados, considerando sua peculiaridade de loucos a diferenciá-los dos apenas miseráveis e dos
desatinados em geral, libertinos, hereges; o papel dos primeiros alienistas. É claro que o movimento não
foi tão automático assim. Ocorre que, na era clássica, a partir do século XVII e no século XVIII, a prática
do internamento do desatino em geral (os miseráveis, desocupados, libertinos, hereges e os loucos) vai
produzir uma imagem do louco moralmente vinculada a essas experiências. Só no final do século XVIII,
a partir da produção imaginária fantástica do “grande medo” das contaminações morais e físicas que
foram dirigidas aos espaços de internamento pelas populações dos arredores (a idéia de que o ar podre
dessas casas poderia contaminar a cidade), a medicina será chamada a intervir, para proteger as cidades
do mal, da podridão que as casas de internamento poderiam propagar. Mas ainda não se tratava de uma
ação médica destinada ao tratamento mental dos alienados, mas especificamente destinada a debelar os
supostos riscos de contaminação que as insalubres instituições poderiam trazer às cidades. Pelo contrário,
a entrada da medicina no tratamento específico dos loucos se dará após uma série de modificações na
concepção do internamento, na forma de conceber a assistência aos pobres válidos e inválidos. As novas
noções da assistência familiar e domiciliar aos pobres inválidos, mais barata e útil, a necessidade de
transformar o pobre válido naquilo que sempre foi, ou seja, uma riqueza virtual computada em mão-de-
obra abundante e barata, as novas regras da lei que regulamentava as punições e as tiravam da total
arbitrariedade, tudo isso trará mudanças importantes no âmbito do internamento. Como a loucura, embora
assemelhada às situações de fragilidade social, também provoca medo e horror, haveria que se equilibrar,
pela primeira vez, ações de controle do perigo com ações de cuidado, uma contradição anterior à entrada
da medicina no circuito da loucura, mas que acompanhará a psiquiatria até nossos dias. Durante esse
percurso, toda uma série de instituições baseadas na segregação e na disciplina foi posta em ação para
garantir a ordem, seja para garantir as novas formas de existência pautadas no trabalho, seja a disciplina
como um fim em si mesma, associada à moral. É no bojo dessa mutação constante das instituições, e de
um novo olhar sobre a loucura e o internamento, que os primeiros asilos de alienados vão surgir,
substituindo assim, aos poucos, aquela imagem freqüente dos asilos descritos por Esquirol.
143
7 Era uma nova tecnologia e uma nova relação com a loucura que o tratamento moral, no âmbito da
sociedade disciplinar em formação, iria propor. A partir da entrada dos alienistas, a loucura deveria ser
abordada bem de perto, e não mais por entre as frestas do muro em que era confinada, como ocorria na
era clássica. Novas táticas e um novo olhar deveriam ser desenvolvidos com o intuito de imprimir no
alienado o medo, a culpa, a autocorreção. Para exercer esse poder moral, que deveria vigiar e controlar,
delineando cada comportamento esperado, toda uma série de castigos e recompensas faziam-se
necessários. Dever-se-ia recorrer a castigos e mesmo a procedimentos como a aplicação de duchas
geladas e toda uma série de outros artifícios que, se antes, na era clássica, supostamente tinham poderes
de cura nos nervos mais ou menos ressecados ou úmidos, retraídos ou esticados, agora deveriam
funcionar como meio de subjugar moralmente. Muitas dessas práticas também foram defendidas e
utilizadas por Pinel, embora o que tenha ficado para a história seja a crença de que os reformadores
operaram apenas uma grande libertação humanitária dos loucos acorrentados. Como ressalta Foucault, no
cotidiano do asilo, um tribunal, com todos os seus momentos – a investigação, o julgamento, a pena –,
deveria permanecer perpetuamente no interior de cada um dos internos, para que a tarefa do poder moral
pudesse dar frutos (Foucault, 2000). Ou, como cita Robert Castel em sua obra sobre o alienismo (Castel,
1978): “A ordem e a regularidade em todos os atos da vida comum e privada, a repressão imediata e
incessante das faltas de qualquer espécie, e da desordem sob todas as suas formas, a sujeição ao silêncio e
ao repouso durante certo tempo determinado, a imposição do trabalho a todos os indivíduos capazes, a
comunidade da refeição, as recreações com hora fixa e duração determinada, a interdição aos jogos que
excitam as paixões e que entretêm a preguiça e, acima de tudo, a ação do médico, impondo a submissão, a
afeição e o respeito por sua intervenção incessante em tudo o que diz respeito à vida moral dos alienados:
tais são os meios de tratamento da loucura que fornecem, ao tratamento aplicado nestas casas, uma
incontestável superioridade em comparação com o tratamento aplicado em domicílio” (Parchappe, M.
Rapport sur le service médical de l’asile des aliénés de Saint-Yon, Rouen, 1841, p. 11, apud Castel, 1978:
115-6). Castel também cita outros autores dessa época, relatando a importância de um asilo
convenientemente organizado para produzir uma atmosfera médica que impregnasse os alienados a ponto
de o processo passar despercebido. Afinal, num asilo bem organizado, com lugares, horários e
regulamentos bem definidos, tudo serviria para imprimir esse espírito de ordem e submissão (Castel,
1978: 116). Como Foucault menciona, os efeitos provocados por essa ligação médico-paciente, que
tentava apreender toda a experiência da loucura como uma propriedade única da psiquiatria, não
deixavam escapar seu caráter mítico produzido pelo poder moral atribuído ao médico. Mais que portador
de técnicas especializadas e saberes sofisticados, o médico passava a funcionar como o taumaturgo das
curas, aquele que misteriosamente produzia transformações; e havia aqueles pacientes que chegavam
mesmo a produzir delírios referentes ao poder de cura de seus médicos, delírios estes que efetuavam
modificações, mas que eram pautados no exercício de um poder e de uma coação moral historicamente
estabelecidos. Este era, enfim, o alicerce dos alienistas no desenvolvimento do tratamento moral.
144
8 A família enquanto instituição e ator social esteve presente de formas diferentes no percurso da prática
psiquiátrica. Em O poder psiquiátrico (Foucault, 2006), Michel Foucault apontou os primórdios dessa
relação. A princípio, nas primeiras décadas de implantação do asilo de alienados, os primeiros
reformadores (Pinel e seus seguidores) defendiam que, como parte do isolamento do louco, haveria que se
manter total distância das famílias, uma vez que o contato poderia provocar recaídas. Como o que se
buscava era criar novos hábitos e debelar o erro da loucura, algo que se dava num permanente embate
entre a vontade do médico e a insistência teimosa do delírio, do querer permanecer doente, o contato com
os antigos laços deveria ser proibido até que a cura se estabelecesse. Enquanto o poder no asilo era
totalmente disciplinar, a família ainda era a única instituição que mantinha uma prática soberana, centrada
no papel do pai (era uma soberania que apoiava toda a produção disciplinar realizada nas outras
instituições). Posteriormente, até porque as famílias se interessarão em pagar para ter seus parentes
normalizados e adaptados disciplinarmente às normas vigentes, o modelo familiar passará a ser
reproduzido no interior do asilo. Em contrapartida, a família passará também a reproduzir aspectos
disciplinares em seu funcionamento cotidiano.
9 Aqui quero me referir aos novos dispositivos e às novas ações produzidas a partir e sob a influência das
experiências de reforma psiquiátrica ocorridas no século XX, em especial as desenvolvidas na Itália por
Franco Basaglia e seus colaboradores. Dentre os atores que protagonizaram experiências de reforma
psiquiátrica posteriores à Segunda Guerra Mundial (as Comunidades Terapêuticas na Inglaterra e nos
EUA, a Psicoterapia Institucional e a Psiquiatria de Setor na França, a Psiquiatria Preventiva nos EUA, a
Psiquiatria Democrática na Itália [Amarante, 1995]), os agentes italianos são os que mais se aproximam
da referência que aqui faço à concepção de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico. Basaglia e seus
colaboradores, considerando a contradição da psiquiatria no que se refere ao dilema entre o cuidar e o
controlar (Basaglia, F.; Basaglia, F. O., 1977: 15), com o decorrer do tempo, irão construir tecnologias
pautadas na mediação da relação do louco com os espaços sociais e na busca de formas que possibilitarão
o convívio social com o fenômeno da loucura e com o sofrimento psíquico, sem a necessidade da
segregação no manicômio. A vivência dos conflitos e das contradições sociais, onde se insere a
existência-sofrimento da pessoa doente, seria uma forma de se recolocar a doença em seu contexto
complexo, possibilitando novas respostas práticas para o doente mental, que deixa de ser anulado e
absolutizado enquanto doença. A segregação como resposta à existência-sofrimento torna essa
experiência a-dialética e deixa de tocar nas contradições da realidade. Os limites sempre instáveis entre
saúde e doença deixam de ser considerados partes da condição humana, pertencentes a todos. Colocam-se
em primeiro plano de valor os processos econômicos em detrimento do homem (não o homem abstrato,
mas todos os homens em sua individualidade) (Ibid.: 30). Ocorre, então, que o doente assim objetivado e
a doença enquanto esfera abstrata separada da existência concreta serão alvos da criação de necessidades
artificiais, através de respostas prévias que as desenham (Ibid.: 20). O hospital e as demais instituições
criadas sob a lógica dessa objetivação afastada das necessidades reais e das contradições sociais serão
145
feitos não tanto para os internos, mas para seus organizadores (médicos, profissionais, cientistas), que são
os representantes da classe que exerce o domínio, utilizando uma aparente neutralidade científica (Ibid.:
26). Haveria então que se dar história e subjetivação ao objeto da psiquiatria, através de um espaço
recíproco de subjetivação (para que o profissional também saia de sua condição de alienação). Nesse
âmbito, as trocas sociais, a possibilidade de viver dialeticamente as contradições do real seriam o húmus
do processo terapêutico (Basaglia,1985: 118), e é com essa visão que os atores de Trieste criarão serviços
comunitários freqüentados pela população em geral e pelos antigos internos do hospital desconstruído,
além de dispositivos como as cooperativas sociais de trabalho, e os grupo-apartamentos onde moram os
pacientes egressos do hospital que não possuem famílias, acompanhados, conforme o caso, pelas equipes
de saúde mental (Barros, 1994). Essa concepção do território como o lugar do terapêutico será
aprofundada na década de 1990 por Franco Rotelli e por Benedetto Saraceno (Saraceno, 1999), cujas
propostas penetrarão consistentemente no Brasil.
