Festas e Procissões Reais Na Bahia Colonial

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA EDIANA FERREIRA MENDES FESTAS E PROCISSÕES REAIS NA BAHIA COLONIAL SÉCULOS XVII E XVIII Salvador 2011

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Festas e Procissões Reais Na Bahia Colonial

Transcript of Festas e Procissões Reais Na Bahia Colonial

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    EDIANA FERREIRA MENDES

    FESTAS E PROCISSES REAIS NA BAHIA COLONIAL SCULOS XVII E XVIII

    Salvador

    2011

  • EDIANA FERREIRA MENDES

    FESTAS E PROCISSES REAIS NA BAHIA COLONIAL SCULOS XVII E XVIII

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Histria, Faculdade de Filosofia e

    Cincias Humanas, Universidade Federal da Bahia,

    como requisito parcial para obteno do grau de

    Mestre em Histria Social.

    Orientador: Prof. Dr. Evergton Sales Souza

    Salvador

    2011

  • Mendes, Ediana Ferreira

    M538 Festas e Procisses Reais na Bahia Colonial: sculos XVII e XVIII

    / Ediana Ferreira Mendes. Salvador, 2011.

    152f.

    Orientador: Prof. Dr. Evergton Sales Souza

    Dissertao (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade

    de Filosofia e Cincias Humanas, 2011.

    1. Festas religiosas Bahia Histria Sc. XVII - XVIII. 2. Procisses religiosas Bahia Histria Sc. XVII - XVIII. 3. Bahia Usos e costumes. I. Sales Souza, Evergton. II. Universidade

    Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas.

    CDD 394.20981

    _____________________________________________________________________

  • EDIANA FERREIRA MENDES

    FESTAS E PROCISSES REAIS NA BAHIA COLONIAL SCULOS XVII E XVIII

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Histria, Faculdade de Filosofia e

    Cincias Humanas, Universidade Federal da Bahia,

    como requisito parcial para obteno do grau de

    Mestre em Histria Social.

    Aprovada em 30 de setembro de 2011

    BANCA EXAMINADORA

    ________________________________ Evergton Sales Souza Orientador Doutor em Histria Moderna e Contempornea pela Universit de Paris IV

    Professor Adjunto - Universidade Federal da Bahia

    ________________________________ Lgia Bellini

    Doutora em Histria pela University of Essex, Inglaterra

    Professor Associado Universidade Federal da Bahia

    ________________________________ Pedro Vilas Boas Tavares

    Doutor em Letras pela Universidade do Porto

    Professor Auxiliar Universidade do Porto

  • Agradecimentos

    No fim de uma trajetria como esta, percebemos que muitos foram aqueles que

    cruzaram nosso caminho e, de certa forma, contriburam para a elaborao desta

    dissertao.

    Agradeo, inicialmente, aos meus pais Ana Cristina e Edisio pelo apoio e incentivo

    contnuo. Aos meus irmos, Cris e Alan, por terem sido pacientes com a minha

    dedicao exclusiva ao mestrado.

    Ao meu orientador, o Prof. Evergton Sales Souza, registro agradecimento especial. Ao

    longo de mais de cinco anos de orientao, somados o perodo de iniciao cientfica e

    mestrado, foi sempre atencioso e prestativo e me iniciou nos caminhos tortuosos da

    pesquisa e do conhecimento histrico. Como boa aprendiz de feiticeira, tentei seguir os

    passos do mestre, prezando pelo rigor e pela qualidade do trabalho acadmico.

    A Carlos Silva Junior, pelo companheirismo e apoio permanente.

    A Cndido Domingues, grande amigo, pelas longas discusses e interpelaes.

    s Marias, Camila T. Amaral e Rebeca C. de Souza Vivas, amigas e companheiras de

    pesquisa e iniciao cientfica.

    s minhas amigas, Andrea Souza, Carolina Cunha Mendona, Gabriela Harrison,

    Kleidiane Santiago e Llian Antonino, pelo apoio e carinho em todos os momentos desta

    caminhada.

    A Ana Terra e Sarah Vasquez, amigas de infncia e para toda a vida.

    A Maria Ferraz que no pouco tempo que nos conhecemos j solidificamos um forte

    vnculo de amizade e interlocuo acadmica.

    Aos meus colegas do Grupo de Estudos de Histria Colonial, pelas longas tardes de

    conversas e discusses.

    Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnolgico (CNPq) pela

    concesso de bolsa entre os anos de 2009-2011.

    Ao Programa de Ps-Graduao em Histria (PPGH) por ter financiado a ida a

    encontros acadmicos, como a XXV ANPUH e o Encontro Internacional de Histria

    Colonial, alm de ter financiado, com recursos do PROAP, uma semana de pesquisa no

    Arquivo e na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro. Tambm agradeo professora

    Ligia Bellini, coordenadora da ps-graduao poca do ingresso no mestrado, por sua

    ateno e disponibilidade.

  • Aos funcionrios do Arquivo Municipal de Salvador, Seu Felisberto e Adriana e do

    Setor de Microfilmagem do Arquivo Pblico da Bahia, Dona Marlene e Jacira pelos

    prstimos e auxlio ao longo de todo o perodo de pesquisa.

  • 7

    Resumo

    As festas e procisses reais, sobretudo de origem religiosa, serviram Coroa portuguesa

    como forte instrumento de legitimao e intensificao de seu poder, alm de

    representar parte importante da cultura e cotidiano dos vassalos espao de

    sociabilidade, devoo e palco poltico privilegiado para disputas de interesses locais.

    Estes festejos eram organizados anualmente pelo poder poltico e contavam com a

    participao das autoridades civis e eclesisticas e da sociedade em geral. Em vista

    disso, esta dissertao buscou analisar as festas e procisses reais na Cidade da Bahia

    (Salvador) ao longo dos sculos XVII e XVIII, objetivando compreender os usos

    polticos feitos pela Cora portuguesa, pelos vereadores, demais oficiais das instituies

    rgias, irmandades e confrarias. Examinamos os meandros da organizao destas

    cerimnias pblicas, seu financiamento e os conflitos decorrentes da disposio

    hierrquica do cortejo, alm da insero de cada uma das festas no quadro festivo oficial

    da Cmara Municipal.

    Palavras-chave: Festas religiosas, Bahia, Sc. XVII XVIII.

  • 8

    Abstract

    The feasts and royal ceremonies, mainly those from religious origin, served to the

    Portuguese Crow as an strong instrument of legitimation and intensification of its

    power, as well to represent an important part of the culture of the vassalos space of

    sociability, devotion and an excellent politic stage to dispute/controversy of local

    interests. These feasts were organized by politic power and civil and religious

    authorities participated on it, as well the society in general. This dissertation sought to

    analyze the feasts and royal processions in the City of Bahia (Salvador) during the

    seventeenth and eighteenth centuries, and to understand the politic usages done by the

    Portuguese Crow, city councilors, and other officials of royal institutions and

    brotherhoods. This dissertation examines also the organization of these public

    ceremonies, its financing and the conflicts of precedence, and the insertion of each

    festival in the official calendar of the Camara of Salvador.

    Keywords: Royal processions, Bahia, 17th

    and 18th

    centuries

  • 9

    Abreviaturas

    AHU Arquivo Histrico Ultramarino

    AMS Arquivo Municipal de Salvador

    APB Arquivo Pblico da Bahia

  • 10

    Lista de quadros e tabela

    Quadro 1 Despesas com as festividades (1756-1760)

    p. 67

    Quadro 2 Propinas e Cera dada aos oficiais da Cmara de Salvador por

    ocasio das festividades segundo o regimento de 1704

    p. 73

    Quadro 3 Relao da cera destinada a cada oficial da Cmara para o ano de

    1710

    p. 75

    Tabela 1 Parcela das rendas da Cmara destinada ao financiamento das

    festividades ordinrias (1790-1800)

    p. 68

  • 11

    Sumrio Agradecimentos.......................................................................................................................... 5

    Resumo ........................................................................................................................................ 7

    Abreviaturas ............................................................................................................................... 9

    Lista de quadros e tabela ......................................................................................................... 10

    Introduo ................................................................................................................................. 13

    Captulo 1 .................................................................................................................................. 24

    Festas reais na Cidade da Bahia ............................................................................................. 24

    I - Salvador, cabea do estado do Brasil .......................................................................... 24

    II- As festividades reais ........................................................................................................ 28

    Anjo Custdio ..................................................................................................... 28

    Visitao de Nossa Senhora a Santa Isabel ........................................................ 30

    So Joo Batista .................................................................................................. 31

    So Sebastio ...................................................................................................... 31

    So Felipe e Santiago ......................................................................................... 34

    Santo Antonio de Arguim ................................................................................... 36

    Festa da Aclamao do rei Dom Joo IV ........................................................... 41

    So Francisco Xavier .......................................................................................... 44

    Corpus Christi ..................................................................................................... 47

    So Francisco de Borja e Patrocnio de Nossa Senhora ..................................... 51

    III- Dos ofcios aos oficiais - participao das autoridades e das corporaes nas festas

    reais ..................................................................................................................................... 53

    Captulo 2 .................................................................................................................................. 58

    O financiamento das festas reais ............................................................................................ 58

    I- As rendas da Cmara e as festas reais ............................................................................. 60

    II- As propinas e cera dos oficiais ........................................................................................ 71

    Captulo 3 .................................................................................................................................. 81

    Entre precedncias e jurisdies: contendas nas festividades reais .................................. 81

    I - A bandeira, a cera e as vnias conflitos entre a Cmara e o Cabido ........................... 86

    Bandeira .............................................................................................................. 86

    Velas ................................................................................................................... 91

    Vnias ................................................................................................................. 92

    II Ordens, irmandades e confrarias .................................................................................. 99

    Ordens religiosas ................................................................................................ 99

  • 12

    Irmandades e confrarias .................................................................................... 102

    Consideraes Finais ............................................................................................................. 111

    Apndice I ............................................................................................................................... 114

    Monarcas de Portugal sculos XVII e XVIII ............................................. 114

    Vice-Reis e Governadores-Gerais do Brasil na Bahia (1591-1763).......... 114

    Governadores e Capites Gerais da Capitania da Bahia (1763-1801).......... 116

    Apndice II .............................................................................................................................. 117

    Bispos e Arcebispos da Bahia sculos XVII e XVIII ................................ 117

    Apndice III ............................................................................................................................. 118

    Calendrio das festas reais em Salvador....................................................... 118

    Apndice IV ............................................................................................................................ 119

    Despesas da Cmara Municipal com festas (1694-1828) ............................. 119

    Fontes e Bibliografia............................................................................................................... 140

    Fontes Manuscritas ........................................................................................... 140

    Fontes Impressas .............................................................................................. 144

    Bibliografia ....................................................................................................... 146

  • 13

    Introduo

    A procisso uma forma de exteriorizao da f, de propagao do culto religioso e

    da consagrao do jbilo cristo. Um prstito pblico de reafirmao dos smbolos da

    cristandade que reunia, em torno das suas relquias, o clero e a massa de fiis. Na poca

    moderna, o sagrado precedia as atividades cvicas, das reunies de cortes, aclamaes

    dos reis at a abertura de sesses nas Relaes e outras instituies. A religio estava

    inserida em diversas esferas de atuao do Estado, imbricada s suas aes, fortalecendo

    e legitimando o poder central.1

    nesta perspectiva que pretendemos tratar o tema do presente estudo, as festas e

    procisses reais. Festividades, maiormente religiosas e pertencentes ao calendrio

    litrgico, promovidas e custeadas pelas instituies civis. Estas festividades tambm

    serviram ao poder poltico como elementos de propagao da fora e unio do Estado

    monrquico, compondo, dessa forma, um dos instrumentos da monarquia para a

    manuteno do poder real. Compreender os diversos aparelhos utilizados pela Coroa

    para manter a unidade do reino e imprio o primeiro passo para vislumbrarmos a

    importncia poltica destes festejos. Para tanto, faz-se necessrio um breve prembulo

    sobre as relaes entre as esferas civil e eclesistica.

