A Literatura Latina - Zélia Cardoso

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Excelente livro de literatura latina

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  • A LITERATURA

    LATINA

    Zelia de Almeida Cardoso

    Licenciada em Letras Clssicas pela FFCL-

    USP Doutora em Letras pela USP

    Livre-docente em Literatura Latina

    Professora titular de Lngua e Literatura Latina da FFLCH-USP

    (Edio revista)

    ,1 wmfmartinsfontes

    SO PAULO 2011

  • Copyright 2003, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,

    So Paulo, para a presente edio.

    l.a edio 1989 (Editora Mercado Aberto)

    3? edio 2011

    Acompanhamento editorial

    Helena Guimares Bittencourt Atualizao ortogrfica

    lvani Cazarim Revises grficas

    Ana Luiza Frana Maria Regina Ribeiro Machado

    Produo grfica

    Geraldo Alves Paginao/Fotolitos

    Studio 3 Desenvolvimento Editorial

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Cardoso, Zelia de Almeida

    A literatura latina / Zelia de Almeida Cardoso. - 3 ed. rev.

    - So Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2011.

    Bibliografia.

    ISBN 978-85-7827-376-7

    1. Literatura latina I. Ttulo.

    11-00318 CDD-870.09

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Literatura latina : Histria e crtica 870.09

    Todos os direitos desta edio reservados Editora WMF Martins Fontes Ltda.

    Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325.000 So Paulo SP Brasil Tel. (11) 3293.8150 Fax (11) 3101.1042

    e-mail: [email protected] http://www.zumfmartinsfontes.com.

  • NDICE

    Consideraes prelim inares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IX

    PRIMEIRA PARTE

    A POESIA LATINA

    Origem da poesia la t in a ................................................................... 3

    A poesia pica ........................................................................................ 6

    A epopeia de Virglio ................................................... 10

    A poesia pica ps-virgiliana ................................. 19

    A poesia dramtica: a comdia .............................................. 23

    As comdias de Plauto ................................................. 28

    As comdias de Terncio ..................................... 34

    A comdia togata e tabernaria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

    A atelana .......................................................... 37

    O m im o ..................................................................... 38

    A poesia dramtica: a trag dia ................................ 39

    As tragdias de Sneca ......................................... 41

  • A poesia lrica .............................................................. 49

    A poesia de Catulo ....................................................... 55

    A poesia lrica na poca de Augusto .......................... 59

    As Buclicas de V irglio ............................................ 61

    A lrica de Horcio ......................................................... 65

    A poesia elegaca em R om a ......................................... 69

    As elegias deTibulo: o Corpus Tibullianum . . . . . . . . . . . . . . 70

    As elegias de Proprcio......................................................... 74

    A obra potica de Ovdio ............................................... 80

    A poesia lrica ps-ovidiana ....................................... 87

    Astira latina .......................................................... 89

    A stira de Luclio ..............................................91

    Varro e as Stiras m en ip e ia s ......................................... 92

    As Stiras de Horcio ........................................................ 93

    A stira ps-horaciana: a Apocolocintose de Sneca . . 96

    As Stiras de Prsio 98

    A obra de Juvenal ....................................................... 100

    A poesia didtica .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102

    A obra de Lucrcio .......................................................... 104

    As Gergicas de Virglio .......................................... 109

    As Epstolas de Horcio ....................................... 113

    Os Fastos de Ovdio ...................................................... 115

    A poesia didtica contempornea a O vdio ......... 117

    As Fbulas de Fedro .............................................................. 119

    SEGUNDA PARTE

    APROSALITERRIA

    Formao da prosa literria .................................................. 123

    O romance ...................................................................... 125

  • O S a tir icon . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126

    O romance de Apuleio .............................................. 129

    A histria ............................................................. 131

    A histria na poca de Ccero: Jlio Csar ............. 132

    Salstio ................................................................. 135

    A histria no sculo de Augusto: Tito Lvio ........... 139

    A concepo romana de histria: Tcito .................... 143

    A histria aps Tcito: Suetnio ........................ 146

    Epitomadores e Histria A ugusta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147

    A oratria ................................................................ 150

    Ccero orador .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152

    A oratria romana aps C cero ......................... 158

    Plnio, o Jovem, e o Panegrico de T rajano . . . . . . . . . . . . . 159

    Oratria crist .................................................... 159

    A retrica ................................................................ 161

    Ccero e a retrica ............................................ 162

    A retrica na poca da dinastia jlio-claudiana:

    Sneca, o Rtor ............................................ 165

    A nova retrica: Quintiliano.............................. 165

    Tcito e Plnio, o Jovem ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 168

    Filosofia, apologtica, teologia ................................ 170

    A obra filosfica de Ccero .......................................... 171

    O pensamento filosfico de Sneca ..................... 174

    A filosofia e o cristianismo: os apologistas ............ 177

    Mincio F lix ................................................. 180

    Tertuliano ........................................................... 181

    O segundo perodo cristo: o sculo III ................ 182

    A sedimentao da doutrina: os doutores da Igreja . . 183

    Aerudio ........................................................ 187

  • Cato ........................................................................... 188

    Varro .............................................................. 190

    A erudio e a dinastia jlio-claudiana .................. 191

    A Histria natural de Plnio, o Velho ..................... 193

    As Noites ticas de Aulo G lio ............................. 196

    Macrbio ........................................................................ 197

    A epistolografia .............................................................................. 199

    A correspondncia de Ccero ............................. 200

    Sneca epistolgrafo ....................................................... 203

    As Cartas de Plnio, o Jovem ............................ 204

    Epistolografia crist .......................................... 206

    A herana literria latin a .......................................................... 209

    Quadro cronolgico da literatura latina ............................. 213

    Abreviaturas utilizadas no tex to .................................... 217

    Bibliografia ......................................................................... 219

  • CONSIDERAES PRELIMINARES

    Antes de discorrer sobre os gneros literrios que se desen-

    volveram na antiga Roma, faremos algumas observaes so-

    bre os principais momentos que marcaram a histria romana.

    A compreenso das manifestaes culturais de um povo

    pressupe o conhecimento das circunstncias em que elas se

    produziram. Tudo aquilo que as civilizaes humanas criaram

    resultado da combinao de fatores de diversas ordens (pol-

    ticos, sociais, econmicos, ticos, religiosos, ideolgicos, edu-

    cacionais, etc.), que compem, em conjunto, o amplo con-

    texto que explica e justifica o produto. O estudo de uma lite-

    ratura, portanto, deve ser precedido de uma coleta de infor-

    maes sobre a poca em que ela nasceu e floresceu.

    Costuma-se considerar como marco inicial da literatura

    latina a traduo da Odisseia, feita por Lvio Andronico nas

    proximidades de 240 a.C.

    Esse fato exige, evidentemente, uma explicao. Roma se

    tornara uma comunidade humana organizada cerca de cinco

    sculos antes. A tradio estabeleceu o ano de 753 a.C. como

  • X | A LITERATURA LATINA

    o da fundao da cidade e preservou a memria de alguns fa-

    tos relacionados com essa fundao. Embora a data seja con-

    trovertida e na conhecida histria de Rmulo e Remo, os su-

    postos fundadores da cidade, o aspecto lendrio e mtico se

    sobreponha ao histrico, sabe-se com certeza, graas contri-

    buio da arqueologia, que Roma foi habitada, em meados do

    sculo VIII a.C., por camponeses provenientes de Alba Lon-

    ga, a ptria dos ancestrais de Rmulo, conforme a lenda.

    Mais tarde, sabinos e etruscos se associaram aos albanos.

    Sobre os primeiros sculos da existncia de Roma no se

    tm muitas informaes. Os documentos histricos, muito

    posteriores, do-nos uma viso at certo ponto confusa de um

    perodo marcado por guerrilhas e guerras, vitrias e reveses,

    que se estende de meados do sculo VIII a.C. ao incio do

    sculo III a.C.

    Durante esse longo lapso temporal, Roma era apenas um

    dos muitos pequenos ncleos urbanos que formavam a Liga

    Latina, sabendo-se que, provavelmente no final do sculo VI

    a.C., a primitiva organizao poltica da cidade foi modifica-

    da, substituindo-se por uma repblica consular o governo en-

    to exercido por reis. At o incio do sculo IV a.C. Roma en-

    frentou e desafiou sabinos, quos, volscos e veienses, ora ven-

    cendo, ora sendo vencida, ora fazendo alianas militares e po-

    lticas. A violenta invaso dos gauleses, ocorrida por volta de

    390 a.C., teve como consequncia imediata a reconstruo da

    cidade, que fora incendiada e pilhada. Dando-se conta de sua

    fragilidade e insegurana, os romanos procuraram fortalecer-

    -se, preparando-se para futuras investidas. Foi esse o ponto de

    partida para a marcha expansionista da cidade. As vitrias so-

    bre os samnitas (341, 326 e 304 a.C.), antigos aliados que

    viviam na Itlia meridional, permitiram a ampliao do terri-

  • CONSIDERAES PRELIMINARES | XI

    trio romano e o aumento de seu poderio. O triunfo sobre

    Tarento (272 a.C.), importante centro cultural grego, locali-

    zado ao sul da Pennsula Itlica, representou o incio de uma

    era de vitrias e novas conquistas que iriam estender-se pelos

    sculos afora, determinando a constituio do imenso imprio

    romano, cujos limites definitivos s se completaram na poca

    do imperador Trajano, no sculo II de nossa era.

    At as vitrias sobre os samnitas e a posterior conquista de

    Tarento, Roma ainda no se diferenciava grandemente de nu-

    merosas outras cidades espalhadas pelo mundo mediterrneo

    e no desfrutava de maior importncia poltica, militar ou cul-

    tural. Os romanos falavam o latim - lngua de origem indo-

    -europeia, relativamente pobre e rstica - e, embora conhe-

    cessem a escrita por terem adaptado o alfabeto etrusco, so-

    mente a utilizavam em inscries (algumas muito antigas, da-

    tadas dos sculos VII ou VI a.C.) que tm apenas valor filol-

    gico, lingustico e documental. A literatura se achava ainda

    em fase embrionria, restringindo-se quase exclusivamente s

    manifestaes orais.

    a vitria sobre Tarento que propicia ao povo de Roma o

    contato direto com a brilhante cultura grega. Comeam a sur-

    gir, ento, graas a esse contato, as primeiras obras de literatu-

    ra latina.

    Durante a segunda metade do sculo III e o sculo II a.C.

    essa literatura se desenvolve e se aperfeioa, chegando ex-

    presso mais alta no sculo I a.C. Roma, nessa poca, havia

    conquistado toda a Itlia meridional (meados do sculo III

    a.C.), tornando-se a grande potncia do Mediterrneo, ocu-

    para a Sardenha, a Siclia e a Ilria (terceiro quartel do sculo

    III a.C.), bem como o vale do P e a Glia Cisalpina (final do

    sculo III a.C.), vencera a Mauritnia e aliara-se Sria (incio

  • XII | A LITERATURA LATINA

    do sculo II a.C.), anexara a Macednia (meados do sculo II

    a.C.) e conseguira derrubar Cartago (146 a.C), tendo-se bati-

    do duramente com a antiga colnia fencia durante as trs

    longas e tumultuadas guerras pnicas (264-241; 218-201 e

    149-146 a.C.).

