F.I. N.º 12 15 de Julho - ctalmada.pt peça. Ontem à noite, enquanto jantava, a seguir ao...

2
Mudar o Mundo N o Colóquio na Esplanada que manteve com o pú- blico, Thomas Ostermeier afirmou que o teatro não podia mudar o Mundo: que as revolu- ções se faziam nas ruas – e não nos palcos. Acho que percebo o que ele queria dizer. Creio que era o Woody Allen que dizia que, se temos uma mensagem para passar, é preferível mandar uma carta, em vez de fazer uma peça. Ontem à noite, enquanto jantava, a seguir ao espectáculo no Teatro da Trindade, e recebi a notícia do atentado em Nice, esta afirmação de Ostermeier veio-me de imediato à cabeça. E só esta manhã percebi porquê. O Nicolás Buenaventura Vidal costumava contar a história do narrador oral que uma vez tinha ido para uma praça e se pusera a contar histórias, para mudar o Mundo. E veio muita gente ouvi- -lo. E ele contava. E vinha cada vez mais gente. Até que um dia vieram menos pessoas. E depois ainda menos. E depois ainda menos – até que o narrador oral ficou sozinho. Quando lhe per- guntaram por que é que ainda continuava a falar, se já nin- guém o ouvia, ele respondeu que começara a contar histórias para mudar o Mundo, e que agora, que ninguém o ouvia, as contava para se mudar a si mesmo. Creio que a condição dos faze- dores de teatro é semelhante à deste homem. Sabemos que os nossos espectáculos não podem interferir no curso da História, que está reservado para a acção dos Homens, mas apesar disso fazemos teatro. Porque não sabemos fazer outra coisa. Bem sei que a morte de milhares de pessoas no Iraque nos afecta muito menos do que a morte de 80 pessoas em Nice: a diferença de tratamento destes episódios nos meios de comunicação talvez ajude a explicar a diferença de como sentimos essas mortes. Nos últimos meses tenho hesitado acerca do texto que farei em Dezembro de 2017. Escolher uma peça, em detrimento dos milhões de outras, é do mais difícil que há no teatro. A noite passada deitei-me com a frase do Oster- meier na cabeça, ainda abalado pelo atentado de Nice. Esta manhã escolhi o texto que hei-de fazer. RODRIGO FRANCISCO Nº 12 – SEX. 15 de JULHO de 2016 E ste ano, Shakespeare está em destaque no Festival de Al- mada. Depois de um Othello para três actores ter praticamente esgotado a Incrível Almadense e antes de um Ricardo III se apre- sentar na Sala Principal do TMJB, Cimbelino sobe ao palco, inter- pretado pelos alunos finalistas da ACT School. Influenciado pela tradição popular, pelas crónicas de Holinshed e pelo Decameron de Boccaccio, Shakespeare conta a história dos amores contraria- dos de Imógena e Leonato, cujo casamento secreto foi desfeito por uma ordem do rei Cunobelino, pai da primeira, enviando o jovem enamorado para Roma. Numa rá- pida sucessão de peripécias – que Teatro do Bairro estreia Cimbelino no Palco Grande O SENTIDO DOS MESTRES Caderno de notas do segundo dia O segundo “encontro tera- pêutico” dinamizado por Ricardo Pais na Casa da Cerca, como parte do ciclo O sen- tido dos mestres, foi ontem dedi- cado à música e ao som. Contou, por isso, com a presença de Luís Madureira, um dos profissionais mais conceituados, em Portugal, na área da voz e da elocução. Ri- cardo Pais considerou, por exem- plo, que foi depois de Mandrágo- ra, um espectáculo que estreou em 1993, que o investimento no desenho de som” se tornou, da sua parte, mais consciente e pre- ponderante. Foram em seguida exibidos excertos de algumas das suas encenações – nomeadamente de D. João, de Molière (2006), e de al mada nada, a partir de tex- Cimbelino é a quarta e última estreia da presente edição do Festival de Almada. A tragicomédia de William Shakespeare conta com versão cénica de Luísa Costa Gomes e encenação de António Pires. O espectáculo será apresentado amanhã, pe- las 22h, no Palco Grande da Escola D. António da Costa. tos de Almada Negreiros (2014) – que serviram de ponto de parti- da para um conjunto de reflexões sobre a necessidade do trabalho com a voz (mesmo tendo a possi- bilidade de recorrer a microfones e amplificar os actores), sobre a conjugação de elementos distintos no espectáculo (como a música ao vivo, as encomendas a composito- res e o canto) e, finalmente, sobre as oportunidades criadas pelo pro- gresso tecnológico. Ricardo Pais reconheceu ainda, entre gargalha- das, que, no início da sua carreira, era “mais totalitário”. Agora, po- rém, as colaborações tornaram-se imprescindíveis e permitem-lhe conferir a cada elemento do espec- táculo uma certa espessura. incluem traições semelhantes às de Iago, em Othello, e uma morte encenada à conta de um soporífe- ro que faz lembrar o enredo trá- gico de Romeu e Julieta –, esta história caminha a passos largos para o final feliz. No passado mês de Junho, enquanto os ensaios ainda decorriam, António Pires garantiu que este espectáculo não seria feito de uma forma “tradi- cional” e que jogaria, em parti- cular, com referências dos contos de fadas e da pintura (como Yves Klein, Clint e Velásquez). Depois de Quatro santos em três actos, estreado o ano passado no Teatro do Bairro, este é o segundo espec- táculo do criador que se apresenta no Festival. © Luana Santos © Mário Sabino Sousa