    Relaes entre Igreja e Estado na poca moderna

    A poca moderna foi marcada por uma relao imbricada entre Igreja e Estado.

    consolidao das monarquias e do Estado Moderno associou-se o fortalecimento das

    igrejas nacionais em toda a Europa ocidental. Em Portugal o processo no foi diferente

    e o poder civil teve na religiosidade crist catlica e na incorporao dos instrumentos

    de controle da Igreja, bem como em sua organizao diocesana, elementos que

    reforaram e contriburam com os veculos de domnio do prprio Estado.

    A proposta de uso do conceito de confessionalizao para anlise da histria

    religiosa europeia trouxe tona novos elementos para a discusso. Nesta perspectiva, os

    historiadores deveriam estar atentos aos contextos polticos, sociais e culturais para um

    1Antnio Cames Gouveia. Procisses, In: Joo Francisco Marques e Antnio Cames Gouveia, Histria Religiosa de Portugal, volume 2 Humanismos e Reformas, Lisboa, Circulo de Leitores, 2001, pp. 334-346.

  • 14

    melhor enquadramento das questes religiosas. Elaborado por dois estudiosos alemes,

    Wolfgang Reinhard e Heinz Schilling, o conceito de confessionalizao baseia-se em

    trs tpicos essenciais: as semelhanas existentes entre as principais confisses crists

    em suas formas de organizao institucional, a formao de grupos confessionais

    homogneos e a participao das Igrejas nacionais no delineamento das formas de poder

    poltico. Sob esta gide, a Igreja estaria incorporada ao Estado, e este utilizaria as

    estruturas eclesisticas como instrumento para a propagao de um disciplinamento

    social favorecendo a manuteno da ordem poltica. O enquadramento dos costumes,

    realizado atravs de atividades pedaggicas, proporcionaria a uniformizao do

    territrio e manteria a coeso social e populacional.2

    Decerto, no mundo portugus a identidade lusitana perpassava pela dimenso

    religiosa, e esta lhe conferia certa unidade. Instrumentalizados pelo Estado, diversos

    elementos religiosos foram usados para reforar e/ou legitimar o poder rgio. As festas e

    procisses religiosas configuraram-se, em parte, como um destes veculos. Inicialmente,

    o cortejo continha elementos construdos para intensificar a presena rgia e legitimar a

    monarquia de um lado bandeiras e outras insgnias, doutro lado a presena da prpria

    realeza, no caso da corte, ou dos seus representantes nas demais cidades. Alm disso,

    em seu interior o cortejo expressava as estruturas hierrquicas daquela sociedade com a

    presena dos funcionrios rgios, das elites locais e dos demais fiis.

    O uso de elementos religiosos para legitimar o poder civil parece intensificar-se,

    principalmente a partir do sculo XVII, por meio de um discurso providencialista, que

    via em muitos episdios da histria lusitana sinal da providncia divina em prol do

    reino. Muitos foram os eventos elucidados atravs desta tica. A verdadeira crena na

    proteo divina favorecia os coevos na construo de discursos legitimadores. A

    Restaurao portuguesa de 1640 o melhor exemplo do uso deste artifcio. As crenas

    pessoais do duque de Bragana, futuro rei D. Joo IV, foram transpostas ao reino

    juntamente com a sua ascenso e foram essenciais na construo do aparato que

    legitimaria a sua causa.3

    2 Ver Ronald Po-Chia Hsia. Disciplina Social y catolicismo en La Europa de ls siglos XVI y XVII.

    Manuscrits, 25, (2007), pp. 29-43. Sobre o uso do conceito de confessionalizao para os estudos sobre o

    Portugal Moderno ver Federico Palomo, A Contra Reforma em Portugal 1540-1700, Lisboa, Livros

    Horizontes, 2006. 3 Ver Joo Francisco Marques. A Parentica Portuguesa e a Restaurao, 1640-1668. A revolta e a

    mentalidade, Porto, INIC - Centro de Histria da Universidade do Porto, 1989, volume 1, pp. 97-197.

  • 15

    A nfase na devoo eucarstica foi apenas um dos rumos tomados pela dinastia

    brigantina. A celebrao da eucaristia expressava a unidade da comunidade crist, em

    torno de um dos principais smbolos da religiosidade catlica romana. As celebraes

    em torno da eucaristia, como a procisso do Corpo de Deus, o lausperene e outras

    viglias, demarcavam a dimenso poltica, religiosa e de representao da ordem

    social e tinham um papel nico no processo de ordenamento poltico.4

    A cultura providencialista, base fundadora do Estado portugus, estaria presente

    por todo o territrio lusitano e descries sobre a proteo divina ou intercesso de

    santos seriam utilizadas para explicar cada acontecimento, vitria ou derrota, de

    relevncia local ou para todo o reino. Em Salvador, esta prtica no seria diferente como

    verificaremos no captulo 1.

    Jos Pedro Paiva fornece uma anlise um pouco diferenciada para as relaes entre

    Igreja e Estado e apresenta nuances para a aplicao do conceito de confessionalizao,

    principalmente no que se refere ao estudo de campos confessionais distintos, catlicos e

    protestantes. Segundo Paiva, por mais forte que tenha sido o processo de

    disciplinamento social, no seria possvel a existncia de uma sociedade completamente

    homognea, doutrinada e disciplinada. Ademais, o conceito de confessionalizao

    aponta a subjugao da Igreja pelo Estado. Entretanto, o caminho contrrio tambm era

    possvel e a Igreja Catlica Moderna tinha fora para impor sua presena frente ao

    Estado. Dessa maneira, Paiva defende a interpenetrao da Igreja e do Estado e sua

    interdependncia.5

    O conceito de confessionalizao trouxe baila novas possibilidades de

    interpretao, entretanto o poder das igrejas nacionais excessivamente reduzido por

    esta perspectiva. Acreditamos, nos aproximando da anlise de Paiva, que a Igreja tinha

    certa autonomia administrativa e conseguia defender e impor seus interesses, seja nas

    altas esferas eclesisticas quanto nas instncias locais.

    ***

    4 Palomo, A Contra Reforma em Portugal, p. 99.

    5 Jos Pedro Paiva. El estado en la Iglesia y la Iglesia en el Estado Contaminaciones, dependencias y

    disidencia entre la monarquia y la Iglesia del reino de Portugal (1495-1640). Manuscrits, 25, (2007), pp.

    45-57, ver tambm do mesmo autor A Igreja e o poder, In: Joo Francisco Marques e Antnio Cames Gouveia, Histria Religiosa de Portugal, volume 2 Humanismos e Reformas, Lisboa, Circulo de Leitores, 2001, pp. 135-185.

  • 16

    Na Bahia, a obra de maior destaque sobre as procisses no foi escrita por um

    historiador de formao, mas pelo engenheiro e gegrafo, Joo da Silva Campos. Trata-

    se de Procisses Tradicionais da Bahia, obra pstuma publicada no ano de 1941.6

    Interessado em montar um panorama das festividades baianas, Joo da Silva Campos

    faz um breve histrico de cada solenidade as extintas e as que continuavam a existir

    e sua insero na sociedade. Ao longo de toda a obra, ele transcreve diversos

    documentos retirados, em boa parte, de fontes secundrias impressas, como jornais ou

    outras publicaes, no apresentando, diversas vezes, a origem de um documento ou

    citao deficincia suprida, em parte, pelo editor da segunda edio publicada em

    2001.7 O autor levanta inmeras questes para as quais no oferece resposta e deixa

    algumas lacunas, documentais e interpretativas, no decorrer da exposio. Dessa forma,

    apenas expe as informaes retiradas dos documentos, no empreendendo nenhuma

    anlise mais profunda acerca desses movimentos processionais. Apesar das suas

    limitaes, a obra de Campos de singular importncia e na presente dissertao, de

    certa forma, seguimos os passos apontados por ele.

    Obra de estilo semelhante escrita por Campos foi publicada em 1953, por Afonso

    Ruy. O livro intitulado Histria da Cmara Municipal da Cidade do Salvador trata da

    histria da instituio camarria soteropolitana e suas diversas atribuies. Sendo um

    livro de vulgarizao, como afirma o prprio autor na nota da primeira edio,

    natural que no almeje grandes reflexes sobre o tema, mas descrever aspectos da

    administrao e da insero da Cmara municipal na vida cotidiana dos habitantes da

    cidade da Bahia. Ao tratar das procisses reais da Cmara de Salvador, o autor pouco

    acrescenta em relao ao trabalho de Joo da Silva Campos. Entre um discurso

    inflamado e outro, sempre acompanhado de uma excelente retrica, alm de uma larga

    utilizao da documentao camarria, o autor contribuiu para a construo de uma

    histria sobre a Cmara de Salvador desde a sua criao at meados do sculo XX,

    contemplando os aspectos socioeconmicos e as diversas atribuies desta instituio

    municipal. O livro de Afonso Ruy atende s demandas s quais se props: uma histria

    institucional e de divulgao para um pblico leigo. Tal como a obra escrita por

    6 Joo da Silva Campos, Procisses Tradicionais da Bahia. Salvador: Secretria Municipal de Educao e

    Sade, 1941. 7 O editor desta edio o historiador baiano Waldir Freitas Oliveira.

