FICHA TÉCNICA - ciec-uminho.org · ... Conceção das crianças sobre os ... Entre a Protecção e...

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FICHA TÉCNICA Título Perspetivas sociológicas e educacionais em estudos da criança: as marcas das dialogicidades luso-brasileiras Autor Leni Vieira Dornelles e Natália Fernandes (ed.) Editor Centro de Investigação em Estudos da Criança, Universidade do Minho, Braga Tipo Suporte Edição Electrónica Layout Amanda Nogueira e Ricardo Fernandes Publicação 2012 ISBN 978-989-8537-02-7

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  • FICHA TCNICA

    Ttulo Perspetivas sociolgicas e educacionais em estudos da criana: as marcas das dialogicidades luso-brasileiras Autor Leni Vieira Dornelles e Natlia Fernandes (ed.) Editor Centro de Investigao em Estudos da Criana, Universidade do Minho, Braga Tipo Suporte Edio Electrnica Layout Amanda Nogueira e Ricardo Fernandes Publicao 2012 ISBN 978-989-8537-02-7

  • I

    NDICE INTRODUO

    Leni Vieira Dornelles, Natlia Fernandes - As marcas da dialogicidade nos estudos da criana luso-brasileiros notas introdutrias

    1-7

    CAPTULO 1 - INFNCIA E PESQUISA COM CRIANAS Altino Jos Martins Filho, Ana Claudia Ferreira Martins - A complexidade da Infncia: balano de uma dcada das pesquisas com crianas apresentadas na ANPEd/Brasil Anne Carolina Ramos - Pesquisas com crianas: possibilidades e desafios metodolgicos Andra Carla Pereira Campos Cunha, Natlia Fernandes - Participao infantil: a sua visibilidade a partir da anlise de teses e dissertaes em Sociologia da Infncia

    9-21 22- 35 36-48

    CAPTULO 2 - INFNCIA E CIDADANIA Alexandra Bernardete Roadas Botelho - Aprendendo a Vida, Escutando as Vozes das Crianas Maria Manuela de Sampaio Pinto Silva, Rosana Coronetti Farenzena - Participao Infantil e Autonomia no Jardim de Infncia: uma Questo de Cidadania Gabriela de Pina Trevisan - Cidadania infantil e participao poltica das crianas: interrogaes a partir dos Estudos da Infncia Ilda Freire-Ribeiro - Quais so os teus direitos? Direito da privacidade, direito da alegria, direito de ser feliz, direito de brincar, direito de ser digno: Conceo das crianas sobre os direitos da criana Denise Hosana de Sousa Moreira - Infncias para alm da participao: um estudo sobre crianas na pesca artesanal

    50-71 72-83 84-105 106-121 122-136

    CAPTULO 3 - INFNCIA E PROTEO Cristvo Pereira Souza, Maria da Conceio Passeggi - As narrativas videobiogrficas no estudo da infncia de risco Ana Margarida Canho - Entre a Proteco e a Participao Olhares das Crianas e Jovens sobre as Prticas de Interveno de uma CPCJ em Portugal Carlos Alberto Batista Maciel, Edval Bernardino - Violncia Contra Crianas e Adolescentes em Municpio de Fronteira na Amaznia Brasileira Antnio Genivaldo Silva Feitosa - A Infncia Abrigada: Impresses das Crianas na Casa Abrigo Maria Paula Panncio-Pinto, Bruna Maria Coelho Freitas - Crianas vitimizadas: relato de experincia de interveno

    138-150 151-180 181-200 201-218 219-228

    CAPTULO 4 - INFNCIA E DEVIRES Cristiano Bedin da Costa - Arquitetnicas infantis: mapas, trajetos e devires em educao Alberto Filipe Arajo, Armando Rui Guimares - Da criana arquetipal mitologia da infncia. Uma abordagem a partir de James Hillman Antnio Camilo Cunha - A Criana e o brincar como obra de arte - O sentido de um esclarecimento Andrea Abreu Astigarraga, Maria da Conceio Passeggi - O governo de si e o governo do outro no contexto da famlia rural: do trabalho infantil universidade Nilce Vieira Campos Ferreira, Fernanda de Alencar Machado Albuquerque - Educao profissionalizante para crianas: Minas Gerais no incio do sculo xx

    230-240 241-261 262-269 270-284 285-298

    CAPTULO 5 - INFNCIA E DIFERENAS

  • II

    Thasa de OliveiraLima - Qual o teu segredo para ser to pretinha: o preconceito com crianas negras na educao infantil Leni Vieira Dornelles, Daniela Lemmertz Bischoff - Misturas de cores: Olhares sobre diversidade e raa na Educao Infantil Marinete Loureno Mota, Antnia Rodrigues Silva - A Escola ao p de fronteira: percepo e possibilidades de uma educao multi/intercultural crtica para a cidadania infantil

    300-308 309-319 320-331

    CAPTULO 6 - INFNCIA E POLTICAS EDUCACIONAIS Filomena Correia, Ariana Cosme - O desenvolvimento comunitrio e a ao dos Agrupamentos de Escolas: Um estudo de caso Viviane Aparecida Silva, Carla Maria Fidelis - A escuta da criana em uma auto avaliao institucional Emlia Vilarinho As polticas da educao pr-escolar em Portugal Slvia Nli Barbosa Entre concepes e prticas: desafios para o currculo na educao infantil

    333-353 354-364 365-384 385-401

    CAPTULO 7 - INFNCIA, PROFESSORES E EDUCAO Isa M. C. S. Domingues ,Teresa Sarmento, Maria da Graa N. Mizukami - Os casos de ensino na formao-investigao de professores dos anos iniciais Heloisa Josiele Santos Carreiro, Mrcia Fernanda Carneiro Lima Os combinados como prtica na educao infantil: algumas reflexes Maria de Ftima Arajo, Maria da Conceio Passeggi - A escola e os professores da educao infantil sob a tica das crianas Maria Conceio Pillon, Marlene Rozek - A Formao de leitores na Educao Infantil. Marlia Felippe, Paula Pecker - Multiplicando saberes: conversas sobre msica entre o professor especialista e o educador de infncia Francinaide de Lima Silva, Maria Arisnete Cmara de Morais - Escolarizao da criana no Grupo Escolar Modelo Augusto Severo (Natal | RN | Brazil, 1908-1920).