    Marcados por novas conquistas, por guerras civis e pro-

    fundas modificaes polticas, sociais e culturais, o final do

    sculo II e o sculo I a.C. presenciaram, sucessivamente, a

    luta de classes, a acirrada disputa pelo poder, a agonia do sis-

    tema republicano, o estabelecimento do regime imperial e o

    grande desenvolvimento das artes, das letras e da vida inte-

    lectual.

    O perodo dominado pelo gnio polivalente de Jlio C-

    sar (60-44 a.C.) aquele em que a literatura latina se firma, a

    lngua literria se estabelece e as primeiras grandes figuras de

    prosadores se projetam no cenrio das letras. A chamada po

    ca de Augusto (43 a.C.-14 d.C.) o momento ureo da poe-

    sia: surgem escritores de talento indiscutvel e a arte potica,

    incentivada oficialmente, alcana seu brilho maior.

    Aps a morte doprinceps (14 d.C.), o mundo romano co-

    mea, lentamente, a declinar. No perodo em que exerceram

    o poder os prncipes jlio-claudianos, herdeiros de Augusto

    (Tibrio, Calgula, Cludio e Nero - 14 a 68 d.C.), ainda no

    se pode falar exatamente em decadncia. Esta, contudo, j se

    faz anunciar. O panorama cultural de Roma se modifica subs-

    tancialmente com a introduo de novos valores. O orienta-

    lismo- e o cristianismo como sua maior forma - se estabele-

    ce no Imprio. Entre o final do sculo I de nossa era e o scu-

    lo V caminha-se, pouco a pouco, para o desaparecimento do

    esprito de romanidade, para os conflitos entre o Estado e a

    Igreja, as novas guerras civis, a diviso do Imprio, as invases

  • CONSIDERAES PRELIMINARES | XIII

    dos povos brbaros e, finalmente, o inevitvel e completo es-

    facelamento da antiga unidade.

    A literatura latina sofre, durante todo esse tempo, como

    no poderia deixar de ser, o impacto das transformaes. A pe-

    riodizao a que usualmente a submetemos reflete, de alguma

    forma, fatos histricos relevantes. Embora saibamos que a ten-

    tativa de classificar as manifestaes literrias por perodos,

    pocas ou escolas arbitrria e convencional - as balizas tem-

    porais se ressentem, muitas vezes, da precariedade e do artifi-

    cialismo - , no caso especial da literatura latina as fases ou

    pocas literrias, abaixo especificadas, correspondem a mo-

    mentos distintos de uma civilizao, apresentando, portanto,

    cada uma, caractersticas bem definidas:

    1. Faseprimitiva: considerada como uma poca ainda pr-

    literria, estende-se do aparecimento das primeiras inscries

    (sculo VII a.C.) produo dos primeiros textos propria-

    mente literrios escritos em latim (imediaes de 240 a.C.).

    2. Fase helenstica: corresponde ao momento em que os es-

    critores de Roma se exercitam na produo de textos poti-

    cos, procurando imitar a literatura da Grcia; desenvolve-se a

    poesia pica e a dramtica, mas a lngua literria ainda apre-

    senta traos arcaicos; estende-se de cerca de 240 a.C. a 81

    a.C., data que marca o primeiro pronunciamento de Ccero

    como orador.

    3. Fase clssica: corresponde ao perodo de maior esplendor

    literrio, podendo ser subdividida em trs pocas, diferencia-

    das em suas peculiaridades: a) a poca de Ccero (de 81 a 43

    a.C.) - dominada, principalmente, pela figura do grande ora-

    dor, o verdadeiro criador de uma lngua clssica, em Roma; b)

    a poca de Augusto (de 43 a.C. a 14 d.C.) o momento em

  • XIV | A LITERATURA LATINA

    que a poesia atinge seu apogeu, colocando-se, contudo, a ser-

    vio da poltica; c) a poca dos imperadores jlio-claudianos

    (de 14 a 68 d.C.) a literatura ainda floresce, mas j se pres-

    sente a decadncia.

    4. Fase ps-clssica: estende-se da morte de Nero (68 d.C.)

    queda do Imprio Romano do Ocidente (sculo V) e cor-

    responde a duas pocas distintas: a) a poca neoclssica (de 68

    ao final do sculo II, abrangendo os governos dos imperadores

    flavianos e antoninos), quando ainda se encontram figuras li-

    terrias importantes no campo da prosa cientfica, da retrica,

    da histria, da epistolografia e at mesmo da poesia; b) a poca

    crist, que, iniciando-se no fim do sculo II, se estende at o

    sculo V: a velha literatura pag comea a empalidecer, ceden-

    do seu lugar incipiente literatura crist; a poesia assume no-

    vas dimenses e surgem os primeiros textos apologticos que,

    aos poucos, vo sendo substitudos pelas obras histricas, mo-

    rais e teolgicas dos doutores da igreja.

    No presente estudo trataremos separadamente de cada um

    dos gneros literrios que se desenvolveram em Roma. Inicia-

    mos pela anlise dos gneros poticos - autnticos gneros li-

    terrios - e reservamos espao para a chamada prosa literria.

    Apresentamos, de cada gnero, aquilo que foi considerado me-

    lhor. Como a extenso da matria e as dimenses de nosso tra-

    balho no permitem o aprofundamento desejvel, fornecemos

    algumas indicaes bibliogrficas, no final do livro, sugerindo

    ao leitor a consulta a textos complementares.

  • PRIMEIRA PARTE

    A POESIA LATINA

  • ORIGEM DA POESIA LATINA

    Todas as civilizaes conheceram alguma forma de poesia,

    embora variem muito, de grupo para grupo, as modalidades

    de composies poticas produzidas.

    Entre as velhas culturas mediterrneas, de origem indo-eu-

    ropeia, as mais antigas manifestaes de poesia se associam in-

    variavelmente msica: so cnticos, portanto, e pelo que de-

    les sabemos, por meio do exame de formas arcaicas, podemos

    supor que tinham como base estrutural o verso, a unidade rt-

    mica que corresponde acomodao de uma frase a um es-

    quema meldico, caracterizado por certo nmero de slabas

    (ou conjuntos de slabas) e pela colocao de slabas de deter-

    minadas categorias em posies mais ou menos fixas.

    Variaram, nas diversas civilizaes, os tipos de versos conhe-

    cidos. Enquanto na Grcia, por exemplo, havia grande quan-

    tidade de espcies rtmicas, adequadas aos diferentes gneros

    poticos, na Itlia central, ao que se sabe, a poesia s se valia

    de um nico modelo de verso em seus primrdios: o chama-

    do verso satrnio.

  • 4 | A LITERATURA LATINA

    Pesado, longo e montono, o verso satrnio foi utilizado,

    em Roma, nos mais antigos cnticos de que se tem notcia. Su-

    pe-se que fosse constitudo, originalmente, de 14 ou 13 sla-

    bas, subdividindo-se em duas partes. Alternavam-se as slabas

    breves, com a durao de um tempo, e as longas, com a dura-

    o de dois (no nos esqueamos de que em latim, diferente-

    mente do que ocorre hoje nas lnguas romnicas, as slabas

    eram caracterizadas pela durao e pela altura, e no pela in-

    tensidade). Podiam-se substituir algumas das breves por lon-

    gas, e vice-versa, desde que estivessem em determinadas posi-

    es. Tal procedimento gerava muitas possibilidades de varia-

    o rtmica, sem que se modificasse, substancialmente, o ver-

    so. Da, talvez, a razo pela qual nem o romano nem os demais

    povos itlicos tivessem procurado outras solues mtricas.

    Com o verso satrnio foram compostos todos os cnticos

    latinos produzidos na poca primitiva. Embora tais cnticos no

    possam, a rigor, ser considerados como formas literrias pro-

    priamente ditas - faltam-lhes para isso o status de obras escri-

    tas e as caractersticas mnimas dos textos artsticos - , no

    deixam de ser embries literrios, anunciando, j, os futuros

    gneros: o pico, o dramtico, o lrico, o satrico e o didtico.

    Esses gneros, porm, como veremos adiante, s vo desa-

    brochar e produzir frutos no momento em que o romano, j

    preparado para conhecer o requinte de uma literatura mais cul-

    tivada, defrontar-se com a poesia que se produziu na Grcia.

    A partir da, nasce a verdadeira literatura latina. Impor-

    tam-se modelos que passam a ser imitados. Roma, que vinha

    impondo-se perante o mundo pelas armas e pela fora, no

    poderia ficar aqum de outros povos em termos de produo

    artstica e literria. Tenta-se, pois, atingir o nvel dos modelos

    que vm de fora, e, se possvel, super-los. A luta foi rdua

  • A POESIA LATINA | 5

    mas, em muitos casos, a literatura latina conseguiu ser criati-

    va e original. O estudo, gnero por gnero, dos principais au-

    tores e das obras mais importantes que produziram, procura-

    r mostrar tal fato.

  • A P O E S IA P IC A

    Quando nos referimos poesia pica somos levados, de

    imediato, a pensar no gnero a que se filiam as narrativas em

    verso que tm por assunto fatos heroicos, vividos por perso-

    nagens humanas excepcionais, manipuladas, de certa manei-

    ra, pelo poder dos deuses. A tradio grega responsvel por

    essa conceituao.

    A pica, entretanto, est presente em quase todas as cultu-

    ras. Raros so os povos que no tm suas histrias, que no

    cultuam seus heris e no procuram preservar a lembrana

    dos fatos que viveram. O registro desses fatos s foi possvel,

    at bem pouco tempo, pela palavra. Como, porm, a palavra

    oral se desgasta e se corrompe com freqncia, tornou-se ne-

    cessrio o encontro de formas que lhe garantissem a fixao.

    A escrita s apareceu tardiamente entre as civilizaes; o meio

    encontrado para fixar a narrativa foi, ento, o verso. Fechado

    em sua rigidez, memorizvel com facilidade graas ao ritmo

    meldico de que se constitui e aos recursos mnemnicos de

    que se vale, o verso assegura sua prpria permanncia e sua

    quase total imutabilidade. A soluo grega de encerrar a lem-

  • A POESIA LATINA | 7

    brana dos fatos na cadncia rtmica dos versos no exclusi-

    vidade do povo helnico. So numerosas as civilizaes que,

    antes mesmo de conhecerem a escrita, tiveram suas epopeias

    orais em versos.

    No caso particular de Roma, pouco se sabe sobre a exis-

    tncia de uma pica natural, produzida no prprio corao

    de sua cultura, sem ter sofrido influncias externas. Na poca

    primitiva, embora tenham existido numerosas formas poti-

    cas que se realizavam em cnticos, o contedo pico dessas ma-

    nifestaes pr-literrias discutvel. Supe-se que nos cnti-

    cos convivais (carmina conuiualia), entoados durante os ban-

    quetes, fossem lembrados feitos gloriosos de Roma e velhas

    lendas histricas o que teria preservado lembranas do pas-

    sado, retomadas, mais tarde, pelos historiadores. So, entre-

    tanto, apenas suposies. Cato - erudito romano que viveu

    entre os sculos III e II a.C. - fala da existncia, na poca pri-

    mitiva, de cantos heroicos, cujo assunto girava em torno das

    realizaes de Rmulo, dos feitos dos primeiros reis, da vida

    de Horcio, Coriolano e outras personalidades famosas. Tais

    informaes, todavia, carecem de maior comprovao.