  • 17

    Campos, ela nos forneceu o ponto de partida para a pesquisa e sistematizao deste

    trabalho.8

    Em 1996, Avanete Pereira Sousa escreve sua dissertao de mestrado abordando as

    relaes entre poder local e o cotidiano. Ao longo da dissertao, ela discute diversos

    aspectos sobre a Cmara de Salvador, desde sua histria e suas atribuies at questes

    relativas urbanizao e ao abastecimento da cidade. Em parte do ltimo captulo deste

    trabalho, a autora trata especificamente das festividades pblicas realizadas pelo pao,

    mas no se detm sobre esta temtica, apenas traa um breve panorama destes festejos

    como uma das atribuies do poder municipal. 9

    Em torno de um projeto de pes quisa sobre a devoo imputada ao santo padroeiro

    de Salvador, So Francisco Xavier, ao longo dos sculos XVII ao XIX, o historiador

    Evergton Sales Souza vm publicando artigos de grande importncia para o presente

    trabalho.10

    Publicado em 2006, pela Brotria, o texto So Francisco Xavier, padroeiro

    de Salvador: gnese de uma devoo impopular trata essencialmente sobre o contexto

    da eleio do santo, em fins do sculo XVII, e sobre algumas tentativas posteriores da

    construo da memria do santo.11

    A eleio de So Francisco Xavier como padroeiro

    da Cidade da Bahia imputou a Cmara de Salvador a obrigatoriedade na execuo de

    uma festividade, classificada como real e, desse modo, partcipe do rol de festas

    analisadas neste trabalho. Igualmente houve nesta festa diversos conflitos envolvendo

    setores do poder local, tema analisado por Sales Souza em artigo publicado em 2010,

    Entre vnias e velas: disputa poltica e construo da memria do padroeiro de

    Salvador (1686-1760), este nos muniu de base para o exame que empreenderamos

    sobre as dissenses ocorridas na organizao e execuo das procisses reais (vide

    captulo III).12

    8 Afonso Ruy. Histria da Cmara Municipal da cidade do Salvador. Salvador: Prefeitura Municipal de

    Salvador, 2002, 3 ed. Ver ainda do mesmo autor, Histria poltica e administrativa da cidade do

    Salvador. Salvador: Prefeitura Municipal de Salvador, 1949. 9 Avanete Pereira Sousa, Poder local e Cotidiano: A Cmara de Salvador no sculo XVII (Dissertao

    de Mestrado), Universidade Federal da Bahia, 1996. 10

    O projeto intitulado Histria de uma devoo impopular: So Francisco Xavier, padroeiro de Salvador foi o tema principal da minha Iniciao Cientfica atravs do PIBIC, entre os anos de 2006 e 2008, e foi a partir deste e sob a orientao do Prof. Dr. Evergton Sales Souza que o projeto de mestrado

    comeou a ser desenvolvido. 11

    Evergton Sales Souza. So Francisco Xavier, padroeiro de Salvador: gnese de uma devoo impopular, Brotria - Cristianismo e Cultura, volume 163 (novembro/dezembro de 2006), pp. 653-667. 12

    Evergton Sales Souza, Entre vnias e velas: disputa poltica e construo da memria do padroeiro de Salvador (1686-1760), Revista de Histria, 162 (1 semestre de 2010), 131-150. Ver ainda sobre a construo da memria do santo padroeiro, artigo do mesmo autor, Um milagre da memria So

  • 18

    Iris Kantor, em dissertao intitulada Pacto Festivo em Minas colonial a entrada

    triunfal do primeiro bispo na S de Mariana, defendida em 1996, analisa a festa de

    entrada do bispo D. Frei Manuel da Cruz na cidade de Mariana, em 1748, sede do

    bispado recm-criado pela Coroa portuguesa.13

    Neste trabalho, a historiadora faz uma

    excelente anlise sobre as festas pblicas no Antigo Regime, verificando a existncia de

    um modelo festivo ibrico de persistncia dos elementos barrocos nas festas e da

    migrao de liturgias entre o poder civil e religioso.14 A autora examina ainda o

    contexto para a eleio de Mariana como sede do bispado, os conflitos decorrentes desta

    deciso e a viagem realizada pelo bispo do Maranho s Minas atravessando o serto.15

    Tratando tambm sobre Minas, desta vez sobre a cidade de Vila Rica, a dissertao

    A Vila em Ricas Festas: celebraes promovidas pela Cmara de Vila Rica 1711-

    1744 de Camila Santiago e publicada em 2003 possui um enfoque mais parecido com

    o proposto pelo nosso trabalho. Esta obra procura estudar a participao da Cmara na

    promoo das festividades locais, enfatizando a festa do Corpo de Deus e seus conflitos

    internos.16

    A autora traz uma nova abordagem ao trabalhar de forma sistemtica os

    gastos do Senado com a procisso em questo. O objeto deste estudo est centrado na

    Cmara Municipal, instncia poltica-administrativa da urbe, e partir dela a autora

    assinala as relaes tecidas entre os vereadores e oficiais rgios na organizao das

    festividades. A principal tese defendida a de que os camaristas se apropriaram das

    festas reais para a consolidao do poder e da distino social e da particularidade

    mineira no abuso do privilgio das propinas. A documentao utilizada pela autora

    permitiu-lhe vislumbrar as relaes de poder entre os camaristas e seus superiores, alm

    de ter possibilitado a construo de uma srie de dados sobre arrecadao e gastos do

    Senado, organizada em tabelas no livro, que fornece para ns um bom parmetro de

    comparao.17

    Francisco Xavier e a epidemia na Bahia em 1686, in: Antonio L. Negro, Evergton Sales Souza e Lgia Bellini (orgs.), Tecendo Histrias espao, poltica e identidades, Salvador, Edufba, 2009. 13

    ris Kantor, Pacto Festivo em Minas colonial; a entrada triunfal do primeiro bispo na S de Mariana. So Paulo: Universidade de So Paulo (dissertao de mestrado), 1996. O bispado de Mariana foi criado

    em 1745, mas o bispo chegou cidade trs anos depois. 14

    Kantor, Pacto Festivo em Minas colonial, pp. 48-57. 15

    Ver principalmente o captulo 1 desta dissertao. 16

    Camila Fernanda Guimares Santiago, Vila em Ricas Festas: celebraes promovidas pela Cmara de

    Vila Rica 1711-1744, Belo Horizonte, Face Famec, 2003 17

    Sobre os estudos de cerimnias pblicas em Minas Gerais ver ainda Laura de Melo e Souza. Festas Barrocas e vida cotidiana em Minas Gerais. In: Kantor, Iris e Jancs, Istvn. FESTA. Cultura e Sociabilidade na Amrica Portuguesa. Hucitec, Edusp, 2001, pp. 183-198.

  • 19

    Em O Corpo de Deus na Amrica a festa de Corpus Christi nas cidades da

    Amrica Portuguesa sculo XVIII, obra publicada em 2005, a historiadora Beatriz

    Cato Cruz Santos, retrata o universo religioso e poltico envolvido na execuo da

    procisso do Corpus Christi nas principais urbes da Amrica portuguesa18

    . Sua tese

    consiste em apresentar a procisso de Corpus Christi, enquadrada pela Cmara para

    elaborar a unidade do Reino portugus. A cmara era a responsvel pelo enquadramento

    espao-temporal da festividade do Corpo de Deus, sua funo ia desde a publicao

    dos editais at a ornamentao das ruas da cidade. A partir de toda a argumentao e da

    documentao oficial utilizada, a autora comprova a importncia desta instncia poltica

    na organizao da vida social da cidade. O leque da documentao empregada foi

    bastante amplo e diverso. Entre fontes escritas e impressas, a autora pesquisou em

    vrios arquivos do Brasil e de Portugal. Entretanto, outras fontes e arquivos, de

    semelhante importncia deixaram de ser trabalhados notadamente os arquivos

    camarrios, pois apenas o arquivo municipal da cidade do Rio de Janeiro foi consultado,

    apesar de o tema abarcar todo o territrio da Amrica portuguesa. No obstante essas

    limitaes, o estudo de Beatriz Cato contribui para a construo de um bom quadro

    desta grande festa religiosa e poltica.

    Outros estudos nos muniram de uma base conceitual e analtica que nos permitiu

    empreender as apreciaes necessrias a este objeto. Desse ponto de vista, foram

    essenciais os trabalhos de historiadores portugueses como Joo Francisco Marques,

    principalmente aqueles que se remetem legitimao religiosa da Aclamao de D.

    Joo IV e sobre a gnese de diversas devoes no mundo portugus, nos provendo de

    um exame conjuntural e indicativos de anlise.19

    Os trabalhos de Pedro Cardim e Diogo

    Ramada Curto nos dotaram de base conceitual para a anlise das cerimnias pblicas no

    mundo portugus, fundamentalmente no que se refere ao gerenciamento da ordem e da

    hierarquia, e foram essenciais para nosso exame sobre as festas reais na Cidade da

    18

    Beatriz Cato Cruz Santos, O Corpo de Deus na Amrica. A festa de Corpus Christi nas cidades da

    Amrica portuguesa sculo XVIII So Paulo, Annablume, 2005. 19

    Marques. A Parentica Portuguesa e a Restaurao, 1640-1668. A revolta e a mentalidade, 2 vols.;

    A tutela do sagrado: a proteco sobrenatural dos santos padroeiros no perodo da Restaurao, in: Francisco Bettencourt e Diogo Ramada Curto (orgs.), A memria da nao, Lisboa, Livraria S da Costa

    Editora, 1991; A Renovao das Prticas Devocionais, In: Joo Francisco Marques e Antnio Cames Gouveia (orgs.), Histria Religiosa de Portugal, volume 2 Humanismos e Reformas, Lisboa, Circulo de Leitores, 2001, pp. 558-602; desta mesmo coletnea o captulo Orao e devoes, pp. 603-670.

  • 20

    Bahia.20

    A obra de Jos Pedro Paiva tratando da interpenetrao entre as esferas civis e

    eclesisticas guiaram nosso olhar sobre as relaes entre as instituies da Cidade da

    Bahia, principalmente a Cmara Municipal e o Cabido da S. Sob esta perspectiva

    podemos verificar certa autonomia e fora poltica destas instncias.21

    Ademais, ao

    tratar das entradas episcopais, Paiva faz meno a importantes elementos das cerimnias

    pblicas, como as hierarquias e o conceito de etiqueta.22

    Outro trabalho que muito nos ajudou em nossas anlises foi o do historiador chileno

    Jaime Valenzuela Mrquez, Las liturgias del poder celebraciones pblicas y

    estrategias persuasivas en Chile colonial (1609-1709). Nesta obra, o autor examina as

    festas pblicas na cidade de Santiago abordando detalhadamente os elementos e

    smbolos que compunham uma cerimnia deste porte.23

    ***

    O objeto de estudo deste trabalho so, portanto, as festas e procisses reais na

    Cidade da Bahia, nos sculos XVII e XVIII. As festas reais eram organizadas

    anualmente pelo poder poltico e contavam com a participao das autoridades civis e

    eclesisticas e da sociedade em geral. Estas festividades, maiormente de origem

    religiosa, tinham um papel poltico essencial na promoo e manuteno do poder

    rgio.24

    Dessa forma, esta dissertao visa o exame destes festejos, desde a sua insero

    20

    Ver principalmente Pedro Cardim. Cortes e Cultura Poltica no Portugal do Antigo Regime, Lisboa,

    Editora Cosmos, 1998 e Diogo Ramada Curto, A cultura poltica em Portugal (1578-1642) Comportamentos, ritos e negcios, Lisboa, Tese (Doutorado em Sociologia Histrica), Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1994. 21

    Paiva faz uma anlise mais ampla sobre este tema, percebemos, entretanto, que o tema da

    interpenetrao e interdependncia tambm pode ser aplicado s instncias locais. Ver entre outros

    trabalhos o artigo El estado en la Iglesia y la Iglesia en el Estado Contaminaciones, dependencias y disidencia entre la monarquia y la Iglesia del reino de Portugal (1495-1640). Manuscrits, 25, (2007), pp.