10 Vale lembrar que, na história do asilo, os vigilantes e os serventes sempre tiveram um importante
papel. Como sugere Foucault (2006), durante todo o século XIX e, de forma especial, na dinâmica do
tratamento moral, todos os atores representavam como que um prolongamento do corpo do médico. Este
último era o grande pilar moral, que deveria ter uma compostura adequada, um corpo cheio de vitalidade
e impecável, para submeter e subjugar o corpo do alienado, sede de seus devaneios. Tudo, no asilo,
deveria ser o prolongamento do corpo forte e portador de verdade do médico, inclusive os vigilantes e os
serventes.
11 Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são serviços comunitários e territoriais formados por
equipes multidisciplinares (médicos, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, enfermeiros,
educadores físicos, pedagogos, artistas e oficineiros, auxiliares ou técnicos de enfermagem, combinados
conforme a opção dos governos locais), e que devem responder a uma determinada área de abrangência.
Esses centros devem fornecer atendimento prioritário a pacientes com transtornos mentais severos e
persistentes, mas também a casos moderados e leves. Dessa forma, desenvolvem acompanhamentos mais
ou menos intensivos, dependendo da necessidade do paciente. Os pacientes mais graves, muitas vezes,
podem freqüentá-lo diariamente, onde participarão de situações grupais, individuais, projetos
comunitários, recebendo medicação e refeição, a partir de um projeto terapêutico individual que é
artesanalmente tecido. A função dos CAPS foi definida melhor pela portaria ministerial que os
regulamentou em 2002 (Brasil, 2004e). É claro que as concepções e as formas de trabalho variam muito
dependendo do contexto. Na perspectiva desenvolvida em Santos, que foi um dos primeiros locais a
implantar unidades desse tipo, já a partir de 1989 (todas funcionando 24 horas por dia, sete dias na
semana), o CAPS deve ser um espaço capaz de favorecer o acesso dos pacientes graves aos espaços
sociais, promovendo mediações e agenciamentos que modifiquem o imaginário social sobre a loucura, e
146
que estimulem a produção de autonomia e a participação social. Assim sendo, nessa concepção, o CAPS
não deve ser um lugar de entretenimento e de ocupação do paciente (Saraceno, 1999), mas deve saber
adentrar com este o espaço social. Deve conhecer o território e seus recursos, deve poder ser
principalmente uma referência local que favoreça a convivência dos pacientes nos seus territórios de
existência, zelando pela melhoria da qualidade de vida e das relações sociais, construindo com cada um o
seu projeto de vida. Nesse sentido, eles também devem ser o lugar de atendimento nas situações de crise,
promovendo estratégias que permitam ao paciente viver a crise sem rupturas no processo de vida e sem
internações em hospitais psiquiátricos. Ainda no caso de Santos, o funcionamento noturno do CAPS não
deve ser como o de um pronto-socorro psiquiátrico. Os plantonistas são do campo da enfermagem e são
apoiados à distância pelos médicos da própria unidade ou das emergências psiquiátricas, o que é
resolutivo para qualquer situação de crise que não envolva componentes ou co-morbidades orgânicas. É
óbvio que esse papel do CAPS, em qualquer uma das concepções ou das perspectivas adotadas, não é
simples, e que um forte e permanente movimento de discussão e de formação dos profissionais é
necessário para que o serviço não seja apenas um encaminhador de casos para o hospital psiquiátrico.
Pela regulamentação existente, é possível haver CAPS com áreas de abrangência distintas, com
complexidades diferentes, e ainda CAPS específicos para pessoas com transtornos decorrentes do uso de
álcool e outras drogas e para crianças e adolescentes. Os tipos de CAPS possíveis de existir, segundo a
portaria ministerial são:
• CAPS I: para populações entre 20 mil e 70 mil habitantes: possui uma equipe composta
por pelo menos um médico com formação em saúde mental, um enfermeiro, três profissionais de nível
superior não-médicos, quatro profissionais de nível médio (incluindo técnicos de enfermagem) e deve
tentar trabalhar articulado com as equipes de atenção básica e dos programas de saúde da família (Brasil,
2004e).
• CAPS II: para populações entre 70 a 200 mil habitantes: uma equipe composta por pelo
menos um médico psiquiatra, um enfermeiro, quatro profissionais de nível superior não-médicos, seis
profissionais de nível médio, e com capacidade para atender a mais pacientes. Assim como o CAPS 1,
funciona durante o dia, muitas vezes das 8 às 18 h (dependendo da gestão local), podendo também
comportar um terceiro turno até as 21 h (Brasil, 2004e).
• CAPS III: para populações acima de 200 mil habitantes. É o CAPS mais completo e
aquele que consegue responder a um número maior de situações. O fato de funcionar 24 horas por dia, 7
dias na semana, possibilita que os pacientes acompanhados possam ser acolhidos em momentos de crise
(ou quando enfrentam alguma dificuldade que solicita um acolhimento e o afastamento temporário de
casa) e pernoitarem na unidade, caso seja conveniente. Deve ter uma equipe mínima formada por dois
médicos psiquiatras, um enfermeiro, cinco profissionais de nível superior não-médicos, oito profissionais
de nível médio (Brasil, 2004e).
• CAPS i: este é o CAPS voltado para o atendimento a crianças e adolescentes. A
prioridade é dada aos pacientes com transtornos mentais graves, e devem ser enfocadas ações
147
intersetoriais (integradas à justiça, à assistência social, à educação), além do apoio aos serviços de atenção
básica. A equipe mínima deve ser composta por um médico psiquiatra ou neurologista ou pediatra com
formação em saúde mental, um enfermeiro, quatro profissionais de nível superior não-médicos e cinco
profissionais de nível médio (Brasil, 2004e).
• CAPS ad: esta unidade está voltada ao atendimento de pessoas com transtornos
decorrentes do uso de álcool ou outras drogas. O funcionamento é similar ao do CAPS 2, mas voltado a
essa demanda específica. A equipe mínima deve ser composta por um médico psiquiatra, um enfermeiro,
um médico clínico, quatro profissionais de nível superior não-médicos e seis profissionais de nível médio
(Brasil, 2004e).
12 Há uma passagem célebre na história da psiquiatria, ou antes da antipsiquiatria, que remete às questões
relacionadas ao contato com as próprias fezes. Mary Barnes e Joseph Berke ([198-?]) descrevem no livro
Viagem através da loucura a trajetória de Mary Barnes no Kingsley Hall, uma comunidade criada pelo
grupo de Ronald Laing, onde residiam pessoas consideradas doentes mentais pela sociedade, médicos e
outros profissionais. Na trajetória de Mary, que o psiquiatra Berke descreve como “uma profundíssima
experiência emocional de morte-renascimento” (Barnes; Berke, [198-?]: 108), apoiada por ele e pela
equipe (que viam a esquizofrenia não como uma doença, mas como uma experiência de sofrimento
emocional derivada de situações relacionais patológicas na família ou no grupo social), incluem-se várias
cenas em que ela também manipulava fezes, ora para esculpi-las, ora para pintar as paredes (antes de virar
uma grande pintora e utilizar crayons e pincel). Numa dessas cenas, ela se lambuzou dos pés à cabeça
com suas próprias fezes (cabelos, axilas, por entre os dedos dos pés), e Berke teve de vencer o incômodo
e a náusea, cuidando dela e lavando-a por cerca de uma hora, porque, do contrário, demonstraria não estar
preparado para suportar seu sofrimento; além disso, ponderava Berke, uma vez que ele (Berke)
representava para Mary a própria bondade, que ela projetava nele, misturava com a bondade dele e
introjetava, um ato de repulsa seria o equivalente a demonstrar que nela só havia coisas ruins, e que ela
nunca poderia gostar de si própria (Mary também associava as fezes a bebês, repetindo o que sua mãe
sentia quando dera a luz a ela: uma sensação horrível e um castigo pelo pecado que cometera quando
sentiu prazer nas relações sexuais). Mas o contexto das cenas no Kingsley Hall e em nosso hospital
psiquiátrico, contudo, é absolutamente diferente, pois, no caso da paciente de Berke e Laing, o ato em si
possuía implicações “terapêuticas” e se dava num ambiente de diálogo e de acolhimento, de valorização
do ato e de construção de significados para a experiência da loucura. Na nossa situação, o ato se deu num
ambiente de absoluta violência e falta de diálogo, que foi denunciado pelo próprio conteúdo da frase
escrita (“Homem tem que ser homem”). O que poderia ser lido como um episódio de desorganização
(para a psiquiatria positivista), como uma passagem por um estágio regredido do desenvolvimento
afetivo, ou como uma passagem do trajeto singular da experiência da loucura (como parece ser o sentido
atribuído por Berke) marca aqui, principalmente, o contexto de violência do manicômio.