Transcript of F.I. N.º 12 15 de Julho - ctalmada.pt peça. Ontem à noite, enquanto jantava, a seguir ao...

Mudar o Mundo

No Colóquio na Esplanada que manteve com o pú-blico, Thomas Ostermeier

afirmou que o teatro não podia mudar o Mundo: que as revolu-ções se faziam nas ruas – e não nos palcos. Acho que percebo o que ele queria dizer. Creio que era o Woody Allen que dizia que, se temos uma mensagem para passar, é preferível mandar uma carta, em vez de fazer uma peça. Ontem à noite, enquanto jantava, a seguir ao espectáculo no Teatro da Trindade, e recebi a notícia do atentado em Nice, esta afirmação de Ostermeier veio-me de imediato à cabeça. E só esta manhã percebi porquê. O Nicolás Buenaventura Vidal costumava contar a história do narrador oral que uma vez tinha ido para uma praça e se pusera a contar histórias, para mudar o Mundo. E veio muita gente ouvi--lo. E ele contava. E vinha cada vez mais gente. Até que um dia vieram menos pessoas. E depois ainda menos. E depois ainda menos – até que o narrador oral ficou sozinho. Quando lhe per-guntaram por que é que ainda continuava a falar, se já nin-guém o ouvia, ele respondeu que começara a contar histórias para mudar o Mundo, e que agora, que ninguém o ouvia, as contava para se mudar a si mesmo.Creio que a condição dos faze-dores de teatro é semelhante à deste homem. Sabemos que os nossos espectáculos não podem interferir no curso da História, que está reservado para a acção dos Homens, mas apesar disso fazemos teatro. Porque não sabemos fazer outra coisa. Bem sei que a morte de milhares de pessoas no Iraque nos afecta muito menos do que a morte de 80 pessoas em Nice: a diferença de tratamento destes episódios nos meios de comunicação talvez ajude a explicar a diferença de como sentimos essas mortes. Nos últimos meses tenho hesitado acerca do texto que farei em Dezembro de 2017. Escolher uma peça, em detrimento dos milhões de outras, é do mais difícil que há no teatro. A noite passada deitei-me com a frase do Oster-meier na cabeça, ainda abalado pelo atentado de Nice.Esta manhã escolhi o texto que hei-de fazer.