    403-414 415-429 430-441 442-450 451-464 465-477

    CAPTULO 8 - INFNCIA E INCLUSO Maria Amlia Dias Martins,Rui Trindade - Educao Para Todos: NEERE Modelo de No Excluso pela Eficcia na Remediao Educativa Andra Tonini, Ana Paula Louo Martins - Dificuldades de aprendizagem especficas: As polticas Educacionais de incluso em Portugal e no Brasil Letcia F. Dal-Forno, Feliciano H. Veiga, Sara Bahia - Caractersticas de sobredotao e criatividade percecionadas por educadores de Infncia no Brasil e em Portugal Ana Barreto, Cristina Vieira - A criana diferente vista pelos seus pares: resultados de um estudo feito numa escola inclusiva portuguesa do 1 ciclo do ensino bsico Geraldo Eustquio Moreira, Ana Lcia Manrique - O que pensam os professores que ensinam matemtica sobre a incluso de alunos com NEE? Diana Tereso Coelho - Dislexia, disgrafia, disortografia e discalculia

    479-497 498-509 510-522 523-543 544-564 565-581-

    CAPTULO 9 - INFNCIA, ARTES, VISUALIDADES e LINGUAGENS Maria Arlete Carrapatoso Figueiredo - A poesia de Matilde Rosa Arajo (re)vista pelas crianas Magda Viegas - Mosaico de Infncia Debora Perillo Samori - Pegaram o livro que voc ia pegar - A produo de culturas infantis a partir da escolha de livros pelas crianas do 1 ano do Ensino Fundamental

    583-603 604-625 626-646

    CAPTULO 10 - INFANCIA E LUDICIDADE Vernica Maria de Arajo Pontes, Daniela Deyse Silva de Alencar - O brincar na educao

    648-658

  • III

    infantil: um olhar sobre os(as) professores(as) e sua prtica pedaggica Alberto Ndio Silva - Infncia, Cultura e Ludicidade Coisas das Crianas Geovanna de Lourdes Alves Ramos - Memrias, infncia e brincadeiras: vivncias de moradores na cidade de Uberlndia/MG.

    659-684 685-698

    CAPTULO 11 - CIBERINFNCIA E CULTURAS INFANTIS Alessandra Alcntara, Antnio Jos Osrio - A internet na vivncia ldica da criana Leticia Porto Pedrosa - Cmo socializan las pelculas de animacin a los ms pequeos? Estudio de los conflictos emocionales a partir de grupos de discusin con menores Nlia Mara Rezende Macedo - Curtir, comentar, compartilhar: O que fazem as crianas no Facebook? Grcia Rodrguez, Leonardo Albuquerque - A Rdio chiquita: Uma ao formativa de educomunicao e cidadania infantil

    700-713 714-727 728-744 745-756

  • 1

    AS MARCAS DA DIALOGICIDADE NOS ESTUDOS DA CRIANA LUSO-BRASILEIROS

    NOTAS INTRODUTRIAS1

    Leni Dornelles

    Natlia Fernandes

    A obra Perspetivas sociolgicas e educacionais em estudos da criana: as marcas das

    dialogicidades luso-brasileiras vem sistematizar no registo escrito a ampla participao de

    pesquisadores no I Simpsio Luso-Brasileiro em Estudos da Criana. Este evento veio ajudar

    consolidao da rea dos estudos da criana, como uma rea viva, de gradual visibilidade na

    comunidade acadmica e portanto, de uma enorme relevncia cientfica e tambm social, que

    tem encontrado no contexto das lusofonias entre Portugal e o Brasil um aliado importante. em

    constantes travessias transatlnticas, das quais este simpsio revelador.

    O nosso objetivo ao organizar este Ebook o de trazer a dialogicidade que pautou as discusses

    entre pesquisadores, estudiosos da rea de Estudos da Criana, no que se refere pesquisa

    sobre e com crianas, bem como tratar da formao de professores, buscando similaridades,

    regularidades, ausncias, presenas e tambm urgncias. Entendemos que este trabalho possa

    contribuir para o dilogo entre as diferentes reas e tpicos temticos desenvolvidos em cada

    texto aqui apresentado, dando visibilidade a um percurso construdo nas ltimas dcadas, que

    vai desconstruindo a ideia de Davies, nos anos 40.

    H 70 anos atrs Davies afirmava, numa daquelas que foram as primeiras publicaes onde a

    criana aparecia como palavra chave, que2

    [...] as funes mais importantes de qualquer indivduo na sociedade so

    desempenhadas por aqueles que j so completamente adultos, no quando

    eles so imaturos. Nesse sentido o tratamento que a sociedade deve dar

    criana principalmente preparatrio e a sua avaliao essencialmente

    preventiva. Qualquer doutrina que veja as necessidades da criana como

    1 Este Ebook teve como rgos financiadores a CAPES do Brasil e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a Universidade do Minho,

    Departamento de Cincias Sociais da Educao e Centro de Estudos da Criana de Portugal.

    2 Davies, k. (1940). The child and the social structure. The Journal of Educacional Sociology, 14, n 4, 217:229

  • 2

    fundamentais e as da sociedade organizada como secundrias uma anomalia

    sociolgica. (Davies, 1940: 217)

    Passados 70 anos, os estudos sociais da infncia tm como principal objetivo a negao da

    afirmao de Davies. Negam que as crianas no tenham funes importantes na sociedade:

    elas so determinantes na vida familiar, social e no domnio profissional: quantas profisses no

    existiriam se no existissem crianas? Quantos milhares de empresas deixariam de gerar

    milhes de capital em produtos para as crianas e dessa forma dinamizar a economia mundial?

    At poderemos querer enganar-nos e omitir que elas so invisveis nestes processos, mas no

    podemos ignorar que assumem uma importncia fulcral! Negam esta dicotomia entre

    crianas/sociedade organizada afinal as crianas esto aonde? No faro elas parte da

    sociedade tal qual como qualquer outro ser humano?

    Os estudos da criana no negam, claro, que as crianas so pessoas pequenas, mas este facto

    no as torna menos humanas. Como referem Qvortrup, Corsaro&Honig, no Palgrave Handbook

    of Childhood Studies (2009), por vezes, fica-se com a impresso que a sua pequenez nos conduz

    a, conceptualmente, as encarcerar num micromundo ou num mundo de particularismos.

    As crianas raramente so estudadas como pessoas que fazem parte de uma esfera universal

    cosmopolita ou global. Contudo, elas esto presentes em todas as sociedades e na maior parte

    dos contextos e devem ser tidas em conta em todos estes tempos e espaos.

    As crianas esses seres de que tanto se fala na academia, na sociedade mas sem as deixar

    falar, indo de encontro ao Jenks refere quando defende que a criana -nos familiar, e no

    entanto, estranha; habita os nossos mundos e, ainda assim, parece responder a um outro,

    essencialmente nossa mas parece mostrar uma forma diferente de ser ( [1982] 1992: 9), tero

    uma oportunidade mpar ao longo desta obra para fazer ouvir as suas vozes na caraterizao

    daqueles que so os seus mundos de vida.

    Apesar de a totalidade de comunicaes que iro ser apresentadas ao longo do Ebook no ser

    reveladora destas vozes na primeira pessoa, pareceu-nos pertinente integr-las como uma

    estratgia de estabelecer pontes e dilogo, na convergncia daquele que deve ser o mote

    orientador das nossas pesquisas: o interesse superior da criana e a legitimao da ideia de que

    as crianas so atores sociais, com direitos reconhecidos em termos formais, os quais a

    academia deve tambm respeitar e consolidar.