148
13 O Conselho Municipal de Saúde é uma das instâncias de decisão e de fiscalização, de “controle social”
previsto na lei n. 8.142 (Brasil, 1990a), criada na mesma época da lei n. 8.080 que instaurou o Sistema
Único de Saúde (SUS) (Brasil, 1990b). No SUS, essas instâncias deliberativas devem ser constantemente
consultadas pelos gestores da Saúde, que devem ter seus projetos aprovados, sob pena de haver
implicações nos repasses de recursos da esfera federal para a municipal. Além do Conselho Municipal de
Saúde, no que tange à questão do “controle social”, há os Conselhos Estaduais e o Conselho Nacional de
Saúde. Cada um desses Conselhos deve seguir as deliberações das Conferências de Saúde, que são
eventos deliberativos que definem as principais diretrizes e prioridades da Saúde Pública municipal,
estadual e nacional.
14 Uma das questões apontadas por Basaglia durante o processo de transformação do manicômio de
Gorizia foi a necessidade de superar, pela crítica e pela prática, a condição de segregação dos pacientes,
sem cair num reformismo que manteria intacta a necessidade da existência do manicômio. Ele apontava
que, além da institucionalização interna, seria preciso enfrentar a institucionalização externa, ou seja,
aquilo que produz a necessidade da segregação dos pacientes (o que poderia ser feito envolvendo a
comunidade nos projetos de mudança e na problemática dos pacientes, modificando valores sociais)
(Nicácio, 2003: 115). Sem essas preocupações, haveria o risco de criar, no ambiente modificado e
acolhedor de um manicômio modificado, uma ilha (uma ilusória vida social coletiva) que reproduziria
todas as contradições que se tentara superar no início das transformações. Foi o que ocorreu com as
comunidades terapêuticas inglesas. Como lembrou Nicácio (2003: 141), pautada nas referências a
Basaglia, trocar-se-iam as “instituições de violência” por “instituições da tolerância”, que manteriam
inalteradas a segregação e a falta de valor da pessoa internada.
15 O atualmente chamado Movimento da Luta Antimanicomial nasceu entre o final dos anos 1970 e
início dos 1980 (então como Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental), durante o período de
redemocratização do país. As condições dos hospitais psiquiátricos, em grande parte privados, que
proliferaram durante o período da ditadura militar, foram matéria de mobilizações dos trabalhadores de
saúde mental. Estes se organizaram em grupos e fóruns de discussão, dando origem ao chamado
Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM), que iniciou um processo de crítica e de
denúncia que mais tarde mobilizaria e envolveria os próprios familiares e pacientes dos hospitais e dos
serviços extra-hospitalares. Como um dos vários momentos importantes desse percurso, vale ressaltar a
realização do II Congresso Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental, ocorrido em Bauru-SP, em 1987,
que foi fundamental por envolver os familiares e os pacientes, criando o slogan “Por uma sociedade sem
manicômios”. O movimento antimanicomial impulsionou a produção de práticas locais de atendimento
territorial e comunitário, em várias cidades e estados, chegando a influenciar a criação do projeto de lei
Paulo Delgado que, modificado após 12 anos de discussões, deu origem à lei de reforma psiquiátrica, lei
149
10.216 (Brasil, 2004b). No decorrer dos anos, o Movimento da Luta Antimanicomial organizou-se de
formas múltiplas e diversas, produzindo grandes encontros regionais e nacionais em que todos os atores
envolvidos debatiam sobre os rumos e a situação do atendimento à saúde mental no Brasil. Por si só, a
própria situação de diálogo e de participação ativa dos pacientes como agentes políticos já indica uma
outra forma de conceber o convívio com o sofrimento psíquico, em que as relações de poder passam a ser
o foco principal das reflexões e se podem produzir mudanças concretas na vida e nas relações sociais.
16 Os Serviços Residenciais Terapêuticos são casas onde podem morar até 8 pacientes egressos de
hospitais psiquiátricos (Brasil, 2004f). Esses pacientes devem ter ficado internados num período superior
a 2 anos para ter direito ao programa, já que se trata de uma estratégia de desinstitucionalização de
pacientes de longa permanência, hoje estimados em 12.492 pessoas no Brasil (Brasil, 2006). Convém
observar que atualmente essa regra está flexibilizada, podendo usufruir da casa pacientes que não estavam
internados, mas que, por diversos motivos – por estarem vivendo nas ruas, ou que por alguma questão do
projeto terapêutico –, precisem de um novo lar, mesmo que provisório. A idéia dos SRTs é que a casa não
seja uma instituição ou um serviço de saúde mental, mas que os pacientes possam se apropriar dela para
que seja de fato o seu próprio lar. Essa proposta criou uma nova figura profissional no campo da saúde
mental, que é o cuidador; alguém que não precisa ter nível universitário, mas deve ter o perfil que ajude
os pacientes a adquirirem mais autonomia para gerir a própria casa e para participar do convívio social.
Cada SRT precisa estar vinculado a um CAPS, que deverá acompanhar os pacientes no dia-a-dia,
responsabilizando-se pela casa, e respaldando e dando apoio aos cuidadores. O financiamento da SRT se
dá com o próprio recurso que os hospitais recebiam para manter esses pacientes. Na verdade, quando um
paciente sai de um hospital para um SRT, leva consigo os recursos que o hospital recebia, que serão
geridos pela Secretaria Municipal de Saúde para a manutenção da casa. Além disso, um programa
chamado “De volta para casa” (PVC) garante um benefício em dinheiro destinado ao próprio paciente
para garantir a sua manutenção e ampliar sua rede social, ou para incentivar as famílias a receber de volta
seus parentes abandonados há anos em hospitais psiquiátricos. Em dezembro de 2006, 2.519 pessoas
recebiam esse benefício (Brasil, 2006a). Mais informações sobre os SRTs podem ser obtidas na portaria
GM n. 106 do Ministério da Saúde (Brasil, 2004f) e sobre o PVC, na portaria GM n. 2.077, de 31 de
outubro de 2003 (Brasil, 2004g), que regulamentou a lei n. 10.708, de 31 de julho de 2003 (Brasil,
2004d), que instituiu o programa.
17 Emergência psiquiátrica é um dispositivo de atendimento em saúde mental que deve funcionar em
instalações de hospitais gerais. Com uma equipe de saúde mental, composta por plantonistas médicos,
enfermeiros e técnicos de enfermagem, além de poder contar com outros profissionais como assistentes
sociais, psicólogos, etc., ela dá suporte aos outros serviços de saúde mental, muitas vezes sendo o
primeiro serviço a ser procurado por pacientes e familiares em situações emergenciais (embora os CAPS
150
também possam atender a situações de emergência). Em boa parte das cidades, são as emergências que
fazem os encaminhamentos para os outros serviços, cumprindo um papel de regulação também das
internações psiquiátricas. Embora a emissão das Autorizações de Internação Hospitalar – AIH e os
encaminhamentos para internações em hospitais psiquiátricos devessem ser realizados por um sistema de
regulação, em alguns locais, como é o caso da cidade em que ocorreu a intervenção objeto deste trabalho
(a cidade não possuía nem um serviço de emergência nem um sistema de regulação), as internações são
operadas diretamente pelos hospitais psiquiátricos. Isso dificulta uma racionalização do sistema e o
controle sobre o fluxo das internações.
18 Com relação ao papel social dos profissionais da psiquiatria, volto a recorrer a Franco Basaglia, que há
décadas operou a crítica sobre a instituição psiquiátrica tomando emprestada a noção gramsciana de
“funcionários do consenso”. Basaglia citou: “Os intelectuais são os ‘empregados’ do grupo dominante
para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, ou seja: 1) do
consenso ‘espontâneo’ dado pelas grandes massas da população à direção impressa à vida social pelo
grupo fundamental dominante, consenso que nasce ‘historicamente’ do prestígio (e portanto da confiança)
de que goza o grupo dominante por sua posição e por sua função no mundo da produção; 2) do aparato de
coerção estatal que assegura ‘legalmente’ a disciplina daqueles grupos que não ‘consentem’ nem ativa
nem passivamente, mas que é constituído por toda a sociedade na previsão dos momentos de crise no
mando e na direção, nos quais o consenso espontâneo diminui. Gramsci, 1930”(Gramsci, A. Quaderni del
carcere: gli intellettuali e l’organizzazione della cultura, Turim, Einaudi, 1955, apud Basaglia, F.;
Basaglia, F. O., 1977: 13, tradução nossa). Aqui Basaglia vincula a função do manicômio ao papel
desempenhado pelos profissionais que receberam, através da ciência, a delegação social para gerir os
desvios e garantir a ordem social. O papel do manicômio está submetido à constituição e legitimação
desse poder, vinculado a um saber específico e especializado, construído historicamente. Basaglia
lembrou que a questão técnica não se separa da política; ambas compõem uma mesma síntese, uma vez
que não há neutralidade no papel profissional e que toda ação profissional tem um caráter político, já que
implica necessariamente relações de poder (para defender os interesses de uma classe dominante).
