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Ferreira da Silva, um amigo muito especialAo fazermos a ed ição des te sup lemento , qu isemoshomenagear o ceramista caldense e amigo, Luís Ferreirada Silva, artista dos mais emblemáticos da nossa região daúltima metade do século XX e que ainda nos promete hojeobras surpreendentes e cada vez mais arrojadas.Contudo, esta singela homenagem pretende signif icartambém toda a consideração e admiração que temos peloshomens e mulheres que desenvolveram actividade artísticaou artesanal, uti l izando o barro, ao longo da história danossa cidade. Felizmente seriam vários que mereceriamidêntica iniciativa, mas a oportunidade de ter sido Ferreirada Silva a executar uma peça dedicada aos 75 anos do nossojornal, deu-nos o ensejo de realizar este documento que iráficar para a história local.Também tivemos a felicidade de juntar nesta iniciativa umaempresa caldense criada por um colega de juventude eamigo, que também tem sido pioneira e inovadora eminúmeros domínios e que mostrou apoiar na prática ummomento significativo do jornal.Conhecemos Ferreira da Silva há imensos anos, desde quetenra idade o víamos com a sua aura inconformista efolgazã, numa época cinzenta do nosso país em quef a c i l m e n t e s o b r e s s a í a d a m e d i a n i a d o m i n a n t e .Acompanhámos o seu percurso humano e artístico ao longodeste anos, especialmente nos últimos quase vinte anos, emque trabalhámos nalguns projectos conjuntamente.Aprofundámos a nossa amizade e nos momentos dramáticospara ambos, onde a saúde vacilou, mantivemos esperançamútua de que tudo se resolveria em bem. Felizmente issoaconteceu e isso permite-me e à Gazeta das Caldastestemunhar a nossa gratidão, estima e admiração por umhomem que é já hoje um dos símbolos vivos da cerâmicacaldense e portuguesa.Longa e longa vida, trabalhando com força e criatividade,neste combate duro da dignificação duma arte que algunsc o n s i d e r a m m e n o r , m a s q u e p a r a n ó s , é m a i o r einsubstituível.

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FICHA TÉCNICA:Director: José Luís de Almeida e SilvaAutores: Natacha Narciso e Rui Tibério (Molde)Coordenação: João B. Serra e Luís PachecoGrafismo:Carlos Reis e Carla CaidoFotografias: Natacha Narciso, Valter Vinagre, Rui Tibério,Paulo Tomás e Pedro LibóreoImpressão: CIC-Centro de Impressão CorazeOliveira de AzeméisTiragem: 12.000 exemplaresSuplemento da Gazeta das Caldas, 28-12-2001Não pode ser vendido separadamente

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Uma criatividade explosiva fazde Ferreira da Silva um dos maisnotáveis artistas na expressãocerâmica da actualidade. Entre-ga-se de corpo e alma a projec-tos gigantescos e às alquimiasdo barro e da cor. Ligado à regiãoOeste que não troca por nada, apassagem pelo estrangeiro nãoo seduziu porque é na simplici-dade das coisas que se revê ohomem que procura que o seutrabalho esteja “a caminho de…”.

“Encaminhado desde muitonovo para a vida artística, Ferrei-ra da Silva percorreu no campoda escultura, da cerâmica e tam-bém da gravura, desenho e pin-tura, todos os graus, cumpriu to-das as tarefas, até atingir a posi-ção de que hoje desfruta. É umprofissional. Um mestre,principalmente em escultura ce-râmica.”, assim o descrevia em1966, o seu amigo e escritor LuizPacheco, em “O Caso Ferreira daSilva”, publicado em “em Mara-vilhas & Maravalhas Caldenses”.

Um artista várias vezes galar-doado, vencedor de prémios emPortugal e no estrangeiro, e queainda hoje se emociona ao ex-plicar a simbologia do seu traba-lho, que ganha forma nas maisvariadas frentes artísticas.

Não gosta da exposição públi-ca, condena o mediatismo e ata-ca o consumismo exacerbadodos dias de hoje. Para si, as suasobras deveriam ser colocadasem locais de difícil acesso, mes-mo inóspitos: “gostava que porelas passasse apenas um pastorou alguém que fosse fazer umpiquenique e que, ao encontrá-las, fizesse gosto em fotografar-se junto a elas”.

“Tento pintar a Luz”, afirma oautor da peça comemorativa dos75 anos da Gazeta das Caldas eque esteve este ano nas terrasfrias da Noruega, integrado numgrupo de artistas caldenses emintercâmbio com autores norue-gueses. Deixou-se encantar pelaarte, pela paisagem e diferentescostumes do país nórdico e de látrouxe a influência para comple-tar o obelisco de dez metros, quemarca a zona envolvente da pis-cina municipal, junto à Escola Se-cundária Raul Proença.

“Eu não sei se os Caldensesjá repararam bem, mas devem aeste rapaz uma nova visão” émais uma expressão do seu ami-go, mas também crítico, Luiz

O mestre que tenta pintar a luz

Pacheco, escrita nos idos 1966.O mestre foi finalmente agra-

ciado com a Medalha da Cidade,grau ouro, no passado 15 de Maio,Dia da Cidade.

Luís Ferreira da Silva nasceuno Porto em 1928 e da Invictapartiu aos nove anos para Coim-bra, para frequentar o curso ar-tístico na Escola Comercial e In-dustrial Brotero. Em paralelo coma aprendizagem de base, tevevárias outras disciplinas comodois anos de roda (cerâmica),desenho, marcenaria, pintura,matérias com grande exigênciana formação quer técnica querartística.

O mestre deixou-se seduzir ini-cialmente pelo vidro, tanto que,terminado o curso aos 15 anos,deixou a cidade dos estudantes

Percurso de Ferreira da Silva

e partiu para a Marinha Grande.“Lembro-me que, em pequeno, viaas montras de cristais na Baixaportuense e ficava fascinadocom a luz das peças. Tenteiseguir esse percurso da luz, mascomo tinha pouca experiência,tive que fazer alguma coisa queeu soubesse para me manter”,conta Ferreira da Silva que as-sim acaba por enveredar pelacerâmica e que, aos 17 anos otrouxe primeiro até ao Bombarral,depois para Alcobaça e, só maistarde, para as Caldas.

Passadas várias décadas, oartista regressa ao vidro “seguin-do ainda a ideia de miúdo da tenta-tiva de pintar luz”, revela o artistaque, na sua primeira fase decarreira, também se dedicou aoutras artes como a gravura e a

escultura em metais.

CERAMISTA DE DIA,GRAVADOR DE NOITE

Mais tarde, Ferreira da Silvavai para a Fábrica Bombarra-lense, onde além do seu trabalhode ceramista, “regressava ànoite, para fazer gravura”. Nestelocal havia uma prensa, em queos decalques eram inicialmentegravados na chapa do cobre esó depois é que se faziam astiragens com tinta cerâmica parapassar à louça. Ferreira da Silvaaprendeu a gravar aos 12 anos,quando frequentava o segundoano do seu curso, em Coimbra,com a ajuda do seu professor deDesenho, José Contente. “Nãosei se é pelo cheiro da tinta, sepelas características daimpressão, mas há lá qualquercoisa que vicia quem faz gravu-ra”, comenta o mestre.

E foi graças a esta actividadenocturna que o “Júlio Pomar medescobriu no Bombarral, no iní-cio dos anos 50”, disse o artista.E foi este o pintor responsávelpelas gravuras de Ferreira da Sil-va terem surgido nos salões dearte, designados dos neo-realis-tas. A primeira mostra onde esti-veram foi no Salão Colectivo –Exposição Geral de Artes Plásti-cas, em 1953.

Eram mostras independentes,“altamente corajosas, de reacçãoao que existia aqui na Península.Era um tipo de arte de reacçãoao fascismo e à ditadura”. Desli-gadas do sistema, nada tinham aver com as realizações do EstadoNovo “e muito menos com o Salãodos Novíssimos” que era orga-nizado pelo SNI - SecretariadoNacional de Informação.

Ferreira da Silva participou emvárias mostras colectivas de gra-vura que decorreram em Portu-gal, na Suécia, Espanha, Alema-nha, entre 1957 e 1960.

O dono da Fábrica Bombarra-lense era Jorge de Almeida Mon-teiro, também homem das artes,cujas obras estão no Museu Mu-nicipal do Bombarral tal como asde Vasco Pereira da Conceiçãoe Maria Barreira, dois escultores,que dão nome ao espaço museo-lógico do Bombarral.

Ferreira da Silva admirava aforma como a escultora MariaBarreira, também dedicada à ce-râmica, trabalhava o barro. “Ti-

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Ferreira da Silva no Estúdio Secla (1968)

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nha uma forma muito simples demoldar as formas e também depintar”, conta o mestre que a elabusca influências no início da suacarreira, e assim surgem peçasfigurativas como um fadista aquem não falta a guitarra, umapeixeira de cesto na cabeça etambém alguns pares de na-morados com traços simples, “jei-to” que o mestre apreciava na-quela escultora.

Depois do Bombarral, Ferreirada Silva passa ainda pela Olariade Alcobaça, cujos responsáveis“tinham um gosto evoluído paraaquela época”, disse o artista emrelação à família Bernarda, desta-cando igualmente o engenheiroNatividade. Nesta altura, fazia ce-râmica pintada mas “já com a pre-tensão da descoberta de umcaminho para a actualidade”.

SECLA, DA SECÇÃO DEPINTURA À FUNDAÇÃO DO

“CURRAL”

Já conhecido pelo seu tra-balho,quer no Bombarral quer emAlcobaça, Ferreira da Silva ingre-ssa na Secla como pintor, em1954. Depressa passa a chefiara secção de pintura, cargo quepermaneceu até 1958. Nesta épo-ca já a direcção artística da Seclaestava a cargo da artista húngaraHansi Stael.

“O seu temperamento inquietoe ansioso, claramente expressona sua obra, levou-o a um frené-tico inconformismo perante osdesafios que a matéria argilosapossibilitava”, assim afirma Hele-na Gonçalves Pinto sobre Fer-reira da Silva no catálogo da ex-posição “Um Projecto de Reno-vação da Cerâmica: O EstúdioSecla”.