RODRIGO FRANCISCO

Nº 12 – SEX. 15 de JULHO de 2016

Este ano, Shakespeare está em destaque no Festival de Al-mada. Depois de um Othello

para três actores ter praticamente esgotado a Incrível Almadense e antes de um Ricardo III se apre-sentar na Sala Principal do TMJB, Cimbelino sobe ao palco, inter-pretado pelos alunos fi nalistas da ACT School. Infl uenciado pela tradição popular, pelas crónicas de Holinshed e pelo Decameron de Boccaccio, Shakespeare conta a história dos amores contraria-dos de Imógena e Leonato, cujo casamento secreto foi desfeito por uma ordem do rei Cunobelino, pai da primeira, enviando o jovem enamorado para Roma. Numa rá-pida sucessão de peripécias – que

Teatro do Bairro estreia Cimbelino no Palco Grande

O SENTIDO DOS MESTRESCaderno de notas do segundo dia

O segundo “encontro tera-pêutico” dinamizado por Ricardo Pais na Casa da

Cerca, como parte do ciclo O sen-tido dos mestres, foi ontem dedi-cado à música e ao som. Contou, por isso, com a presença de Luís Madureira, um dos profi ssionais mais conceituados, em Portugal, na área da voz e da elocução. Ri-cardo Pais considerou, por exem-plo, que foi depois de Mandrágo-ra, um espectáculo que estreou em 1993, que o investimento no “desenho de som” se tornou, da sua parte, mais consciente e pre-ponderante. Foram em seguida exibidos excertos de algumas das suas encenações – nomeadamente de D. João, de Molière (2006), e de al mada nada, a partir de tex-

Cimbelino é a quarta e última estreia da presente edição do Festival de Almada. A tragicomédia de William Shakespeare conta com versão cénica de Luísa Costa Gomes e encenação de António Pires. O espectáculo será apresentado amanhã, pe-las 22h, no Palco Grande da Escola D. António da Costa.

tos de Almada Negreiros (2014) – que serviram de ponto de parti-da para um conjunto de refl exões sobre a necessidade do trabalho com a voz (mesmo tendo a possi-bilidade de recorrer a microfones e amplifi car os actores), sobre a conjugação de elementos distintos no espectáculo (como a música ao vivo, as encomendas a composito-

res e o canto) e, fi nalmente, sobre as oportunidades criadas pelo pro-gresso tecnológico. Ricardo Pais reconheceu ainda, entre gargalha-das, que, no início da sua carreira, era “mais totalitário”. Agora, po-rém, as colaborações tornaram-se imprescindíveis e permitem-lhe conferir a cada elemento do espec-táculo uma certa espessura.

incluem traições semelhantes às de Iago, em Othello, e uma morte encenada à conta de um soporífe-ro que faz lembrar o enredo trá-gico de Romeu e Julieta –, esta história caminha a passos largos para o fi nal feliz. No passado mês de Junho, enquanto os ensaios ainda decorriam, António Pires garantiu que este espectáculo não seria feito de uma forma “tradi-cional” e que jogaria, em parti-cular, com referências dos contos de fadas e da pintura (como Yves Klein, Clint e Velásquez). Depois de Quatro santos em três actos, estreado o ano passado no Teatro do Bairro, este é o segundo espec-táculo do criador que se apresenta no Festival.

© L

uana

San

tos

© M

ário

Sab

ino

Sous

a

21:00 LullabyPraça da Portela (Feijó/Laranjeiro)

ESPECTÁCULO DE RUA

20:00 Graça – Suite teatral em três movimentosTeatro Taborda

TEATRO

20:00 O feioTeatro Municipal Joaquim Benite

TEATRO

RESTAURANTE DA ESPLANADA

• Carapaus fritos com açorda• Favas com entrecosto

Hoje

Amanhã• Fettuccine com salmão• Sopa de pedra

Abriram os pontuais (que, na gíria teatral, é o nome dos concursos de apoio a projectos de criação nas áreas de teatro, música, etc.). A azáfama no meio artístico vai-se fazendo sentir, com os artistas a esgotarem rapi-damente as máquinas de calcular das lojas chinesas, e a usarem e abusarem de expressões como “serviço educativo”, “públicos-alvo” e “interdisciplinaridade”. A abertura destes concursos explica também a ausência de alguns criadores nas plateias do Festival – ao contrário de algumas línguas maldosas, nós não acreditamos que tenham ido a banhos…