Segundo ele, a prática da transformação institucional e da desconstrução do paradigma psiquiátrico
tradicional passa pelo recusa dos profissionais a esse papel repressor. Negar-se a desempenhar esse papel
é a forma de modificar os demais papéis, de produzir um processo de crítica à ciência, e de atingir o
alicerce do poder psiquiátrico pautado no manicômio e nas demais instituições que atuam sob uma lógica
da invalidação e da defesa dos padrões normativos (Ibid.: 19). Significa encontrar outros caminhos para a
atuação profissional, caminhos que não neguem mas utilizem o poder e o prestígio que a ciência garante
no sentido do empoderamento dos pacientes como sujeitos sociais e não como simples objetos de
intervenção da psiquiatria. Compreender e tornar explícitos, junto daqueles que são objetos das
manipulações, os processos através dos quais a ideologia da ciência leva as classes subalternas a
aceitarem como suas necessidades que são produzidas por outros processos. Provocar, através desse
151
processo de negação da violência, a reação daqueles que são subalternizados, de modo que estes possam
se colocar também como atores-protagonistas do processo de crítica e de transformação de sua própria
condição. Lidar com o sujeito que sofre e não separar a entidade doença mental da existência desse
sujeito. Assim, recusar o papel policial significa pôr a instituição em xeque, negar o seqüestro dos
pacientes como prática que esconde as contradições sociais. Significa viver a contradição social onde ela
se dá, o que só pode ocorrer se o manicômio deixar de existir. Viver a contradição social que envolve a
loucura é produzir uma outra prática profissional, é produzir outra forma de cuidado que garanta a
participação social do doente mental.
19 No debate sobre a necessidade de se instituir “terapeutas de referência”, a questão da
interdisciplinaridade, da circulação e troca de conhecimentos (que não apenas se somam, mas produzem
novos e inéditos conhecimentos) e dimensões do olhar que enriqueçam a prática de todos está sempre
presente. A participação de outros profissionais, como auxiliares de enfermagem, artistas, e todos os que
de alguma forma fazem parte da instituição e mantêm contato com os internos (pessoal de limpeza,
cozinha, etc.), pode se dar com o objetivo de enriquecer o cotidiano das relações, inserindo nas discussões
elementos da dinâmica institucional que costumam ser negligenciados por não ocorrerem nos espaços
formais dos procedimentos terapêuticos. Isso não significa impor a esses outros profissionais a
responsabilidade sobre o andamento dos casos, como se fossem eles os terapeutas. Significa implicá-los
no processo, valorizando seu olhar e seu discurso e construindo uma rede de responsabilização mútua em
que todos os atores da instituição estejam envolvidos num projeto coletivo de transformação. É claro que
a postura dos profissionais de saúde mental, e dos médicos principalmente, que são os que têm mais poder
legitimado socialmente (e que, por isso, sempre ocuparão um lugar de poder diferenciado nessas
dinâmicas institucionais), é fundamental para validar, autorizar, produzir crítica e conhecimento a partir
das situações reais, e também para aprender a partir dos olhares daqueles que não são profissionais de
saúde mental, mas que têm uma história de vida e muitas vezes uma sensibilidade acurada, uma facilidade
para construir vínculos e dialogar com os pacientes.
20 Ao se discutir a questão da complexidade do controle e da vigilância, a cartografia apresentada por G.
Deleuze sobre a sociedade de controle (Deleuze, 1992) serve como um importante contraponto à
descrição da sociedade disciplinar realizada por Foucault. Enquanto Foucault se referia a um tipo de
sociedade em formação nos séculos XVII e XVIII, Deleuze identificará um momento de desvio a partir
do fim da Segunda Guerra Mundial. O período demarcado por Deleuze para o início da configuração da
sociedade de controle coincide, portanto, com o início das propostas de reforma psiquiátrica cujas
influências permanecem atuais. A sociedade de controle caracteriza-se por fluxos de poder maleáveis e
não pela rigidez das estruturas disciplinares e, o que é importante para nossa discussão, por uma
capilarização acentuada do controle, pela inclusão mais que pela exclusão. Nela, a prisão dá lugar a penas
152
alternativas, permitindo a vigilância em espaços e tempos ininterruptos; o hospital vira hospital-dia, e
passa a ocupar os corpos e as mentes de maneira permanente, e não só em momentos especiais; a
educação e o controle pedagógico saem dos espaços escolares na tentativa de disseminar seu poder
normativo em todos os poros da sociedade. As formas de controle são variações geométricas que usam
uma linguagem numérica e, também por isso, se diferenciam dos espaços de confinamento. Porque “os
confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma
moldagem autodeformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas
malhas mudassem de um ponto a outro”(Ibid.: 221). A empresa, com seus sistemas de prêmios e de
competição, substituiu a fábrica; a formação permanente tomou o lugar da escola, e o controle contínuo o
do exame. Assim também cada tipo de máquina – as de alavancas e roldanas na sociedade disciplinar e os
computadores na sociedade de controle – exibe a nova e frenética movimentação da produção e das
pessoas que não se desligam nem saem desse feixe contínuo e ondulatório de energia. Em torno dessas
características, a sociedade de controle se configura como uma máquina de controle flexível, destoando
da tendência centralizadora e baseada apenas no confinamento. É esse controle normalizador que deve ser
criticado e superado pelas novas práticas de saúde mental.
21 Castel (1978) enfatiza que, à aliança com os higienistas na época de ouro do alienismo, se somou a
legitimidade conquistada pela psiquiatria junto à justiça, através do desenvolvimento da peritagem. Um
marco importante que abriu caminho para isso foi a lei de 1790, que determinou a extinção das “lettres de
cachet” (as cartas que os soberanos emitiam, a pedido das famílias ou de outros, para internar à força
alguém que causasse desordem). Esse novo contexto possibilitou que a psiquiatria ocupasse esse lugar
intermediário entre o fim das internações arbitrárias e a custosa e difícil operação judiciária das
interdições. A meio caminho entre ambos, a psiquiatria bem poderia exercer seu papel prático de internar
o causador de escândalos sem que isso representasse um atentado às liberdades individuais, justificando
tecnicamente o seqüestro através da noção do “internamento terapêutico”. Outras invenções da psiquiatria
farão com que os laços com a justiça se apertem ainda mais. A invenção da monomania (um estado de
insanidade temporária e focada em um só objeto e, portanto, diferente do estado dos alienados de longa
data) por Esquirol, por exemplo, serviu para explicar os casos da justiça em que os crimes eram efetuados
sem a presença de um delírio aparente. Da monomania partiu-se para uma gradação de comportamentos
patológicos que apoiava a justiça em seu cotidiano, ampliando sua ação sobre os pequenos delitos,
desvendando as subjetividades, acessando as histórias de vida, classificando os estados patológicos. Aqui,
os temas apresentados por Castel e Foucault se entrelaçam. Por exemplo, em Os anormais (Foucault,
2002), Foucault também construirá uma genealogia em torno do envolvimento da psiquiatria no âmbito
jurídico (através da peritagem), passando pelo apoio à igreja no combate aos casos de possessão, e
tecendo a costura que levará a psiquiatria a poder intervir nos mais amplos meandros das relações sociais.
Além da salvaguarda à justiça, determinando se o infrator estava consciente ou não de seus atos, num
primeiro momento, para num segundo momento decidir se, independente da consciência do infrator, ele
153
exerce algum perigo à sociedade e à ordem, a medicina mental começará a ter um papel importante nos
interstícios das relações de controle da conduta. Não importará tanto a verdade sobre o crime, mas o
controle de tudo o que pode representar um perigo à ordem.
22 Na discussão da alienação, Karl Marx teve um papel fundamental (Marx, 1983). Mais recentemente,
Robert Kurz vinculou a questão da dominação à noção de fetiche da mercadoria, também muito utilizada
por Marx. Para Kurz, para além da dominação egoísta dos dominantes, o que está em operação é uma
espécie de dominação sem sujeito, operada pelo fetiche da mercadoria, que faz o homem ser apenas uma
quantidade de trabalho abstrato a se relacionar com outras quantidades de trabalho abstrato. Para discutir
a questão da emancipação, Kurz põe em questão a necessidade de superar a categoria do trabalho (que foi
endeusada a partir de um mito que a tornou uma categoria ontológica) – que instituiu o moderno sistema
produtor de mercadorias e todas as formas de alienação –, propondo formas que privilegiem a
comunicação direta entre os homens, a partir de movimentos embrionários emancipatórios (Kurz, 1999a,
1999c). No caso da saúde mental, a discussão do fetiche parece ser fundamental, uma vez que toda a
discussão do poder da psiquiatria está vinculada ao surgimento das novas formas de existência da
modernidade, que tem o trabalho e a mercadoria (a força de trabalho é uma mercadoria) como eixo
estruturante.