    , portanto, necessrio convocar para esta tarefa diferentes parceiros, com diferentes

    enfoques, e neste Ebook encontramos textos que abarcam uma diversidade significativa de

    reas cientficas: das artes, educao, passando pela psicologia, pela sade e pela interveno

    social, encontramos captulos que iro refletir sobre temas como ludicidade / politicas

  • 3

    educacionais / devires / incluso / pesquisa com crianas / proteo / diferenas / educao

    infantil / cidadania / formao de professores /artes, visualidades e linguagens.

    , no entanto, fundamental desenvolver este processo de uma forma cuidadosa, atravs de

    aquilo que Weber designa por afinidades eletivas, ou seja, a possibilidade de construir relaes

    internas e dialgicas, fundamentais para a compreenso de realidades complexas e a infncia

    uma realidade complexa! e no uma realidade menor como foi considerada at h bem pouco

    tempo - , de relaes complexas, tentando desta forma superar reducionismos correlacionistas,

    que nos impedem de dar resposta complexidade de que se reveste a infncia e os estudos da

    criana. Talvez a nica convergncia seja esta relativa imagem de infncia que nos deve

    orientar e ao papel que os sujeitos desse grupo geracional desempenham quer na pesquisa,

    quer na sociedade.

    Um dos desafios que acompanha os estudos da criana, enquanto cincia pluriparadigmtica,

    o desenvolvimento de um trabalho de articulao entre as diferentes reas do saber que j

    pontuam nesta discusso, mas tambm outras, que continuam ausentes, nomeadamente as

    cincias biolgicas e as cincias mdicas, na nossa opinio um pouco devido a esta ideia

    avanada por Bauman de que 'O horror mistura reflecte a obsesso pela separao.' (Bauman,

    1991:14).

    De acordo com as palavras recentes de Urry "At muito recentemente, esta diviso acadmica

    entre o mundo dos factos naturais e o dos factos sociais nunca causou controvrsia... Sempre se

    pensou que havia um abismo entre a natureza e a realidade social" (Urry, 2000: 10).

    Pensamos que no final da leitura dos diferentes textos que compem este Ebook teremos j

    algumas condies para argumentar acerca da importncia de que se assume a construo de

    zonas de transao, afinidades eletivasou seja, a construo de redes e interlocues entre

    as reas de conhecimento que esto interessadas em construir conhecimento cientifico

    relevante e implicado sobre, mas sobretudo com as crianas.

    Que tipo de pesquisa se faz?

    Ao propormos uma discusso sobre os estudos da criana, neste Ebook numa perspectiva

    sociolgica e educacional, defendemos um olhar mais atento ao que as crianas nos dizem, ao

    que elas constroem nos seus quotidianos, sem que ns, adultos, demos a devida ateno e o

    merecido respeito. Trazemos baila para a rede discursiva deste trabalho a analogia, a

    dialogicidade, a conversa que funciona como uma experincia no sentido que lhe d Larrosa

    (2002),

    aquela que carrega sempre uma dimenso da incerteza, que no pode

    ser reduzida [que] no se pode antecipar o resultado, [pois] a

  • 4

    experincia no o caminho at um objetivo previsto, at uma meta

    que se conhece de antemo, mas uma abertura para o desconhecido,

    para o que no se pode antecipar nem pr-ver nem pr-dizer (p.

    28).

    Desse modo ao convocarmos os estudos da e sobre criana, para pensar a formao dos

    professores, entendemos que possvel pensar diferente do que se pensava sobre as crianas

    partcipes das nossas investigaes. As crianas sugerem caminhos, traam cartografias,

    ensinam-nos a ousar, a transpor o modo tranquilizador de como vnhamos pesquisando e

    analisando nossos dados at ento. E, atravessar esse modo tranquilizador de se pesquisar

    sobre as crianas e no apenas com elas, colocarmo-nos em perigo, darmos um passo fora e

    alm do que j foi pensado sobre o que dizem, fazem e nos ensinam as crianas. Ou melhor,

    usarmos as possibilidades de nos aventurarmos para fora do que nos reconhecvel. inventar

    novos conceitos e isso ensina-nos Foucault quando diz que pensar um ato arriscado, que se

    exerce primeiro sobre ns mesmos como pesquisadores e pesquisadoras, professores e

    professoras de crianas. ir alm do sermos apenas e, meramente, um investigador de crianas.

    dar condies de possibilidade para que esse movimentos entre-mares como props o

    Simpsio e, agora reafirma o Ebook, que possamos cruzar calmarias e tempestades, traar

    cartografias que envolvem metas, mudanas de rotas, retomadas e novos caminhos e, isso nos

    ensinam as crianas. termos a coragem de se lanarmos ao mar e ver que o mais profundo

    est na superfcie. Inventarmos modos de pesquisar com crianas e nos afastarmos do que

    somos at ento, abandonarmos a tranquilidade que se vive nos espaos com crianas, e dessa

    forma nos reestruturarmos como pesquisadores. Retomar as nossas verdades cada vez mais

    aligeiradas pelas agncias, pelos prazos, pela produo e, talvez, pensar na pesquisa com

    crianas como uma experincia, no sentido de algo que nos acontece e isso requer como afirma

    Larrosa (2002)

    [...] um gesto de interrupo, um gesto que quase impossvel nos

    tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar

    para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais

    devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes,

    suspender a opinio, suspender o juzo, suspender a vontade, suspender

    o automatismo da ao, cultivar a ateno e a delicadeza, abrir os olhos e

    os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentido, escutar

    aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter pacincia e dar-se

    tempo e espao. (p. 24)

    Ao tomar cada texto como um acontecimento como refere o autor, observamos que os

    diferentes trabalhos que compem esta obra apresentam-nos trs possibilidades de

  • 5

    compreender a pesquisa nos estudos da criana: pesquisa que envolve as crianas, pesquisa

    sobre crianas e pesquisa sobre adultos que trabalham com crianas. Nenhuma exclui a outra.

    Todas elas so importantes para dar conta da complexidade que reveste e de que se reveste a

    infncia.