    Assim sendo, o primeiro texto pico, propriamente dito, a

    surgir em Roma, em latim, no uma epopeia natural, ema-

    nada das razes culturais do povo. a traduo da Odisseia,

    feita por um grego tarentino, Lvio Andronico (Liuius Andro-

    nicus 285?-204? a.C.).

    No se conhece a data exata em que se realizou tal traba-

    lho, mas tudo indica que a traduo foi feita nas proximi-

    dades do ano 240 a.C.

    J nos referimos, anteriormente, vitria de Roma sobre

    Tarento, em 272 a.C., e j lembramos o fato de ter sido essa

    cidade um dos muitos ncleos irradiadores da cultura helni-

  • 8 | A LITERATURA LATINA

    ca. Entre os prisioneiros de guerra, levados ento para Roma,

    havia um adolescente cujo nome era Andronico. Tornando-se

    escravo da famlia Lvia, adotou o nome de seus senhores em

    combinao com o seu, como era habitual. Desde cedo Lvio

    Andronico se ocupou da educao de meninos, mas, na con-

    dio de preceptor e mestre de primeiras letras, esbarrou em

    uma primeira dificuldade: a falta de textos adequados para o

    ensino. A educao grega, em sua primeira fase, exige o ma-

    nuseio de textos literrios. por meio deles que se procede

    alfabetizao da criana e que se ministram a ela as primeiras

    noes de histria, geografia, tica, mitologia e religio. A no

    existncia de textos para esse fim levou Lvio Andronico a tra-

    duzir a Odisseia. Em seu trabalho de traduo, ele se utilizou

    do grosseiro e primitivo verso satrnio, to diferente dos so-

    noros versos gregos, e teve de lutar tambm, certamente,

    com a pobreza de um vocabulrio no afeito ao tratamento

    literrio.

    A traduo de Lvio Andronico, entretanto, por medocre

    e rudimentar que fosse, ao lado de tornar o poeta conhecido

    da sociedade, colocou o romano em contato direto com um

    texto literrio grego, embora traduzido, e propiciou o apare-

    cimento de outros poemas picos.

    E as epopeias latinas comearam a surgir.

    Nvio (Naeuius ?-201 a.C.), contemporneo de Lvio

    Andronico e natural da Campnia, onde nasceu em data ig-

    norada, no tardou a seguir os passos do escravo de Tarento,

    escrevendo A guerra pnica (Poenicum bellum), o primeiro

    poema pico composto originalmente em latim. Utilizando-

    -se ainda do verso satrnio e extraindo o assunto de fatos reais

    - a guerra travada entre romanos e cartagineses, de 264 a 241

    a.C. - , Nvio soube mesclar a histria mitologia, atribuindo

  • A POESIA LATINA | 9

    causas sobrenaturais aos acontecimentos. Pelos fragmentos

    que restam de Aguerra pnica - algumas dezenas de versos -

    podemos observar certa irregularidade no estilo do poeta: gran-

    dioso nos trechos mitolgicos, pobre e rido nos trechos his-

    tricos. No se pode negar-lhe, contudo, o mrito de ter sido

    um inovador.

    nio (Quintus Ennius 239-169 a.C.) prossegue no cami-

    nho iniciado por Nvio e compe alguns anos mais tarde o

    poema Anais (Annales), usando pela primeira vez o hexmetro

    grego - verso apropriado para a poesia pica - e ampliando o

    vocabulrio potico com a criao de neologismos construdos

    moda helnica. O poema de nio era bastante extenso, com-

    pondo-se de dezoito livros, nos quais o poeta procurou contar

    toda a histria de Roma. Como Nvio, nio deteve-se em

    consideraes sobre a origem mitolgica da cidade, reservan-

    do os seis primeiros livros para explorar histrias lendrias, re-

    ferentes poca dos reis. Nos demais, com a preciso - e a

    aridez, poderamos acrescentar - de um pontifex que registra

    fatos at certo ponto corriqueiros, nio relatou, minuciosa-

    mente, acontecimentos que marcaram, de alguma forma, a his-

    tria romana.

    Pelos fragmentos do poema que chegaram at nossos dias

    - cerca de 600 versos - , pode-se verificar algumas das caracte-

    rsticas do poeta: o gosto pelo epteto (herana da epopeia ho-

    mrica), o emprego de comparaes, o cuidado com o colori-

    do descritivo e a vivacidade de certas cenas.

    Depois de nio, a poesia pica romana s vai encontrar

    um grande momento cerca de cento e cinquenta anos mais

    tarde, com Virglio, j nos dias de Augusto. A que se manifes-

    tou na primeira metade do sculo I a.C. tem pouca significa-

    o: poemas mitolgicos como Io (Ios), de Licnio Calvo, ou

  • 10 | A LITERATURA LATINA

    Argonutica (Argonautica), de Varro de tax, e poemas hist-

    ricos como Aguerra sequnica (Bellum Sequanicum), do mes-

    mo autor, no chegaram a ter grande importncia, nem sequer

    na poca em que foram escritos.

    A epopeia de Virglio

    Virglio (Publius Vergilius Maro - 70-19 a.C.) o pico la-

    tino por excelncia, o poeta nacional do Imprio. Era j bas-

    tante conhecido nos meios artsticos e intelectuais de Roma

    quando, por solicitao de Augusto, se disps, em 29 a.C., a

    encetar a empresa gigantesca de escrever uma epopeia gran-

    diosa que pudesse ombrear com os poemas homricos. Alm

    de alguns trabalhos poticos escritos na juventude, Virglio j

    havia composto, por essa poca, as duas grandes obras que lhe

    asseguraram a fama de poeta de primeira linha: as Buclicas,

    coletnea de poemas pastoris, e as Gergicas, poema didtico

    elaborado por solicitao de Mecenas.

    Conhecendo suas qualidades e sabedor de que o poeta se

    dispunha a operar como porta-voz da poltica imperial, Au-

    gusto o incumbiu da nova misso. Durante dez anos - de 29 a

    19 a.C. - , Virglio trabalhou na composio de sua epopeia,

    a Eneida (Aeneis). No chegou, todavia, a dar-lhe o ltimo

    polimento.

    Diz a tradio que o poeta, percebendo a proximidade da

    morte e sabendo que no haveria tempo para dar ao poema a

    forma final, recomendou que o texto fosse destrudo. Augus-

    to, entretanto, no permitiu que o desejo do poeta fosse satis-

    feito. De um lado, a Eneida j era conhecida do pblico: du-

    rante o longo perodo de tempo em que se processou a com-

  • A POESIA LATINA | 11

    posio, partes isoladas foram sendo divulgadas, lidas, prova-

    velmente, em sesses literrias particulares e pblicas. De outro

    lado, no se justificava a destruio. Mesmo no estando ter-

    minado definitivamente, no se pode dizer que seja um texto

    inconcluso. Faltam-lhe apenas os ltimos retoques: substitui-

    o, talvez, de uma ou outra palavra, complementao de al-

    guns versos incompletos. No mais, o poema est pronto, per-

    feito. E apresenta a grandiosidade das obras-primas que se su-

    perpem ao tempo, resistindo-lhe s investidas e no se subor-

    dinando aos caprichos ocasionais das modas literrias.

    Compondo-se de doze cantos, ou livros, num total de

    9.826 versos, a Eneida , a um tempo, um poema mitolgico

    e uma ufanista homenagem ao Imprio que se formava. A

    lenda narrada no correr do texto - a histria da acidentada

    viagem de Eneias, prncipe troiano salvo da guerra para fun-

    dar a nova Troia, e das duras lutas que travou no Lcio - um

    pretexto para a exaltao de Roma e de Augusto, para a valo-

    rizao do romano e de seus feitos remotos e recentes, para a

    sntese das correntes filosficas ento difundidas em Roma,

    numa demonstrao da vasta erudio do poeta em todas as

    reas do conhecimento.

    Baseando-se nas epopeias homricas, mas utilizando-se de

    vrias outras fontes - os trgicos gregos, a lrica alexandrina, a

    histria e a epopia latinas - , Virglio comps um texto em que

    se aliam a grandeza da poesia da Grcia clssica e a sofistica-

    o das formas literrias modernas, desenvolvidas no requinte

    do ambiente cultural de Alexandria.

    Assim se desenrola o assunto lendrio nos doze cantos que

    compem a obra:

    Canto I - Atingidos por violenta tempestade provocada

    por Juno, a deusa inimiga de Troia, os navios de Eneias e de

  • 12 | A LITERATURA LATINA

    seus companheiros so arremessados s praias do norte da fri-

    ca. Dido, a rainha da Cartago, acolhe os nufragos e lhes ofe-

    rece um banquete de boas-vindas durante o qual, graas a um

    estratagema de Vnus, se apaixona por Eneias.

    Canto I I - Por solicitao de Dido, Eneias relata a histria

    da guerra de Troia, enfatizando os episdios que lhe determi-

    naram o fim: o aprisionamento do grego Sino, instrudo por

    Ulisses para enganar os troianos, a introduo do cavalo de

    madeira na cidade, a sada dos soldados escondidos na calada

    da noite, a batalha noturna, o incndio, o ataque ao palcio do

    rei e a vitria dos gregos.

    Canto III- Continuando a narrao, Eneias relata rainha

    as peripcias que marcaram a viagem dos troianos: as escalas

    na Trcia e em Creta, a partida para a Itlia, o encontro com

    as harpias, a chegada ao Epiro e Siclia e a morte de Anqui-

    ses, seu velho pai.

    Canto IV- Violentamente apaixonada por Eneias, Dido

    se vale de um encontro aparentemente casual, durante uma

    tempestade, para entregar-se ao chefe troiano. Censurado por

    Jpiter, que lhe envia Mercrio como emissrio, Eneias aban-

    dona Cartago, disposto a cumprir a misso para a qual fora

    preservado. Dido, desesperada, suicida-se.

    Canto V- Chegando novamente Siclia, Eneias realiza

    jogos fnebres em homenagem ao primeiro aniversrio da

    morte de Anquises.

    Canto VI - Fazendo uma escala em Cumas, Eneias con-

    sulta uma sacerdotisa de Apolo. Toma cincia do que o espe-

    ra, no futuro, e obtm permisso para fazer uma visita ao rei-

    no dos mortos, onde se encontra com Anquises.

    Canto VII- Eneias chega regio do Tibre, envia embai-

    xadores ao rei Latino e este oferece ao chefe troiano a mo de

  • A POESIA LATINA | 13

    sua filha, Lavnia. Amata, a rainha, se enfurece com a aliana,

    o mesmo ocorrendo com Turno, chefe rtulo a quem a moa

    fora prometida em casamento.

    Canto VIII- Eneias procura fazer aliana com o rei Evan-

    dro enquanto Vnus solicita a Vulcano armas para o troiano.