23 Dell´Acqua e Mezzina (1990: 61-2), atores da reforma italiana, dizem que, no contexto de trabalho dos
serviços territoriais, o encontro com o paciente à primeira manifestação de crise pode ser realizado em
tempos e com percursos diferentes. Quando possível, pode se dar nos lugares de vida do paciente (a casa
etc.), podendo nesse momento servir como intermediários pessoas significativas de seu ambiente. Esses
autores observam que a simples disponibilidade de ir ao encontro já pode evitar impactos traumáticos,
podendo ser tranqüilizadora para a família e as pessoas envolvidas. Em situações em que há uma recusa, e
em que a pessoa é muito isolada e tem menores recursos cognitivos ou de relação com o mundo externo,
o serviço pode multiplicar as estratégias de contato, mesmo as mais “banais” (telefonemas, bilhetes,
envolvimento de outros atores próximos à pessoa), como forma de expressar a oferta de ajuda, o que
tenderá a construir uma relação de reciprocidade. Isso exige do serviço muita disponibilidade e
flexibilidade. Pode ocorrer que às vezes só o contato físico, o abrir a porta fechada, cenas que às vezes
podem envolver outros atores como o corpo de bombeiros, sejam capazes de abrir o “cerco da psicose”.
Mesmo que a pessoa veja os profissionais como invasores, a contínua oferta de escuta e de ajuda concreta
vai possibilitar aos poucos a queda da desconfiança, e a possibilidade de se construírem novos projetos de
vida junto com a pessoa. A tomada de responsabilidade do serviço, que no caso não se propõe apenas
atender à crise, ou retirar de circulação a pessoa que está em crise, mas acompanhá-la e construir com ela
um percurso que possibilite a ampliação de sua rede social e a melhoria das condições concretas de vida,
possibilita essa relação de confiança e reciprocidade.
154
24 Os desvios ou linhas de fuga são, na perspectiva de Deleuze e Guattari, movimentos de intensidades
diferentes que desterritorializam os organismos, sejam estes organismos vivos ou fenômenos sociais, e
que são seguidos de novos movimentos de reterritorialização, em que a estabilidade dos fluxos se impõe
novamente, mas as coisas nunca voltam a ser como antes (Deleuze e Guattari, 2004). Os movimentos de
desterritorialização são simultâneos aos de reterritorialização, o que implica constante movimento. Ou
seja, é na perspectiva da imanência e não de uma transcendência (como um movimento que se mira e
persegue um modelo de vir-a-ser) que os desvios ou as linhas de fuga se colocam, trazendo sempre
movimentos originais, identidades inéditas, mas tendentes a metamorfoses. Nessa perspectiva, o desvio
não é algo negativo, a ser reprimido, como aquilo que desvia da norma. É um transtorno que deve ser
seriamente considerado como um excesso de vida, muito embora Deleuze e Guattari apontem que os
desvios podem vir a ser máquinas de destruição e abolição, quando se incrustam e deixam de produzir
novas mudanças e novos sentidos nas mudanças (desse modo, também é um desafio para o louco, assim
como para todas as pessoas, lidar positivamente com o movimento do desvio, sem cristalizar uma posição
que leve à anulação ou à destruição). Mas o desvio, no caso do comportamento singular do louco, é algo
que só justificou seu massacre, em vez de inspirar nos outros as possibilidades de se dedicarem a seus
próprios devires. O devir é aquele vir-a-ser contingente e não modelar que faz a mutação da identidade, e
que pode prover a experimentação inédita. Não é imitar outra identidade, mas fazer uso de uma
multiplicidade (que todos possuem) que produz novas subjetividades. É a esses desvios produtores de
subjetividade que me refiro.
25 A questão da sexualidade, na perspectiva de Freud, está vinculada ao conceito de pulsão sexual ou de
libido, que seria a manifestação da pulsão sexual na vida psíquica. Segundo Roudinesco e Plon (1998:
628), a pulsão seria definida como “a carga energética que se encontra na origem da atividade motora do
organismo e do funcionamento psíquico inconsciente do homem”. Em 1920, com a publicação de Mais
além do princípio do prazer, que instaurou um novo dualismo pulsional na obra de Freud, a libido,
identificada com a pulsão sexual, tornou-se pulsão de vida (Eros), em oposição à pulsão de morte
(Thanatos). A pulsão de morte, de origem inconsciente e, portanto, difícil de controlar, se expressa por
uma compulsão à repetição que leva o sujeito a se colocar repetidamente em situações dolorosas, réplicas
de experiências antigas. Mesmo que haja algum vestígio de satisfação libidinal nesse processo, o simples
princípio do prazer não pode explicá-lo. Da ação conjunta desses dois grupos de pulsões, pulsões de
morte e pulsões de vida, provêm as manifestações da vida, às quais a morte vem pôr termo (Ibid.: 630).
Dessa forma, a questão da sexualidade, discutida em nosso contexto da intervenção, não poderia limitar-
se a uma discussão moral que deixaria de problematizar a função das pulsões no funcionamento subjetivo
e social dos sujeitos. Em outras palavras, essa questão deveria ser entendida não de forma mecânica, mas
atendo sempre em mente que a sexualidade está atrelada à manifestação da vida, e que a discussão dela
envolve também as possibilidades de mudança que vínhamos buscando junto aos pacientes.
155
26 A questão da sexualidade nos hospitais psiquiátricos sempre foi um tabu. Acreditava-se que a
separação das enfermarias por sexo evitaria concretamente qualquer possibilidade de relação
heterossexual. Contudo, pouco se atentou e muitas vezes se negou a existência concreta de relações
homossexuais, o que sempre impediu que se pudesse operar uma política de prevenção das Doenças
Sexualmente Transmissíveis (DSTs). Além disso, os relatos da existência de relações sexuais entre
funcionários e pacientes sempre permaneceram nos subterrâneos das histórias dos hospitais. Sabe-se que
essas relações, embora raras, efetivamente ocorrem, mas a negação delas impossibilita que se tenha uma
idéia do tamanho da questão. Da mesma forma, a negação impede que tais questões possam servir de
material de discussão coletiva, pois, assim como ocorre com outras situações que fazem parte do
cotidiano hospitalar, uma reflexão apurada levaria a questionar a própria existência do hospital: a
existência do hospital é um fator determinante dessa forma de se viver a sexualidade às escondidas (sem
se saber, ao certo, se tais relações são recíprocas ou fruto de uma violação da vontade de algum paciente).
Essas e outras relações obscuras não podem, enfim, vir à luz do dia.
27 Homo sacer é um personagem do antigo direito romano, descrito por Giorgio Agamben, que o utilizará
como categoria para entender a situação dos prisioneiros dos campos de extermínio nazistas, que para ele
representaria o paradigma da biopolítica moderna (as relações de violência nos campos escapam a todo o
ordenamento jurídico, podendo os prisioneiros ser mortos como piolhos já que sua condição de
humanidade naquele momento escapa às formas conhecidas pela política e pelo direito) (Agamben,
2002). Para entender o lugar do homo sacer no antigo direito romano é necessário convergir à discussão
da soberania. A soberania era pautada, naqueles tempos, por uma ordem jurídica composta por cidadãos
comuns, que possuíam direitos políticos, mas que conviviam com a possibilidade permanente de ser
desencadeado um estado de exceção nas situações de emergência, em que o soberano anula todos os
direitos e decide sozinho sobre o destino da sociedade. Entretanto, dentro da estrutura social de então,
alguns habitantes podiam viver um estado de exceção permanente em que eram destituídos de seus
direitos. Melhor ainda, tais habitantes não poderiam sequer entrar num ordenamento divino – em que o
sacrifício seria uma das possibilidades de se ter uma existência e um significado social – nem jurídico.
Não poderiam ser sacrificados, servindo como matéria de importante relação social com as divindades,
mas poderiam ser mortos sem que isso implicasse quaisquer conseqüências a seus assassinos. Eram como
que soberanos ao avesso: enquanto o assassinato do soberano era falta mais grave que um assassinato
comum, fazer morrer um homo sacer era muito menos que um assassinato, pois era como se este já
estivesse morto socialmente. Nessa caracterização do homo sacer, Agamben retoma o importante
ordenamento que separa a vida nua (zoé) da vida política do cidadão (bíos). Vida nua é aquilo que nos
identifica a todos os outros animais; é a vida pura sem mediações ou socializações, a vida metabólica sem
a simbolização que caracteriza a existência do homem. A vida política é a vida da construção permanente
da sociabilidade, da construção do futuro através do domínio do presente, do exercício da linguagem e da
156
comunicação enquanto construtoras da cidadania. O homo sacer é aquele preso à vida nua. O trabalho de
Agamben pode ser útil também para se pensar o lugar do louco na sociedade contemporânea.