    45-57. 22

    Ver Jos Pedro Paiva, Etiqueta e cerimnias pblicas na esfera da Igreja (sculos XVII- XVIII). In: Iris Kantor e Istvn Jancs (orgs.). FESTA. Cultura e Sociabilidade na Amrica Portuguesa. So Paulo,

    Hucitec, Edusp, 2001, pp. 75-96. 23

    Jaime Valenzuela Mrquez. Las liturgias del poder celebraciones pblicas y estrategias persuasivas en Chile colonial (1609-1709), Santiago- Chile, Centro de Investigaciones Diego Barros Arana, DIBAM,

    Lom Editores, 2001. 24

    Diversos so os trabalhos que contriburam para a compreenso do carter essencial das cerimnias

    pblicas na poca moderna ver, por exemplo, Cardim. Cortes e Cultura Poltica no Portugal do Antigo

    Regime; Curto, A cultura poltica em Portugal (1578-1642); Paiva, Etiqueta e cerimnias pblicas na esfera da Igreja (sculos XVII- XVIII) e Valenzuela Mrquez. Las liturgias del poder celebraciones pblicas y estrategias persuasivas en Chile colonial (1609-1709).

  • 21

    no quadro devocional soteropolitano, passando pelos meandros da organizao e

    chegando aos conflitos ocasionados pelas disputas de poder e de maior

    representatividade no interior dos cortejos. Alm das festas anuais, tambm

    denominadas ordinrias, outros festejos podem ser classificados como reais. Aquelas

    realizadas extraordinariamente para comemorar eventos importantes do reino ou ligados

    diretamente famlia real como os casamentos, aniversrios, aclamaes e exquias dos

    reis, rainhas, prncipes e princesas. As festas extraordinrias, mais imponentes,

    recebiam maior investimento do poder municipal e eram realizadas com maior pompa.

    Embora existam muitas semelhanas entre o formato das festividades reais realizadas

    anualmente e aquelas extraordinrias, h diferenas de concepo entre uma e outra.

    Devido s possveis diferenas, alm da ampliao do rol documental, optou-se por

    concentrar este trabalho na anlise das festividades anuais.

    A primeira indagao que poder ser feita a este trabalho, refere-se ao amplo

    recorte cronolgico de dois sculos. O processo trilhado durante a pesquisa e o

    conhecimento das fontes revelou que apenas com o alargamento do recorte seria

    possvel levar a bom termo o presente estudo. A documentao fragmentada no nos

    permitia vislumbrar certas problemticas e nos aproximar do objeto de estudo em

    questo; a extenso do perodo foi a soluo encontrada para conhecermos melhor esta

    parte da nossa histria. Ademais, tratamos aqui de um tema que percebe muito

    lentamente as transformaes do tempo; a organizao cerimonial no perodo moderno

    esmerava-se essencialmente pela preservao da tradio e manuteno dos direitos

    consuetudinrios. Certamente, mudanas foram realizadas nos diferentes reinados deste

    perodo, com a nfase em certas devoes ou em certos elementos, entretanto, no que

    diz respeito dimenso espacial analisada, isto , a Cidade da Bahia, o formato dessas

    festividades manteve-se o mesmo. A variao parece ser verificvel apenas em termos

    de ampliao/reduo de investimentos em uma ou outra festa.

    Na Cidade da Bahia, as festas e procisses reais foram realizadas desde a fundao

    da urbe em 1549, marcada por uma solene procisso de Corpus Christi. A

    responsabilidade da Cmara por essas procisses reais manter-se-ia at as primeiras

    dcadas do sculo XIX, quando da promulgao da lei que modificava o regimento de

    funcionamento das Cmaras Municipais. A lei de 1 de outubro de 1828 no fazia

    qualquer meno obrigatoriedade municipal em realizar tais festividades, e ainda

    reiterava que No despendero as, rendas dos Conselhos seno em objetos prprios de

  • 22

    suas atribuies, nem daro aos Juzes ou outros empregados seno o que por lei estiver

    determinado, ou no futuro for ordenado pelo Poder Legislativo.25 De fato como

    verificaremos o custeio das festas reais apenas foi mantido at o ano de 1827 [vide

    apndice IV], cumprindo-se as novas ordenaes do imprio. Neste ano, as festas reais

    foram extintas.

    O Arquivo Municipal de Salvador (AMS), devido ao prprio carter desta pesquisa,

    forneceu o principal leque de fontes para a realizao deste trabalho. Nele encontramos

    toda a sorte de documentao referente esfera municipal: registro de gastos e despesas,

    atas das vereaes, cartas enviadas Coroa. Paralelamente, foi de extrema importncia

    a pesquisa feita no Arquivo Histrico Ultramarino, acervo consultado atravs da

    documentao digitalizada pelo Projeto Resgate em trs fundos, o Avulsos Bahia, o

    Luiza da Fonseca e o Castro e Almeida. Por meio dessa documentao verificamos as

    respostas s solicitaes da instncia municipal e as determinaes vindas da Coroa

    portuguesa. As fontes encontradas nesses dois arquivos complementaram-se e foram

    essenciais para a realizao desta dissertao. Alm disso, foram consultadas no

    Arquivo Pblico da Bahia as Ordens rgias e a documentao pertencente

    Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro), que se encontra em cpia microfilmada. .

    O carter da documentao imps limites descrio e anlise do objeto estudado.

    Inicialmente, trata-se de documentos oficiais que representam a viso daqueles

    indivduos e ou instituies que os produziram. Foi, portanto, necessrio transpor estas

    vises e perscrutar os motivos e anseios por detrs de cada petio. Por outro lado, a

    ausncia de estatutos e regimentos, ou mesmo de descries pormenorizadas, no nos

    permitiu conhecer a disposio e organizao de cada um dos festejos analisados.

    Muitos dados foram coletados em documentos tangenciais que tratavam de outros

    assuntos ou relatavam problemas, e at mesmo conflitos, no decorrer desses festejos.

    A dissertao que agora apresentamos divide-se em trs captulos. O primeiro narra

    a insero de cada uma das festas reais no quadro litrgico da Cidade da Bahia, os

    motivos da sua implementao e as implicaes no cotidiano da urbe. Ainda analisamos

    a participao das autoridades e das corporaes de ofcios e o papel de cada um na

    25

    Lei do 1 de Outubro de 1828 D nova forma s Cmaras Municipais, marca suas atribuies, e o processo para a sua eleio, e dos Juizes de Paz In Coleo de Leis do Imprio do Brasil 1828, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1878, pp. 74 a 89. O artigo em questo o 74, ttulo III.

  • 23

    organizao desses festejos pblicos. O segundo captulo debrua-se sobre a economia

    em torno da promoo das festas reais, o financiamento e o pagamento de propinas aos

    oficiais. Por fim, o captulo terceiro busca observar o interior destes cortejos e analisar a

    disputa por poder e maior representatividade das autoridades e dos diversos corpos

    sociais atravs dos conflitos de precedncia.

    Este trabalho contm ainda quatro apndices. Para ajudar numa contextualizao

    maior do perodo estudado, apresentamos nos dois primeiros, a lista completa dos

    monarcas, governadores-gerais e vice-reis e dos bispos e arcebispos da Bahia ao longo

    dos sculos XVII e XVIII. Em seguida, sistematizamos em um quadro as datas festivas

    das dez procisses reais realizadas pela Cmara Municipal. No quarto e ltimo

    apndice, so dispostos quadros relacionados ao levantamento das despesas da instncia

    municipal com a realizao dos festejos pblicos desde fins do sculo XVII at 1828.

  • 24

    Captulo 1

    Festas reais na Cidade da Bahia

    I - Salvador, cabea do estado do Brasil

    Continua-las s podia na cidade do Salvador, cidade

    esquisita, de casas sem moradores, pois os

    proprietrios passavam o mais tempo em suas roas

    rurais, s acudindo no tempo das festas.

    (Capistrano de Abreu, Nota Preliminar em a Histria

    do Brasil, Fr. Vicente do Salvador, p 15.)

    A cidade do Salvador, comumente chamada de Cidade da Bahia, foi fundada em

    1549 para ser a capital e sede do novo governo que se instauraria na Amrica

    portuguesa. A criao da cidade pelo primeiro governador-geral, Tom de Souza, foi

    uma virada no processo de ocupao do territrio e efetivao da conquista. O lugar

    escolhido para edificao da cidade no foi o mesmo da primeira povoao, a do

    Pereira, situada no litoral e muito desprotegida; foi escolhido o alto de um morro

    voltado para o mar. A sede do governo necessitava ser fortificada para amainar as

    invases estrangeiras, corriqueiras nos primeiros anos ps-descobrimento, e os ataques

    de indgenas, considerados hostis pelos portugueses. Salvador j nascia com 1000

    habitantes, em fins do sculo XVI j contava com mais de trs mil portugueses, muitos

    escravos africanos e outros milhares de ndios aldeados nos arredores da cidade.26

    Neste lugar, foi firmado o governo geral, criada a casa da Cmara, com o nome

    inicial de Casa de Audincia e Cmara e as primeiras casas para acomodar a

    expedio do governador e os colonos remanescentes da antiga povoao. Todos feitos

    de madeira, folhas de palma e palha.27

    A denominao do pao municipal logo mudaria

    para Casa da Cmara e Cadeia, designao utilizada no reino. Em 1646, com a

    concesso a Cmara de Salvador dos mesmos privilgios da Cmara do Porto, passou a

    empregar tambm o ttulo honorifico de Senado da Cmara. Tom de Souza foi o

    responsvel pela primeira composio da Cmara de vereadores de Salvador,

    inicialmente formada por dois juzes ordinrios, trs vereadores e um procurador.

    26

    Thales de Azevedo, Povoamento da Cidade do Salvador, edio fac-similar, Salvador, Fundao Pedro

    Calmon, 2009, p. 106-107. 27

    Avanete Pereira Sousa, Poder Local e cotidiano: a Cmara de Salvador no sculo XVIII, Salvador, Universidade Federal da Bahia (dissertao de mestrado), 1996, p. 37.