    Canto IX - Eclode a guerra. Turno ataca os acampamen-

    tos de Eneias e dois jovens troianos, Niso e Euralo, tm opor-

    tunidade de mostrar seu valor, embora encontrando a morte.

    A guerra prossegue.

    Canto X - Jpiter procura conciliar Juno e Vnus, a fim

    de que a guerra chegue ao fim. A violncia, entretanto, conti-

    nua. H perdas importantes de ambos os lados.

    Canto XI- Faz-se uma trgua para que se enterrem os mor-

    tos; cogita-se numa proposta de paz; os exrcitos inimigos,

    todavia, se defrontam. A carnificina terrvel e morre Cami-

    la, rainha dos volscos, aliada de Turno.

    Canto XII Vendo o exrcito desanimado, Turno se dis-

    pe a enfrentar Eneias num duelo; firmam-se as condies,

    mas o tratado violado; uma seta fere Eneias e Vnus o cura. O

    exrcito troiano chega at os muros da cidade e Amata se sui-

    cida. Trava-se o combate singular entre Eneias e Turno. O che-

    fe troiano vence o inimigo e o sacrifica.

    No decorrer da narrativa, a todo momento, Virglio en-

    contra oportunidades para exaltar Roma, expressando o sen-

    timento nacionalista. Nos versos iniciais do poema j se per-

    cebe a inteno do poeta. Na primeira referncia feita a Juno,

    no incio do Canto I, Virglio explica a razo do dio que a

    deusa nutria pelos troianos e, sobretudo, por Eneias. Dispos-

    tos a fundar a nova Troia - ou seja, Roma - , os remanescentes

    da guerra no hesitaram em enfrentar os mares e os perigos de

  • 14 | A LITERATURA LATINA

    uma longa viagem. Juno, porm, em sua oniscincia divina,

    sabia que a cidade a ser fundada pelos descendentes dos troia-

    nos seria, no futuro, a causa da queda de Cartago e esta era

    consagrada deusa e por ela amada com especial carinho. Da

    as tentativas que faz para alterar a ordem das coisas, procuran-

    do impedir Eneias de realizar seus desgnios: suborna olo,

    deus dos ventos, fazendo-o provocar a tempestade que levaria

    os navios troianos ao naufrgio; auxilia Vnus a maquinar o

    encontro amoroso de Eneias e Dido; instiga Amata a comba-

    ter o troiano. Nada, porm, surte o efeito desejado. Eneias su-

    pera todos os obstculos e assegura a fundao de Roma, a fu-

    tura senhora do mundo.

    No correr do Canto I, h mais um momento em que o na-

    cionalismo se exalta: quando Jpiter procura tranqilizar V-

    nus no tocante ao futuro dos troianos e lhe fala dos dias vin-

    douros, da glria de Roma e dos feitos grandiosos de Augusto:

    Nascer de uma nobre origem, descendente da famlia Jlia

    que tirou seu nome do grande Iulo, um Csar troiano que esten-

    der seu imprio at as guas ocenicas e sua fama at os astros.

    Tu, tranqila, o recebers um dia, no cu, carregado com o esp-

    lio do Oriente; e ele tambm ser invocado com votos.

    (Verg. Aen. I, 286-289)

    No Canto VI, quando Eneias encontra seu pai Anquises

    no reino das sombras e o ancio o acompanha por algumas das

    regies infernais, aparece novamente a marca do nacionalis-

    mo. No ltimo setor do mundo dos mortos, o velho troiano

    mostra ao filho as almas que aguardavam o momento de reen-

    carnar-se e apresenta-lhe os futuros heris do povo romano:

    Augusto, Numa Pomplio, os Dcios, os Drusos, Csar, Pom-

    peu, Paulo Emlio, Cato. As palavras que Anquises pronun-

  • A POESIA LATINA | 15

    cia ao apresentar a Eneias os espritos dos Marcelos correspon-

    dem exaltao do povo de Roma, naquilo que ele tinha de

    grandioso e peculiar:

    Outros povos trabalharo com mais delicadeza os bronzes que

    parecem respirar - assim creio eu - e tiraro do mrmore rostos

    que parecem vivos, discursaro melhor em suas causas, descreve-

    ro com o compasso o espao do cu e discorrero sobre os astros

    que surgem. Quanto a ti, romano, lembra-te de governar os ou-

    tros povos com o teu poder. Esta ser a tua arte: impor as condi-

    es de paz, poupar os vencidos, destruir os soberbos.

    (Verg. Am. VI, 847-853)

    No Canto VII, ao relatar o episdio da chegada dos troia-

    nos ao Lcio, Virglio faz referncias ao rei Latino, soberano da

    regio, e consulta feita por ele ao orculo de Fauno. Nas pa-

    lavras profticas da divindade, h nova aluso ao valor do futu-

    ro romano:

    No procures unir tua filha a um esposo latino, meu filho, e

    no confies no casamento combinado. Viro de fora os genros que,

    por sua prognie, elevaro nosso nome at os astros; os descenden-

    tes dessa raa vero que a seus ps se curva, deixando-se dominar,

    tudo aquilo que o sol ilumina ao percorrer seu caminho entre os

    dois oceanos.

    (Verg. Am. VII, 96-100)

    Finalmente, no Canto VIII, a descrio do escudo que Vul-

    cano forja para Eneias, a pedido de Vnus, mostra-nos que ali

    se achavam esculpidos, em artsticos relevos, os feitos grandio-

    sos que iriam marcar o destino de Roma.

    Muitas vezes a Eneida foi considerada como uma espcie

    de decalque das epopeias homricas. Trata-se, a nosso ver, de

  • 16 | A LITERATURA LATINA

    uma postura que no faz justia arte e s qualidades de Vir-

    glio. O poeta romano inspira-se nos textos gregos, indiscu-

    tvel. E tal procedimento dificilmente poderia ser diferente,

    uma vez que a moda literria da poca preconizava essa ati-

    tude: se havia modelos perfeitos, a perfeio deveria ser imita-

    da. A Eneida, porm, no pode ser considerada como cpia

    vulgar dos poemas homricos. Mantendo pontos que haviam

    sido explorados na poesia da Grcia, Virglio soube ser origi-

    nal e, sobretudo, romano. Alguns dos trechos mais belos da

    Eneida testemunham essa originalidade: a histria da trgica

    paixo de Dido (Canto IV); o sonho de Eneias comTiberino,

    divindade personificadora do Tibre (Canto VIII); o passeio

    feito por Eneias em companhia de Evandro no local em que

    seria fundada a futura Roma (Canto VIII); o desespero da me

    de Euralo ao saber da morte do filho (Canto IX); a descrio

    da morte de Camila, rainha dos volscos (Canto XI).

    Mesmo nos trechos inspirados em obras de outros auto-

    res, Virglio consegue mostrar sua criatividade e seu poder de

    inovar. Assim ocorre, por exemplo, no Canto VI, quando o

    poeta relata a viagem de Eneias ao mundo dos mortos. Se na

    Odissia encontramos um relato semelhante - o do contato

    de Ulisses com o reino de Hades - , os detalhes que compem

    tais narrativas so diferentes. O relato homrico linear: aber-

    tas as portas da manso subterrnea, o rei de taca v o desfi-

    lar das almas pretexto, talvez, para a evocao de velhas

    lendas. O de Virglio complexo, permeado de solues no-

    vas. O poeta romano no s introduz o pormenor do enig-

    mtico ramo de ouro (passaporte para a entrada na casa dos

    espritos) e a presena de uma sibila que conduz o troiano,

    como opta por um mundo infernal dividido em setores distin-

    tos, cada um com sua peculiaridade. Na pintura desse mundo

  • A POESIA LATINA | 17

    no se detm apenas na referncia a episdios mitolgicos;

    vale-se da oportunidade para aludir a algumas das teorias filo-

    sficas que se ocuparam da ps-morte: a platnica, a pitagri-

    ca, a neoplatnica, a rfica; aproveita dados da doutrina estoi-

    ca e encontra o momento adequado para exp-los; funde na

    mesma realidade o mito e a histria; compe uma narrativa

    em que se evidencia, acima de tudo, o simbolismo alegrico.

    O mesmo se pode dizer do trecho em que descrito o es-

    cudo de Eneias: Virglio se inspira em Homero, mas modifica

    os pormenores. Aquiles, na Ilada, possui, certo, um escudo

    de fabricao divina, onde h a reproduo de cenas da vida

    cotidiana. O de Eneias, porm, apresenta esculpidos os gran-

    des momentos da futura histria romana.

    Os deuses de Virglio so diferentes dos de Homero. Tm

    uma contextura mais humana, submetem-se ao Destino e s

    leis que comandam o universo. As personagens humanas so

    construdas com mais complexidade e revelam, por vezes, ca-

    ractersticas tipicamente romanas.

    Dido uma criao inesquecvel, quer no momento em

    que exibe sua personalidade de rainha organizadora e realiza-

    dora, quer nos dias em que trava terrvel luta interior, bata-

    lhando, impotente, entre o pudor e a paixo, quer quando,

    desesperada e j decidida a cometer suicdio, amaldioa o

    amante que parte, com palavras candentes em que se extrava-

    sam, simultaneamente, o dio e o amor:

    Nem uma deusa tua me, prfido, nem Drdano o ances-

    tral de tua gente. O rido Cucaso te gerou, em suas penedias s-

    peras, e as tigresas da Hircnia te ofereceram as tetas. Por que devo

    dissimular? Para que coisas maiores me reservo? Acaso sofre ele

    com meu pranto? Acaso baixa o olhar? Acaso, comovido, verte l-

    grimas ou tem compaixo de quem o ama?

    [...]

  • 18 | A LITERATURA LATINA

    Vai, segue para a Itlia com os ventos. Alcana teu reino pelas

    ondas. Espero, entretanto, se as pias divindades podem algo, que

    sofras as maiores desventuras no meio dos rochedos e que Dido

    seja invocada muitas vezes por seu nome. Embora ausente, eu te

    acompanharei com negras tochas e quando a plida morte hou-

    ver separado meus membros do esprito estarei presente, como

    sombra, em todos os lugares. Sofrers teu castigo, perverso, e dis-

    so eu saberei: a Fama vir at mim, nas profundezas dos manes.

    (Verg. Am. IV, 365-370/381-387)

    A prpria personalidade de Eneias - que para alguns se afi-

    gura como inexplicvel e contraditria - compreensvel em

    suas caractersticas. Nos primeiros livros, o chefe troiano no

    deixa entrever seu lado heroico. Mero joguete dos deuses,

    apenas obedece a ordens, sem praticamente agir. Aps o retor-

    no do Inferno, transmuda-se, adquirindo os contornos do ver-

    dadeiro heri. Parece que a atitude do poeta intencional nessa

    complexidade de construo: o poema, com seu tom nacio-

    nalista e seu carter de obra a servio da poltica imperial,

    procura valorizar as virtudes cultuadas pelos romanos dos ve-

    lhos tempos, sobretudo a piedade - apietas - , ou seja, a cons-

    ciente submisso aos deuses, a resignao com a prpria con-

    dio, o profundo senso do dever.