28 Os mesmos autores, ao problematizarem a dificuldade da psiquiatria em se adequar ao paradigma
racionalista problema-solução, que trabalha com a noção de cura (sobre um objeto, a doença mental, que
não é tão fácil de definir e determinar), vão propor a mudança do objeto da psiquiatria, que passaria da
doença para a “existência-sofrimento dos pacientes”. Essa necessária ruptura com o paradigma tradicional
estaria ligada à passagem da pesquisa causal à reconstrução de uma concatenação possibilidade-
probabilidade (Rotelli, De Leonardis, Mauri, 1990: 30). Nessa perspectiva, superar o paradigma
racionalista problema-solução representaria propor novas formas de cuidado. “Concretamente se
transformam os modos nos quais as pessoas são tratadas (ou não tratadas) para transformar o seu
sofrimento, porque a terapia não é mais entendida como a perseguição da solução-cura, mas como um
conjunto complexo, e também cotidiano e elementar, de estratégias indiretas e mediatas que enfrentam o
problema em questão através de um percurso crítico sobre os modos de ser do próprio tratamento” (Ibid.:
29).
29 A ausência de reflexão coletiva, a meu ver, se deu através de um processo de negação, já que os
profissionais tinham dificuldade em lidar com a impotência, os medos, os desejos frutificados e gerados
pela complexa situação vivenciada. Segundo Laplanche (2001), Freud utilizou o termo negação em mais
de um sentido. Contudo, “Verleugnen tende efetivamente, no final da obra de Freud, a ser reservado para
designar a recusa da percepção de um fato que se impõe no mundo exterior” (Laplanche; Pontalis, 2001:
293). De um modo geral, no entanto, a negação pode ser considerada um “processo pelo qual o sujeito,
embora formulando um dos seus desejos, pensamentos ou sentimentos até então recalcados, continua a
defender-se dele negando que lhe pertença” (ibid.).
30 Até o final do segundo semestre de 2006, todas as residências terapêuticas que faltavam para abrigar os
20 pacientes restantes haviam sido inauguradas, restando no novo hospital apenas um serviço de
emergência psiquiátrica para casos novos, com leitos de observação de curta permanência. Um hospital
geral do município se preparava então para receber este serviço em suas dependências.
31 Segundo Amarante (1995), a psiquiatria preventiva surgiu nos anos 1960, como resposta a uma série
de distúrbios sociais que os EUA enfrentavam, como movimentos de contracultura, a explosão no
consumo de drogas, a proliferação de gangues e de jovens desviantes, além de problemas econômicos e
políticos (vivia-se a guerra do Vietnã). A principal característica dessa proposta é o investimento na
prevenção, criando um outro objeto de atuação que substituiria o foco sobre a doença: a Saúde Mental.
157
Para isso, disseminaram-se métodos para inserir a psiquiatria, e não só os psiquiatras, mas equipes de
variadas matizes, em todos os interstícios da vida cotidiana, para entrar nas casas, nos guetos, identificar
os hábitos, os ambientes desregrados, os vícios, em busca de suspeitos que pudessem porventura vir a
desenvolver, pelas próprias características do meio, problemas mentais ou desvios de conduta. Deveria
ser uma tarefa de todos, como num mutirão, levar o suspeito desregrado ao tratamento, para que o mal
fosse combatido na raiz. Juntando-se influências da sociologia, com os da psicologia experimental ou
behaviorismo, a psiquiatria preventiva fará seu trabalho comunitário inserindo as equipes de saúde como
se estas fossem as consultoras e peritas da população, fornecendo normas e valores morais a serem vistos
como os cientificamente corretos. Toda uma técnica para a seleção e a triagem de suspeitos será
desenvolvida pela psiquiatria preventiva. Embora se colocassem como um proposta desospitalizante,
essas tecnologias serviram para aumentar ainda mais a demanda por serviços de saúde mental, além de
servirem a um controle mais eficaz dos comportamentos desviantes, mesmo que estes não tivessem
comprometimentos patológicos. Os hospitais, dessa forma, continuaram a ter uma presença importante
enquanto local de custódia e de proteção da sociedade com relação aos desviantes (Amarante, 1995).
32 Para Bauman, “a desregulamentação é a palavra da hora e o princípio estratégico louvado e
praticamente exibido pelos detentores do poder. A desregulamentação é demandada porque os poderosos
não querem ser regulados – ter sua liberdade de escolha limitada e sua liberdade de movimento restrita;
mas também (talvez principalmente) porque já não estão interessados em regular os outros. O serviço e o
policiamento da ordem viraram uma batata quente alegremente descartada pelos que são suficientemente
fortes para livrar-se da incômoda sucata, entregando-a de pronto aos que estão mais abaixo na hierarquia
e são fracos demais para recusar o presente venenoso” (Bauman, 2003: 42). Como conseqüência da
desregulamentação, vive-se a incerteza e a insegurança.
33 Com relação às famílias dos pacientes, é necessário também considerar que, em certas ocasiões,
componentes subjetivos determinam uma necessidade de abandoná-los. A existência de um familiar
doente gera uma ferida narcísica que produz esses sentimentos de repulsa, de necessidade de excluir
aquele familiar que representa um peso para a dinâmica cotidiana e social da família. É por isso que uma
outra forma de cuidar leva necessariamente à necessidade de trabalhar com as famílias tanto essas feridas
narcísicas, como a desconstrução de valores relacionados socialmente à loucura. Esses processos de
mudança só podem se dar através de um apoio consistente à família como um todo. Considerando que
determinadas dinâmicas apresentadas pelos pacientes estão vinculadas à própria dinâmica familiar na
relação com o corpo social, e que em torno do papel do doente se estabeleceram outros papéis
complementares assumidos pelos demais familiares, um desafio que se apresenta é o de modificar papéis
cristalizados, possibilitando que cada um possa construir novos projetos de vida, desta vez podendo lidar
com a questão da doença de um modo diferente.
158
34 Robert Castel descreveu esse processo de mudanças que provocaram sucessivas situações de
desfiliação, em seu livro As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário (Castel, 1998). No
período que vai do início da modernidade até os dias de hoje, foram várias as estratégias para produzir
novos enraizamentos, capazes de substituir os processos de desenraizamento que impuseram sempre
novos padrões de existência e, portanto, novas formas de sociabilidade. Por exemplo, no momento em
que a industrialização provocou o êxodo da população camponesa, que vivia cotidianamente relações de
tipo servo-senhor, vinculadas ao pertencimento a um território e a relações de parentesco, produziu-se um
tipo de desenraizamento gerador de muita insegurança e de uma piora considerável das condições de vida.
Esse momento de desfiliação levou à construção de estratégias que minimizassem os riscos que tal
insatisfação poderia provocar. Uma das estratégias, por exemplo, foi construir a idéia de um sistema de
previdência, de seguro coletivo. Pois nas antigas relações opressivas servo-senhor, havia uma estabilidade
que garantia a sobrevivência dos servos, através da proteção do senhor, o que se perdeu com as novas
regras do jogo social. Aqui também se fez importante a figura dos filantropos, pessoas que ascenderam
socialmente e que passaram a ajudar as pessoas mais necessitadas, reproduzindo, em termos, um tipo de
relação paternalista que fazia lembrar os tempos de servidão. Outras estratégias, como a construção das
vilas operárias, ou seja, a construção de toda uma infra-estrutura social em torno das fábricas, para manter
os trabalhadores totalmente voltados à produção, também seriam inventadas. Essas estratégias passariam
por modificações até os dias atuais, quando se recorre aos diversos tipos de políticas sociais dos Estados
(Ibid.).
35 Isso não quer dizer que, para Foucault, o poder produzido pelo saber tenha só conseqüências
destrutivas. Para ele, o “poder não é nem fonte nem origem do discurso. O poder é alguma coisa que
opera através do discurso, já que o próprio discurso é um elemento em um dispositivo estratégico de
relações de poder” (Foucault, 2003: 253). Desde Platão, segundo Foucault, sabe-se que o saber não pode
existir totalmente independente do poder. Isso não significa que o saber esteja totalmente submetido ao
poder, pois assim não poderia haver um saber de qualidade (Ibid.: 269). O que ocorre é que o saber pode
produzir efeitos de verdade que podem ser utilizados em possíveis batalhas. E é isso que prova o próprio
conhecimento produzido por Foucault, que se coloca como um saber que pode ser usado para se opor a
certas formas de dominação, através dos efeitos de poder produzidos pelos efeitos de verdade (Ibid.: 279-
80).
36 Em A arqueologia do saber, Foucault (1972) observa que os discursos possuem uma legitimidade
própria, baseada em regras de formação preparadas a partir das relações de vários elementos que o
determinam. No caso da psicopatologia e do discurso sobre a loucura, por exemplo, “a unidade dos
159
discursos sobre a loucura não estaria fundada na existência do objeto ‘loucura’, ou na constituição de um
único horizonte de objetividade; seria o jogo das regras que tornam possível, durante um período dado, o
aparecimento dos objetos; objetos que são recortados por medidas de discriminação e de repressão,
objetos que se diferenciam na prática cotidiana, na jurisprudência, na casuística religiosa, no diagnóstico
dos médicos, objetos que se manifestam em descrições patológicas, objetos que são limitados por códigos
ou receitas de medicação, de tratamento, de cuidados” (Ibid.: 45). Os discursos e seus enunciados e
conceitos se definem mais como a expressão de relações, determinados por um campo pré-conceitual
(Ibid.: 75-9), do que como a tradução de um objeto ou de um fenômeno preciso. Foucault define a tarefa
de discernir os discursos como a “tarefa que consiste em não mais tratar os discursos como conjunto de
signos (de elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações) mas como práticas que
formam sistematicamente os objetos de que falam” (Ibid.: 64). Essas formações discursivas não se
referem obviamente apenas ao discurso da psicopatologia, mas a uma conjuntura perene dos discursos em
geral, que funcionam dessa forma, construindo objetos. Os saberes, então, disputam entre si, na
construção dos efeitos de verdade sobre a realidade.