    O que nos mobiliza nos estudos da criana a considerao de um conjunto de princpios

    orientadores que se afasta da investigao tradicional: mobiliza-nos a construo de dinmicas

    de investigao nas quais as crianas participem, de forma mais ou menos intensa, mas cuja

    participao deixe marcas, deixe as suas pegadas no conhecimento que se constri sobre os

    seus mundos de vida porque as identidades produzem conhecimento - enfrentando desta

    forma uma hegemonia adulto-centrada na construo de conhecimento sobre as crianas;

    mobiliza-nos a consolidao de uma praxis tica na investigao com crianas, na qual

    tenhamos sempre presentes os conceitos da alteridade e diversidade das infncias, na definio

    das estratgias de incluso ou excluso das crianas na pesquisa, na definio do seu mbito e

    objectivos, na definio de protocolos e contratos, na negociao do consentimento informado

    ou ainda na devoluo da informao, nunca esquecendo que O maior desafio tico para os

    investigadores que trabalham com crianas a disparidade de poder e estatuto entre adultos e

    crianas. Morrow e Richards (1996: 98). Finalmente, no que diz respeito pesquisa de que

    fomos falando e aquela que poderemos ir desenvolvendo no futuro pensamos que ser

    fundamental adotar aquilo que Gallaguer e Gallaguer designam por uma atitude de imaturidade

    metodolgica (2008), que se carateriza por privilegiar processos em aberto sobre tcnicas pr-

    definidas, sendo importante nos processos de pesquisa, no tanto os mtodos que so usados

    mas sim as formas e o esprito em que so usados: a atitude metodolgica que se adopta. Uma

    boa prtica de pesquisa no pode ser reduzida a tcnicas engenhosas, planeadas previamente e

    aplicadas cuidadosamente. Seguirmos nas nossas pesquisas o mpeto foucaultiano de vontade

    de saber, irmos adiante, a procurar a todo momento examinar as mudanas que ocorrem nas

    prticas escolares das crianas como nas relaes entre a educao escolarizada e essas novas

    e estranhas configuraes que est assumindo o mundo contemporneo (Veiga-Neto, 2000,

    p.181). Sem esquecer que a pesquisa inerentemente imprevisvel.

    Gostaramos neste balano de deixar expresso que a inteno dos estudos da criana se

    mobiliza no sentido de "Em vez de apenas chamarmos a ateno para o facto de as crianas

    tambm serem seres completos, mostrmos como til considerar quer os adultos quer as

    crianas como seres parcialmente em formao. (Mannion e I'Anson, 2004: 21).

    Este outro desafio exige de todos ns enfrentar registos de alteridade que por vezes damos

    como assumidos, mas que afinal no sero pois tal como Alan Prout (2005) nos diz a tarefa

    dever ser tentar descobrir como diferentes verses da criana ou adulto emergem da

  • 6

    interaco complexa, da organizao em rede e orquestrao dos diferentes materiais, sejam

    eles naturais, discursivos, colectivos ou hbridos.

    Dar conta deste desiderato no se esgota na mobilizao de uma nica rea do saber. Por isso

    se reveste de importncia inquestionvel a consolidao da rea dos estudos da criana e em

    particular dos estudos da infncia luso-brasileiros.

    Cada uma destas investigaes mostraram-nos que possvel aproximar-nos mais do que

    pensam as crianas, pois aprendemos com Sarmento (2011), que as crianas tm muito a nos

    dizer, basta querer ouvi-las, visto que,

    O seu modo de interpretar e significar o mundo [] permeado pelas culturas nas

    quais se inserem, marcado pela sua condio biopsicolgica e pelo estatuto

    social dependente em que se encontram. Nas suas relaes com os adultos e nas

    suas relaes com outras crianas, partilham, reproduzem, interpretam e

    modificam cdigos culturais que so actualizados nesse processo interactivo (p.

    43).

    Assim, o itinerrio traado nas diferentes discusses apresentadas nestes entre-mares

    discursivos est para ser inventado a cada nova pesquisa com crianas. E, se estivermos

    respeitosamente atentas a elas como nos ensina Sarmento, talvez consigamos pensar diferente

    do que se pensava ao fazermos nossas investigaes com crianas. Entendemos ser importante

    mantermos nossa dialogicidade com crianas e professores-pesquisadores e que na mesma no

    se evite o arriscar, as incertezas, os desvios de rotas. Sentir como as crianas pensam seu

    pensamento, ou seja, como elas do sentido ao que lhes acontece na vida, no mundo.

    Ao abrir este Ebook resultado do Simpsio Perspetivas sociolgicas e educacionais em estudos

    da criana: as marcas das dialogicidades luso-brasileiras queremos deixar, ainda registado a

    cada um dos autores que, de algum modo possibilita em suas reflexes aqui apontadas que, as

    marcas da dialogicidade dos estudos da criana podem ser sempre reconstrudas com as

    crianas, por sermos capazes de colocarmos em suspenso nossas certezas sobre a maneira

    como nossas crianas so vistas em nossos caminhos investigativos3.

    3 Queremos agradecer a Universidade do Minho, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul; A Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal

    de Ensino Superior (CAPES); a comisso cientifica de nosso evento - Doutor Manuel Jacinto Sarmento Pereira UMINHO; Doutora Natlia

    Fernandes- UMINHO; Doutora Maria Emlia Pinto Vilarinho Rodrigues Barros UMINHO; Doutora Maria Beatriz Ferreira Leite Oliveira Pereira

    UMINHO. As nossas conferencistas Doutora Maria Letcia Nascimento da Universidade de So Paulo; Doutora Rosangela Franschini da

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Doutora Catarina Tomas, da Escola Superior de Educao de Lisboa. Agradecer muito

    especialmente, a nossa equipa que levou adiante e concretizou o evento que agora se apresenta como um Ebook. Obrigada ao Doutor Manuel

    Jacinto Sarmento Pereira -UMINHO, Doutora Natlia Fernandes - UMINHO, Doutoranda Rosana Farenzena Universidade de Passo Fundo,

    RS/BR, Doutoranda Andrea Carla Pereira Campos Cunha - UMINHO/Brasil, Mestranda - Amanda Nogueira UMINHO/ Brasil e aquelas que se

    juntaram a nossa causa: mestranda Ana Cludia Ferreira Martins UMINHO/Brasil, Doutoranda Janaina Joo/ UMINHO/Brasil. Aos funcionrios

    da UMINHO. A todas as alunas da graduao Brasil e Portugal que conosco estiveram. As crianas do Grupo de Percusso Bombos do Infante, do

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    Referncias Bibliogrficas Bauman, Z. (1991) Modernity and Ambivalence. Cambridge: Polity. Davies, k. (1940). The child and the social structure, The Journal of Educacional Sociology, 14, n 4, pp. 217:229. Gallaguer, L., Gallaguer, M. (2008). Methodological immaturity in childhood research?, Childhood, Vol. 15 (4), pp. 499-516. Jenks C. (1982). The Sociology of Childhood: Essential Readings. Batsford Academic and Educational: London. Larrosa ,J. (2002). Tecnologias do eu e educao. In: Silva, T.(Org.).O sujeito da Educao: estudos foucaultianos.Petrpolis:Vozes,2002,p.35-86. Mannion, G., I'Anson, J. (2004) 'Beyond the Disneyesque: childrens participation, spatiality and adult-child relations'. In Childhood, Vol. 11, No. 3, pp 303-18. ISSN 0907-5682. Morrow, V., Richards, M.P.M (1996). The ethics of social research with children. an overview, Children&Society, Vol. 10, pp. 90-105. Prout, A. (2005). Reconsiderar a nova sociologia da infncia. Conferncia apresentada no Ciclo de Conferncias em Sociologia da Infncia, Instituto de Estudos da Criana, Universidade do Minho (policopiado). Qvortrup, J.; Corsaro, W.& Honig, M.S. (Ed.) (2009). The Palgrave Handbook of Childhood Studies. Basingstoke, Palgrave/MacMillan Sarmento, Manuel Jacinto (2011). Conhecer a infncia: os desenhos das crianas como produes simblicas. In: Filho, Altino Jos Martins e Prado, Patrcia Dias (orgs.). Das pesquisas com crianas complexidade da infncia. Campinas, SP: Autores Associados, 2011, p. 27-60 Urry, J. (2000). Sociology Beyond Societies: Mobilities for the Twenty-First Century. London: Routledge. Veiga-Neto, A. (2000). "Michel Foucault e os estudos culturais". In: Costa, M. V. (org.). Estudos culturais em educao: mdia, arquitetura, brinquedo, biologia, literatura, cinema. Porto Alegre, Ed. UFRGS.