Nos primeiros anos, Ferreirada Silva tinha a seu cargo adecoração da louça corrente etambém decorativa. Segundo onº15 da revista Cerâmicas, ementrevista a Carla Tomás, o mes-tre assume a sua grande paixãopelas obras de Kadinsky, Cézan-ne, Mondrian, Picasso, Delaunay,Klee, Malevich e Duchamp e, que,de alguma forma, o influenciaramno seu percurso pela cerâmica.

A produção de peças únicasdo mestre na Secla “ter-se-á ini-ciado em 1955, ano em que criouo Fauno e o Cavalo, peça cons-truída com a reunião de cacoscrus da produção corrente,associados entre si como sefosse uma espécie de colagemcom barbotina”, pode ler-se nocatálogo da exposição quereuniu, no ano passado, obrasdos vários artistas, entre elesFerreira da Silva, que integraramno Estúdio Secla e que esteve

4patente no Museu Nacional doAzulejo.

“As formas que cria então gra-dualmente deixam de ser utilitári-as para serem decorativas. Masa sua postura fundamentalmenteartística, levam-no a séries temá-ticas dos reis, das rainhas e doscavaleiros, peças de grande ri-gor, que requeriam uma exigên-cia técnica que obrigava a se-rem cozidas três vezes para for-marem lustrinas, cujos brilhos me-tálicos eram fundamentais aoefeito final”, afirma Helena Pinto,no catálogo da exposição.

Após um interregno de doisanos, regressa à Secla, paradedicar-se às peças únicas. Nes-sa altura, sentiu alguma dificul-dade em trabalhar com o rodistade então, o Picas do Vale, quenão gostava de trabalhar compastas grosseiras. “Ele preferiaa pasta branca, muito fina”, relem-brou Ferreira da Silva.

Depois, com autorização da di-recção da fábrica, “pude lá numcanto da fábrica ter uma peque-na oficina”, comenta o artistareferindo-se ao famoso “Curral”.

Tão estranha denominaçãodeve-se ao facto de homenscomo Ferreira da Silva, o rodistaGuilherme Barroso, HenriqueGalo (que os ajudava na prepa-ração das pastas) e do modela-dor Alberto Reis (que tambémprestava auxílio na pintura) sedegladiarem naquele espaço on-de existia “a lama, a amálgamada terra por trabalhar. Dávamoslargas à grande imaginação e àgrande coragem”, recorda o mes-tre. Aqui trabalhavam afincada-mente estes homens que “éra-mos como quatro náufragosnuma jangada, ou melhor, quatroferas naquele curral, e enfim, porisso assim ficou apelidado…”,confessa Ferreira da Silva.

Para este criador, o convíviocom a artista Hansi Stael foi muitoprofícuo e aliás considera-a uma“extraordinária artista”. Aindaacrescentou que o trabalho ar-tístico da autora húngara, emconjunto, com a direcção de Pin-to Ribeiro, “inovaram de facto aprodução e Pinto Ribeiro divulgouextraordinariamente a cerâmicaportuguesa nos anos 50 e 60”.Privou igualmente com outrosartistas como Alice Jorge, AntónioQuadros, Júlio Pomar, JoséAurélio, Santiago Areal ou JorgeVieira. “Ao fim do dia, juntávamo-nos todos para conviver. Foramtempos interessantes”.

No início dos anos 60, o cera-mista começa a trabalhar em no-vas propostas, destinadas àconstrução e assim criou um novomaterial de revestimento emcerâmica, desenvolvido na Se-

cla. A azulejaria era a parceiraideal para casar com a arqui-tectura uma vez que “o azulejo éprofundamente arquitectónico”.

E então criou pequenos qua-dros com azulejos repetidos apartir daí entendeu “que a cerâ-mica se adequa na perfeição aosespaços urbanos”, quer emedifícios, quer noutro tipo de tra-balhos de arte pública.

Criou então uma parede seria-da, iniciada de forma artesanal, econstituída por placas cerâmicas.Ferreira da Silva fazia os estudosem pequenas quantidades e queeram produzidas, uma a uma, porAlberto Reis, contando com maisdois colaboradores na pintura,que as executavam segundo assuas indicações.

E assim este material, em 1962,

viaja até Nova Iorque, “pois foireconhecida a sua modernidade”para poder participar na primeiraexposição independente dedica-da à “Cerâmica de Parede eTridimensional” da Liga de Arqui-tectos de Nova Iorque.

Na Secla, Ferreira da Silvateve uma larga convivência comvários outros autores. Destaca,por exemplo Hernâni Lopes, “ho-mem muito criativo e tambémesquecido” que vinha do teatrode Lisboa e era pintor. Juntamen-te com António Maria de Sousa(ex-director do Museu de Cerâ-mica), Ferreira da Silva tudo fezpara que os donos do Hotel Cris-tal (ex-Malhoa) “não destruíssemo painel em relevo cerâmica quelá existia (na recepção)”. Precesque não foram ouvidas, pois “dei-

Ferreira da Silva, o rodista Guilherme Barroso, Alberto Reis,Henrique Galo (servente), Luís Pinto Ribeiro e Carlos Mariano

(comerciais), ao fundo um cliente

Peças do Ferreira da Silva feitas em 1960, no estúdio da Secla

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taram abaixo aquela peça notávelda autoria de Hernâni Lopes”, pe-rante a indiferença ou des-conhecimento de muitas outrasentidades. É também ao rodistaGuilherme Barroso que Ferreirada Silva presta a suahomenagem. Ao seu braço direitoem mil um projectos cerâmicoschega mesmo a afirmar que “eunão teria ido tão longe sem aajuda de Guilherme Barrosonaquela altura”.

OFICINA DE AFONSO ANGÉLI-CO, O LABORATÓRIO DE

EXPERIMENTAÇÃO

Entre 1958 e 1960 Ferreira daSilva deixa a Secla por um desen-tendimento relacionado com umaencomenda mal sucedida e dalivai trabalhar para uma pequenafábrica, situada na Rua Linda àPastora, que pertencia a AfonsoAngélico.

Com este ceramista, que omestre descreve como “um ho-mem com grande cultura cera-mista e com quem aprendi muito”,fazem peças originais que eramcozidas num grande forno a lenhae que depressa se transformounum laboratório de experimen-tação para Ferreira da Silva. NaSecla, o mestre já trabalhava emengobes, onde já se utilizavamlargamente as pastas coloridas.Na oficina de Afonso Angélico sóhavia “os vidrados normais daprodução bordalesca caldense,mas eu queria fazer engobes eassim comecei a misturar algunspigmentos que ele lá tinha”.

Experimentador voraz, o mes-tre misturava os metais para ob-ter novas tonalidades e usavatambém os vidrados de diferen-tes formas. “Tive a sorte fantás-tica de descobrir novos tons”,conta o artista sobre a cor usadatradicionalmente para vidrar aspeças verticais e que ele utiliza-va para a horizontal. “Numa dasfornadas que eu fazia no Angé-lico, reparei que o vidro ao es-correr tinha feito um depósito nabase e tinha ficado com uma corde vermelho romã”, recordasobre a forma como de um verdecrómio obtinha vermelhos vivose assim descobria os segredosdas cores e também do uso dasaltas temperaturas, qual Einsteindo universo cerâmico. “Até entãoninguém tinha agarrado este “ovode Colombo”, porque o vidro jáestava feito”. Nesta altura AntónioQuadros entra para a Secla econhece “esta grande novidadepara a época que surgiu assim,por acidente”.

Ferreira da Silva vendia essaprodução para uma empresa deLisboa, a Sopal, - Sociedade de

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Plásticos LDA -, cujo directorapreciava muito o trabalho assi-nado FS e como tal “esta empresaficou com toda a produção quefiz durante aqueles dois anos”.

AS SURPRESAS QUE TRAZEMO FORNO

Em cerâmica “está-se semprea aprender com o forno que trazsempre coisas inesperadas”,afirma o mestre que durante oseu percurso nunca fez pesqui-sa científica a partir dos livros.São as experiências que vai fa-zendo ao longo da produção eque depois à saída do forno “tra-zem coisas que me apaixonam”,e estas suas experiênciascontinuam também em relação aovidro. Adora laboratórios mas“nunca foi capaz de ler um livrode receitas”, conta. Vai sempreseguindo, por intuição, e vai en-contrando, “depois vou prosse-guindo”.

Por exemplo, Ferreira não ti-nha o engobe preto e entãodepreendeu que, para o fazer,teria que utilizar pigmentos escu-ros, como o cobalto, o ferro, omanganês e o cobre e assim fez.“Como eu não sabia químicanaturalmente misturava asproporções de forma ad-hoc”.Logo na cozedura, começarama aparecer partículas metalizadasnaquela produção, mais uma dasinvenções do mestre que tentoudepois saber afinal qual dos me-tais lhe permitia tão notável coràs suas peças. O problema éque, como era tudo sempre “aolho”, quando Ferreira da Silvaqueria repetir, não havia nadaregistado, nem pesado, era sem-pre acidental e por isso, era-lhedifícil voltar a repetir as fórmulas.

Mas quando regressou à Se-cla em 1960 já começou a pas-sar mais tempo, no laboratório,com António Cardoso “que é umasumidade em laboratório de ce-râmica, entre os três melhoresda Europa”. A ele dizia os ingredi-entes que punha e, com o seuconhecimento, fez vários ensa-ios e conseguiu novamenteachar o famoso engobe metali-zado, com as respectivas pesa-gens. “E assim utilizei este engo-be, até ali inédito e mais ninguémo utilizou, porque era produzidomesmo na Fábrica”, conta omestre.