22:00 CimbelinoEscola D. António da Costa

TEATRO

24:00 Hélder MoutinhoEscola D. António da Costa

MÚSICA NA ESPLANADA

Prémio Carlos Porto é entregue amanhã

O Prémio Internacional de Jornalismo Carlos Porto foi instituído pela Câ-

mara Municipal de Almada em 2009. Distingue o(s) autor(es) do melhor texto, ou conjunto de textos, publicados na imprensa

portuguesa e/ou estrangeira sobre o Festival de Almada. Os vence-dores serão conhecidos amanhã à noite, antes da estreia de Cimbe-lino, às 22h, no Palco Grande da Escola D. António da Costa. As distinções, relativas aos trabalhos

Descobri por acaso o (ago-ra) Teatro Joaquim Benite e o Festival de Almada,

logo no ano em que vim viver para Lisboa, em 2009, com a peça As criadas, de Jean Genet, pela Volksbühne. Desde então fui sem-pre acompanhando a programação e assistindo a muitas peças, aca-bando por me abalançar à assina-tura do Festival nos últimos anos. É o que de melhor levo de Lisboa, sem dúvida. O Joaquim Benite e, em particular, o Festival são um conceito único. Nunca em parte nenhuma do Mundo vi um fenó-meno comparável. Percebe-se que o dinamismo cultural de Almada tem aqui um pilar fundamental.

À descoberta do Festival de Almada

Hélder Moutinho sobe ama-nhã, às 24h, ao palco da Esplanada da Escola D.

António da Costa, em Almada. O fadista interpretará temas do seu novo álbum – lançado este ano e intitulado Manual do coração –, mas também êxitos dos quatros

discos que o antecederam: Sete fados e alguns cantos (1999), Luz de Lisboa (2004), Que fado é este que trago (2008) e 1987 (2013). Gonçalo Frota, no jornal Público, considerou o seu último trabalho discográfi co “um álbum de absoluta mestria no desenho

A diversidade social e cultural do público é uma das coisas que mais me impressiona aqui. Em termos etários, como seria de esperar, há sobretudo os mais velhos – com mais disponibilidade de tempo e, talvez, dinheiro – e os mais jovens, incluindo os estudantes das escolas de teatro – mas é uma festa maravilhosa, das peças à música e aos jantares na Esplana-da. As salas estão cheias, as peças são uma amostra criteriosamente seleccionada e diversifi cada do melhor teatro europeu. Não con-sigo apontar um espectáculo de que tenha gostado menos. Tenho aprendido muito, vendo peças que já antes vira, duas ou três vezes,

com encenações diferentes. Aqui sei que há sempre uma qualquer razão especial para a peça estar no Festival. Do ano passado, destaco A tempestade, por uma compa-nhia galega, mas também O gin-jal, O regresso a casa e outras. Este ano, gostei particularmente da Hedda Gabler. Compraria a assinatura nem que fosse só para ver esta peça. Mas não quero ser reducionista porque já gostei mui-to de outras peças e porque, com grande desgosto meu, vou viajar amanhã. A melhorar, embora isso talvez não dependa da equipa téc-nica, só a logística da troca dos bilhetes da caderneta. Parabéns a toda a equipa.

O fado chega à Esplanada

15:00 RatTeatro-Estúdio António Assunção

TEATRO

18:00 PinóquioCentro Cultural de Belém

TEATRO

18:00 Hotel LouisianaQuarto 58Fórum Romeu Correia

TEATRO

20:30 O Trance do MimoEscola D. António da Costa

MÚSICA NA ESPLANADA

20:00 Banda às RiscasRua Cândido dos Reis (Cacilhas)

ESPECTÁCULO DE RUA

AGENDA DE AMANHÃ

de uma sonoridade fadista que não se esforça por soar a fado” e António Pires, na revista Time Out, sublinhou os “momentos su-blimes” que a sua voz atinge em palco. Não faltam, pois, motivos para se juntar a nós: a entrada é livre.

A Folha Informativa esteve à conversa com Madalena Fonseca, geógrafa, professora na Universidade do Porto e espectadora do Festival de Almada. Aceitou partilhar connosco a sua opinião sobre o Festival, no texto que a seguir publicamos.

sobre a última edição do Festival de Almada, serão entregues por Joaquim Judas, Presidente da Câ-mara Municipal de Almada, e por Teresa Cayola, viúva do crítico de teatro desaparecido em 2008 e que dá nome ao prémio.