    externato Infante D. Henrique de Ruilhe, Braga - Cabeudos - que compe a oficina de Cultura Popular e aos estudantes do Mestrado em

    Associativismo e Animao Scio-cultural da UMINHO, obrigada doutor Fernando Ildio Ferreira.

    http://hdl.handle.net/1893/898http://hdl.handle.net/1893/898
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    INFNCIA E PESQUISA COM CRIANAS Altino Jos Martins Filho, Ana Claudia Ferreira Martins - A complexidade da Infncia: balano de uma dcada das pesquisas com crianas apresentadas na ANPEd/Brasil Anne Carolina Ramos - Pesquisas com crianas: possibilidades e desafios metodolgicos Andrea Carla Campos Cunha, Natlia Fernandes Participao infantil: a sua visibilidade a partir da anlise de teses e dissertaes em sociologia da infncia

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    A complexidade da Infncia: balano de uma dcada das pesquisas com crianas apresentadas na ANPEd/Brasil

    Altino Jos Martins Filho

    Ana Claudia Ferreira Martins Resumo O estudo reuniu as escolhas terico-metodolgicas dos trabalhos apresentados na ANPED/GT07, entre 1999 e 2009, na pretenso de oferecer um panorama da produo das pesquisas com crianas, dando nfase na complexidade que reveste a categoria infncia na contemporaneidade. O objetivo foi mapear e examinar as metodologias utilizadas e as concepes de criana e infncia subjacentes s escolhas dos pesquisadores. Tivemos como foco investigar os trabalhos com crianas e nos sobre crianas. No planejamento partimos do pressuposto segundo o qual as pesquisas tm trazido indicaes epistemolgicas, terico-metodolgicas, sociais, culturais e polticas que advogam um emergente conhecimento das crianas como crianas (Faria 1999; Ferreira, 2002), dando eco s vozes desses sujeitos de pouca idade. A metodologia da investigao foi anlise de contedo. O estudo demonstrou as polmicas que geram controvrsias participao das crianas nas pesquisas; evidencia-se que o crescimento de pesquisas com crianas aumentou a produo de conhecimentos sobre as infncias, bem como o interesse em desenvolver metodologias e procedimentos no convencionais de pesquisas que qualifiquem as vozes das crianas. Palavras-Chave: Pesquisa com crianas; infncia; metodologia de pesquisa; crianas. Abstract

    The study met the choices theoretical and methodological papers presented at the ANPED/GT07 between 1999 and 2009, on the pretense of offering an overview of the production of research with children, emphasizing the complexity that surrounds the child in the contemporary category. The objective was to map and examine the methodologies used and the conceptions of children and childhood underlying the choices of the researchers. We focused on investigating the work with children and not about children. In planning we assume according to which research has brought indications epistemological, theoretical and methodological, social, cultural and political advocates an emerging dearest ending of children as children (Faria 1999; Ferreira, 2002), echoing the voices of those subjects low age. The research methodology was content analysis. The study showed that the controversy to generate controversy involving children in research, it is evident that the growth of research with children has increased the production of knowledge about childhood, as well as the interest in developing methodologies and procedures unconventional research that qualify the voices of children. Keywords: Research with children, childhood, research methodology; children.

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    Introduo

    O interesse em desenvolver pesquisas com crianas pequenas tem crescido substancialmente nas ltimas dcadas. Podemos dizer que as crianas tm ocupado um lugar de destaque nos estudos sobre a infncia. Pesquisadores da rea da educao infantil, buscam construir uma compreenso cada vez mais abrangente a respeito dessa faixa etria, lanando-se prtica de pesquisas que tenham como sujeito de preocupao a prpria criana, o que possibilita conhecer a(s) infncia(s) com base nos jeitos de ser criana. Tal interesse os tem levado a examinar e analisar os processos de constituio do conhecimento das crianas como seres humanos concretos e reais em diferentes contextos, bem como suas culturas, suas capacidades intelectuais, criativas, estticas, expressivas, emocionais (Rocha, 1999, 2001), ticas, corporais e afetivas, constitutivas de suas infncias.

    Essa matriz de preocupao dos pesquisadores apresenta-se como uma porta aberta s peculiaridades positivas que diferem a criana do adulto (Vygotsky, 1985). Tal perspectiva lhes propiciou desenvolver um considervel esforo no intuito de ampliar a compreenso sobre os pensares, sentires, dizeres, saberes e fazeres especficos das crianas. Como decorrncia, possibilitou demarcar o reconhecimento categoria infncia como uma fase da vida dotada de caractersticas prprias com fundamental importncia para a constituio da identidade humana das crianas, tanto do ponto de vista subjetivo, social como cultural.

    No Brasil, muito nova entre pesquisadores a preocupao de desenvolver metodologias de pesquisas que levem o adulto a escutar o ponto de vista das crianas, ou ainda, que considere as crianas como informantes e interlocutoras competentes para falarem de si mesmas durante a coleta dos dados. Se tradicionalmente desenvolver pesquisas sobre as crianas j gerava enfrentamentos e muitos desafios ao pesquisador, o que dizer do propsito de desenvolver prticas metodolgicas de pesquisas com as crianas desde tenra idade? Rocha (1999) realizou um amplo levantamento de pesquisas sobre a infncia da dcada de 1990. Em relao a esse perodo foi possvel constatar que

    J se busca ouvir" as crianas a partir dos contextos educativos da creche ou da pr-escola, estudam-se variaes de sua voz, o seu ponto de vista (...). Nestes casos, procuram-se utilizar metodologias que respeitem as manifestaes infantis (...). No obstante esta tnica, estas prprias metodologias, especialmente as no-convencionais que melhor podem adequar-se ao estudo da criana, no tm sido objeto de discusso entre os pesquisadores (...) se a criana vista pelas pesquisas ganha contornos que definem sua heterogeneidade, isto ainda no suficiente para que ela ganhe voz e seja ouvida pelo pesquisador (ROCHA, 1999, p.95).