“ATERRORIZAM-ME ASOPERAÇÕES DE CHARME”

Ferreira da Silva sempre pre-feriu participar em exposiçõescolectivas. Considera-as maissaudáveis que as individuais pois

estão representados vários in-divíduos, logo várias tendências“que permitem ao público outrotipo de diálogo, de confronto ecomparação. A arte também temessa função”. Gostava em es-pecial de participar nos salõespor causa da selecção do júri:“Ser escolhido dá uma certa satis-fação. É o reconhecimento davalidade do nosso trabalho quedá alegria e vontade de prosse-guir”.As mostras individuais sãopoucas na carreira de Ferreirada Silva mas diz que hoje sefosse convidado, não recusava.Há cinco anos fez uma mostrana Galeria Municipal Osíris, intitu-lado “Ofélia”, onde reuniu obrasde cerâmica escultórica,desenhos e pinturas sobre a La-goa de Óbidos “que já na altura

estava a morrer”, comenta o ar-tista, amante da natureza e dasua região, acrescentando que“é raro o dia que não vou à Fozdo Arelho ou à Lagoa”. Preocu-pado com a adulteração do ecos-sistema “por causa dessa vivên-cia desmedida do homem quevai degradando o ambiente”, aLagoa inspirou-o para este tra-balho alegórico, metaforizando-a na trágica personagem deShakespeare. Inclusivamenteeste escultor chegou a lançar aideia de doar o seu espólio paraum Eco-Museu, que ele gostariade ver construído junto ao Pene-do Furado. Uma ideia inédita quenunca se chegou a concretizar.

Sempre contra o cultivar daimagem, o mestre afirma que“aterrorizam-me as operações de

A intervenção de Ferreira da Silva na área de serviço de Pombal

Ferreira da Silva junto ao seu painel de entrada do Cencal

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charme e, naturalmente, tiveoportunidade de me fixar pelo es-trangeiro e nunca quis”. E foi em1967, como bolseiro da Funda-ção Calouste Gulbenkian emParis, que Ferreira da Silva saipela primeira vez do país, bene-ficiando duma oportunidade his-tórica única – também contactarcom o movimento de Maio 68. Alipermanece durante um ano, naAcademie de Paris – École Méti-ers d’Art, onde além da cerâmi-ca e escultura desenvolveu ou-tras técnicas como o vitral, a ta-peçaria ou estafe (gesso). Nes-ta escola, frequentada porartistas de todo o mundo, Ferrei-ra da Silva teve uma óptima inte-gração uma vez que “já levavaum conhecimento bom de cá queme dava a possibilidade de tra-balhar com os professores e ou-tros artistas”.

Teve contacto com a arte edeixou-se encantar sobretudopelos museus, não só de artecontemporânea, mas, principal-mente, pelos mais antigos liga-dos às culturas egípcias e gre-gas. “Ainda hoje a minha forma-ção continua muita agarrada aesses tempos”.

Apesar de um franco convíviocom escultores, escritores e ou-tros artistas influentes que facil-mente o introduziriam no mundodas artes, das exposições, en-fim de uma carreira internacio-nal, “não me deixei cair na tenta-ção apesar de, na época, ser fun-damental para aqueles que que-riam cultivar o nome, mas euafastei-me logo”.

Surgiram-lhe várias oportuni-dades de se fixar e de entrar parao sistema, mas “ficaria lá comomuitos outros e, se calhar, hojeestava ganhar muito dinheiro”.Preferiu voltar e isto porque omestre é avesso ao mundo ac-tual do “consumismo brutal e deganância tenebrosa” queconsidera auto-destrutivo e “quequanto mais avança, mais meponho à margem de todo esseritmo”.

Em relação às poucas mostrasindividuais que pontuam a sua jálonga carreira comenta apenasque, devido ao seu percurso,“também não tenho necessida-de de expor para vender, vou-me mantendo”. Sendo uma pes-soa modesta, Ferreira da Silvaacha que não precisa de muitopara viver. “Vivo com muita tran-quilidade com pouco, nem per-cebo para que é preciso tantodinheiro que leva a esse consu-mismo tão fútil”.

E assim o artista regressa àsCaldas “ao meu lugar, nas Gaei-ras, e faço este percurso em so-lidão. Só meia dúzia de pessoas

é que me conhecem, o que paramim está muito bem”. É no sos-sego que se sente melhor, quandoninguém interfere no seu espaçode trabalho e “isso basta-me”.

Ferreira da Silva quer seguir oseu percurso, estar atento,características da sua personali-dade, um autor que tenta, a todoo custo “tentar ultrapassar-me,não me repetir nem me plagiar”.Importante para si é igualmente aatmosfera e luz natural que estaregião possui “que me apaixonou,que me espevita e me dá forçapara continuar a trabalhar. Eassim por cá continuo”.

“ENTÃO PERDI O MEDO ELANCEI-ME NA CERÂMICA COM

TODA A PAIXÃO”

As artes já marcam presençana família deste artista. Rui Ferrei-ra da Silva, pai do mestre, erapintor e também o que actualmen-te se denominaria por designergráfico. “Naquele tempo era tudofeito à mão. A impressão, os ca-racteres e as tintas rodeavam-me desde miúdo e daí a minhapaixão pelas artes gráficas”. Seupai chegou a expor, duas ou trêsvezes, na Sociedade de BelasArtes, “nuns Salões muito aca-démicos e figurativos”. Seu an-tecessor de sangue também “a-guarelava muito bem”, relembrao mestre que também se dedicaa esta técnica, “especialmentequando chove”.

Santiago Areal é uma referên-cia para Ferreira da Silva. “Tiveuma grande aprendizagem comas concepções que ele tinha dascoisas e penso que foi de facto ogrande toque que eu recebi detodas as personalidades que co-nheci”.

Ferreira da Silva, no início, ti-nha uma cultura cerâmica de utili-dade imediata realizando jarras,bases de candeeiros ou taças.Lembra que costumava, próximoda escola em Coimbra, ver osoleiros com as suas rodas e tam-bém percorrer as feiras onde ha-via louça, quer de Barcelos querde Estremoz. Sobretudo a primei-ra, com as suas marcas bran-cas “ficou-me muito registada e,no início, surgiam nas peças queeu fazia, de uma forma modernae esteticamente mais revolu-cionária. Custou-me a libertardessa informação visual”,recorda o ceramista que fazia asmarcas com os ferros e de váriasformas imprimindo-as no barroainda fresco. Depois “borrava” apreto e assim surgiam aquelesbaixos relevos com pastas de ou-tras cores.

Seguindo os conselhos deSantiago Areal “então perdi o

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Monobloco cerâmico representando o Rei D. Luís I (Cencal-1989)

Ferreira da Silva durante a montagem do monobloco cerâmiconos jardins do Cencal (1989)

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medo e lancei-me para a Cerâ-mica com toda a paixão”, tal comopodemos ver pelo seu percursoque surge, em especial, na fasedo “Curral”. O seu amigo detectaentão já a tendência deste artistae incentiva-o a prosseguir nessecaminho, isto é, seguindo aconcepção em que a cerâmicapassa a ser um suporte para fa-zer objectos “e que se mantématé hoje”. O mestre utiliza-a actu-almente adicionando-lhe outrosmateriais seja o bronze, amadeira ou o vidro.

Muitas das peças do mestreda fase do “Curral” ou se partiamou eram logo roubadas à saídado forno. Outras quebravam-seporque como eram cozidas jun-tamente com a produção normale cediam, dado que “eu imprimia-lhes processos muito diferentes”.A grande maioria das obras eramoferecidas pelo próprio artista eoutras eram dadas pela fábricaa clientes da Suécia, Noruega,Japão, Estados Unidos e Áfricado Sul.

ANCESTRALIDADE E MODERNI-DADE NA SUA OBRA

O Homem é um ser cósmi co efoi sempre um passagei-ro dotempo”, disse o artista que seidentifica com essas raízes, no-meadamente em relação ao perí-odo do Paleolítico, quando surgi-ram as primeiras manifestaçõesdas actividades humanas - comoa caça a pesca, a iniciação dohomem e da mulher: “natural-mente eu não me liberto dessaraiz”. Ferreira da Silva acrescentaque “trago essa cromossomática,essa carga não como recuo es-tético, mas sim como a grandelembrança da memória ancestralque entendo como uma virtudepara o homem de hoje”.

Admirador absoluto do avan-ço das ciências, Ferreira da Sil-va salienta factos como o homemjá se ter conseguido libertar daatracção terrestre, entrando emórbita, no primeiro Sputnik comGagarin. “É um avanço brutal dahistória da Humanidade mas, poroutro lado, só estamos a umpasso de distância do homemrupestre”, comenta o mestre, umapaixonado tanto pela arte comopela ciência, “porque a arte indiciae a ciência adequa, e por issosão indissociáveis”. Entre assuas manifestações, as que maisgosta “são aquelas que eu sintoque estou a um passo das mani-festações do rupestre, da caver-na”.

E quando as obras atingem omoderno, a actualidade de quan-do são feitas, “têm em si essaraiz ancestral, que lhes dá umaforça e uma vitalidade que as

fazem perdurar no tempo e issoé ter uma característica que pa-ra mim é a mais difícil de atingirna arte”, afirmações para quemqualquer artista deve conter nasua obra essa intemporalidade.

O mestre emociona-se: “é difí-cil para mim falar de objectos dearte quando se atinge esse ponto.Não se pode dissociar a arte daciência, tal como não se devedissociar a forma do conteúdo”.

Para Ferreira da Silva qualquerobra de arte tem que ter “umaforte carga simbólica em queestejam expressos esses valo-res”. Esta ideia está, por exem-plo, expressa numa das suas últi-mas obras, junto à na piscina mu-nicipal no Bairro dos Arneiros, nasimediações da Expoeste. No pa-inel colocado na frente do edifí-cio lá estão representadas a arte- “que é a beleza” - e a ciência -“que é a força”. O sol simboliza aforça e a vitalidade enquanto quea Lua é a beleza e a arte. O braçoem movimento fazendo círculosrepresenta a criação e a cria-tividade. O homem tem na mão ocompasso que simboliza todasas equações matemáticas.

“Todo o meu trabalho é simbó-lico e tem sempre um conceitofilosófico”, afirma o mestre, querecorre muito à mitologia, outrotema que o apaixona e, por isso,o expressa constantemente noseu trabalho.