    O estilo de Virglio puro e elegante. O vocabulrio

    rico, preciso e pitoresco. A frase suave e harmoniosa. A versi-

    ficao correta. O ritmo, variado em suas limitaes, ade-

    quado ao assunto explorado a cada momento. Belas imagens

    ponteiam o texto, no qual figuras retricas de todos os tipos

    se apresentam com naturalidade, sem provocar a impresso

    de sobrecarga.

    Apreciado por seus contemporneos, considerado modelo

    no Baixo Imprio, lido e admirado na Idade Mdia, Virglio

  • A POESIA LATINA | 19

    inspirou a epopeia renascentista. Dante e Cames so os pi-

    cos modernos que, mais de perto, se deixaram influenciar pelo

    autor da Eneida.

    A poesia pica ps-virgiliana

    Nenhum poeta latino, aps Virglio, teve condies de

    compor uma epopeia que se nivelasse com a Eneida. Nos dias

    de Augusto, outros escritores se dedicaram a obras picas:

    Vrio Rufo escreveu Sobre a morte (De morte), epopeia de

    cunho filosfico; Domcio Marso comps um poema mito-

    lgico, A guerra das amazonas (Amazonides); Albinovano

    Pedo, alm de uma epopeia mitolgica, Teseida ( Theseis),

    comps um poema histrico sobre as guerras no Reno, em

    homenagem a Germnico. Tambm se dedicaram pica

    histrica Rabrio, com A guerra do Egito (Bellum Aegyptia-

    cum ), e Cornlio Severo com A guerra scula (Bellum Sicu-

    lum ), cujo heri Otvio. Nenhum desses poemas logrou

    atingir a posteridade; de alguns temos pequenos fragmentos,

    conservados por outros autores.

    Na poca de Nero, um jovem poeta se disps, novamente,

    a enfrentar a epopeia histrica: Lucano (Marcus Annaeus Luca-

    nus - 39-65). Conhecido por seu talento potico desde a pri-

    meira juventude, autor de numerosas outras obras - perdidas,

    infelizmente Lucano teve a audcia de abandonar a tradio

    virgiliana, ao escrever seu poema pico Farslia (Pharsalia) sem

    se utilizar de elementos mitolgicos.

    Embora seja uma obra inacabada, os dez livros que chega-

    ram a ser escritos permaneceram at nossos dias. Neles o poe-

    ta narrou a guerra civil travada entre Jlio Csar e Pompeu e

  • 20 | A LITERATURA LATINA

    considerada como causa da queda do regime republicano em

    Roma. Lucano inicia o texto fazendo uma invocao a Nero.

    Depois de traar o perfil dos dois generais inimigos, o poeta

    relata o episdio do Rubico (Livro I). Nos demais livros en-

    contramos narrativas do cerco de Brundsio, quando as tropas

    de Csar sitiaram as de Pompeu, obrigando-o a refugiar-se na

    Grcia (Livro II), do cerco de Marselha e das campanhas de

    Csar na Espanha (Livros III e IV), do cerco de Dirrquio (Li-

    vros V e VI), da campanha da Tesslia e da batalha de Farslia

    (Livro VII), do assassnio de Pompeu no Egito (Livro VIII),

    dos feitos de Cato na frica (Livro IX) e da guerra de Alexan-

    dria (Livro X).

    Criativo e sensvel, Lucano soube dar um sopro pico a

    seu poema, embora desprezasse os recursos comuns da epo-

    peia, tais como as intervenes divinas e as mquinas picas.

    Vivendo num momento em que a pureza clssica comeava a

    ser substituda pela bizarria das formas, pela sobrecarga de

    elementos ornamentais e retricos e pelo abuso da nfase, Lu-

    cano no fugiu aos hbitos da poca: a Farslia repleta de fi-

    guras, de efeitos artificiais e de preciosismos.

    Dominando a arte de escrever, recheando seu texto de be-

    las descries, de oraes, retratos, digresses e narrativas de

    sonhos e prodgios, Lucano no soube, entretanto, conservar

    a uniformidade de tom no correr dos livros. Nos trs primei-

    ros, publicados durante a vida do poeta, nota-se certa iseno

    no que diz respeito crtica ao sistema poltico ento vigente.

    Nos ltimos, escritos aps um desentendimento com Nero -

    desentendimento que determinou a proibio da publicao

    dos livros finais, a ruptura com o imperador, a participao

    do poeta na conjurao de Piso e sua condenao morte ,

    percebe-se nitidamente a posio de Lucano diante do regi-

  • A POESIA LATINA | 21

    me: exaltando o esprito republicano, encarnado em Pompeu

    e, sobretudo, em Cato, valorizando as virtudes que haviam sido,

    no passado, o apangio do romano, o poeta combate o despo-

    tismo, a ambio e a crueldade de que Nero, sem dvida, re-

    presentava o exemplo.

    Aps Lucano so poucos os poetas picos latinos dignos

    de meno. Na poca de Vespasiano (69-79), Valrio Flaco,

    retomando a antiga lenda de Argo, escreveu Argonutica (Ar-

    gonautica), no chegando, entretanto, a completar o poema;

    Slio Itlico, inspirando-se em Tito Lvio e utilizando recursos

    j explorados por Virglio, comps, sem muito brilho e regu-

    laridade, a epopeia Pnica (Punica), poema histrico em que

    narra fatos ocorridos durante a segunda guerra travada entre

    romanos e cartagineses.

    Nesse perodo, o poeta pico mais importante Estcio

    (Publius Papinius Statius - 40?-96), autor de duas epopeias:

    a Tebaida ( Thebais) e a Aquileida (Achilleis). Na primeira,

    composta de dezessete cantos, Estcio retoma o tema da guer-

    ra que se travou entre os filhos de dipo; na segunda, inaca-

    bada, pretendeu explorar os feitos grandiosos de Aquiles.

    Embora Estcio fosse capaz de escrever com brilho, re-

    velando simultaneamente sensibilidade e conhecimento de

    recursos de retrica, as epopeias se ressentem de falhas de com-

    posio.

    Aps Estcio, a poesia pica latina praticamente desapa-

    rece. H quem considere epopeias crists a Psicomaquia (Psi-

    chomachia) de Prudncio (348-410?), na qual vcios e virtu-

    des travam um combate alegrico, os Feitos da histria espiri-

    tual (Libelli de spiritalis historiae gestis), de Santo Avito (scu-

    lo V), poema sobre a criao do mundo, e a Vida de So

    Martinho (Vita Sancti Martini), de So Fortunato (sculo

  • 22 | A LITERATURA LATINA

    VI), poema escrito ao alvorecer da Idade Mdia, quando o

    Imprio Romano j se fragmentara, perdendo a antiga uni-

    dade poltica.

    Nesses textos, o carter didtico e o moralismo superam,

    de muito, o legtimo sopro pico.

  • A P O E S IA D R A M T IC A : A C O M D IA

    Embora sejam relativamente poucas as informaes que

    temos sobre a existncia de formas embrionrias de teatro, em

    Roma, no perodo ainda considerado pr-literrio, no se

    pode afirmar que o romano s tenha tido contato com as ati-

    vidades dramticas a partir do estreitamento de suas relaes

    com a Grcia. certo que as manifestaes literrias de um

    teatro culto, representadas pelas comdias e pelas tragdias,

    comearam a surgir em Roma na segunda metade do sculo

    III a.C., como imitao da arte helnica. Antes disso, porm

    - e talvez muito antes , os romanos, como de resto os povos

    mediterrneos em geral, haviam desenvolvido artes elementa-

    res de representao cnica, que se manifestavam sobretudo

    em atividades de carter religioso. Nas prprias cerimnias ri-

    tuais que se mantiveram at a poca imperial, e das quais te-

    mos farta documentao, h elementos evidentes de represen-

    tao teatral. Os sacrifcios, a liturgia do matrimnio e o ceri-

    monial fnebre so alguns exemplos do uso de tais elementos.

    Por outro lado, os antigos romanos realizavam procisses reli-

  • 24 | A LITERATURA LATINA

    giosas nas quais se danava e se cantava - como as dos Slios

    e dos Arvais, de que nos ocuparemos mais adiante - e entoa-

    vam, em ocasies especiais (banquetes de npcias, comemo-

    raes sazonais, festas populares), cantos dramatizados, de ca-

    rter licencioso e grosseiro, denominados fesceninos.

    Muitos pretendem ver nesses cantos - que chegaram a ser

    proibidos em algumas oportunidades, em virtude de seu tom

    injurioso e agressivo - uma provvel origem etrusca, uma vez

    que a palavra fescenino parece provir de Fescennia, nome de

    uma cidade toscana situada em territrio falisco. A Etrria era

    bastante afeita ao teatro, s representaes mgico-religiosas e

    s danas. Afrescos etruscos encontrados em velhas tumbas

    mostram figuraes de coreografias; palavras como histrio (his-

    trio, ator) e persona (mscara), incorporadas ao vocabulrio

    latino, so de provvel origem etrusca; danarinos etruscos es-

    tiveram em Roma, em 364 a.C., segundo relata Tito Lvio, a

    fim de realizarem, a pedido das autoridades, uma cerimnia

    propiciatria.

    Essa cerimnia foi de grande importncia para o desen-

    volvimento das atividades teatrais. Grassava, nessa poca, uma

    epidemia e, sem saberem o que fazer para debelar a doena, os

    cnsules instituram jogos cnicos a fim de que fosse invoca-

    da a proteo dos deuses. Os danarinos etruscos foram con-

    vidados a realizar uma sesso de danas gestuais, acompanha-

    das de msica de flauta. Aps o espetculo, os jovens romanos

    passaram a imitar os danarinos, mesclando cantos e brinca-

    deiras satricas a danas gestuais. Nasceu, ento, a satura, pos-

    sivelmente a primeira manifestao do teatro romano pro-

    priamente dito.

    Para que se chegasse, porm, produo dramtica liter-

    ria que caracterizou a segunda metade do sculo III a.C. e a

  • A POESIA LATINA | 25

    primeira metade do sculo II, foi necessrio que Roma to-

    masse contato com as farsas tarentinas - pardias obscenas re-

    presentadas por atores mascarados, das quais a pintura em

    vasos nos d uma ideia - , com a comdia siciliana, o mimo e,

    finalmente, os textos trgicos da antiga Grcia e a chamada

    comdia nova.

    O teatro literrio se inicia em Roma, ao que se sabe, em

    240 a.C. Alguns anos antes, durante os Jogos Romanos que

    se realizavam anualmente em honra de Jpiter, no comeo de

    setembro, os romanos haviam tido oportunidade de assistir a

    um drama grego, representado por ocasio da visita do rei

    Hiero I. S em 240 a.C., porm, ao comemorar-se o primei-

    ro aniversrio da primeira guerra pnica, com a vitria dos

    romanos sobre os cartagineses, que o povo vai ter a possibi-

    lidade de assistir a uma pea representada em latim.