    De fato, a deciso de desenvolver prticas de metodologias que tomam as crianas como

    protagonistas do processo no algo simples. Ao contrrio do que se pensa, mesmo estando diante de um movimento de pesquisas que inclui as crianas como sujeitos participantes do processo metodolgico, o desenvolvimento de metodologias e procedimentos de pesquisas com crianas ainda um campo incipiente. Isso pelo fato de que ns, adultos, necessitamos

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    abrir mo de muito do que tradicionalmente afirmamos sobre os grupos infantis. Sarmento e Pinto (1997) esclarecem melhor esta questo:

    O estudo das realidades da infncia com base na prpria criana um campo de estudos emergente, que precisa adotar um conjunto de orientaes metodolgicas cujo foco a recolha da voz das crianas. Assim, alm dos recursos tcnicos, o pesquisador precisa ter uma postura de constante reflexibilidade investigativa (...), a no projetar o seu olhar sobre as crianas colhendo delas apenas aquilo que o reflexo dos seus prprios preconceitos e representaes. (SARMENTO & PINTO, 1997, p.78).

    Temos analisado que por muito tempo o campo educacional se fixou em concepes de

    criana e infncia advindas do domnio da psicologia do desenvolvimento. Essa rea anunciou a concepo de infncia e criana pela herana biolgica fundamentada em um paradigma bio-psicolgico, o que conformava essa categoria e seus sujeitos em um modelo universal, abstrato, a-histrico e pr-determinado (Jobim & Souza, 1996; Rocha, 1999; Ferreira, 2002). Porm, se por um lado temos criticado a psicologia do desenvolvimento pela sua definio de criana descontextualizada e nica, por um prisma da cincia que investigou seu desenvolvimento descolado de sua condio social, por outro, temos que reconhecer o pioneirismo dessa rea na tradio e regularidade em desenvolver pesquisas sobre as infncias.

    Considerando esse quadro, ora trazemos uma pesquisa sobre pesquisas (Rocha, 1999, p.16), no intuito de reunir as indicaes e as escolhas terico-metodolgicas do maior nmero possvel de trabalhos apresentados na mais importante reunio cientfica de pesquisadores da rea da Educao, a Reunio Anual da Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao/ANPED, especificamente no Grupo de Trabalho Educao de Crianas de zero a seis anos/GT07. Analisar o conjunto dessas indicaes, seus limites e suas possibilidades, passou a ser importante para conhecermos a trajetria dos procedimentos metodolgicos eleitos nos estudos. Acreditamos que esta anlise, considerando sua abrangncia possibilitar oferecer um panorama que represente a produo nacional sobre a temtica em questo, j que concordamos que os procedimentos metodolgicos ocupam um lugar central e decisivo em qualquer investigao.

    Nessa direo, nos propusemos a investigar alguns trabalhos apresentados na ANPED, no perodo compreendido entre 1999 e 2009. No planejamento partimos do pressuposto segundo o qual as pesquisas tm trazido indicaes epistemolgicas, terico-metodolgicas, sociais, culturais e polticas que advogam um emergente conhecimento das crianas como crianas (Faria 1999; Ferreira, 2002), dando eco s vozes desses sujeitos de pouca idade. Dessa forma, o objetivo foi investigar as pesquisas que se dedicaram a observar, analisar e compreender jeitos de ser criana, tendo em vista traar, mapear e examinar os procedimentos terico-metodolgicos utilizados, bem como as concepes de criana e infncia subjacentes s escolhas metodolgicas dos pesquisadores. Pergunta-se: as crianas so pesquisadas? Que lugar as crianas vm ocupando nas pesquisas? Quais os limites e as possibilidades traadas pelos pesquisadores em relao s metodologias de pesquisas com crianas? Que concepo terica de criana e de infncia tem direcionado as escolhas metodolgicas dos pesquisadores? Quais

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    as metodologias, procedimentos e instrumentos que se tem construdo e utilizado nas pesquisas?

    Dividimos a exposio do texto em trs partes: a primeira dedica-se a apresentar brevemente o desenvolvimento da pesquisa; na segunda parte trazemos as tendncias, contribuies e procedimentos eleitos nos trabalhos selecionados, destacando aspectos que incidem sobre a participao das crianas; na terceira parte evidenciamos as concepes de infncia e criana que aliceram as escolhas referentes aos procedimentos terico-metodolgicos, realizando uma amostra do conjunto dos trabalhos selecionados. Desenvolvimento da Pesquisa

    A presente investigao fruto de uma pesquisa j concluda que se desafiou a lanar um olhar para as categorias infncia e criana por meio do olhar de outros pesquisadores. Como vimos acima, a amostra emprica partiu de trabalhos apresentados nas reunies da ANPED em um determinado perodo histrico (1999-2009). Foi realizada uma busca ano por ano do referido perodo de todos os trabalhos disponveis no portal da ANPED, os quais foram localizados por consulta pela Internet. A escolha do perodo no foi aleatria. Esse intervalo de produo abrange no campo da educao infantil um momento de grande efervescncia acadmica, coadunando-se com o aumento de cursos de ps-graduao no Brasil (Rocha, 1999) e o concomitante crescimento de pesquisas que tomam as crianas como referentes empricos nos estudos sobre as infncias (Sarmento, 2000, 2004) o que, consequentemente, aumenta a produo de conhecimentos e o interesse j consagrado pelos pesquisadores ainda de maneira tmida em desenvolver metodologias, procedimentos e instrumentos no-convencionais de pesquisas que qualifiquem as vozes das crianas.

    A busca do material emprico da pesquisa seguiu um padro manual, quase artesanal, pois partimos da ideia segundo a qual quanto maior a aproximao na organizao dos dados maior a probabilidade de o pesquisador inquietar-se e por eles surpreender-se. O material coligido dos dez anos incluiu todos os trabalhos e psteres apresentados. Para chegar ao levantamento foram utilizados diversos descritores, conforme segue: pesquisa com crianas, prticas de pesquisas, criana e pesquisa, metodologias de pesquisa, procedimentos metodolgicos, metodologias com crianas, sociologia da infncia e crianas. Com base no escrutnio dos textos, foram destacados: ttulo da pesquisa, autores, ano de apresentao, assuntos, tipo de pesquisa (mestrado/doutorado) quando indicado, as referncias bibliogrficas utilizadas pelos pesquisadores, as formas de metodologias, os procedimentos e instrumentos de pesquisa utilizados. Nesse levantamento foram identificados, no total, 193 trabalhos. Desses, foram selecionados 38 trabalhos referentes s pesquisas com crianas, os quais foram lidos integralmente. Isso permitiu fazer outro enquadramento, pois apenas 25 dos 38 trabalhos realmente se referiam a pesquisas com crianas. No que diz respeito aos trabalhos sobre estudos terico-metodolgicos de pesquisas com crianas, identificamos apenas quatro trabalhos nesses ltimos dez anos de ANPED, dois deles so os realizados por pesquisadoras brasileiras na Universidade do Minho em Braga/Portugal.