INTERVENÇÕES ASSINADASFS, POR TODO O PAÍS

Além das peças bidimensio-nais, tridimensionais, de espaçospúblicos, escultura cerâmica, en-fim todo o universo assinado FS,se distingue dos demais. Tarefasciclópicas não o assustam comoda vez em que, quando aindadava formação no Cencal, cons-truiu uma peça cerâmica com al-guns metros de altura. Uma obrapossante que foi criada sobreuma base móvel e devido a ta-manha altura “teve que ser cons-truído o próprio forno para a ircozendo”, relembra-nos da ne-cessidade dele e dos seus doiscolaboradores se revezarem emturnos para vigiarem a cozedurada gigantesca peça, finalizadaaos 1300º de temperatura. “Aobra foi atada de certa maneirapara poder ser transportada poruma grua para os jardins do Cen-cal, onde foi colocada sobre es-feras, de modo a conseguir a ne-cessária estabilidade”. Lá está àentrada deste Centro de Forma-ção. No seu interior pode aindaser vista uma outra peça escultó-rica tridimensional que personifi-ca uma figura régia, é uma ho-menagem do mestre, ao rei D.Luís.

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A Capela do Hotel Rural do Valado dos Frades

Pormenor da fachada - um dos apóstolos de F.S.

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São vários os locais por todoo país onde há peças FS. Doispainéis de baixo relevo estão, porexemplo, colocados no Restaura-nte Luso em Lisboa, no BairroAlto, “que antigamente era o Sa-lão Luso, local onde a Amália ac-tuava frequentemente”, recorda-nos Ferreira da Silva.

Apesar de achar que a locali-zação escolhida está muitoexposta, esta ideia da alegoria àregião já ganhou corpo, porexemplo, na sua obra que ficana área de serviço de Pombal daA1, na direcção Porto-Lisboa. Asua obra conta a história daquelalocalidade e assim surge um pa-inel de figuração onde não faltamreferências a Gualdino Pais, oconstrutor do Castelo de Pombal,entre outras referências àquelazona.

O Instituto Português de On-cologia (IPO), em Coimbra, temtambém uma grande obra assi-nada FS. No ambulatório, na es-cadaria e interior há várias inter-venções do mestre, tudo emazulejaria. Obras feitas em blo-cos arquitectónicos revestidoscom azulejaria, não só em super-fície plana onde está patente umacena mitológica, “com toda a car-ga simbólica que ela implica”.

UNIVERSO FERREIRA DA SILVANUM HOTEL RURAL

Uma das maiores intervençõesdo mestre, iniciada em 1997, po-de ser vista no Hotel Rural Quintado Pinheiro, no Valado dos Fra-des. Um pouco por todo lado, des-de a capela ao bar, passando pe-las fachadas e pelos quartos, hácores e traços Ferreira da Silva.

Começando pela Capela, logona frontaria, o mestre coloca osdoze apóstolos, em tamanho real,feitos em azulejaria e dispostosem leque, da horizontal para avertical. “É uma intervenção quesuscitou alguma polémica porqueas pessoas têm um certoconceito da igreja e, mesmo ládentro, também foi complicadoaparecer aquela concepção deJesus”, diz o mestre referindo-se à representação interior deCristo, em vitral, onde a figurasurge de um mundo de flores,águas e peixes.

A imagem faz o sinal de eternafidelidade, por isso surge de mãono peito e também mostra a outrapalma da mão, representando oimpoluto. É uma obra realizada emferro de várias espessuras e quedepois integra os vidros de váriascores. “Jesus morre, mas só amatéria. O espírito, todo o seuconceito filosófico, que é de umaprofunda humanidade, fica parao resto do tempo. Ainda no interi-

or deste pequeno templo podemser vistos dois retábulos deazulejaria e frescos do Mestre.

No bar do Hotel há vários pai-néis de belas figuras que simbo-lizam a fauna e a flora, adornadasde flores, peixes e pássaros. Norestaurante há uma obra onde aágua corre sobre a azulejaria. Nasala de congressos o mestrerealizou alguns trabalhos em azu-lejo e também podem ser vistosvários dos seus pratos pintados.Nos quartos há cerca de duasdezenas de desenhos e pinturas.Cada um está adornado com umapintura e um desenho de Ferreirada Silva.

No restaurante exterior, com-pletamente envidraçado destehotel rural, “aconselhei o pro-prietário a respeitar as cincoantigas colunas”, comenta omestre que lhe acrescentou maisuma que serve de contrapontoàs outras cinco e “que se integrasem neutralizar as outras”.

É neste espaço, cuja estruturaé em ferro e tudo o mais envidra-çado, com o tecto coberto comchapa de vidro translúcido queFerreira da Silva está a criar umvitral que será colocado ali, des-te espaço de refeições, destina-do também a banquetes de casa-mento.

Será uma obra de 95 metrosquadrados onde Ferreira da Sil-va vai colocar os 12 signos dozodíaco, “como vai ali muita gen-te, cada qual poderá ver o seu”,em quadrados no tecto com 2,30por 2,30 metros.

Para esta obra, Ferreira da Sil-va estava a trabalhar numa Fá-brica da Marinha Grande ondepode fazer os ensaios, as suasexperimentações habituais. “Ovidro é muito sensível, fica muitomaleável e derrete. É preciso do-minar todo o processo dacozedura que é muito longo”,conta o mestre que até agora jáestourou com dois computado-res, “acidentes que me têm suce-dido” por causa de ter que experi-mentar, de sentir a resistência dosmateriais e dos expor às maisaltas temperaturas.

INTERVENÇÕES UM POUCOPOR TODA A CIDADE

Nas Caldas multiplicam-se assuas obras, como um baixo-re-levo (com engobe metalizado)que embeleza a casa de Júlio Pa-ramos (Bairro da Ponte) e um pa-inel com um Centauro simboliza aforça. Nos novos Paços do Con-celho há outro onde está repre-sentado o ciclo da água. Na Ruadas Montras, num primeiro andarde um prédio, onde funcionou aTertúlia de Artes e Letras estácolocado um baixo-relevo domestre, um esgrafito com coresque são só letras. É lá que seinscrevem os nomes de perso-nalidades que o mestre admiratais como Pavlov, Einstein, Sam-paio Bruno, Mozart, Bracque,entre tantos outros. O belo painelque adorna o interior do BarPópulus é uma obra pequena masde grande valor plástico devido

à sua concepção estética. “É umaobra muito corajosa onde, maisuma vez, deixei o medo do ladode fora”.

Os muros e as floreiras querodeiam o Cencal também têm ocunho FS. “Quando José Luís deAlmeida e Silva teve um grandeacidente de viação fiquei muitoperturbado”, conta este artistaque depois da recuperação doseu amigo e director deste jornal,realizou essa intervençãoinfluenciado pela ”intensidade dotráfego e essa loucura nasestradas”. São por isso tonsfortes, com emoção e algumaperturbação que o marcaram nes-sa altura.

O mestre vai mais longe aoconsiderar que “claro que terauto-estradas é muito bom, quemnão gosta? Mas refiro-me àquelafase inicial da construção dasauto-estradas que é uma coisabárbara, o demoníaco esventra-mento da terra”. Isto porque Fer-reira da Silva é um apaixonadopela natureza e considera esteacto como uma forma de “cons-truir desconstruindo”. O mestreque considera que o seu própriotrabalho se situa numa tendên-cia construtivista, porque esterecicla todos os materiais, apro-veitando mesmo os resíduos.Tanto que nas primeiras peçasde escultura em metais com queele concorria aos salões, “eratudo feito com ferro recuperadoda sucata”. Mesmo para as suas

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Vitral e azulejaria do interior da Capela do Hotel Rural

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Era inevitável: do pequeno grupode artistas e intelectuais caldense,Ferreira da Silva foi o único que susci-tou não apenas a atenção, mas a ge-nuína preocupação de Luiz Pacheco”assim escreve João B. Serra, no seulivro “Continuação - Crónicas dos anos50/60”, editado pela Gazeta das Cal-das em 2000. Além das suasafamadas crónicas que semanalmen-te enriqueceram a Gazeta, João Serraincluiu a reunião de textos de LuizPacheco, escritor mordaz que viveualguns anos, nas Caldas, a partir de1954.

Segundo este autor, em várias car-tas que Luiz Pacheco trocava comseus amigos, expressa várias vezesa vontade de o ajudar a expor no es-trangeiro e chega mesmo a publicaruma entrevista a Ferreira da Silva noLetras e Artes “que seria o seu cartãode apresentação”. Exasperava-o “a faltade ambição de Ferreira da Silva quedesperdiça oportunidade e esbanja ta-lento num meio limitado”.

Afirma João Serra: “Mas é em “OCaso Ferreira da Silva”, publicado emMaravilhas & Maravalhas Caldenses(Outubro de 1966), que as preocupa-ções de Luiz Pacheco são explicitadascom clareza. Em primeiro lugar, Pa-checo acha que a família, a empresae o meio caldense podem ser respon-sáveis pela destruição de um artista”.

“Uma cidade de passagem, semvida cultural própria; um patronatoguloso das horas, da imaginação cria-dora de quem o serve, e enredado,estandartizado no afã comercialista ro-tineiro; uma mulher limitada porémhumaníssima nos seus anseios e re-acções de fêmea, de mãe. Registo:uma esposa portuguesa, patrões ego-ístas portugueses, uma cidadepequenina e portuguesa conspiram, tal-vez inconscientemente cada qual peloseu lado, numa acção desconcertadamas não menos eficaz não menosperigosa para a vítima; parecem todosapostados em; ou podem estar emvias de DESTRUIR UM ARTISTA.

Como é das Caldas da Rainha quefalo, era escusado dizer-lhe o nome,tão conhecido ele é. E não só nasCaldas, e não só no País inteiro(Prémio Soares dos Reis de Escultu-ra, obtido em 1964 no Salão da Prima-vera da S.N.B.A.), mas internacional-mente”. Luiz Pacheco continua o seutexto mostrando opiniões muito favo-ráveis quer de um importador ameri-cano quer citando a crítica da revistafrancesa “Aujourd’hui” de Arte e Arqui-tectura que louva as suas peças pre-sentes na II Exposição Gulbenkian,em Lisboa, assinada por José Augusto-França.