    Para que isso se desse, foi preciso que os edis responsveis

    pelo espetculo encomendassem a Lvio Andronico - que tra-

    duzira anteriormente a Odissia - a traduo de um texto dra-

    mtico a ser representado durante a realizao de Jogos co-

    memorativos. No se sabe qual foi o texto traduzido, nem ao

    menos a que gnero dramtico se prendia. Sabe-se, porm,

    que a pea foi coroada de xito e que o poeta, transformando-

    -se num verdadeiro homem de teatro, passou a acumular fun-

    es de ator, diretor de cena e autor e traduziu (ou adaptou,

    talvez), a partir desse momento, vrios outros textos gregos

    trgicos e cmicos.

    Das tragdias que ele comps h um ou outro escasso frag-

    mento; das comdias nada permaneceu: os prprios ttulos

    so incertos; hesita-se entre Virgus (Avarinha) e Virgo (Adon-

    zela) e entre Ludius (O danarino) e Lydius (O homem da Li-

    dia); apenas em relao a Gladiolus (A espadinha) no parece

  • 26 | A LITERATURA LATINA

    haver maior dvida: ao que tudo indica, tratava-se de uma co-

    mdia inspirada numa obra de Filemo, cujo assunto girava

    em torno de um dos clebres soldados fanfarres, to freqen-

    tes na comdia helnica.

    Ccero e Horcio criticam com certo rigor a comdia de

    Lvio Andronico. Foi ele, entretanto, um desbravador de ca-

    minhos que abriu possibilidades a numerosos sucessores: N-

    vio, nio, Plauto, Ceclio e Terncio, entre outros.

    Da obra dramtica de Nvio e nio tambm no h mui-

    ta coisa a ser dita. H alguns fragmentos das tragdias que es-

    creveram; das comdias, porm, s restaram ttulos. Nvio es-

    creveu 33 peas cmicas, entre as quais A mocinha de Tarento

    ( Tarentilla) e O charlato (Ariolus). Quanto a nio, sabe-se

    apenas que comps uma comdia intitulada Opequeno alber-

    gu e (Caupuncula).

    Como seus continuadores, Lvio Andronico, Nvio e nio

    se inspiraram na comdia nova, modalidade teatral que se de-

    senvolveu na Grcia a partir das trs ltimas dcadas do scu-

    lo IV a.C., tendo como principais representantes Menandro,

    Dfilo e Filemo.

    A comdia nova tem por assunto fatos corriqueiros e en-

    graados, ocorridos entre pessoas pertencentes s mais varia-

    das classes sociais. uma comdia de costumes, que explora,

    sobretudo, o amor contrariado que, aps algumas peripcias

    vividas pelas personagens, consegue triunfar, num final feliz.

    Distingue-se da comdia antiga, que, desenvolvendo-se no s-

    culo V a.C., teve Aristfanes como principal representante e

    cujas caractersticas eram a agressividade, a stira pessoal, os

    ataques a figuras conhecidas da sociedade, o tom poltico; di-

    ferencia-se tambm da comdia mdia, cultuada por Antfanes

    e Alxis, no incio do sculo IV a.C., e caracterizada pela uti-

    lizao de temas mitolgicos.

  • A P O E SIA LA TIN A | 2 7

    Baseando-se nos textos compostos pelos autores que se de-

    dicaram comdia nova, os comedigrafos romanos pratica- ram no raro a contaminao (contaminatio), fundindo nu- ma nica pea duas ou mais obras gregas.

    As histrias desenroladas nas comdias latinas se passam,

    em geral, em cidades da Grcia; as personagens tm nomes

    gregos e as prprias roupas utilizadas pelos atores imitavam as

    vestes helnicas. Da o qualificativo de paliata (palliata) con-

    ferido a tal espcie de comdia: o plio (pallium), usado pelos atores principais, era uma espcie de manto, muito comum

    na Grcia.

    Os tipos freqentes na comdia romana representam tam- bm uma herana grega: a jovem raptada por piratas e subme-

    tida explorao de um mercador-proxeneta (leno); o soldado que parte para o Oriente e retorna com incrveis histrias; o

    parasita que se apega a um protetor e passa a viver a expensas

    deste; os escravos estrangeiros, as flautistas, os msicos.

    As comdias latinas tm estrutura interna semelhante

    das helnicas, mas no possuem coros; apresentam partes fa-

    ladas (diuerbia), geralmente em metros jmbicos, e partes

    cantadas (cantica), nas quais os versos deveriam ser adequa-

    dos melodia, o que talvez seja herana da satura primitiva. Embora houvesse, usualmente, um prlogo, as comdias no

    eram divididas em atos, s vindo a sofrer tal diviso muito

    mais tarde.

    Dessa poca, chegaram at nossos dias as comdias de Plau-

    to e as de Terncio. Perderam-se as de Ceclio, escritor gauls

    que viveu em Roma no incio do sculo II a.C., delas restan-

    do apenas cerca de quarenta ttulos.

  • 2 8 | A LITERATURA LATINA

    As comdias de Plauto

    A exemplo de Lvio Andronico, Plauto (Titus Maccius Plautus - 250?-184? a.C.) foi tambm um verdadeiro homem de teatro, desempenhando simultaneamente todas as funes

    relacionadas com a arte cnica.

    Atribuiu-se a ele a autoria de mais de cem comdias - o

    que jamais veio a ser comprovado. Vinte e uma resistiram at

    nossa poca, conservando-se quase na ntegra e tendo, at

    hoje, alguma atualidade: Anfitrio (Amphitruo), Os burros (Asinaria), A marmita (Aulularia), As Bquides (Bacchides), Os prisioneiros (Captiui), Csina (Casino), O cofre (Cistellaria), O gorgulho (Curculium), Epdico (Epidicus), Os Menecmos (Me- naechmi), O mercador (Mercator), O soldado fanfarro (Miles gloriosus), Ofantasma (Mostellaria), Opersa (Persa), Psudolo (Pseudolus), A corda (Rudens), Estico (Stichus), O trinumo ( Tri- nummus), Truculento (Truculentus), A valise (Vidularia) e O cartagins (Poenulus).

    Anfitrio, Os Menecmos e A marmita esto entre as mais conhecidas.

    Em Anfitrio, Plauto se vale da lenda mitolgica que en- volve o nascimento de Hrcules, construindo uma trama em

    que Jpiter, apaixonado por Alcmena, esposa de Anfitrio,

    adquire as feies do marido ausente e seduz a bela mulher. O

    resultado uma srie de engraadas confuses. Mesclam-se na

    comdia cenas burlescas e srias, conferindo-lhe foros de tra-

    gicomdia. So numerosos os trechos cantados. Desfrutando

    de grande popularidade, graas, em parte, ao erotismo impl-

    cito, a pea de Plauto serviu de modelo para Cames (Auto dos Enfatries), Molire (Anfitrio), Antonio Jos da Silva (Anfi- trio ouJ piter eAlcmena) e Guilherme Figueiredo ( Um deus dormiu l em casa), entre muitos outros.

  • A POESIA LATINA | 2 9

    Os Menecmos uma comdia em que tambm se explora a confuso provocada pela semelhana de pessoas: Menecmo,

    um jovem de Siracusa, chega a Epidano aps ter percorrido

    toda a Grcia procura de um irmo gmeo, desaparecido na

    infncia, em Tarento. Ao desembarcar em Epidano, onde vivia

    o irmo, comea a ser confundido com ele pelas pessoas que

    ali residiam (a amante do irmo, a esposa, o parasita). H uma

    srie de engraados quiproqus que levam, finalmente, ao co-

    nhecimento da verdade. Nessa pea se baseou Shakespeare ao

    escrever A comdia dos erros.

    A marmita , simultaneamente, uma comdia de intriga e de personagem. a histria de um velho avarento, Euclio,

    que encontra na lareira de sua casa uma marmita cheia de

    moedas de ouro, ali escondida anos atrs por seu av. Euclio

    oculta seu achado no templo da Boa-F, mas a marmita des-

    coberta pelo escravo de Licnides, jovem rico e de boa famlia

    que seduzira, alguns meses antes, a filha do avarento. Ao saber

    que seu prprio tio pedira a moa em casamento, Licnides

    resolve reparar seu erro, desposando-a. O escravo devolve a

    marmita a Euclio e este a oferece aos jovens namorados. Em-

    bora algumas partes estejam perdidas, a comdia revela o vir-

    tuosismo de Plauto no manejo dos mais diversos recursos c-

    micos: ao, gestualidade, linguagem, quiproqus, etc. A mar-

    mita inspirou a conhecida pea de Molire, O avarento, bem

    como O santo ea porca, de Ariano Suassuna. Alm dessas comdias - importantes em si mesmas e tam-

    bm pela influncia que exerceram sobre a dramaturgia pos-

    terior -, algumas outras devem ser mencionadas pelas qualida-

    des que apresentam.

    O cofre, A corda, A valise e O gorgulho so peas curiosas nas quais jovens raptadas na infncia descobrem a identida-

  • 3 0 | A LITERATURA LATINA

    de graas a elementos indicadores, tais como joias e outros

    objetos; Estico e Psudolo pem em realce as figuras de escra- vos espertos e trapalhes, mas devotados a seus jovens amos;

    O soldadofanfarro - comdia que inspirou A iluso cmica, de Corneille - extrai sua comicidade das cenas em que um

    militar a servio do rei da Sria se v enganado por seus com-

    panheiros.

    Opersa tem aspectos que lembram os mimos: uma co- mdia movimentada, cheia de cantos e danas exticas; em-

    bora o enredo seja comum (um escravo disfarado em orien-

    tal vende uma moa livre a um mercador e este obrigado a

    arcar com o prejuzo), Plauto se utiliza de grande quantidade

    de expresses burlescas e injuriosas, que provocam, evidente-

    mente, o riso. A comdia Osprisioneiros se diferencia das de- mais pela ao, pelas personagens e pela linguagem: no h

    intriga amorosa e cenas de maroteira, nem personagens-tipo,

    freqentes nas outras obras, tais como mercadores de escra-

    vas, parasitas e soldados fanfarres. A linguagem sbria, sem

    os trocadilhos grosseiros que caracterizam outras comdias. O

    enredo gira em torno da figura de Hegio, pai de um jovem

    que fora aprisionado na guerra da Etlia. O velho compra dois

    escravos para troc-los pelo jovem prisioneiro. Um deles, en-

    tretanto, outro filho de Hegio, que fora raptado por pira-

    tas, na infncia.

    Muitos so os mritos de Plauto, como dramaturgo. Ape-

    sar de no dispormos dos textos gregos que lhes serviram de

    modelo - quase nada da comdia nova resistiu ao impacto do tempo -, h elementos indiscutivelmente originais nas

    peas. certo que os assuntos e os cenrios so gregos; h,

    porm, um processo de romanizao nas comdias: costu-

    mes romanos so evocados a todo momento; deuses latinos

  • A POESIA LATINA | 31

    coexistem com divindades gregas; algumas personagens tm

    os ntidos traos de personalidade que caracterizam o povo

    romano. Temos, em A marmita, exemplos excelentes desse processo: o prlogo recitado pelo deus Lar, a divindade

    protetora da famlia romana, sem similar na teogonia hel-

    nica; h referncias ao costume romano de distribuir-se, na

    cria, moedas de prata aos cidados pobres; a marmita con-

    tendo ouro escondida no templo da Boa-F, outra divin-

    dade autenticamente latina; uma das personagens, a velha

    Eunmia, tem a energia e a autoridade de uma tpica matro-

    na romana.