    Aps a seleo da amostra emprica, realizamos a leitura de todos os 25 textos na ntegra, o que nos possibilitou fazer comparaes, agregaes, classificaes e interpretaes;

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    culminando na elaborao de categorias. As categorias foram elaboradas buscando estabelecer uma perspectiva comparativa que facilitasse a percepo dos pontos de convergncia e as eventuais divergncias; as regularidades e as tendncias sem, contudo, deixar de atentar para o vrio e a exceo.

    A incluso do descritor Sociologia da Infncia deu-se pelo fato de essa rea ganhar destaque nas pesquisas com crianas em nosso pas. J nos primeiros trabalhos selecionados, foi possvel perceber a forte presena, nesta ltima dcada, do aporte terico dessa recente rea de conhecimento, principalmente em relao aos delineamentos e escolha de procedimentos terico-metodolgicos, aparecendo como base terica em maior escala autores portugueses (Sarmento & Pinto, 1997; Sarmento, 2000, 2001; Toms, 2000; Ferreira, 2002). A Sociologia da Infncia um campo recente que estuda a infncia em si mesma, isto , como uma categoria sociolgica do tipo geracional. Para a Sociologia da Infncia as crianas so atores sociais ativos. Em outros termos, alertam para a importncia de os pesquisadores captarem situaes relacionais das crianas quando esto entre elas, no intuito de desvelar os jeitos de ser criana. Em nossa anlise, tal afirmao justifica a crescente busca dos pesquisadores por esse recente campo de conhecimento nas pesquisas com crianas, o que tem contribudo fortemente para que a criana seja revelada em sua especificidade, considerando-se os mltiplos contextos sociais e culturais. Com base nas pesquisas analisadas, podemos inferir que a Sociologia da Infncia se configura como um campo importante nessa discusso e tem se colocado como interlocutora privilegiada no mbito de constituio de uma Pedagogia da Infncia.

    Ressalte-se que na sociologia brasileira localizamos alguns trabalhos de pesquisas com crianas, mesmo sendo escassos. Registros inditos de Florestan Fernandes (1961), j na primeira metade do sculo XX4, demonstram que o autor utilizou como encaminhamento metodolgico o testemunho direto das crianas, por meio da observao direta e prolongada, tendo o objetivo de realizar uma descrio fiel nos parmetros da etnogrfica para capturar o modo de atuao e socializao prprias dos grupos infantis. Outra pesquisa que marcou a rea ao eleger as vozes das crianas na coleta dos dados, dando estatuto terico-metodolgico a esses sujeitos, o trabalho de Jos de Souza Martins, publicado em 1993. O autor elege a criana como testemunha da histria amazonense, justificando ter sua escolha metodolgica recado sobre a fala das crianas, que por meio delas me falam (e nos falam) do que ser criana (Martins, 1993, p.18). Fernandes (1940) e Martins (1993) so apontados nos estudos de Quinteiro (2000) e Marchi (2007) como os precursores da Sociologia da Infncia no Brasil. Porm, as duas autoras tecem crticas a esses dois pesquisadores, sobretudo por considerarem as crianas como sujeitos imaturos. Nas reflexes de Marchi (2007), embora os autores tenham rompido com o que a autora chamou de cerco de silncio imposto s crianas nas pesquisas de cunho sociolgico, ambos mantiveram inalterada a viso tradicional de socializao. As crianas foram compreendidas como sujeitos passivos do trabalho adulto de transmisso cultural.

    Estudos mais recentes (Quinteiro, 2000; Dermartine, 2002; Delgado & Mller, 2005; Marchi, 2007) tambm vm intensificando as reflexes terico-metodolgicas sobre Educao e Sociologia. O intercmbio entre essas duas disciplinas tem trazido importantes contribuies

    4 O trabalho de 1940, porm s foi publicado em 1961.

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    que se abrem a novos desafios, possibilidades e limites no delineamento de procedimentos metodolgicos de pesquisas com crianas.

    Desse modo, o recente interesse pela rediscusso da construo social da infncia, tomando a criana como uma varivel em si, aponta metodologias que procuram compreender a categoria infncia e os sujeitos a ela pertencentes as crianas , por meio do descentramento do olhar de adulto para poder entender, por meio das falas das crianas, os mundos sociais e culturais da infncia. Portanto, temos um movimento de pesquisas que tem desenvolvido a mxima de que a criana, sendo um ser humano de pouca idade, capaz de representar o mundo e a si mesma (Quinteiro, 2000). Essa expresso tem ganhado fora e vez nas pesquisas e trazido novos ares, permitindo aos pesquisadores revelarem as interpretaes infantis e seus respectivos modos de vida.

    Das pesquisas com crianas complexidade da infncia: procedimentos terico-metodolgicos eleitos nos trabalhos selecionados

    No contexto dos trabalhos examinados, foi possvel identificar que a escolha da forma de pesquisar crianas tem sido, em grande maioria, o estudo de caso, adotado numa abordagem qualitativa e interpretativa. De um total de 25 trabalhos, foi citada em 21 trabalhos. Como podemos constatar, o estudo de caso foi praticamente utilizado em todas as pesquisas com crianas apresentadas na ANPED desta ltima dcada. Os pesquisadores caracterizam-no como sendo um mtodo que permite penetrar na realidade social e descrever a complexidade de um caso concreto, desvelando a multiplicidade de dimenses presentes numa determinada situao ou problema, focalizando-o como um todo. Em sntese, essa forma de pesquisa definida como sendo um mtodo propcio para aprender os modos explcitos e implcitos dos sistemas simblicos que regulam ou favorecem as relaes, as manifestaes, as aes, as formas de sociabilidades e a produo das culturas infantis entre as crianas.

    Coaduna-se com essa reflexo a crescente perspectiva que parte de um enfoque multidisciplinar e interdisciplinar para discutir as questes em torno da criana e da infncia, rompendo com o tradicional domnio da Psicologia, principalmente a Psicologia Desenvolvimentista, como j foi constatado, por exemplo, na pesquisa de Rocha (1999). A justificativa encontrada no material compilado, por um lado, impera na indicao de que para olhar os fenmenos da infncia requer que o pesquisador transite pelas diversas reas do conhecimento no sentido de dar conta de seus processos em suas mltiplas facetas e determinaes (Rocha, 2001). Por outro lado, este transitar pelas diferentes reas, entra em convergncia com os aportes terico-metodolgicos da Pedagogia da Infncia, a qual vem ganhando importncia e se configurando como campo de estudos da educao infantil, na ltima dcada.