  • 25

    Posteriormente, estes membros seriam eleitos por pelouros, sistema adotado em outras

    vilas portuguesas, quando listas elaboradas pelos homens bons da cidade, chamados

    de eleitores, e contendo os seus prprios nomes eram sorteados a cada princpio de ano

    por uma criana de sete anos. Acompanhando o desenvolvimento urbano e populacional

    da cidade do Salvador, a Cmara tambm cresceu em seu corpo humano e material. Em

    1696, mudanas importantes foram processadas no interior da instituio, o processo de

    sorteio foi abolido e os membros da Cmara passaram a ser indicados pelos

    desembargadores do Tribunal da Relao da Bahia, atravs das listas elaboradas pelos

    eleitores. Neste mesmo ano, instituiu-se o cargo de juiz de fora para a presidncia do

    Senado da Cmara, cargo antes exercido por um dos juzes ordinrios. Medida que

    buscava controlar e tolher a autonomia administrativa da instituio camarria. Outros

    oficiais compunham a vereana, escrivo, porteiros, guarda-livros e diversos almotacs.

    Em seu corpo fsico, o aspecto rudimentar da primeira construo de taipa logo foi

    substitudo por outra agora composta de pedra, cal e telhas cozidas. O mdico prdio,

    entretanto, no comportava as atividades da instituio e os vereadores enfrentaram

    diversos obstculos na primeira metade do sculo XVII, agravados aps a invaso

    holandesa de 1624, at a construo de um novo edifcio no perodo do governador

    Francisco Barreto (1657-1663). A nova morada da vereana apenas foi concluda na

    dcada de 1690, desta vez contando com a ampliao das dependncias da casa, salas de

    vereao, arquivo, cadeia e aougues.28

    No campo eclesistico, ficou Salvador subordinada nos primeiros anos ao bispado

    de Angola, sendo desmembrada em 25 de fevereiro de 1551 atravs da Bula Super

    specula militantes ecclesiae, do Papa Jlio III. Juntamente com a criao do bispado,

    foi formado um conjunto de dignidades para auxiliar no gerenciamento da diocese. O

    Cabido da S foi criado pelo primeiro bispo da Bahia D. Pedro Fernandes e ficou com a

    seguinte composio: um Deo, um Mestre Escola, um Chantre, um Tesoureiro-mor, e

    seis cnegos, seis capeles e dois moos do coro. Estas dignidades assumiam funes

    diferenciadas: o Deo presidia o Cabido e era o responsvel pelo governo da diocese em

    tempos de s vacante, quando normalmente era nomeado Provisor ou Vigrio Geral do

    bispado; o Mestre-Escola, inicialmente, era responsvel pela educao em latim dos

    moos do coro e de alguns cnegos, mas com a fundao de seminrios o cargo tornou-

    se apenas honorfico; o Chantre era o cantor e o Tesoureiro, o responsvel pelas

    28

    Afonso Ruy. Histria da Cmara Municipal da cidade do Salvador. Salvador: Prefeitura Municipal de

    Salvador, 2002, 3 ed, pp. 23-35. Sousa, Poder Local e cotidiano, pp. 37-40.

  • 26

    finanas do Cabido e pela proviso dos objetos necessrios ao culto divino.29

    Em 1576,

    o Cabido passa a contar com mais uma dignidade, o Arcediago. A 16 de novembro de

    1676, a diocese da Bahia foi elevada a arcebispado pela Bula Inter Pastoralis Officii

    Curas do Papa Inocncio XI.30

    Assim como as primeiras construes, a Catedral da cidade tambm foi erigida

    inicialmente com pedra e taipa, apenas em 1637 principiou a construo definitiva da

    S. A igreja, segundo a narrao de Gonalo Soares da Frana

    Tem magnfico frontispcio de pedra, que olha ao mar para a parte ocidental,

    a obra drica, com duas torres, e trs portas para a mesma parte; em cada

    um dos lados a uma a da parte do Sul v para a praa, e da parte Norte para o

    Pao Arquiepiscopal: o pavimento de mrmore, e o teto de cedro

    incorruptvel, com painis e flores dourados, que parecem estrelas deste

    abreviado cu [...]. Treze so as capelas que de um e de outro lado a

    adornam, to excelentes todas, que, sendo tantas, cada qual pretende ser

    nica.31

    Ao longo do sculo XVII, a cidade ascendeu economicamente com a expanso da

    economia aucareira no Recncavo e com a consolidao do porto como parada

    essencial no comrcio transatlntico, exportao do acar e entrada de novos cativos

    africanos. A Cidade da Bahia se desenvolveu bastante, no mais se restringia a duas

    portas, a de So Bento e do Carmo, que marcavam, inicialmente, o comeo e o fim da

    vila. As freguesias foram aos poucos se delineando, a cidade original de So Salvador

    era agora a freguesia da S; na de Nossa Senhora da Conceio da Praia, criada pelo

    bispo D. Marcos Teixeira, fundou-se nessa mesma centria a Casa da Alfndega e a da

    Moeda; somadas a estas temos a freguesia de Nossa Senhora da Vitria, criada ainda no

    sculo XVI, a de Santo Antonio alm do Carmo, a de So Pedro Velho e a de Santana

    do Sacramento. Outras foram criadas no sculo XVIII, as freguesias do Santssimo

    Sacramento da Rua do Passo, a de Nossa Senhora de Brotas, do Santssimo Sacramento

    do Pilar e de Nossa Senhora da Penha.32

    29

    Arlindo Rubert, A Igreja no Brasil origem e desenvolvimento (sculo XVI). Volume 1. Santa Maria/RS, Livraria Editora Palloti, 1981, pp. 88-89, ver tambm Cndido da Costa e Silva, Os Segadores

    e a Messe o clero oitocentista na Bahia, Salvador, Edufba, 2000, pp. 21-28. 30

    Rubert, A Igreja no Brasil, p. 177. 31

    Gonalo Soares da Frana, Dissertaes da Histria Eclesistica do Brasil - 1761, In: Jos Aderaldo Castello, O Movimento academicista no Brasil (1641-1820/22), So Paulo, Conselho Estadual de Cultura,

    1969, volume 1, tomo 5, pp. 284-285. 32

    Anna Amlia Vieira do Nascimento, Dez Freguesias da cidade do Salvador aspectos sociais e urbanos do sculo XIX, Salvador, Edufba Coleo Bahia de Todos, 2007, pp. 53-59. Ver tambm descries das freguesias, produzidas por clrigos em meados do sculo XVIII, em AHU, Castro e

    Almeida, caixa 12, documentos 2666 a 2675.

  • 27

    Era a freguesia da S o cenrio principal das festividades rgias. Em suas ruas

    ocorriam os cortejos e para ela acudia a populao em dias de festas. Muitos dos

    vereadores, tambm senhores de engenho, vinham do Recncavo, outros tinham

    habitao na prpria freguesia ou nas circunvizinhas, principalmente na da Conceio e

    de Santo Antonio alm do Carmo. Na Catedral, realizava-se a maioria dos ritos destas

    festividades e de l saa o prstito com a assistncia dos principais da cidade.

    Quanto populao, em 1706, como nos informa o arcebispo D. Jos Botelho de

    Matos, Salvador contava em 6 freguesias que em tal tempo somente tinha, 4.296 fogos

    e almas de confisso 21.601. Chegando a atingir em 1755 nas sobreditas 6 freguesias

    e em 3 mais, que delas se desmembraram 6.719 fogos e 37.543 almas de confisso.33

    Cifra prxima registrada pelo engenheiro Jos Antonio Caldas, em 1759, de 6.752

    fogos e mais 40 mil almas, divididas em 9 freguesias.34

    A Cidade da Bahia permaneceu como sede do governo do estado do Brasil at

    1763, quando por iniciativa da Coroa motivada por mudanas na conjuntura da colnia,

    a capital foi transferida para o Rio de Janeiro. A Cidade da Bahia no atendia mais s

    necessidades da sede metropolitana em fiscalizar as emergentes urbes no sul pas, que

    tiveram um crescimento acelerado aps as descobertas das minas de ouro; isso atrelado

    perda de supremacia da cultura aucareira como principal da colnia motivaram a tal

    mudana. Salvador havia perdido o estatuto de capital e sua importncia no cenrio

    colonial, a cidade, no entanto, no ruiu, continuou a ter um importante papel econmico

    e poltico.35

    Salvador foi ao longo dos sculos XVII e XVIII, portanto, palco de diversas

    festas e procisses reais, organizadas pela Cmara e com a participao macia da

    populao. O quadro festivo da cidade, no entanto, formou-se paulatinamente

    impulsionado por vrios acontecimentos locais ou do reino. necessrio, portanto,

    conhecer como cada uma destas devoes foi elevada pelas instncias civis ao estatuto

    de festas reais.

    33

    AHU, Castro e Almeida, caixa 11, documento 2010, 30/08/1755. 34

    Joo Antonio Caldas, Noticia Geral desta Capitania da Bahia desde o seu descobrimento at o presente ano de 1759, In: Revista do Instituto Geographico e Historico da Bahia, Bahia, Seco Graphica da Escola de A. Artifices da Bahia, 1931, n 57, p. 38. 35

    Sousa, Poder Local e cotidiano, pp. 35-37.

  • 28

    II- As festividades reais

    As festas e procisses rgias anuais, tambm chamadas de ordinrias, eram aqueles

    festejos que a municipalidade tinha a obrigatoriedade de organizar e custear. Algumas

    dessas festas eram comuns a todas as vilas do reino, outras eram erigidas pelo poder

    municipal, com as devidas autorizaes da Coroa portuguesa, motivadas por

    acontecimentos locais. Na Cidade da Bahia, este quadro foi-se compondo ao longo do

    sculo XVII. Neste tpico, refletiremos um pouco sobre a insero no quadro de festas e

    procisses e a religiosidade envolvida em cada um destes festejos.

    Anjo Custdio (Terceiro domingo de Julho)

    A devoo ao Anjo Custdio, tambm chamado de Anjo da Guarda ou apenas

    Anjo, remonta Reforma Catlica na poca quinhentista. A propagao da piedade,

    entretanto, efetivou-se mesmo na centria seguinte, fundamentalmente depois da

    instaurao do culto universal pelo papa Clemente X, em 1670. Segundo Joo Francisco

    Marques a devoo acompanhou no Ocidente Catlico o crescimento do individualismo

    e dos desejos pessoais de amparo divino. A proteo individualizada logo se tornou,

    atravs das devoes dos monarcas, em guarda generalizada dos lugares, cidades e da

    prpria nao. Assim foi oficializada a devoo em Portugal.

    J partcipe das oraes cotidianas no universo da religiosidade popular, a devoo

    ao Anjo da Guarda tornou-se festa real para todo territrio lusitano, europeu e dalm-

    mar, no reinado de D. Manuel que, em julho de 1504, solicitou ao papa Leo X

    aprovao da festividade no terceiro domingo de Julho. J no perodo do papa Sixto V

    aprovou-se o seu ofcio litrgico nos territrios portugueses.36

    A procisso aparecia

    registrada nas Ordenaes Manuelinas de 1513 e foi confirmada nas Filipinas de 1604.