37 Como relatam muitos dos ex-internos, libertos pelos processos de reforma psiquiátrica em andamento,
não é raro que, no cotidiano asilar, os internos mais desobedientes fiquem guardados em celas fortes,
escuras, ou que se utilize o eletrochoque como um agente moralizador e punitivo.
38 Edgar Morin propõe a seguinte formulação para o termo paradigma: é aquilo que “contém, para todos
os discursos que se realizam sob o seu domínio, os conceitos fundamentais ou as categorias mestras de
inteligibilidade, ao mesmo tempo que o tipo de relações lógicas de atração/repulsão (conjunção,
disjunção, implicação ou outras) entre estes conceitos e categorias” (Morin, 2002: 261). Os indivíduos
agem, conhecem, pensam conforme os paradigmas inscritos culturalmente. O Ocidente possui um grande
paradigma, formulado por Descartes no século XVII. Esse paradigma separa o sujeito do objeto, a
filosofia da pesquisa reflexiva, a ciência da pesquisa objetiva. Essa dissociação se prolonga, atravessando
o universo: sujeito-objeto; alma-corpo; espírito-matéria; qualidade-quantidade; finalidade-causalidade;
sentimento-razão; liberdade-determinismo; existência-essência (Ibid.: 270). O paradigma do Ocidente tem
seus conceitos soberanos e prescreve a relação lógica, operando por disjunção. Permeia nele uma dupla
visão de mundo: um mundo dos objetos submetidos a observações e experimentações, e um mundo dos
sujeitos que se colocam problemas existenciais, de comunicação, de destino. Do ponto de vista da ciência,
o homem é um objeto pequeno perto do universo; mas do ponto de vista prático, dá a ele poder e potência
que lhe permitem domesticar e arrasar o seu próprio universo. A ciência, que se separou da filosofia no
século XVII (separação do juízo de valor dos juízos de fato e das teorias), seguirá uma dialógica entre a
imaginação teórica (racionalismo) e o empirismo que subordina tudo aos fatos. Obedecerá a um
paradigma da simplificação, a uma visão determinista do universo. Eis então algumas características da
160
ciência clássica: expulsão dos acasos e das desordens como epifenômenos ou efeitos da ignorância;
simplicidade e fixidez; inércia da matéria submetida à especialização e geometrização do conhecimento;
isolamento do objeto em relação ao seu ambiente e ao seu observador; inteligibilidade cartesiana (o que
não pode ser dito claramente deve ser excluído, silenciado); exclusão do não-mensurável, não-
qualificável, não-formalizável; redução da verdade científica à verdade matemática, reduzida à ordem
lógica (Ibid.: 275-6). Eliminam-se assim da “verdadeira” realidade todos os ingredientes de complexidade
do real (sujeito, existência, desordem, acasos, qualidades, solidariedades, autonomias). Procede-se a uma
visão por vezes atomística (que só vê unidades elementares) e/ou mecânica (só vê uma ordem
determinista simples). A partir do século XVII surge a engrenagem ciência/técnica (a
experimentação/verificação controlada). A tecnociência, em dois séculos, sai da periferia e vai para o
coração da sociedade, da indústria, do Estado (Ibid.:279-280). A especialização viraria
hiperespecialização (experts, tecnocratas). Entraria em cena a tecnologização e a racionalização
econômica e social (burocracia). A tecnociência e a sociedade se apoderariam e transformariam uma à
outra, numa recursividade ciência/técnica/sociedade. Embora em toda parte sejamos impelidos a
considerar, não objetos fechados e isolados, mas sistemas organizados em relação co-organizadora com o
seu ambiente, e o paradigma clássico tenha deixado de ser operacional há 50 anos, continua-se a ignorar
as conseqüências disso (Ibid.: 288). Apesar de se falar em interdisciplinaridade, o princípio da disjunção
continua a separar às cegas. A hiperespecialização, as visões unidimensionais mutilantes, começam a
revelar seus efeitos destrutivos relativos ao homem, à sociedade, à guerra, à biosfera. A tomada de
consciência continua limitada, fragmentada. Seria necessária uma reforma em cadeia do entendimento,
associada a uma revolução paradigmática. Uma revolução paradigmática ataca enormes evidências, lesa
enormes interesses, suscita enormes resistências (Ibid.: 285-90). Então, é necessário compreender a
realidade de maneira dialógica para conceber a complexidade do real, usando as contradições e a
incerteza. É necessário “agir com” a contradição, servir-se dela para reativar e complexificar o
pensamento. Tratar, interrogar, eliminar, salvaguardar as contradições (Ibid.: 242). Criar princípios e
regras que estejam vinculados a um paradigma da complexidade, para usar a lógica, sem se subjugar a
ela. A dialógica não supera as contradições, mas enfrenta-as e integra-as no pensamento, porque elas são
insuperáveis e vitais. A verdadeira racionalidade reconhece os seus limites e é capaz de tratá-los
(utilizando metapontos de vista) e superá-los, mesmo reconhecendo um além irracionalizável. Tudo isso
leva ao reaparecimento do sujeito nas relações do conhecimento, sem o que se iria ao absurdo total da
racionalização total (Ibid.: 250) (todas essas afirmações estão presentes em “O método 4: as idéias,
hábitat, vida, costumes, organização”).
39 Refiro-me aqui ao Estado de exceção relacionando-o ao antigo direito romano, em que ao soberano
cabia o poder de, em determinadas situações, suspender temporariamente todas as regras sociais, e assim,
retirando arbitrariamente qualquer direito estabelecido, executar seu poder supremo (Agamben, 2004).
161
40
O habitus dos diferentes grupos sociais refere-se aos gostos, às preferências em matéria de consumo,
de vestuário, de alimentação, de postura corporal, enfim dos estilos de vida dos diversos grupos. Provém
da combinação entre o capital econômico e o capital cultural, sendo este último o conjunto de ganhos
simbólicos acumulados na direção do que é considerado o gosto culto (aqui a escolarização ganha um
papel importante). Famílias com capital econômico semelhantes podem ter capitais culturais diferentes, o
que é uma combinação sempre instável (Bourdieu, 1988). “Estrutura estruturante, que organiza as práticas
e a percepção das práticas, o habitus é também estrutura estruturada: o princípio de divisão em classes
lógicas que organiza a percepção do mundo social é por sua vez produto da incorporação da divisão das
classes sociais. Cada condição está definida, de modo inseparável, por suas propriedades intrínsecas e
pelas propriedades relacionais que devem a sua posição no sistema de condições, que é também um
sistema de diferenças, de posições diferenciais, ou seja, por tudo o que a distingue de tudo o que não é e
em particular de tudo aquilo a que se opõe: a identidade social se define e se afirma na diferença” (Ibid.:
170, tradução nossa). As mais fundamentais oposições da estrutura de condições (alto/baixo, pobre/rico
etc.) tendem a se impor como princípios fundamentais de estruturação das práticas e da percepção das
práticas (Ibid.: 171). O mundo social representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida, é formado pela
relação entre a produção de práticas e obras classificáveis e a capacidade de apreciar essas práticas e esses
produtos (Ibid.: 169-70). O habitus faz da necessidade virtude, uma vez que se tem o que se gosta porque
se gosta do que se tem. Mas essa idéia de habitus pode ser contestada por favorecer uma concepção
determinista da cultura sobre os valores e as idéias. É o que faz Edgar Morin (2003) quando aponta que a
formação das idéias é algo dialógico e recursivo, que comporta também certa dose de autonomia
cognitiva.
41 Novamente se faz necessário lembrar aqui, conforme Foucault (2006) apontou, que todo o pessoal
auxiliar, nos primórdios do asilo, constituía um prolongamento do corpo do médico, que era portador de
um poder moral que o colocava como a referência do padrão de racionalidade e de comportamento.
Podemos supor que, possivelmente, essa função constitutiva do pessoal auxiliar na época da criação do
asilo de alienados acompanhou o desenvolvimento da psiquiatria, da organização hospitalar, incluindo
todas as novas profissões que foram surgindo historicamente, inclusive a dos auxiliares e técnicos de
enfermagem.
42 Para Kinoshita (1996: 46), se entendermos que a vida social é pautada por processos de trocas de
mensagens, afetos e bens, veremos que “cada participante da relação pressupõe um valor pré-atribuído
aos outros, isto é, um poder contratual. No caso dos pacientes psiquiátricos, este poder contratual é
socialmente anulado pelo seu enquadramento no status de doente mental. Suas mensagens são
‘obviamente’ ininteligíveis; seus afetos, ‘necessariamente’ desmedidos; seus bens, implicitamente sem
valor. Nesta condição de ‘nulidade de intercâmbio’ torna-se impossível qualquer pretensão de inserção
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social, exceto pelo seu status de doente, de não-ser, de ser-paciente”. Em seguida, o autor afirma que,
diante desse quadro, a função dos profissionais é emprestar poder contratual aos pacientes, até que estes
ganhem autonomia.