    Os prlogos de Plauto so originais. Alm de haver ele con-

    cebido um tipo de prlogo que podemos considerar didti-

    co", no qual se oferecia ao pblico um resumo da pea a ser

    representada, para melhor entendimento, temos neles, por

    vezes, interessantes informaes. Em O cartagins, por exem- plo, o ator que recita o prlogo faz referncias ao pblico que

    freqentava o teatro:

    Estou com vontade de imitar o Aquiles de Aristarco: Vou usar o mesmo comeo daquela tragdia:

    Faam silncio, calem-se e prestem ateno:

    quem ordena que vocs ouam o rei de Histri...onice. Sentem-se em seus bancos com boa disposio de esprito:

    tanto os que no comeram como os que esto de barriga cheia. Os que comeram, agiram com a cabea;

    Os que no comeram, que se fartem, agora, com a comdia.

    Quem tinha o que comer, puxa vida!

    foi burrice ter vindo sem comer. Vamos, anunciador, mande o pessoal prestar ateno.

    Faz horas que estou esperando que voc faa a sua parte.

    Use sua voz; ela que lhe d meios de vida e comida.

    Se voc no falar, morrer de fome, calado.

    [...]

  • 3 2 | A LITERATURA LATINA

    E vocs, agora, observem minhas ordens: que nenhuma prostituta se sente aqui na frente,

    [...] que os escravos no ocupem o lugar dos homens livres,

    [...] que as amas cuidem das crianas pequenas em casa,

    em vez de traz-las para verem o espetculo; assim elas no precisam sentir sede, as crianas no morrem de fome

    e no berram aqui, como cabritos desmamados; que as senhoras vejam o espetculo em silncio, que

    riam silenciosamente,

    e que saibam moderar, aqui, o rudo de suas vozes esganiadas;

    que elas tagarelem em casa para que, ao menos aqui,

    no irritem os homens como fazem quando esto em casa.

    (Pl. Poen. 1-35)

    Plauto no se descura de nenhum dos recursos que pos-

    sam produzir hilaridade, provocando gargalhadas. A intriga

    engraada, havendo comdias, como A marmita, Epdico, O

    trinumo, em que duas intrigas se cruzam. A ao dramtica cuidada, cheia de surpresas e reviravoltas. O cmico de gestos

    insinuado constantemente, sobretudo nas cenas de correria

    e pancadaria. As palavras que o escravo Estrobilo dirige ao ve-

    lho avarento, em A marmita, sugerem os gestos que acompa- nham as falas:

    Que loucura esta? O que que eu tenho com vocs?

    Por que maltratar-me desse jeito?

    Por que voc me puxa? Por que me bate?

    (Pl. Aul. 632-633)

    As personagens muitas vezes so construdas especialmen-

    te para produzirem o riso; da seu carter frequentemente ca-

  • A POESIA LATINA | 3 3

    ricatural. Os escravos merecem especial ateno do escritor.

    Embora exageradas, as figuras de Plauto tm personalidade

    prpria. Por essa razo estranha-se que em Csina os figuran- tes se assemelhem a fantoches - fato explicvel, no entanto, se

    considerarmos a obra em questo como uma espcie de stira

    contra a obscenidade.

    A linguagem de Plauto extremamente trabalhada como

    recurso cmico em si. Manejando a lngua, o escritor se vale

    de todas as oportunidades para demonstrar sua capacidade de

    comedigrafo hbil em fazer rir. Os nomes das personagens so

    muitas vezes estranhos e engraados: Filoplemo, Engsilo, Es-

    talagmo (Os prisioneiros); Terapontgono (O gorgulho); Ago- rstocles, Anterstila, Antemnides, Colibisco, Sincerasto (O

    cartagins); Arttrago, Pirgopolinice (O soldado fanfarro). Neologismos e helenismos ponteiam o texto, provocando efei-

    tos engraados. Em O cartagins, Plauto insere numerosas fra- ses em idioma pnico, provavelmente desconhecido, mas ex-

    celente como recurso cmico, graas presena de combina-

    es fnicas inusitadas.

    Grande parte desses recursos se perde na traduo. Difi-

    cilmente podem ser mantidas, em outro idioma, as aliteraes

    colidentes, as repeties cheias de comicidade, os trocadilhos

    espirituosos, maliciosos, muitas vezes, responsveis por expres-

    sivo nmero de confuses.

    Todos esses elementos, combinados, garantiram a Plauto

    a popularidade e o sucesso de que desfrutou, o renome que

    veio a ter mais tarde e a fama duradoura que o acompanhou,

    estendendo-se posteridade.

  • 3 4 | A LITERATURA LATINA

    As comdias de Terncio

    Bastante diferentes das de Plauto, as comdias de Terncio

    (Publius Terentius Afer 185?-l59 a.C.) so mais sutis, mos- trando que foram escritas para um pblico refinado e culto.

    Embora fosse Terncio um estrangeiro - seu prprio nome

    revela origem africana -, embora tivesse vindo a Roma como

    escravo e se iniciasse muito cedo na vida literria, com menos

    de vinte anos, as seis comdias que escreveu testemunham sua

    habilidade e talento. Como Plauto, Terncio se inspira na co-

    mdia nova, praticando a contaminatio com certa liberdade;

    como Plauto, dedica-se composio de palliatae e assume, tambm, no trabalho teatral, as funes mltiplas de autor,

    ator e diretor de cena. As caractersticas das peas dos dois au-

    tores, todavia, so bastante diferentes. Enquanto Plauto escre-

    ve comdias movimentadas, cheias de correrias, atropelos e

    cenas de pancadaria, Terncio d preferncia a uma ao mais

    tranqila; no faltam, porm, em suas comdias, peripcias

    dramticas e aventuras galantes. Os prlogos de ambos se di-

    ferenciam em sua prpria estrutura: os de Plauto contm,

    quase sempre, um resumo da pea a ser representada (necess-

    rio, evidentemente, dado o nvel cultural do pblico a que se

    destinava); os das comdias de Terncio so verdadeiros ma-

    nifestos pessoais, no se tendo certeza se teriam, realmente,

    sido escritos pelo comedigrafo. O estilo e a linguagem dos

    dois escritores tambm apresentam peculiaridades inconfun-

    dveis. A lngua de Terncio se aproxima da de Plauto no que

    diz respeito presena de traos arcaizantes, mas no se ob-

    servam nas obras daquele a superabundncia de recursos c-

    micos obtidos a partir de uma utilizao especial de signifi-

    cantes e significados. Apesar de um pouco maneiroso, o estilo

  • A POESIA LATINA | 35

    de Terncio polido e elegante. Os vulgarismos e trocadilhos

    que arrancavam gargalhadas dos espectadores das comdias de

    Plauto so substitudos, nas peas de Terncio, por figuras de

    estilo freqentes, mas que no chegam a comprometer o tom

    coloquial da linguagem.

    No que se refere s personagens, Terncio trabalha com as

    figuras tradicionais da comdia nova: velhos, jovens, escravos, cortess, mercadores. Consegue, porm, dar-lhes caractersti-

    cas prprias, analisando-as psicologicamente e afastando-se

    dos tipos meramente convencionais.

    O tom romano que impregna as comdias de Plauto desa- parece em Terncio, cujas peas so helenizadas ao extremo.

    Os prprios ttulos das comdias so em grego: Andria (A moa de Andros), Adelphoe (Os irmos), Hecyra (A sogra), Eu-

    nuchus (O eunuco), Heautontimoroumenos (O autopunidor), Phormion (Frmio). As intrigas so pouco variadas. A predile- o de Terncio recai sobre histrias de belas escravas pelas

    quais se apaixonam jovens de boa famlia, contra a vontade

    dos parentes. Aps algumas peripcias, descobre-se que as mo-

    as so livres e realiza-se o casamento.

    A histria, entretanto, muitas vezes apenas um ponto de

    partida para reflexes de diversas ordens que conferem ao tex-

    to um tom moralizante. o caso de Os irmos, por exemplo, comdia considerada pela crtica como uma das melhores do

    autor, com a intriga bem conduzida, o dilogo vivo e a lin-

    guagem variada. No decorrer dos episdios que a compem,

    tomamos contato com dois velhos irmos, um dos quais en-

    tregara ao outro um de seus dois filhos, para que ele o criasse.

    Os velhos encaram a educao de forma totalmente diferente.

    O pai dos jovens vive no campo e d ao filho que permaneceu

    com ele uma educao severa e rgida; o outro velho, soltei-

  • 3 6 | A LITERATURA LATINA

    ro, vive na cidade e educa o sobrinho com extrema liberali-

    dade. O rapaz, que mantinha relaes com uma moa pobre,

    ajuda o irmo a raptar uma citarista, assume a responsabilida-

    de do ato e desentende-se, por essa razo, com os familiares

    da namorada. As coisas se esclarecem com a ajuda do tio e a

    pea, como no podia deixar de ser, termina bem. Comdia si-

    multaneamente de costumes, de caracteres e de intriga, Os ir-

    mos mostra-nos, ao lado de cenas engraadas, momentos em que a amizade sincera - capaz at mesmo de censurar - se une

    delicadeza de sentimentos e comicidade. O monlogo abai-

    xo, no qual o velho Micio se dirige ao filho adotivo, procu-

    rando faz-lo ver os erros cometidos e aconselhando-o, mostra-

    nos o bom senso do ancio que sabe agir com firmeza, mas tam-

    bm com carinho e amor:

    Eu conheo seu bom carter, mas estou com medo de que voc seja relaxado demais.

    Em que cidade voc pensa que vivemos? Voc abusou de uma moa na qual no tinha o direito de tocar. Foi um erro grave, mas errar humano. Outros j fizeram isso e eram honestos. J que a coisa est feita, tudo bem.

    Mas voc chegou a refletir sobre isso? Chegou a questionar-se

    sobre o que fazer, como fazer? Se voc ficou com vergonha

    de falar comigo, como eu poderia ficar sabendo? Enquanto ficou hesitando dez meses se passaram. Voc enganou sua prpria pessoa, essa infeliz e a criana, que dependiam de voc. O que isso? Voc pensou que os deuses iriam preparar tudo, enquanto voc dormia?

    E que ela iria para sua casa, sem que voc fizesse nada? Eu no gostaria de ver voc continuar assim, desligado de tudo.

    Mas voc tem bom corao. Vai casar-se com ela.

    (Ter. Ad. 684-896)

  • A POESIA LATINA | 3 7

    A comdia togata e tabernaria

    Terncio foi o ltimo comedigrafo importante que se de-

    dicou palliata. Na sua poca vinha-se desenvolvendo, em

    Roma, um novo tipo de comdia, de assunto romano - a co-

    mdia togata, assim denominada porque nela as personagens

    masculinas de nvel social mais elevado se vestiam com a toga,

    a indumentria, por excelncia, do romano. Entre os princi-

    pais representantes dessa modalidade de comdia podemos

    lembrar Titnio e Afrnio, escritores que viveram no sculo II

    a.C. e de cujas obras h alguns fragmentos.