“Ora esse é o drama actual (o talen-to por si só vale muito mas se nãozelarem por ele estiola) de Ferreira da

“Nele se congregam o artífice devasta experiência e o Artista criador”

Silva.Conheço-o bem, a ele e ao seu

drama. Há perto de dois anos, numaamizade atenta, numa camaradagemem que não lhe regateei louvores eapoios, mas soube ser também brus-co e leal nos reparos, tive tempo desobra para estudar e definir o seu tipobastante singular. Dum ponto de vistaestético, nele se congregam o artíficede vasta experiência com as caracte-rísticas que marcam o Artista criador:carga instintiva, imaginação e, até pen-dor humanista, porque é um revoltadoda classe, um inconformista por tem-peramento. À humildade deartesão…alia-se o orgulho, a imponen-te, espectacular arrogância do Artista(é vê-lo cá fora na Praça, e isso Cal-das inteira reparou já; é ouvi-lo comoataca, irado as vaidadezinhas dos ama-dores, só simpáticos na sua pertináciae, vá lá, úteis como público mais es-clarecido num meio restrito como é ocaldense).

“(…) Caldas é um meio privilegiadopara a criação artística, mas tanta fa-cilidade conduz à dolce vita, aofariniente. Ao optimismo. E este, aodeixa andar, à repetição, à gloríola lo-cal que localmente se contenta. O maisprecavido cai nisso. A tendência geralé para o nivelamento. Assim, meiosesteticamente avançados, onde acompetição é árdua, produzem artistassuperiores; em meios de débil exigên-cia, de vida fácil, os artistas são suga-dos para a facilidade, a não exigênciaconsigo próprios. Falhos de convivên-cia, de estímulo esclarecido, de públi-co, em suma, tendem para a o narci-sismo, para a mitomania. São palavrasduras de ouvir?

A mim próprio as digo muitas ve-zes. No caso do Ferreira da Silva sa-bem-no muitos que não exagero. Queele está nas melhores condições (deidade, de vigor oficinal, de ambições,de possibilidades materiais) de levarpara a frente a sua criação. Dispõe deuma bolsa para se especializar emparis. Façamo-lhe então uma home-nagem pública e um favor pessoal queem nosso proveito reverterá (porque oque faz um Artista interessa a todos):incitemo-lo. Não o desviemos da suacarreira. Acreditemos nele e nela. Ocompanheirismo fácil é cómodo. A con-vivência exige lealdade. O caso (artís-tico) F.S. não está encerrado. Talvez,quem sabe?, vá entrar numa fase de-cisiva. Não estou ninguém nas Cal-das deve ficar, indiferente à suapersonalidade como à sua obra”.

Deve acrescentar-se que em Mar-ço de 1967, no ano seguinte, Ferreirada Silva estava em Paris, na Academiede Paris Métiers d’Art, Rue de Thorigny,termina assim com este comentáriode João B. Serra na “Continuação”.

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A decoração do Restaurante do Hotel Rural

Apóstolos dispostos em leque na frontaria da capela

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obras de cerâmica escultórica

chega mesmo a usar cacos de

peças que se partem e remata

apenas afirmando que “reciclo

tudo”.

AUTOR DA PEÇA COMEMORA-

TIVA DOS 75 ANOS DA

GAZETA

Havia outros autores da cida-

de de maior gabarito, mas fui con-

vidado pela direcção da Gazeta

para fazer uma peça comemora-

tiva dos 75 anos”, conta o mestre

relativamente a esta efeméride

celebrada no 1ano transacto.

Tema de conversa no Café

Central (entretanto extinto ?) ou

na Praça da Fruta “decidimos

então que devia ser algo rela-

cionado com a notícia, com a

verdade e com a credibilidade,

características que a Gazeta

personifica”, disse Ferreira da

Silva. E assim surgiram duas

peças, um baixo e outro alto rele-

vos em cerâmica policromada

com duas pombas voando que

simbolizam essa ideia do jornalis-

mo. As peças foram executadas

na Fábrica Molde, em grés fino,

de vários tons experimentados e

escolhidos “pelo director do jor-

nal, pelos directores da Molde e

por mim”. É ainda nesta empresa

que Ferreira da Silva trabalha fre-

quentemente. A direcção

disponibilizou-lhe o espaço e “te-

nho sempre forno e laboratório

quando preciso”.

A peça comemorativa do ani-

versário da Gazeta prima pela

simplicidade, sem pretensões.

“Por ser simples tem toda a carga

profissional e de amor que eu po-

nho a todas as coisas que faço”.

Estas peças “têm uma pureza

muito singela” que, segundo o

mestre, nada têm haver com as

escultóricas de exterior “que es-

pero que um dia a Gazeta venha

a ter, num local próprio, todo

integrado e que possa contar

com uma valiosa obra de arte. É

pena que não seja ainda no meu

tempo e que eu pudesse intervir”.

PREFERÊNCIA POR MATERIAIS

QUE OFERECEM RESISTÊNCIA

Para o seu trabalho artístico,

Ferreira da Silva prefere traba-

lhar os materiais que oferecem

resistência. Como afirmava um

artista seu amigo - Santiago Are-

al -, a intervenção de Ferreira da

Silva na forma, nunca é decora-

tiva, mas sim de patine, isto é,

numa apresentação escultórica.

O puxar e o amassar do barro,

o trabalho da roda “toda essa

azáfama que continuo a fazer na

minha oficina em minha casa” é o

que entusiasma, este artista mul-

tifacetado que ultimamente se

entregou ao trabalho em vidro

que também oferece igualmente

resistência ao artista.

“Trabalho o vidro em efusão

com pontas de aço. É no próprio

forno que lhe dou formas. É mui-

to violento porque estou exposto

à expansão do calor à volta dos

1000º”, dizia o mestre que por

estar tão exposto a esta violên-

cia de calor sofreu recentemen-

te problemas graves de saúde,

que o levaram a internamento no

Hospital de Santa Maria, mas de

que está em vias de recuperar.

“Primeiro trabalho o vidro e de-

pois amasso, faço uma amálga-

ma e intervenho sempre com a

mão. Também gosto de pintar, mas

de facto são os materiais que me

oferecem resistência que me

prendem mais”.

Em relação às peças tridimen-

sionais e de ar livre Mestre Fe-

rreira da Silva gostaria que não

estivessem colocadas em espa-

ços urbanos de grande visibili-

dade como as rotundas e outros

espaços citadinos. Gostava de

poder fazer obras que fossem

colocadas no exterior, em sítios

que quase ninguém passe “mas

que uma vez ou outra se podem

ver”.

Queria “colocá-las em lugares

insólitos, quase impraticáveis,

seriam peças que vão a caminho

de...”. De quê?, questionamos o

mestre ao qual apenas res-

ponde…”de tudo”.

À pergunta de onde gostaria

de ter uma peça sua colocada

na região, o mestre diz que gos-

tava que fosse perto da costa,

“onde há sítios lindíssimos, desér-

ticos, zonas altamente inóspitas

ou também poderia ser num

cenário serrano”.

Gostaria o mestre que fosse

apenas um carreiro onde passa

o pastor com as cabras ou al-

guém faz um piquenique e foto-

grafa. “Deus queira que ainda

dure algum tempo porque gosta-

va muito de concretizar este

desejo”, diz Ferreira da Silva.

Nestas peças destinadas a

lugares inóspitos o artista gosta

de obras que sejam alegorias à

região que as recebe. Obras que

tenham a ver com toda a “sua

Peças comemorativas do 75º aniversário Gazeta das Caldas (2000)

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própria ambiência atmosférica,

paisagística e histórica e ter esta

densidade que para mim é muito

profunda”.

Ferreira da Silva deu forma-

ção no Cencal, actividade que lhe

agrada. “É agradável trabalhar

com a juventude, onde busco

força, porque aprendo muito com

eles”. Gosta de ensinar, mas não

tem discípulos, prefere trabalhar

só e afirma que “o Homem tem

uma idade cronológica marcada

por acontecimentos como o bap-

tismo, a tropa ou o casamento”.

Mas depois, segundo este mago

artístico, há uma outra idade “que

é a biológica e que não tem a ver

com a que aparentamos mas sim

com aquilo que pensamos e fa-

zemos”, comenta o jovem mestre

de quem ainda muito esperamos,

fruto do seu arrojo e da sua cria-

tividade, de um homem de desti-

no traçado para as artes.

Natacha Narciso

[email protected]

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sante. Acompanhemo-lo.Aqui a pasta é vazada em mol-

des do formato desejado. Duran-te cerca de hora e meia (elucida-me um dos trabalhadores), o ges-so absorve a água, formando-se,pela solidificação da massa jun-to às paredes do molde, a peçapretendida. Extrai-se-lhe o barrointerior, líquido ainda. Tal proces-so, muito simples, aplica-se ape-nas a peças ocas.

Entretanto, a pasta sólida emcilindros sofre trâmites diferentes.Elas destina-se ao jaule. Umaadaptação da milenária roda deoleiro. Cada artífice coloca sobrea plataforma giratória (nele se dis-põe previamente um molde) aquantidade de barro que julganecessária, com um gesto rápi-do e seco. Uma das mãos fazdescer uma espécie de maçopendular tendo na extremidadeum testo metálico que dá à peçao seu contorno superior definiti-vo enquanto a outra, segurandoum estilete,elimina todos os de-feitos que subsistam. Ao conjuntoda operação preside, por partedos operários, uma vertiginosadesenvoltura que só da prática eda intuição congénita pode pro-ceder.

A fase seguinte é a da seca-gem, para o que as peças de ce-râmica são sujeitas a um aqueci-mento a temperatura pouco e-levada. Submete-se depois todaa louça a uma minuciosa revisão:cortar, raspar, roçar, esponjar,duma só vez. Da perfeição comotal tarefa é executada (homens emulheres atentamente manusei-am as peças, uma a uma, procu-

rando com extrema com extremaprecaução e munidos de instru-mentos adequados, corrigi-las,retocá-las, ultimá-las) dependetambém a perfeição geral de cadaobjecto.