    Previa esta ltima que o Anjo que tem cuidado de nos guardar e defender, para sempre

    36

    Joo Francisco Marques, Orao e devoes, In: Joo Francisco Marques e Antnio Cames Gouveia, Histria Religiosa de Portugal, volume 2 Humanismos e Reformas, Lisboa, Circulo de Leitores, 2001, principalmente as pginas 621 a 625, Ver tambm George Cardoso, Agiologio Lusitano

    dos Sanctos e varoens illustres em virtude do Reino de Portugal e suas conquistas,Lisboa, Officina de

    Antonio Craesbeeck de Mello, 1666, tomo IV, p. 213 disponvel no Repositrio Digital da Biblioteca

    Nacional de Lisboa.

  • 29

    seja em nossa guarda e defenso e que a festividade deveria ser como [aquela] que se

    faz [n]a festa do Corpo de Deus.37

    De fato, a intercesso dos espritos anglicos em busca de proteo divina

    constitua uma forte crena no imaginrio cristo e ao Anjo Custdio foram imputadas

    muitas das graas recebidas pelo reino portugus. A Restaurao de 1640 se configurou

    como um desses momentos. Marques verificou entre os muitos pregadores da

    restaurao diversos sermes dedicados ao Anjo, e nestes, diversas passagens que

    enfatizaram a sua proteo e ajuda no restabelecimento do rei natural a Portugal.38

    J a

    solenidade em sua homenagem, entretanto, no alcanou, pelo menos na Bahia, a

    pompa da de Corpus Christi.

    A festa foi introduzida na Cidade de Salvador junto com a sua fundao e foi a

    segunda a ser realizada nesta vila. Conta Manoel de Nbrega, em missiva endereada ao

    Provincial da Ordem dos Jesutas Simo de Vasconcelos, em 1549, que o prstito teve

    missa cantada com dicono e subdicono, com um excelente coro e procisso com

    grande msica, a que respondiam as trombetas. Neste dia tambm foram muitos os

    batizados, marcando o incio da colonizao territorial e religiosa.39

    As Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia tambm mencionam a

    procisso do Anjo como sendo de promoo obrigatria da Cmara.40

    As fontes

    encontradas no do mais nenhuma informao sobre como era praticada a cerimnia,

    mesmo que ns saibamos que ela era realizada religiosamente todos os anos.41

    37

    Cndido Mendes de Almeida, Codigo Philippino ou Ordenaes e Leis do Reino de Portugal

    recopiladas por mandado d'El-Rey D. Philippe I, 14 Edio, Rio de Janeiro, Tipografia do Instituto

    Filomtico, 1870, livro 1, ttulo LXVI Dos vereadores, item 48 Das procisses, pp. 152-153, consultado pelo stio eletrnico http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt. 38

    Joo Francisco Marques, A Parentica Portuguesa e a Restaurao, 1640-1668. A revolta e a

    mentalidade, volume 1, Porto, INIC - Centro de Histria da Universidade do Porto, 1989, pp. 130-133. e

    do mesmo autor, A tutela do sagrado, In: Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto, A memria da nao, Lisboa, Livraria S da Costa Editora, 1991. 39

    Manoel de Nbrega, Cartas do Brasil: 1549-1560. Rio de Janeiro, Officina Industrial Graphica, 1931,

    pp. 86-87 disponvel no repositrio Brasiliana Digital, acessado no stio

    http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00381610. 40

    Bruno Feitler e Evergton Sales Souza (Ed). Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia, So

    Paulo, Edusp, 2010, Livro III, ttulo XIV, p. 328. 41

    Atravs dos livros de Pagamentos do Senado, no Arquivo Municipal de Salvador, obtemos as informaes sobre o seu custeio anual.

  • 30

    Visitao de Nossa Senhora a Santa Isabel (02 de julho)

    Igualmente silenciada na documentao, a festa da Visitao de Nossa Senhora a

    Santa Isabel, tambm chamada de Santa Isabel ou Encontro, era comemorada

    anualmente no dia dois de julho. Prevista nas Ordenaes Manuelinas e Filipinas esta

    foi umas primeiras festividades instauradas na Cidade da Bahia.42

    Mesmo sendo

    praticada por todo o imprio portugus, a festa no configura nas Constituies

    Primeiras como sendo de obrigao da Cmara em realizar.

    A procisso rememorava, como narra o evangelho de S. Lucas, a visita feita por

    Maria a sua prima Isabel, me de Joo Batista, a uma cidade de Jud, aps o anncio

    da gravidez do Filho do Senhor feita pelo anjo Gabriel. O Encontro marcava a

    reunio de duas mulheres agraciadas por Deus, mes de futuros jovens que deixariam

    sua marca na histria.43

    A Santa Casa de Misericrdia, como prev o Compromisso de Lisboa tambm

    seguido pela Bahia, tomou para festejar como festa da confraria o dia da Visitao de

    Nossa Senhora a Santa Isabel, realizando missa solene na Capela com a presena de

    todos os Irmos. Neste dia tambm era realizada a escolha dos eleitores, indivduos

    habilitados para a eleio do Provedor e dos Oficiais da Mesa, no dia posterior. O dia de

    Santa Isabel tambm servia para marcar o fim de um ano da irmandade.44

    Esta

    festividade, ao lado da procisso dos Ossos e da Festa da Quinta-feira das Endoenas,

    era umas das principais desta irmandade.45

    42

    Almeida, Codigo Philippino livro 1, ttulo LXVI Dos vereadores, item 48 Das procisses, pp. 152-153 e Feitler e Sales Souza (ed.). Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia, Livro III, ttulo XIV,

    p. 328. 43

    Bblia Sagrada, traduo de Antonio Pereira de Figueiredo, Evangelho de Lucas, Captulo 1, versculos

    39 a 55. 44

    Compromisso da Irmandade da Casa da Sancta Misericordia da Cidade de Lisboa, Lisboa, Impresso

    por Pedro Craesbeeck, 1619, respectivamente, captulos IV e III disponvel no Repositrio Digital da

    Biblioteca Nacional de Lisboa. 45

    Sobre a procisso dos Ossos ver o captulo XXXVII do Compromisso citado anteriormente e Joo da

    Silva Campos, Procisses Tradicionais da Bahia, Salvador, Secretria Municipal de Educao e Sade,

    1941, pp. 182-186. Sobre a procisso das Endoenas, ver captulo XXXIV do mesmo Compromisso.

    Sobre a Irmandade na Bahia ver A.J.R. Russel-Wood, Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da

    Misericrdia da Bahia, 1550-1755. Braslia: UnB, 1981. Em 1756, ocorreu um conflito de precedncia

    entre o Provedor da Irmandade e os oficiais da Cmara sobre a ordem da turificao. Uma proviso rgia,

    registrada na cmara em julho de 1761, ordenava que os ditos deveriam ser dados primeiro a cmara; ver sobre isto AMS, Provises Rgias, livro 126.4 (1744-1761), fl. 292, 8/10/1756 e Atas da Cmara,

    volume 10, pp. 262, 20/07/1761.

  • 31

    So Joo Batista (24 de Junho)

    Filho de Isabel e Zacarias, Joo, profeta do Altssimo, nasceu predestinado a

    preparar os caminhos para dar ao seu povo conhecimento da salvao, na remisso dos

    seus pecados, veculo da misericrdia divina.46 Desse modo, Joo, j adulto, percorreu

    toda a circunvizinhana do Jordo, pregando o batismo de arrependimento para

    remisso de pecados. Joo batizou Jesus, e sobre este desceu o Esprito Santo em

    forma corprea, como uma pomba; e ouviu-se do cu esta voz: Tu s o meu Filho

    amado; em ti me comprazo.47

    A festividade em homenagem a So Joo Batista, comemorada no dia 24 de junho,

    data do seu nascimento, no estava registrada nem nas Ordenaes e nem nas

    Constituies Primeiras. No sabemos quando ela comeou a ser realizada em

    Salvador, talvez desde a sua fundao, ou quando passou a configurar no calendrio

    festivo baiano como festa real. A festa instaurou-se, possivelmente, para seguir os

    costumes reinis.48

    Apenas sabemos que nos primeiros anos do sculo XVIII, a festa era

    realizada com a assistncia dos religiosos do Convento de Nossa Senhora do Carmo.49

    So Sebastio (20 de janeiro)

    So Sebastio foi capito do exrcito romano poca do imperador Diocleciano

    (284-305). Professando secretamente a f catlica, recusou-se a enfrentar na guerra,

    soldados da milcia evanglica crist, causando a ira do imperador. Por manter-se firme

    na confisso da f catlica, o santo foi asseteado por um dilvio de setas, ficando

    vrias cravadas no seu corpo. Como ainda permaneceu vivo, o imperador mandou

    aoit-lo at a morte.

    46

    Bblia Sagrada, Evangelho de Lucas, Captulo 1, versculos 76 a 78. 47

    Bblia Sagrada, Evangelho de Lucas, Captulo 3, versculos 3, 21 e 22. 48

    Os Regimentos da Cmara de Lisboa de 1591 e 1671 no fazem meno sobre quais eram as procisses

    realizadas pela municipalidade. Ver Jos Roberto Monteiro de Campos Coelho e Sousa, Systema, ou

    Colleco dos Regimentos Reaes, Lisboa, Oficina de Francisco Borges de Sousa, 1783, tomo IV, pp. 124-

    154, consultado pelo repositrio http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/index.php. 49

    Em vereao de maio de 1703, os edis afirmavam que a procisso sendo de costume antiqussimo, de mais de oitenta anos, fazer-se a procisso de S. Joo Batista, com assistncia dos religiosos do Convento

    do Carmo, Cf. Atas da Cmara, volume 7, p 159-160, 12/05/1703. A festa, no entanto, devido a conflitos entre os vereadores e os religiosos no foi promovida sempre nas dependncias deste convento;

    sendo realizada em alguns anos no convento de So Bento. Ver sobre estes conflitos o captulo 3 desta

    dissertao.

  • 32

    Ao santo mrtir, cone da f crist, alm de protetor contra as pestes, a piedade

    portuguesa no s lhe erigiu templos, & consagrou altares, mas celebra sua festa com

    pblicas procisses, dias de guarda & maiores ofcios.50 De tal modo, George Cardoso

    testemunhou, em meados do sculo XVII, a realizao da festividade em Portugal.

    Entretanto, a sua obrigatoriedade no estava disposta nas Ordenaes e nem

    encontramos outro dado que comprove a origem da sua insero.51

    A festividade era realizada nas principais vilas do imprio portugus, sendo criadas

    na Amrica portuguesa algumas cidades homenageando o santo.52

    Em Salvador,

    provavelmente, a procisso comeou a ser promovida logo aps a fundao da cidade e

    era celebrada na S da cidade. O mosteiro de So Bento, elevado a condio de abadia

    em 1584, ostentava o ttulo de So Sebastio da Bahia j que os primeiros religiosos que

    aportaram em Salvador, fixaram-se em um terreno fora dos muros da cidade onde j

    havia uma ermida dedicada a So Sebastio.53

    Em meados da centria seguinte, no ano de 1657, os camaristas afirmavam que a

    procisso de S. Sebastio foi criada em memria do Serenssimo Rei d. Sebastio.54 O

    que poderia explicar essa confuso ou vontade de forjar uma memria?