    A comdia togata, no final do sculo II a.C., cede o lugar

    a uma forma inferior, a comdia tabernaria, que explora acon-

    tecimentos passados em tabernas, freqentadas por pessoas de

    classes sociais humildes. A tabernaria pode ser considerada como a ltima manifestao da comdia latina. Seu lugar vai

    ser ocupado por outras modalidades teatrais que, vindas do

    passado, assumem dimenses literrias no sculo I a.C. e re-

    sistem at a poca imperial: a atelana e o mimo.

    A atelana

    Originria, ao que tudo indica, da cidade osca de Atela, a

    atelana era, no incio, uma espcie de farsa popular, vivida por

    personagens fixas, burlescas e caractersticas: Maccus, o comi- lo de orelhas grandes, sempre infeliz em seus casos de amor;

    Bucco, o parasita tagarela; Pappus, o velho namorador; Dosse-

    nus, o corcunda espertalho. Aparentada com o drama satrico, com a hilarotragdia e

    com a farsa tarentina, a atelana era representada por persona-

  • 3 8 | A LITERATURA LATINA

    gens mascaradas - os ancestrais, por assim dizer, da famosa

    commedia dell'arte. Vazada, inicialmente, em linguajar rsti- co, a atelana se intelectualiza, aos poucos, assumindo dimen-

    ses literrias no comeo do sculo I a.C., quando Nvio e

    Pompnio compem textos para as representaes.

    O mimo

    Originrio da Grcia, o mimo se desenvolveu na Itlia e

    foi considerado como uma das primeiras formas do primitivo

    teatro latino. Caracterizando-se pela presena do gesto mmi-

    co, da expresso corporal e da dana - elementos com os quais

    se representam aes caricaturadas -, o mimo encontrou ex-

    presso literria no sculo I a.C., com Labrio e Publlio Siro,

    tornando-se, na poca de Augusto e durante toda a primeira

    metade do sculo I de nossa era, uma das principais formas de

    entretenimento teatral do romano.

    Contribua grandemente para isso a licenciosidade dos di-

    tos e as danas lascivas executadas sobretudo por mulheres, al-

    gumas vezes completamente nuas. A nudatio mimarum (desnu- damento das mimas) era frequentemente exigida pelo pblico.

    As cenas mais escabrosas eram tambm as mais aplaudidas.

    O mimo d origem a duas outras formas teatrais que, na

    poca imperial, acabam por substitu-lo: a pantomima, repre-

    sentada por atores mascarados e versando sobre assuntos mi-

    tolgicos ou extrados da realidade, cmicos ou srios, e o ar-

    quimimo, espetculo grandioso e imponente, no qual se re-

    presentavam histrias complexas, com grande nmero de per-

    sonagens, e cuja parte musical ficava a cargo de um coro e uma

    orquestra.

  • A POESIA DRAMTICA: A TRAGDIA

    Assim como ocorreu com a epopeia e com a comdia, a

    tragdia latina tambm se originou da grega, baseando-se em

    um modelo que se constitua no produto final de uma longa

    evoluo.

    Muito j se discutiu sobre a origem da tragdia helnica.

    Em que pese o fato de diversas opinies em torno desse as-

    sunto se controverterem, no se tem mais dvida de que a tra-

    gdia grega, de cunho acentuadamente religioso, represente a

    transformao e o aperfeioamento do ditirambo - cntico

    coral entoado por grupos, durante certas festividades em hon-

    ra dos deuses. A alternncia entre um cantor nico e o coro

    marcou, provavelmente, o aparecimento do primeiro embrio

    de tragdia - embrio que ganhou estatura prpria no momen-

    to em que, em certas passagens, um ator substituiu o cantor,

    recitando um texto e representando por meio de gestos e mo-

    vimentos. Com o passar do tempo, a tragdia se fixou em sua

    estrutura formal. Desenvolvendo temas mitolgicos e, vez por

    outra, histricos, apresentando um enredo em que se desen-

  • 4 0 | A LITERATURA LATINA

    rola e progride uma ao, a tragdia passou a constituir-se de

    episdios vividos por atores, alternados ou mesclados com

    cnticos corais. No sculo V a.C., a tragdia grega atingiu

    seu apogeu com os textos de Esquilo, Sfocles e Eurpides.

    No sculo IV a.C., ao escrever a Potica, Aristteles comps uma verdadeira teoria da tragdia, definindo-lhe os traos es-

    senciais.

    Em Roma, como j se disse, at 240 a.C. nada fora pro-

    duzido que se assemelhasse ao que a Grcia j havia feito em

    matria de teatro. Nesse ano, os romanos foram brindados

    com um espetculo teatral que consistiu na apresentao de

    uma pea - no se sabe se tragdia ou comdia - traduzida do

    grego.

    Lvio Andronico, o liberto tarentino que traduzira a Odis- sia, se encarregou desse mister, divulgando em Roma, na pr- tica, os princpios que norteavam o teatro helnico. Aps esse

    primeiro trabalho, dedicou-se inteiramente ao teatro. Tradu-

    ziu ou adaptou comdias e tragdias, restando destas ltimas

    alguns fragmentos de pouca importncia. A linguagem de L-

    vio Andronico pouco harmoniosa e seu estilo desigual. Suas

    tragdias, porm - Aquiles (Achilles), Andrmeda (Androme-

    da), jax (Aiax), Dnae (Danae), O cavalo de Troia (Equus

    troianus), Egisto (Aegisthus), Hermone (Hermione), Ino (Inos)

    e Tereu (Tereus) -, puseram os romanos em contato com o tea- tro grego e abriram portas para seus sucessores.

    Embora tivessem sido muitos os escritores latinos que se

    dedicaram produo de tragdias nesse perodo literrio, ne-

    nhuma permaneceu, na ntegra, at nossos dias; os fragmen-

    tos suprstites, porm, permitem que se faam algumas obser-

    vaes sobre elas. Por meio deles sabemos que o estilo de N-

    vio deixa entrever certa rudeza primitiva; que os textos de

  • A POESIA LATINA | 41

    nio se caracterizam pelo tom declamatrio e filosfico; que

    Pacvio (220-130 a.C.) se utilizava da linguagem solene e

    grandiosa, buscando, com frequncia, efeitos patticos, en-

    quanto cio (170-86 a.C.) possua grande capacidade descri-

    tiva e explorava amide temas de herosmo a terror.

    Da poca de Ccero (80-43 a.C.) e da de Augusto (43 a.C.-

    14 d.C.), embora numerosos escritores tivessem composto

    peas trgicas - Cssio, Quinto Ccero, Balbo, Vrio Rufo, Ov-

    dio, Mamerco Escauro, Pompnio Segundo -, pouca coisa se

    preservou para a posteridade: versos esparsos, uma ou outra

    notcia, alguma referncia curiosa. No sculo I d.C., em com-

    pensao, surge em Roma um punhado de tragdias que no

    apenas conseguem atravessar os sculos, perdurando at hoje,

    como vo exercer profunda influncia sobre a literatura dra-

    mtica que se produzir depois. So as tragdias de Sneca, o

    filsofo, a figura mais significativa das letras latinas da poca

    dos prncipes jlio-claudianos.

    As tragdias de Sneca

    Dotado de grande talento, dono de invejvel formao

    cultural, sensvel e brilhante, Sneca (Lucius Annaeus Seneca - 4 a.C.?-65 d.C.) comps tragdias inspiradas em modelos he-

    lnicos, sobretudo nas peas de Eurpides. Uma delas, Asfen-

    cias (Phoenissae), encontra-se incompleta. provvel que o prprio autor no tenha chegado a termin-la. Talvez os dois

    longos fragmentos que restam - aos quais se atribuiu o ttulo

    - nem sequer fizessem parte do mesmo texto, uma vez que

    no existe nenhuma seqncia entre eles: no primeiro h um

    dilogo entre dipo, que fugia da ptria, e Antgona, que pro-

  • 4 2 | A LITERATURA LATINA

    cura consol-lo; no segundo Jocasta expe a uma das filhas o

    penoso drama que vive: prepara-se para presenciar a luta de

    morte que se travar entre seus dois filhos.

    As demais tragdias conservaram-se praticamente na n-

    tegra. Hrcules no Eta (Hercules Oetaeus), texto atribudo a Sneca, no qual se focaliza o cime de Dejanira e a morte de

    Hrcules, no monte Eta, tem sido objeto de controvrsias em

    relao autoria. A loucura de Hrcules (Hercules furens) ex- plora o enlouquecimento do heri e a trgica e cruel morte

    de seus filhos e da esposa, por ele executados.Trs tragdias se

    ocupam de lendas avulsas, mas bastante exploradas pela lite-

    ratura: dipo (Oedipus), inspirada no dipo-Rei de Sfocles e bastante prxima da fonte grega, relata a desgraa que aco-

    mete o rei de Tebas quando este se cientifica dos crimes he-

    diondos que cometera involuntariamente; Fedra (Phaedra) nos coloca diante da rainha cretense, violentamente apaixo-

    nada pelo enteado, causando-lhe a perdio e a morte; Me- deia (Medea) mostra-nos o desvario da princesa-feiticeira que, desprezada pelo amante, dele se vinga assassinando os filhos.

    As trs restantes focalizam histrias que tm por personagens

    membros da amaldioada famlia do Pelpidas: Tiestes (Tyes- tes) narra-nos uma lenda brutal - a do terrvel Atreu, que, para punir o irmo, mata-lhe os filhos e lhe serve a carne das

    crianas num macabro banquete de "confraternizao; As

    troianas (Troades) e Agammnon (Agamemnon) se valem do material lendrio oferecido pela chamada saga troiana: em As troianas acompanhamos a srie de infortnios enfrentados pelas sobreviventes de Troia, ao terminar a guerra; em Aga-

    mmnon nos defrontamos com a histria do rei de Micenas, que, ao retornar ao lar, encontra a morte, planejada pela pr-

    pria esposa.

  • A POESIA LATINA | 4 3

    Por vezes se atribui tambm a Sneca a composio de

    Otvia (Octavia), a nica tragdia romana de assunto histrico a ter subsistido at hoje. A crtica, todavia, geralmente a con-

    sidera como obra apcrifa.

    Sneca o ltimo autor dramtico romano a desfrutar de

    importncia literria, embora suas tragdias, escritas talvez mais

    para a leitura do que para a representao, se ressintam de cer-

    ta falta de teatralidade.

    No sculo I de nossa era, o teatro nos moldes clssicos j

    no atraa tanto o espectador. Os mimos, com sua leveza e ale-

    gria, com danas, msica, presena de mulheres e cenas de nu-

    dez, eram muito mais apreciados do que as antigas comdias e

    as austeras tragdias. Alm disso, os espetculos circenses,

    grandiosos e violentos, expandiam-se cada vez mais, disputan-

    do com o teatro a preferncia do pblico.

    Sneca escreveu peas possivelmente para serem lidas em

    sesses pblicas, freqentadas por uma elite familiarizada com

    os velhos mitos e habituada com textos em q