O barro cru terminou a sua car-reira. Aguarda em longas estan-tes, nos corredores, a consuma-ção artística industrial. A louça, in-consistente ainda, quebra-se comfacilidade, evidenciando, uma co-loração fosca, incaracterística.

Chacotagem é o termo que de-signa a primeira cozedura. Numcompartimento sombrio e abafa-do, fornos genlíquido a que atrásme reportei. Este caminho é de-veras interessante. Acompanhe-mo-lo.

Aqui a pasta é vazada em mol-des do formato desejado. Duran-te cerca de hora e meia (elucida-me um dos trabalhadores), o ges-so absorve a água, formando-se,pela solidificação da massa jun-to às paredes do molde, a peçapretendida. Extrai-se-lhe o barrointerior, líquido ainda. Tal proces-so, muito simples, aplica-se ape-nas a peças ocas.

Entretanto, a pasta sólida emcilindros sofre trâmites diferentes.Elas destina-se ao jaule. Umaadaptação da milenária roda deoleiro. Cada artífice coloca sobrea plataforma giratória (nele se dis-põe previamente um molde) aquantidade de barro que julganecessária, com um gesto rápi-do e seco. Uma das mãos fazdescer uma espécie de maçopendular tendo na extremidadeum testo metálico que dá à peçao seu contorno superior definiti-

VISITA A UMA F¡BRICA DECER¬MICA: SECLA, 1966

Um pequeno largo verdejante.Um edifício de cor amare-la, cer-cado de muros baixos. Eis-meem frente da fábrica de cerâmicaSECLA. O guarda olha-me pro-fissionalmente.

- Gostaria de visitar a fábri-ca…

Introduz-me numa sala de pa-redes nuas. De um lado, o bal-cão em ângulo recto, duas ca-deiras, o telefone. O relógio deponto a um canto, num baquesurdo e monótono. Estende-mepapel e lápis. Nome, morada, etc.Abre a porta, lentamente.

Das ruas confluentes, um ven-to áspero topa-me de chofre esinto-me momentaneamente

confundido. Há uma viela queparte daqui, esmagada entreconstruções sóbrias e funcionais.

FABRICO EM S…RIE

Secção de moagem. Início doprocesso de fabricação de louçaem série. Acumuladas no andarsuperior, as matérias primas sãointroduzidas por aberturas qua-drangulares nos poços e moi-nhos. Tubos de grande diâmetroagitados de um movimento rota-tivo sobre um eixo fixo – estes.Tanques circulares em que o bar-ro é misturado por circunvoluçõesde pás de madeira – aqueles.

O barro apresenta um aspectoleitoso, pouco compacto. Este gé-nero de pasta tem, como vere-mos, uma determinada aplica-ção. Exceptuando uma dada par-te, todo o barro líquido é aspiradopor canais que comunicam direc-tamente como os poços e moi-nhos (um funcionário idoso faz-me estas observações, exempli-ficando, enquanto eu tomo algu-mas notas). Uma vez prensado(escorrida toda a água em exces-so), as placas de reduzida espes-sura obtidas são amontoadas poralgum tempo. Entra mais tardenuma forma mecânica que lhetransmite uma configuração cilín-drica, de fácil manejo.

O ruído das máquinas é inco-modativo. Alguns operários vigi-am o andamento do serviço. Tra-ta-se, seguramente, de um traba-lho que exige cuidado, na dosa-gem do sílex, na mistura do cau-lino e da areia.

Local onde tem lugar uma dasfases divergentes que se seguemà moagem. Amplo e comprido.Em cima das bancas a toda a lar-gura da sala, alguns operáriosenchem (ou despejam) moldesde gesso com parte do barro lí-quido a que atrás me reportei.Este caminho é deveras interes-

Sobre Ferreirada Silva algunsautores jáescreveramdedicarampáginas à suacarreira e à suaobra. Um deles éo historiadorJoão B. Serra,autor dos doistextos que seseguem. Oprimeiro foipublicado a 14de Junho de1966, nosuplemento“Juvenil” doDiário deLisboa, quandoo autor tinhaapenas 17 anos.Com estetrabalhoapresentou-se aum concursoorganizado pelodito suplementoe ganhou oprimeiro prémio.Foi também jápublicado narevista“Cerâmicas”. Osegundo texto éuma revisitaçãodo autor aoprimeiro, comuma novaanálise, dada apassagem dotempo.11

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lização ornamental, recolhe Fer-reira da Silva um sentido aindanão revelado na arte da cerâmica.Ele é também o inventor de ummétodo de metalização a altastemperaturas.

-“Consciência profissional deveser o norteamento da nossaconsciência de artistas, numramo de arte que de modo algumpode pactuar com tentadoras fa-cilidades. Aliás o próprio arte decriar é de si uma aventura difícile esgotante. Convém não a la-dear. Na vitória está a conquistae a descoberta. Não foi Bracquequem disse – descobrir uma coi-sa significa fazê-la viver? Tudo oresto é masturbação”.

Eu já conhecia Ferreira da Sil-va. Apresentara-nos um amigocomum, Luís Pacheco (poeta eensaísta) numa tarde de cavacona Tertúlia Artes e Letras. Mas foiaqui no seu estúdio da Secla,observando-o, ora confiante, oraangustiado, ora calmo, ora agita-

do, a trabalhar ao torno, que me-lhor intuí a verdadeira humanida-de da arte. Tudo no “Curral” –nome artístico que dá ao estúdio– personagens e objectos se con-jugam para nos sugerir algo ain-da não compreendido nem visio-nado.

Entra-se por uma portinholaestreita borrada de azul com asvidraças sujas de tinta. Uma casapequena e baixa cujo tecto forra-do de cartolina grossa descai, bi-partido, para o centro. Um de-grau, quase despercebido, divideo estúdio. O piso é cimentado eirregular.

Na parte inferior, onde me in-trometo primeiramente, respira-se uma tranquilidade, pressente-se uma harmonia que nem a de-sordem das paredes estriadas deprateleiras, das quais azulejos eoutras peças decorativas pare-cem querer saltar, inquietas eapreensivas, consegue estilha-çar. Anoto ao acaso: montículos

de barro cinzento e vermelho,uma mesa de tampo de mármo-re, trapos abandonados e enegre-cidos, caixotes, um guarda-chu-va, desenhos rabiscados a lápisno branco dos caiados, fatos sus-pensos de um cabide tosco. Umalâmpada pende, agreste, e duasesquadrias de ferro e uma serre-ta de lâmina redonda e um reló-gio de bolso surrado dos anos edo uso.

A passagem para o outro re-cinto faz-se através de uma aber-tura à esquerda delimitada porum móvel velho e comprido, ver-de escuro, atulhado de vasoscom materiais de pintura e uten-sílios vários: pincéis, esponjas, fa-cas, estiletes, raspadores. A luzé vertida de uma janela lateral ede telhas translúcidas que rom-pem a cortina do forro. A salasofre um alargamento do lado dapassagem e aí estão duas rodasde oleiro, uma torneira e um tan-que, a um canto, e uma bancade pedra.

Ferreira da Silva, envergandouma bata de sarja cor de cinza,modela ao torno um prato de lar-gos bordos. Encostado a uma tra-ve oblíqua, movimenta com umadas pernas uma roda de madeiraunida por um eixo perpendiculara outra de menor dimensão: atradicional roda de oleiro. O bar-ro aguarda aqui o toque subtil dosdedos do artista. Na sua frente,um tablado com preparados depastas líquidas.

A parede do fundo ostentaigualmente peças de cerâmicaacumuladas em estantes. Distin-go: vasos, travessas com combi-nações de elementos diversos,pratos acobreados, e, quaseencoberta, uma figura de cava-leiro barbado da autoria de RosaRamalho. Mais adiante e no ex-tremo oposto, uma mufla ferru-genta e jarrões de diferentes fei-tios. Ao lado, um armário corridoem que são visíveis cerâmicasesmaltadas, azulejos, pratos, co-lheres, uma vassoura, jornais.Em volta e no chão, ânforas, bal-das com água e vasilhas decora-das. O cano de uma estufa des-ce até ao solo. Ouve-se o ruídosufocado dos motores dos moi-nhos.

LEONORE DAVIS

Miss Leonore Davis, sentadaao velho móvel verde escuro, le-vanta para mim os olhos tolda-dos por espessas lentes, numaatitude de enfado e expectativa.

Norte-americana. Diplomadapela Universidade de Michigan epela Cambrook Academy of Art.E em Portugal desde Setembrodesde 1965, ao abrigo do progra-ma de intercâmbio FullbrightHays.

vo enquanto a outra, segurandoum estilete, elimina todos os de-feitos que subsistam. Ao conjuntoda operação preside, por partedos operários, uma vertiginosadesenvoltura que só da prática eda intuição congénita pode pro-ceder.

A fase seguinte é a da seca-gem, para o que as peças de ce-râmica são sujeitas a um aqueci-mento a temperatura pouco e-levada. Submete-se depois todaa louça a uma minuciosa revisão:cortar, raspar, roçar, esponjar,duma só vez. Da perfeição comotal tarefa é executada (homens emulheres atentamente manu-seiam as peças uma a uma,procurando com extrema comextrema precaução e munidos deinstrumentos adequados, corrigi-las, retocá-las, ultimá-las) depen-de também a perfeição geral decada objecto.

O barro cru terminou a sua car-reira. Aguarda em longas estan-tes, nos corredores, a consuma-ção artística industrial. A louça, in-consistente ainda, quebra-se comfacilidade, evidenciando, uma co-loração fosca, incaracterística.

Chacotagem é o termo que de-signa a primeira cozedura. Numcompartimento sombrio e abafa-do, fornos eléctricos, balcões pol-vilhados de louça. De fatos azuis,impecáveis, operários espe-cializados espiam a sequência doprocesso, cuja duração média éde 24 horas. Por ordem dos res-pectivos volumes, acama-se alouça em placas refractárias. Operíodo de aquecimento a tem-peraturas de cerca de 1200º cen-tígrados, é de 16 horas, constitu-indo as restantes oito o períodode arrefecimento, à temperaturado meio ambiente.