    Unidos pelo nome, o rei nasceu no dia da morte, e data festiva no calendrio

    litrgico, do santo, 20 de janeiro. O rei D. Sebastio desapareceu em uma batalha no

    norte da frica, precisamente em Alccer Quibir, lutando contra infiis. De certo

    modo, tanto o santo quanto o rei ter-se-iam sacrificado pela f crist.

    A devoo ao santo mrtir em Portugal , evidentemente, anterior excurso do rei

    frica. Por certo no h nenhum indcio que comprove a instaurao da festa devido

    ao acontecimento no Marrocos. Os reais motivos que teriam levado os camaristas a esta

    associao fazem emergir outro importante elemento nesta discusso: o sebastianismo.

    Esperado por dcadas, D. Sebastio, o desejado herdeiro de D. Joo III que daria

    continuidade dinastia, logo protagonizaria outra saga, a do rei encoberto; o seu

    50

    Cardoso, Agiologio Lusitano, tomo I, pp. 197-198. 51

    As festividades de So Joo Batista e So Sebastio j eram nesta poca de forte devoo em Portugal.

    possvel que baseado neste grande apelo devocional a estes santos no reino, no houvesse a necessidade

    de ser registrada a obrigatoriedade da realizao das festas nas Ordenaes Filipinas e noutras

    constituies. 52

    Destas vilas, com certeza a mais conhecida a de So Sebastio do Rio de Janeiro. A guerra de

    conquista da regio onde seria fundada a cidade, contra os Tamoios, foi iniciada no dia de S. Sebastio e a

    ele foi atribuda a vitria. 53

    Cf. Cristiane Tavares. Ascetismo e colonizao: o Labor missionrio dos Beneditinos na Amrica portuguesa (1580-1656), Universidade Federal do Paran, (dissertao do Paran), Curitiba, 2007, pp. 42-43. 54

    AHU, Luiza da Fonseca, caixa 16, documento 1798.

  • 33

    misterioso desaparecimento motivaria um movimento, de cariz messinico, que ansiava

    pelo seu retorno e restabelecimento de um reinado natural a Portugal.55

    O desaparecimento do rei, e a subsequente ascenso e morte do cardeal D.

    Henrique, inaugurou na histria lusitana uma nova era, a da Unio ibrica. Com a

    concentrao de poder nas mos dos habsburgos e o estabelecimento do centro de poder

    em Madrid, o reino de Portugal foi paulatinamente perdendo importncia, ficando

    merc, como previram os coevos opositores ascenso de Felipe II ao trono, da

    tirania castelhana.56 Neste imbrglio, o sebastianismo representou por muito tempo a

    insatisfao dos portugueses com o reinado dos Felipes e isto ficou demarcado em

    muitos escritos da poca.

    Em 1634, em sermo pregado na Bahia, precisamente em Acupe, Antonio Viera

    tambm fazia a aproximao entre a vida do santo e do rei, usando a histria de um para

    exaltar a do outro. Era, na histria contada por Vieira, So Sebastio o encoberto:

    encoberto na vida, & encoberto na morte: encoberto na f, & encoberto nas obras. E

    depois da batalha, Na opinio de todos era Sebastio morto: mas na verdade, & na

    realidade estava Sebastio vivo. Aqui a histria do santo, transformava-se na prpria

    histria do monarca. Sebastio, o rei ou santo, estava morto na opinio de outros, mas

    nada disto importava se estava vivo na realidade. As histrias se confundem na narrao

    de Vieira e parece ter sido esta a sua inteno. O discurso de Vieira tinha intenes

    polticas, utilizou a vida do santo para demonstrar a sua grande insatisfao com o

    reinado dos filipes e j dava sinais do movimento restauracionista que eclodiria alguns

    anos depois. Tal como Vieira, a associao feita pelos vereadores talvez seja reveladora

    da fora que o movimento sebastianista atingiu no mundo portugus e de como se foi

    tentando vincular a memria do rei do santo homnimo.

    55

    O movimento sebastianista constitui parte fundamental da histria luso-americana. Neste tpico,

    abordamos o tema superficialmente apenas para elucidar a associao feita pelos vereadores da cidade.

    Para uma melhor anlise sobre o tema ver Ana Paula Torres Megiani, O Jovem Rei Encantado expectativas do messianismo rgio em Portugal, sculos XIII a XVI. So Paulo, Editora Hucitec, 2003;

    Jacqueline Hermann, No reino do desejado: a construo do sebastianismo em Portugal (sculos XVI e

    XVII), So Paulo, Companhia das Letras, 1998 e Marques, A Parentica Portuguesa e a Restaurao,

    1640-1668, volume 2, principalmente o captulo XII. 56

    O movimento separatista associou a tirania presena de um rei no natural no trono portugus, a

    tirania de fato; e isto atrelado ao crescente descumprimento das clusulas firmadas nas Cortes de Tomar de 1581 atingindo seu pice no reinado de Felipe IV e no governo do conde-duque de Olivares levou a

    formulao da tirania de exerccio. O rei no natural que no respeitava a soberania lusitana, nem o acordo que havia permitido a unio das coroas; justificativas suficientes para legitimar a subelevao da

    nobreza e o movimento restauracionista. Ver Marques, A Parentica Portuguesa e a Restaurao, 1640-

    1668, volume 2, pp. 11-30.

  • 34

    So Felipe e Santiago (01 de maio)

    A 9 de maio de 1624, Salvador era invadida pelas esquadras holandesas. A cidade,

    com menos de um sculo de existncia, no era um exemplo de fortificao e proteo,

    mesmo sendo a capital do Estado do Brasil. A invaso se deu em duas frentes, parte das

    frotas posicionadas na praia em frente da cidade, parte desembarcando na antiga

    povoao do Pereira, ou Vila Velha. No enfrentando muita resistncia das armadas

    portuguesas, os holandeses logo tomaram a Cidade da Bahia abandonada pelos seus

    habitantes.57

    A invaso fazia parte do plano das Provncias Unidas contra as possesses ao

    abrigo da Coroa de Castela, deslocando a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) para o

    ultramar. As ofensivas holandesas aos territrios lusitanos justificavam-se no apenas

    pela unio das Coroas portuguesa e espanhola. Os holandeses tambm tinham interesses

    econmicos na posse das regies aucareiras do recncavo baiano, de Pernambuco e

    mais regies do Norte, invadidas posteriormente, e militares ao ocupar stios

    estratgicos no ultramar para diminuir o poderio ibrico e impedir a comunicao

    espanhola com o Caribe e a portuguesa com o Oriente. Ademais, o governo de Madri

    deixava em segundo plano a proteo e fortificao das colnias portuguesas e a

    localizao litornea dos principais stios facilitava o acesso da frota naval

    neerlandesa.58

    A manuteno da praa baiana no foi to fcil como sua conquista. Alm de

    enfrentar resistncias dos colonos, principalmente na regio do acar, a perda da

    capital da Amrica portuguesa alardearam os ibricos que prontamente organizaram

    uma armada para a retomada da cidade. Em terra, a resistncia foi encabeada

    inicialmente pelo bispo D. Marcos Teixeira e depois pelo capito-mor Francisco Nunes

    Marinho. As armadas portuguesas e espanholas, aps enfrentaram dificuldades na sua

    57

    Sobre a invaso holandesa na Bahia ver, Charles R. Boxer, Holandeses no Brasil: 1624 - 1654, So

    Paulo, Brasiliana, 1961; Ricardo Henrique B. Behrens. A capital colonial e a presena holandesa de 1624-1625, Salvador, Universidade Federal da Bahia (dissertao de mestrado), 2004 e Pablo Antonio Iglesias Magalhes. Equus Rusus: A Igreja Catlica e as Guerras Neerlandesas na Bahia (1624 1654). Salvador, Universidade Federal da Bahia (tese de doutorado), 2010. A invaso, ocupao e retomada da

    cidade narrada por Frei Vicente do Salvador, ver a edio produzida por Maria Lda Oliveira. A

    Historia do Brazil de frei Vicente do Salvador. Histria e poltica no Imprio portugus do sculo XVII.

    Rio de Janeiro; So Paulo: Versal; Odebrecht, 2008. 58

    Cf. Charles R. Boxer, O imprio martimo portugus: 1415-1825, So Paulo, Companhia das

    Letras,2002, principalmente o captulo 5 A luta global com os holandeses, pp. 120-140 e Evaldo Cabral de Melo (org.). O Brasil Holands. So Paulo, Pengui Classics e Companhia das Letras, 2010.

  • 35

    organizao, chegaram Bahia em 29 de maro de 1625. A reconquista, sob o comando

    do D. Fradique de Toledo, efetivou-se em primeiro de maio.59

    Alm da fora blica, foi fundamental para a reconquista da Bahia, aos olhos dos

    coevos, a ajuda espiritual. Em Portugal, determinou o ento monarca Felipe IV que

    fossem feitas missas e oraes para se obter a proteo divina.60

    Na Bahia, a graa foi

    atribuda a S. Felipe e S. Iago, pois foi no dia dos santos apstolos que se deu a entrada

    efetiva das armadas ibricas na Cidade de Salvador.61

    Ademais, a guerra contra os

    holandeses tomou um significado religioso profundo, da luta dos catlicos contra os

    hereges reformistas.

    Os apstolos no foram os nicos santos evocados na ocasio. Em sermo pregado

    em Salvador, logo aps a retomada da cidade, Frei Gaspar dAsceno elenca as

    santidades que concorreram para o fim da presena holandesa na Bahia: na sexta feira

    em que entramos dia de Santo Atansio; no sbado em que quase todo o exrcito

    estava na cidade, dia de Santa Cruz; Domingo, dia da entrada do restante da tropa, dia

    de Santa Catarina de Siena. E no dia primeiro de Maio, festa da Rosa, porque no haja

    entre catlicos empresa celebre em que no entre a intercesso do santo Rosrio. Por

    fim, o pregador reafirmava o significado principal daquele ato, a vitria da cristandade

    catlica sobre os hereges holandeses.62

    Os apstolos foram, assim, apenas dois dos santos intercessores nessa retomada. A

    procisso de So Felipe e Santiago (chamado tambm de So Thiago ou Santo Iago)

    estabeleceu-se em memria Restaurao da Bahia e incorporou-se ao quadro das

    festividades da Cmara soteropolitana. A festa foi instaurada no ano de 1627. A

    resoluo dos vereadores foi registrada em ata na qual se decidiu

    em grande servio de Deus fazer-se uma procisso em o primeiro dia de

    maio de todos os anos pela merc, que Deus nosso Senhor fez a esta Cidade,

    pela recuperao dela [no ano de 1625], e a livrar dos hereges holandeses,

    59

    Behrens. A capital colonial e a presena holandesa, pp. 56-121. A recuperao da Bahia mobilizou vrios fidalgos portugueses, esta armada ficou conhecida como a Jornada dos Vassalos. Ver Stuart

    Schwartz, A jornada dos Vassalos: poder real, deveres nobres e capital mercantil antes da Restaurao, 1624-1640, In; Da Amrica portuguesa ao Brasil Estudos Histricos. Rio de Janeiro, Difel, 2003. 60

    Behrens. A capital colonial e a presena holandesa, pp. 100-101. 61

    Cardoso, no Agiologio Lusitano, confirma o dia primeiro de maio como o dedicado aos apstolos, j o

    atual calendrio litrgico catlico indica o dia 3 de maio. Ver Cardoso, Agiologio Lusitano, Tomo III, pp.