43 Agamben foi buscar nos gregos as referências para discutir a vida nua. Pontuou que, para estes, não
haveria um termo único para designar o que hoje chamamos de vida. Eles se serviam de dois termos,
distintos semântica e morfologicamente: zoé (que exprimia o simples fato de viver comum a todos os
seres vivos: homens, animais, deuses); e bíos (que exprimia a forma de viver dos indivíduos e dos grupos
e, portanto, vinculava-se à questão da política, do discurso) ( Agamben, 2002: 9). Retomando o conceito
de biopolítica de Foucault, que via nos processos disciplinares da modernidade todo um investimento
sobre os corpos, Agamben apontará o ingresso da zoé na esfera da pólis, a politização da vida nua como
um evento decisivo da modernidade. O campo de extermínio nazista, mas não só ele, expressa essa
presença essencial da vida nua na política, o investimento da política sobre a vida natural, unindo bíos e
zoé, desfazendo a separação em que os gregos as mantinham. Para Agamben, “o campo, como puro,
absoluto e insuperado espaço biopolítico (e enquanto tal fundado unicamente sobre o Estado de exceção),
surgirá como o paradigma oculto do espaço político da modernidade, do qual deveremos aprender a
reconhecer as metamorfoses e os travestimentos” (Agamben, 2002: 129). Nele, seus habitantes foram
despojados de todo o estatuto político e reduzidos integralmente a vida nua. O Estado moderno manteve a
lógica do Estado de exceção da soberania antiga (aquela que funcionava também no direto romano
clássico), substituindo o poder soberano-divino pelo poder do homem, mas mantendo a vida nua como
objeto a ser politizado. Na composição do Estado moderno, “as declarações dos direitos representam
aquela figura original da inscrição da vida natural na ordem jurídico-política do Estado-nação. Aquela
vida nua natural que, no antigo regime, era politicamente indiferente e pertencia, como fruto da criação, a
Deus, e no mundo clássico era (ao menos em aparência) claramente distinta como zoé da vida política
(bíos), entra agora em primeiro plano na estrutura do Estado e torna-se aliás o fundamento terreno de sua
legitimidade e da sua soberania” (Agamben, 2002: 134). A vida nua não está mais confinada a um lugar
definido, mas habita o corpo biológico de cada ser vivente (Ibid.: 146). Desde os campos de concentração
até os programas de eutanásia nazistas (que também mataram muitos doentes mentais), o fenômeno se
alastrou para a situação dos atuais campos de refugiados, para as condições das periferias das cidades,
podendo alargar a presença do homo sacer e da vida nua a todos os cantos. Isso porque, para Agamben, o
campo de concentração não foi uma aberração e um acidente, mas representa uma das facetas possíveis da
presença única da vida nua na pólis. Os direitos humanos, criados para além dos direitos dos cidadãos
(ligados a um território e a um Estado), também seguem a lógica da vida nua. Segundo Agamben, “é
suficiente um olhar sobre as recentes campanhas publicitárias para arrecadação de fundos para os
refugiados de Ruanda, para dar-se conta de que a vida humana é aqui considerada (e existem aí
certamente boas razões para isto) exclusivamente como vida sacra, ou seja, matável e insacrificável, e
somente como tal objeto de ajuda e proteção” (Ibid.: 140). Vê-se, então, que a superação da condição de
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homo sacer, a qual todos temos a possibilidade de ocupar, não está restrita aos loucos ou às minorias
étnicas, mas representa um desafio para todos, uma vez que a vida nua foi politizada na modernidade.
44 Segundo Abbagnano (2000: 62) anomia é um “termo moderno usado sobretudo por sociólogos (p. ex.,
Durkheim), para indicar a ausência ou a deficiência de organização social e, portanto, de regras que
assegurem a uniformidade dos acontecimentos sociais”. Ou, como cita Lalande: “É a ausência de lei fixa
que se pode designar com o nome anomia para opor à autonomia dos kantianos” (Guyau, apud Lalande,
1999: 69). É a ausência, portanto, de organização social, de coordenação; um estado de desregramento, no
sentido durkheimiano.
45 Assim o é, por exemplo, quando o conflito de um paciente em casa vive um momento tão intenso que,
se ele não for acolhido pelo serviço que o conhece e à sua história, poderá resultar em conseqüências
funestas, seja em risco de morte ou em esgarçamento profundo dos laços comunitários; ou quando em
crise o paciente vende tudo o que tem e o que não tem, correndo o risco de ser preso ou violentado. Isso
para dar alguns exemplos.
46 Robert Castel (1978) utilizou o termo “Aggiornamento” para expressar o movimento da psiquiatria
para metamorfosear sua forma prática, sem mudar o seu conteúdo e sentido. Esse movimento se refere às
novas roupagens que a psiquiatria desenha para si, atuando num arremedo de mudança de identidade,
enquanto de fato continua a reproduzir sua função de controle e combate aos desvios. Nesse sentido,
Castel (Ibid.) faz uma reflexão crítica acerca do modelo do “Setor” francês. O modelo do “Setor”
caracteriza-se pela criação de uma rede de serviços de serviços de saúde mental, hierarquizada, composta
por serviços extra-hospitalares comunitários e serviços hospitalares, responsáveis por determinadas áreas
geográficas específicas. O autor afirma que a inserção da psiquiatria no âmbito comunitário, ou seja, ali
onde os transtornos aparecem, e não mais apenas no interior do hospital psiquiátrico, é algo que já
encontra seu germe na aliança estabelecida entre alienistas e higienistas franceses, no século XIX.
47 Entretenimento é um termo utilizado pelo psiquiatra italiano Benedetto Saraceno, que atualmente é o
diretor de saúde mental da OMS, para expressar o risco que os serviços territoriais podem correr se não
assumirem para si a tarefa de atuar no território, praticando um acompanhamento dos doentes nos vários
âmbitos da vida. O entretenimento sempre acompanhou a psiquiatria, e é um sinal de sua impotência.
Significa “manter dentro”, “passar o tempo de forma prazerosa”, ou seja, ocupar o tempo dos usuários dos
serviços como um fim em si mesmo, sem provocar mudanças nas relações sociais (Saraceno, 1999: 16-7).
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48 Enfrentar os valores sob influência da forma-mercadoria significa questionar, entre outras coisas:
• A centralidade do consumo e o fenômeno da perda do caráter sensível dos objetos (uma crítica
também aos objetos que não são feitos tanto para o uso, mas para representar uma promessa de vir-a-ser,
o acesso a outra condição social);
• Os processos que tornam tudo mercadoria (inclusive o homem);
• A centralidade do trabalho, como a atividade que garante dignidade e responsabilidade. Neste
período de avanço das forças produtivas, já é possível “aceitar” que o trabalho não pode ser a única forma
de se obter dignidade ou responsabilidade (talvez, ao contrário, ele tenha servido para aprisionar o homem
a necessidades artificiais);
• As formas de mediação das relações sociais. Outras formas de encontro entre homens singulares
podem ser inventadas, sem que sejam estas totalmente mediadas pelo trabalho, pela mercadoria ou por
instituições.
49 Para Rotelli, De Leonardis e Mauri (1990), os modelos desenvolvidos na Europa e nos EUA a partir
dos anos 1960, baseados na tentativa de afastar a função imprópria de custódia e reabilitar o caráter
terapêutico da psiquiatria, tiveram muitos problemas, dentre os quais destaco:
1) Os serviços territoriais, embora tentem deslocar a intervenção terapêutica para o contexto das
pessoas, convivem com a internação psiquiátrica, e não a substituem (Ibid.: 21).
2) A política de desospitalização foi acompanhada por uma redução no período das internações e
por um aumento complementar de altas e recidivas. Essa nova lógica do “revolving door” levou
à criação de outras instituições de tipo assistencial ou judiciário (asilos, casas de repouso etc.)
que internam e asilam pacientes psiquiátricos (Ibid.).
3) Os variados serviços territoriais se especializaram segundo a lógica “um serviço para cada
problema” (necessidade de atendimento médico, necessidade de atendimento psicológico,
necessidade de atendimento social, por exemplo). Essa especialização resultou numa seleção das
demandas apresentadas pelos pacientes. Ou estes se adequavam à demanda, ou deveriam
procurar outros serviços, ou vários serviços para várias demandas diferentes traduzidas e
especificadas pelos serviços. Essa compartimentalização se agrava com a ausência de relações
entre os serviços, reproduzindo um novo abandono. O fato de as pessoas poderem ser separadas
em suas necessidades, jogadas de um lugar para o outro, produz um novo tipo de cronicidade
que utiliza por vezes os hospitais psiquiátricos como ponto de descarga. Ou seja, cria-se um
circuito cronificador que não pode dispensar o manicômio (Ibid.: 21-3).
Para os autores, na época de elaboração deste texto, esses questionamentos eram importantes para
que servissem de alerta para a própria condução da experiência italiana.