O acabamento das cerâmicasimplica um programa de melho-ria da respectiva apresentação.A sua execução está a cargo desecções fabris próprias. Após achacotagem, procede-se à elimi-nação das que manifestam qual-quer defeito de factura. Na frentedas aprovadas, duas vias. Umacondu-las directamente à vidra-ção, aplicada por banho ou à pis-tola. O vidrado consta basica-mente de caulino, cálcio, areia ecarbonato de chumbo. Segue-seuma segunda cozedura, incidin-do particularmente na conso-lidação do sedimento de vidro,nova escolha e roça (das excres-cências provocadas pelos gram-pos em que a louça se apoiavaaquando da permanência no for-no). Para esta, é enfim chegadaa altura da embalagem e doempacotamento.

A outra via desemboca na sala

de pintura. Mesas, armações demadeira, cavaletes, estantes, mo-chos, taças com preparados decores, pincéis, motivos de-senhados, raspadores, peças-modelo. Sentados, inclinando-sesobre as peças, os copistas co-meçam por lhes sobrepor folhasde papel vegetal com o contornodo desenho ponteado. Uma “bo-neca” de carvão faz o resto. Aspinturas são realizadas segundoas colorações originais, recla-mando-se por isso aos artistascompetência e apuro. Vidração,escolha, roça e embalagem. Étudo.

Anexas às instalações da fá-brica, mas nelas inseridas comoelementos fundamentais, indis-pensáveis, a secção de moldese laboratório. A sua importância,dentro das estruturas industriaisda cerâmica é do maior préstimoe influência. Uma possibilitandoo aperfeiçoamento do fabrico emsérie, o outro funcionando como

princípio de todo o avanço nascondições de produção.

O EST ⁄DIO:FERREIRA DA SILVA

Estatura elevada. Figuradesenvolta. Boné displicente adescobrir uma madeixa de cabe-los rebeldes. Olhar franco e pro-fundo. Calças justas, camisola degola alta. Mãos com resíduos debarro.

Trinta e cinco anos. Naturezacomunicativa, uma independên-cia de espírito que se revela nomodo decidido e vibrante de ex-por as suas convicções.

Artista de nomeada internaci-onal, na pintura, no desenho, nagravura e na escultura, é o maiorceramista português da actuali-dade. As suas actividades nestecampo têm sido as de um extra-ordinário inovador. Da combina-ção dos vidrados, da integraçãode elementos estranhos, da esti-

O escritor Luis Pacheco com Ferreira da Silva no Inferno da Azenha

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Page 13: Ferreira da Silva, um amigo muito especial - gazetacaldas.com · fosse uma espécie de colagem com barbotina”, pode ler-se no catálogo da exposição que reuniu, no ano passado,

Vinte e nove anos. Um jeitomelancólico no falar.

Estagia no “Curral” e os resul-tados (expõe presentemente nagaleria “Diário de Notícias” emLisboa), confessa, são franca-mente animadores. Mas não asua cordialidade.

MESTRE GALO

Junto à banca, batendo fortecom as mãos rudes, Mestre Galoamacia o barro com pancadassecas que ressoa estranhamenteno silêncio do “Curral”.

Nome completo – HenriquePereira Faria. Mas todos lhe cha-mam “Mestre Galo”. Cinquenta etrês anos. Solteiro e poeta. Esta-tura mediana, face sardenta, pu-xando fumo do cigarro, numa len-tidão dir-se-ia que premeditada.Martela as sílabas como se te-messe que elas lhe escapassem.É empregado na fábrica como

onal, na pintura, no desenho, nagravura e na escultura, é o maiorceramista português da actuali-dade. As suas actividades nestecampo têm sido as de um extra-ordinário inovador”.

Eu acabava então de o visitarno “curral”, nome que dava à pe-quena oficina de que dispunha naSecla e ficara toda a tarde a vê-lo lidar com o barro. Foi uma ex-periência para mim iniciática. Assuas mãos nodosas ganhavam atodo o instante autonomia, atraí-das inexoravelmente pela maté-ria plástica, ora como que subju-gados, ora soltas, impondo bru-tais aqui uma geometria convul-sa, afagando com delicadezaacolá um relevo adoçado, sem-pre num bailado incrível e mag-nífico.

Pode ter havido – e era inevi-tável que isso acontecesse, aten-tas as condições da época, domeio, onde a figura do artista serecortava em alto contraste –muito de idealização e composi-ção literária nesta imagem doLuís Ferreira da Silva, mas eladefine antes do mais a persona-gem. E na segunda metade dosanos 60, pelo menos, a persona-gem Ferreira da Silva está inscri-ta na paisagem mais emblemáti-ca das Caldas da Rainha contra-corrente.

É possível que esta persona-gem se tenha em certo momen-to posto a conspirar contra o pró-prio artista. Luís Pacheco, o seuinseparável parceiro daquelestempos, outra personagem derecorte indelével, escreveu emOutubro de 1966 um panfleto in-titulado “O Caso Ferreira da Sil-va”, onde se advertia a premoni-ção: ìCaldas È um meio pri-vilegiado para a criaÁ„o artÌstica,mas tanta facilidade conduz ‡ dol-ce vita, ao farniente. E este, aodeixa-andar, ‡ repetiÁ„o, ‡ glorÌ-ola local que localmente se con-tenta. O mais precavido cai nis-so. A tendÍncia geral È para o ni-velamento. Assim, meiosesteticamente avanÁados, ondea competiÁ„o È ·rdua, produzemartistas superiores: em meios dedÈbil exigÍncia, de vida f·cil, osartistas s„o sugados para a faci-lidade, a n„o exigÍncia consigoprÛprios.

Falhos de convivÍncia, de es-tÌmulo esclarecido, de p˙blico emsuma, tendem para o narcisismo,para a mitomaniaî.

Ferreira da Silva parecia tersido engolido na voragem dosanos 70. De qualquer modo, oapelo das Caldas e da cerâmicafoi suficientemente forte para ofazer regressar. Rejuvenesceu. Oartista redescobriu o homem eeste ganhou aquele. Nos últimosseis anos, Ferreira da Silva con-jugou trabalho com imaginação,experimentalismo com design,

formação com intervenção, con-tinuidade com exaltação.

A cerâmica caldense – comocerâmica portuguesa – passainevitavelmente por ele. Comoboa parte, se não todos, os gran-des ceramistas portugueses,trouxe para o barro o gosto e aexperiência da escultura. Masnão é um escultor barrista. Emprimeiro lugar pelo permanente eagudíssimo sentido da cor. Fer-reira da Silva trouxe também parao barro o gosto e a experiênciada pintura. Em segundo lugar,pela atenção ao traço na compo-sição decorativa. Ferreira da Sil-va trouxe também para o barro ogosto e a experiência do dese-nho e da gravura. Em terceiro lu-gar, pelo labor oficinal, pelo do-mínio das técnicas, pelo respeitodos materiais cerâmicos e res-pectivos comportamentos. Ferrei-ra da Silva é um ceramista, essaespécie afinal rara num País deartistas e artesãos do barro, e umdos mais criativos e completos donosso tempoArtista de nomeadainterna-cional, na pintura, no de-senho, na gravura e na escultu-ra, é o maior ceramista portugu-ês da actualidade. As suas acti-vidades neste campo têm sido asde um extraordinário inovador”.

Eu acabava então de o visitarno “curral”, nome que dava à pe-quena oficina de que dispunha naSecla e ficara toda a tarde a vê-lo lidar com o barro. Foi uma ex-periência para mim iniciática. Assuas mãos nodosas ganhavam atodo o instante autonomia, atraí-das inexoravelmente pela maté-ria plástica, ora como que subju-gados, ora soltas, impondo bru-tais aqui uma geometria convul-sa, afagando com delicadezaacolá um relevo adoçado, sem-pre num bailado incrível e mag-nífico.

Pode ter havido – e era inevi-tável que isso acontecesse, aten-tas as condições da época, domeio, onde a figura do artista serecortava em alto contraste –muito de idealização e composi-ção literária nesta imagem doLuís Ferreira da Silva, mas eladefine antes do mais a perso-nagem. E na segunda metadedos anos 60, pelo menos, a per-sonagem Ferreira da Silva estáinscrita na paisagem mais emble-mática das Caldas da Rainhacontra-corrente.

É possível que esta persona-gem se tenha em certo momen-to posto a conspirar contra o pró-prio artista. Luís Pacheco, o seuinseparável parceiro daquelestempos, outra personagem derecorte indelével, escreveu emOutubro de 1966 um panfleto in-titulado “O Caso Ferreira da Sil-va”, onde se advertia a premoni-ção: ìCaldas È um meio privile-giado para a criaÁ„o artÌstica,

mas tanta facilidade conduz ‡dolce vita, ao farniente. E este,ao deixa-andar, ‡ repetiÁ„o, ‡ glo-rÌola local que localmente se con-tenta. O mais precavido cai nis-so. A tendÍncia geral È para o ni-velamento. Assim, meiosesteticamente avanÁados, ondea competiÁ„o È ·rdua, produzemartistas superiores: em meios dedÈbil exigÍncia, de vida f·cil, osartistas s„o sugados para afacilidade, a n„o exigÍncia con-sigo prÛprios.

Falhos de convivÍncia, de es-tÌmulo esclarecido, de p˙blico emsuma, tendem para o narcisismo,para a mitomaniaî.

Ferreira da Silva parecia tersido engolido na voragem dosanos 70. De qualquer modo, oapelo das Caldas e da cerâmicafoi suficientemente forte para ofazer regressar. Rejuvenesceu. Oartista redescobriu o homem eeste ganhou aquele. Nos últimosseis anos, Ferreira da Silva con-jugou trabalho com imaginação,experimentalismo com design,formação com intervenção, con-tinuidade com exaltação.