    2-4; sobre o atual martirolgio romano consultar

    http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_academies/cult-martyrum/martiri/ . 62

    Frei Gaspar dAsceno. Sermo que pregou o Padre Frei Gaspar dAsceno da Ordem dos Pregadores na S da Bahia de todos os Santos na cidade do Salvador. Na primeira Missa que se disse,

    quando se dero as primeiras graas publicas, entrada a Cidade pela vitoria alcanada dos Olandeses a 5

    de maio de 1625. Impresso em Lisboa em 22 de outubro de 1625. Agradeo ao professor Evergton Sales Souza pela concesso desta fonte.

  • 36

    que a tinham tomado; a qual a procisso se far com toda a solenidade, como

    se fazem as mais procisses do rei63

    A festa aparece registrada nas Constituies Primeiras e realizou-se anualmente na

    S de Salvador at sua extino em 1828. 64

    Santo Antonio de Arguim (Quarto domingo do Advento)

    A capital do Estado do Brasil estava a salvo da presena dos hereges holandeses,

    mas na provncia de Pernambuco, invadida em 1630, a misso das Provncias Unidas foi

    mais bem sucedida. A ocupao neerlandesa nesta regio durou 24 anos, a maior parte

    deles tomados por guerras de fixao do territrio, de resistncias e de reconquista. A

    restaurao de Pernambuco foi finalmente efetivada em 1654, quando Recife capitula

    diante do bloqueio da Companhia Geral do Comrcio, no mar, e da fora do exrcito

    luso-brasileiro, em terra.65

    retomada de Pernambuco, autointitulada guerra da liberdade divina, tambm

    foi atribudo o patrocnio divino, tanto do Altssimo quanto dos santos intercessores.

    A ajuda divina era reconhecida pelos religiosos presentes na regio, nas grandes

    batalhas pela restaurao e nos eventos secundrios e rotineiros.66

    No panteo dos

    santos protetores da restaurao de Pernambuco, encontramos So Joo Batista, Nossa

    Senhora da Luz e a dos Prazeres e Santo Antnio. A este ltimo foi arrogada a grande

    proteo espiritual da reconquista.67

    Em Pernambuco, instauraram-se algumas festividades em homenagem

    restaurao. Uma festa cvica, no dia 27 de janeiro, dia da rendio de Taborda, que foi

    realizada anualmente pela Cmara de Olinda. E outras religiosas, a primeira delas

    dedicada a Nossa Senhora da Estncia, em memria s conquistas dos teros dos

    Henriques, e a festa de Nossa Senhora dos Prazeres, mais popular do que as j

    mencionadas.68

    A festa de Santo Antnio, de grande devoo em Pernambuco antes da

    63

    Atas da Cmara, Documentos Histricos do Arquivo Municipal, Salvador, Prefeitura do Municpio de

    Salvador, volume 1, p. 70, 17/04/1627. 64

    Feitler e Sales Souza (Ed.). Constituies Primeiras, Livro III, ttulo XIV, p. 328. 65

    Cf. Mello, Brasil Holands; ver tambm do mesmo autor, Olinda Restaurada guerra e acar no Nordeste, 1630-1654. So Paulo, Editora 34, 2007 e O negcio do Brasil: Portugal, os Pases Baixos e o

    Nordeste, 1641-1669. So Paulo, Companhia de Bolso, 2010. 66

    Na batalha das Tabocas, por exemplo, em 1645, a disparidade das perdas holandesas e portuguesas foi

    considerada mais um indcio da inteno divina em prover a vitria sobre os hereges neerlandeses. Cf.

    Evaldo Cabral de Mello, Rubro Veio o imaginrio da restaurao pernambucana. Rio de Janeiro, Topbooks, 1997, p. 286. 67

    Mello, Idem, pp. 283-328. 68

    Mello, Idem, pp. 50-51.

  • 37

    chegada dos neerlandeses e comemorada a cada 13 de junho, ganhou uma conotao

    poltico-militar no ps-restaurao e passou a ser promovida anualmente, primeiro

    pela Cmara de Olinda e posteriormente pela de Recife.69

    Inicialmente, a devoo a santo Antnio foi tipicamente lisboeta.70

    Foi apenas com

    a ordem religiosa dos Serficos Menores que a piedade atravessou fronteiras com a

    colonizao e a catequese. Na Amrica portuguesa, como afirma o frei Antonio de

    Santa Maria Jaboato, a devoo ao santo atingiu enorme vigor.71

    J na Bahia, o santo lisboeta ganhou uma diferente invocao. Jaboato conta que

    no ano de 1595 saa da Frana uma armada com doze embarcaes para tomarem a

    Cidade de Salvador. Os trs principais capites eram franceses luteranos, cujos nomes

    eram os seguintes, O Po de Milho, o Mal Virado e o Eliscio. Ao passarem por uma

    fortaleza dos portugueses, o castelo de Arguim, na costa da Berbria, atual regio do

    Magrebe, mataram os que encontraram e destruram diversas imagens exceto uma de

    vulto do glorioso confessor Santo Antonio. A imagem foi levada para uma das naus e

    blasfemada com cortes, xingamentos, pregos cravados nas costas e foi pendurada na

    parte frontal do navio. Os franceses balanando com ele, diziam, Guia Antonio, guia,

    guia para a Bahia. A imagem do santo teria sido lanada ao mar antes da chegada

    costa da Amrica, prximo a povoao de Morro de So Paulo. Os franceses, entretanto,

    no atingiram seu objetivo inicial e foram

    tomados em uma Cidade, que se chama Sergipe, oitenta [lguas] por terra,

    da dita Bahia, donde foram surgir; o capito os mandou presos ao

    Governador D. Francisco de Souza, em cujo tempo tudo isto aconteceu. E

    vindo os franceses luteranos com o seu capito principal, o Po de Milho, em

    cuja nau tudo o j dito aconteceu ao Santo, acompanhado da gente

    portuguesa, viram ao Santo Glorioso na Praia do mar doze lguas antes de

    chegar a Bahia, em p de maneira que lhe no podia chegar a mar se no

    fosse preamar [...].

    69

    Mello, Idem, p. 314. 70

    Santo Antonio de Lisboa, ou de Pdua, nasceu em Lisboa no ano de 1195 e foi batizado com o nome de

    Fernando de Bulhes. Ingressou nos Cnegos Regulares de Santo Agostinho, aos 15 anos, onde se tornou

    exemplo da vida pia e de dedicao ao culto sagrado. Oito anos depois, professou-se na Ordem de S.

    Francisco adotando o nome de Antonio, tentou migrar para o Marrocos com o ensejo da converso, mas

    nunca conseguiu. Leitor vido da Teologia escolstica, S. Antonio ficou conhecido por ser um bom

    orador e pregador, mesmo que sempre buscasse o isolamento, e ministrou aulas em algumas

    universidades. Este santo foi um dos mais famosos filhos da ordem dos Frades Menores. Morreu a 13 de

    junho de 1231 em Pdua. Ver hagiografia completa do santo em Cardoso, Agiologio Lusitano, Tomo III,

    pp. 658-666, ver tambm Silva Pinto, Santos portugueses, Lisboa, Livraria de Antonio Maria Pereira Editor, 1895, pp. 83-94. 71

    Frei Antonio de Santa Maria Jaboato, Novo Orbe Serfico Braslico ou Crnica dos Frades Menores

    da Provncia do Brasil, Rio de Janeiro, 1858, volume 2, pp.371-372.

  • 38

    A imagem, segundo frei Jaboato, foi levada para o convento de So Francisco na

    Cidade da Bahia e l se iniciou uma forte devoo imagem do santo que teria

    atravessado o Atlntico. Os capuchos, neste mesmo ano, no domingo da vspera de

    Natal fizeram uma procisso em venerao a este milagre.72

    Santo Antonio de Arguim

    tornou-se, desse modo, uma devoo intrinsecamente baiana.

    Santo Antonio de Arguim ainda protegeu a Cidade da Bahia noutra ocasio. Em

    1638, o conde Maurcio de Nassau realizou um cerco cidade por quase um ms, mas

    as frotas diminutas levadas pelo conde no foram suficientes para invadir a cidade que

    teve a proteo reforada pelo exrcito de resistncia expulso do Nordeste. Nassau foi

    obrigado a desistir e retornar ao Recife.73

    Em Salvador, Antonio Vieira tecia as

    justificativas religiosas para a malfadada tentativa dos holandeses. Em Sermo pregado

    no dia do santo, o padre jesuta enfatizava a proteo divina dedicada cidade nesta

    ocasio: Tomarei, diz Deus, debaixo de minha proteo esta Cidade para a salvar, e

    continua Ela cidade do Salvador, & ele salvou sua Cidade. Santo Antonio teria,

    como intercessor, colaborado nesta empreitada, porque sendo a Bahia, Bahia de todos

    os Santos, a todos os santos pertencia a defensa dela. O melhor santo para representar a

    todos os outros e defender com afinco a Bahia era Santo Antonio, j que ele reunia em

    si todas as hierarquias patriarca, profeta, apstolo, confessor, mrtir e virgem dos

    santos.74

    Em relao restaurao pernambucana, os oficiais locais e rgios da Cidade da

    Bahia estavam igualmente preocupados e ansiosos pela retomada da regio. O apoio

    militar era necessrio, mas no o suficiente. A proteo divina era ainda mais

    importante nesta empreitada contra o inimigo reformador e, neste sentido, os camaristas

    recorreram, para a retomada de Pernambuco, a um dos seus mais estimados santos

    protetores. Em vereao de novembro de 1645, os vereadores prometiam a Santo

    Antonio de Arguim, com base nos muitos benefcios que esta Cidade tem recebido

    deste santo, que se os ajudasse a

    72

    Jaboato, Novo Orbe Serfico, volume 1, pp. 80-84. Citao maior retirada das pginas 83-84, grifos

    meus. A narrao deste milagre tambm feita por Sebastio da Rocha Pitta, a histria praticamente a

    mesma; na verso de Rocha Pitta, no entanto, a imagem teria sido j