A cerâmica caldense – comocerâmica portuguesa – passainevitavelmente por ele. Comoboa parte, se não todos, os gran-des ceramistas portugueses,trouxe para o barro o gosto e aexperiência da escultura. Masnão é um escultor barrista. Emprimeiro lugar pelo permanente eagudíssimo sentido da cor. Fer-reira da Silva trouxe também parao barro o gosto e a experiênciada pintura. Em segundo lugar,pela atenção ao traço na compo-sição decorativa. Ferreira da Sil-va trouxe também para o barro ogosto e a experiência do dese-nho e da gravura. Em terceiro lu-gar, pelo labor oficinal, pelo do-mínio das técnicas, pelo respeitodos materiais cerâmicos e res-pectivos comportamentos. Ferrei-ra da Silva é um ceramista, essaespécie afinal rara num País deartistas e artesãos do barro, e umdos mais criativos e completos donosso tempo.

manipulador desde a sua funda-ção, em 1945. E discorre sobreesses tempos com um orgulhoque lhe transparece no sorriso lí-quido dos olhos.

O tacto exercitado pela experi-ência é o seu manual científico –e tem a finura de um prestidigita-dor.

O ARTISTA

Para a minha geração, ele eraa encarnação da imagem poéti-ca do artista. Boémio, inconfor-mista, desprendido, indomável,bafejado pela loucura dos deu-ses, fascinante, daquele fascínioque é exaltado pelo coração daterra, submete a natureza e en-canta as mais belas mulheres.

Em 1966, descrevi-o assim,em notas juvenis: “Estatura ele-vada. Figura desenvolta. Bonédisplicente a descobrir uma ma-deixa de cabelos rebeldes. Olharfranco e profundo. Calças justas,camisola de gola alta. Mãos comresíduos de barro.

Trinta e cinco anos. Naturezacomunicativa, uma independên-cia de espírito que se revela nomodo decidido e vibrante de ex-por as suas convicções.

Artista de nomeada internaci-

Secla 1960/64

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O escultor Ferreira da Silva,que foi responsável pela concep-ção da peça em cerâmica dos 75anos da Gazeta das Caldas, tevecomo base de trabalho a FábricaMolde, na zona industrial dasCaldas, contribuindo também comalgumas ideias, fruto do conhe-cimento adquirido. Tudo começouquando em 1998 solicitou aosresponsáveis da empresa meios

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para fazer um mural que seriacolocado na área de serviço daA1 em Pombal.

A Molde é um exemplo econó-mico, pois além de apresentar umcrescimento sustentado afirmou-se já no mercado da indústriacerâmica, apresentando produ-tos e conceitos muito próprios,tendo recebido recentemente vá-rias distinções e prémios.

A fábrica de cerâmica Moldenasceu em 1998 e na altura con-tava com três sócios: Artur Lo-pes - que entretanto sedesvinculou da sociedade – LuísRibeiro e Caetano Beato. “Onosso objectivo era criar umproduto diferenciado, usando aterracota utilitária”, diz o último,na qualidade de sócio-gerente.Apostou-se na cerâmica de

qualidade, produzindo louçadecorativa e na criação daslinhas de mesa, com asexigências técnicas do mercadode exportação, controlando osteores de chumbo e de cádmio.Às peças produzidas foi confe-rida resistência mecânica ade-quada para a lavagem e uso emmicroondas. “Criaram-se condi-ções claras de poderem ser

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CAETANO BEATO, SÓCIO-GERENTE DA MOLDE

usadas no mundo moderno”,refere o nosso interlocutor.

ESTRATÉGIA DITAABANDONO DA PRODUÇÃO

EM FAIANÇA

Nos primeiros anos produzi-ram-se peças em terracota e emfaiança, porque era necessáriocumprir um determinado volumede negócios, que era assegura-do pela faiança.

Em 1995 deixou de produzirneste material e dedicou-se emexclusivo à terracota, “um cam-po onde há grandes desafios eonde temos de manter certascaracterísticas. Não podemoscriar mais uma linha só por criar,temos de agir de acordo com osconceitos de decoração e anoção temporal de que um serviçodura quatro a cinco anos e depoisserá substituído”, esclareceJoaquim Beato. A produção é em80 por cento utilitária.

A faiança tem aproximada-mente 200 quilos de resistênciamecânica, mas a terracota apre-senta 400. Quanto à porosidade,na faiança é de 16 a 18% contra8 a 11% na terracota. “O própriomercado vai querendo coisasque durem mais, que sejam maispráticas no dia a dia e oconsumidor vai-se tornando maisexigente”, explica Beato, queconsidera que “hoje em diaconsideramos que somos espe-cialistas em terracota, o nossocore business”.

Decorridos três anos, em1998, iniciam-se os estudos queconduzem a um conhecimentotécnico e de desenvolvimento deprodução do grés, “a dama re-belde da indústria cerâmica”.Este é um produto tecnicamentecomplexo e com característicasparticulares, como elevada resis-tência mecânica, baixa porosida-

“A produção é o que mede ospaíses, e sinto que em Portugala ordem dos valores estáerrada. O que cria riqueza nospaíses é o desenvolvimentosustentado dos sectoresindustriais, e se for possível deagricultura e pescas. Osserviços serão sempre áreascomplementares. Entendotambém que o turismo é uma

“Em P“Em P“Em P“Em P“Em Pororororortugtugtugtugtugal aal aal aal aal aororororordem dos vdem dos vdem dos vdem dos vdem dos valoraloraloraloraloreseseseses

estestestestestááááá er er er er errrrrraaaaadadadadada”””””área de futuro, mas não acreditoque as pessoas passem daagricultura para servir àsmesas. É preciso passar anosa mudar as mentalidades e nãovejo que existam condiçõesmentais para continuar a investirem Portugal. Não me vejomotivado”.

R.T.

de e uso quase eterno.A iniciativa surgiu devido ao

vazio que existia neste mercado.Em Portugal faz-se grés apenaspara loiça de forno, como, porexemplo, para suportes de piz-zas. Havia apenas duas fábricasno mundo que produzem cerâmi-ca em grés, por isso esta apostafoi encarada como “uma oportu-nidade de negócio”. Aliás, osnúmeros falam por si, já que em2000 a facturação conseguidaapenas com peças deste materi-al foi superior a cerca de 600 mileuros (120 mil contos), cerca de17% da facturação total. “Nãopensava fazer tanto e hoje nãovendemos mais porque nãodinamizamos este sector, atéporque se as vendas em terra-cota baixarem, as do grês au-mentam e vice-versa”, indica oresponsável.

Caetano Beato defende a cri-ação de uma fábrica independen-te e autónoma só para produçãode grés, o que só seria possível“com grande empenho e carinhosenão não é possível trabalharno grés, porque é preciso pensarnas regras marginais, que sóaparecem quando se produz”,alerta.

Poderá ser instalada nas Cal-das?

“O futuro a Deus pertence,mas é do conhecimento de todosque não se pode chamar a istouma zona industrial, pela falta decondições que apresenta”.

Este passo representou, naaltura, um grande risco, já quenão havia nenhum indicador deque as coisas iriam correm bemem termos de vendas. “Os ris-cos das indústrias com cresci-mentos exponenciais são sem-pre grandes”, opina Beato, queexplica que a empresa partiu deuma facturação de cerca de 730mil euros (146 mil contos) em

1989, subiu para 1,6 milhões deeuros (340 mil contos) em 1990e chegou a 2,4 milhões de euros(meio milhão de contos) no es-paço de ano e meio.

As dificuldades sentida foramessencialmente ao nível da es-trutura interna, dos compromis-sos com o mercado e da capaci-dade de fazer. “Foi uma aventu-ra controlada, mas este cresci-mento foi difícil de acompanharem termos de euforia.Poderíamos ter crescido mais seessa fosse a intenção, mas nospróximos 2 anos devemoschegar aos 4,4 milhões de euros[900 mil contos], e penso que nãodevemos ultrapassar os cerca de5 milhões de euros [um milhão decontos]”.

MERCADO INTERNO NÃOTEM EXPRESSÃO

Sobre o futuro da empresa, oresponsável diz que nenhumamarca está consolidada nestemundo, porque se trata de “ques-tões dinâmicas. O que conta é opróximo passo, e posso garantiré que a Molde está maispreparada para ir à procura doque será esta área de produtosdiferenciados, além de sermosconhecidos e respeitados”.

O mercado de exportaçãoabarca os Estados Unidos daAmérica, Inglaterra, Noruega,França, Alemanha, África do Sule Canadá. Quanto ao mercadonacional, a expressividade é qua-se nula.

Uma experiência recente foia criação de uma loja de fábrica,o que não deu resultado, porque“em termos de mercado nacionalé preciso estar muito ligado aredes de distribuição, e não vejoque a Molde só por si consiga.Além disso, o conceito da loja defábrica e a localização na zona

industrial das Caldas, para a qualsó há promessas, contribui paraque todos os negócios não vin-guem”. Por isso, “o objectivo éfechá-la a transformar aqueleespaço em instalações sociais,refeitório e balneários, maiscondignos para as pessoas”.

Relativamente ao design daslinhas, muitas das vezes são ospróprios clientes que apresentamideias e sugestões. “Há umacomunicação e interpretaçãoconstantes e uma situação decumplicidade entre o cliente e afábrica”, explica Beato, referin-do que esta dinâmica se prendecom a necessidade de satisfa-ção do cliente final.

Assim, mais de 70 % da pro-dução é expontânea e o resto é“espevitado” pelos clientes. Alémdisto, os designers Filipe Alarcãoe Carla Lobo têm uma ligaçãopróxima com a Molde, de forma acontribuírem para a concepçãodas várias linhas produzidas.

Quanto à criação de uma novafábrica, prevista para os próxi-mos cinco anos, o sócio-gerentepensa que “tem que flexibilizar alei laboral, de forma a aumentar oemprego, porque acho que se vêa questão pelo lado errado. Quemmais produz é quem mais devereceber, porque quem conseguirganhar condições para produzirmais terá facilidade em ganharsegurança. Aqui na Molde é se-guida esta política de justeza. So-mos 175 funcionários e atribuí-mos prémios de produtividade,que são recebidos mensalmentee quando são postos de trabalhoque se diferenciam a retribuiçãoé mais permanente”.

Rui Tibé[email protected]

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