    Dentre o universo de contribuies das diferentes abordagens terico-metodolgicas, o ponto de ancoragem da abordagem em maior escala o do recente campo da Sociologia da Infncia (21 trabalhos dos 25 analisados, o que soma 47% do total). Em escala decrescente aparecem ainda as seguintes abordagens: perspectiva dos autores italianos (dez trabalhos, somando 22% do total); a histrico-cultural, principalmente no que diz respeito ao pensamento de Vygotsky e seus interpretes (sete trabalhos, somando 16% do total); a perspectiva

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    foucaultiana (quatro trabalhos, somando 9% do total). interessante ressaltar que esses quatro trabalhos so de uma mesma universidade e de uma mesma autora. Por ltimo, em proporo bem menor encontramos referncias perspectiva de Piaget (dois trabalhos, somando 4% do total) e Wallon (um trabalho, somando 2%). Como podemos constatar, alguns trabalhos fazem referncia a mais de uma perspectiva terico-metodolgica. Nesse caso, o cruzamento entre os aportes tericos geralmente ocorreu entre os autores italianos e a perspectiva terica da Sociologia da Infncia.

    Os trabalhos, em sua grande maioria, resultaram de estudos empricos, os quais foram realizados em contextos de educao coletiva de creches e/ou pr-escolas. Alguns, com crianas indgenas no contexto de suas respectivas tribos; outros, em menor proporo, versam sobre a experincia infantil vivida fora dos contextos educacionais. Dos 25 trabalhos analisados, 22 indicavam a necessidade de trazer as vozes das crianas, seu ponto de vista, sua perspectiva, ou seja, ouvir delas o que tm a dizer. As trs pesquisas que no realizaram estudos empricos abordaram os procedimentos terico-metodolgicos de pesquisas com crianas, tambm dando uma ateno especial escuta das vozes das crianas. Esses trabalhos fundamentavam-se na Sociologia da Infncia. Em todos os trabalhos examinados constatamos a nfase atribuda pelos autores crena de que a criana capaz de dar, em primeira mo, informaes e opinies sobre seu mundo educacional, social e cultural. Isso significa dizer que so elas os sujeitos privilegiados para o pesquisador perguntar, observar, conversar, fotografar, filmar e registrar para conhecer os diversos jeitos das crianas viverem a infncia. H um desejo terico e metodolgico em tangenciar os contedos das falas das crianas, o que se coloca como um exerccio fecundo para qualificar suas formas de sociabilidade e de produo cultural.

    Nesse contexto, tendncias terico-metodolgicas de pesquisas vm se formando e trazendo alguns destaques de temas. Em especial apresentamos as mais evidenciadas: prticas sociais concernentes s relaes entre crianas e as delas com os adultos; relaes de poder; adultocentrismo e subordinaes de idade; infncia plural; questes de gnero; produo das culturas infantis; brinquedo, jogo e brincadeira; os modos singulares de subjetivao das crianas; experincias cotidianas das crianas; as prticas de interao na creche sob o olhar das crianas; infncia e natureza; criana indgena e suas especificidades; lgica de transgresso das crianas, crianas fora das creches ou pr-escolas e a alteridade da infncia.

    No que se refere educao das crianas pequenas, os trabalhos analisados apontam que sempre nos deparamos com a necessidade de prescrever formas, modelos e tcnicas, enfatizando o como fazer para as crianas e nunca o como fazer com as crianas ou ainda, o como fazer das crianas. Sendo assim, fica ntido o atual movimento investigativo na rea da Educao Infantil na busca de construir um canal de comunicao profcuo entre adultos e crianas, principalmente no intuito de potencializar a autonomia, a participao e os relacionamentos das crianas. H forte indicao, nos estudos analisados, da necessria observao, aproximao, penetrao, percepo e interao dos adultos em relao ao mundo peculiar das crianas. Trazem uma perspectiva terico-metodolgica que supera as disparidades de poder existente entre adultos e crianas, principalmente no que diz respeito aos procedimentos eleitos tradicionalmente nas pesquisas realizadas com as crianas. Para tal, postulam a necessidade de ultrapassar o discurso esmagador legitimado historicamente pela razo adultocntrica que at o momento alimentou as cincias humanas e sociais. Nesse sentido, os autores afirmam a necessidade premente de o pesquisador ficar entre as crianas.

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    Somente assim, entendem, poder gerar um envolvimento muito maior com os sujeitos pesquisados, pois o contato direto permite construir uma atmosfera muito positiva, ldica e humana no desenvolvimento das pesquisas com as crianas.

    De forma geral, nesta ltima dcada de pesquisas com crianas apresentadas na ANPED, foi localizado um ncleo de abordagens terico-metodolgicas que pretendem ultrapassar as barreiras disciplinares historicamente impostas s cincias humanas e sociais no intuito de romper com o paradigma que considera o fenmeno infncia como algo irrelevante e sem nada de especial. Essa frente de anlise corresponde prpria evoluo dos estudos sobre e com crianas nas cincias humanas e sociais.

    Na mesma direo, os trabalhos analisados, na sua maioria, fazem referncia necessidade de considerar elementos como insero social, cultura, etnia, religio, gnero, espao geogrfico e gerao (Sarmento & Pinto, 1997), pois tais dimenses vo construir diferentes jeitos de ser criana e viver a infncia em cada momento histrico; enfim, definem a importncia de singularizar as crianas com base no contexto em que esto inseridas, de no pesquisar a criana isoladamente, de forma assptica, alheia a sua condio social. Est posto ento o desafio de se buscar lanar um olhar crtico sobre a infncia na sua doce, tnue e forte complexidade (Kramer, 1996). Diante dessa rota, os autores dos estudos selecionados, seguem alertando para a necessidade de ir alm da mera descrio dos dados coletados com as crianas, indicam a necessria descrio do contexto social e cultural, analisando-o em suas mltiplas determinaes histricas. Interagir, analisar e contextualizar historicamente as falas captadas das crianas ultrapassar as aparncias do fenmeno, aproximar-se de sua essncia. Cabe atualizar aqui a afirmao celebre de Marx (1974, p.399), toda a cincia seria suprflua se a aparncia das coisas e sua essncia se coincidissem diretamente. Assim, importante ressaltar que essncia e aparncia so produzidas pelo mesmo complexo social e histrico, pois so produzidas pelas mesmas necessidades sociais. Queremos dizer com isto que preciso envidar esforos, explicitando os limites e descobrindo as possibilidades para estabelecer uma comunicao frtil com as crianas pequenas, principalmente no sentido de inventar, criar e estabelecer outras formas de comunicao com elas o que coincidir com a criao de outros procedimentos terico-metodolgicos de pesquisas.

    Na investigao em questo e no que diz respeito a esse ltimo item, foram citados nada menos que oito tipos diferentes de procedimentos e ainda foram denominados de diversas formas nas pesquisas. O agrupamento das semelhanas dos tipos de procedimentos que nos permitiu chegar a uma reduo das tipologias encontradas (oito tipos de procedimentos em 25 trabalhos analisados), s foi possvel de ser realizado aps a leitura dos trabalhos na ntegra. Igualmente a existncia de uma multiplicidade de perspectivas tericas, pelas quais os autores dos trabalhos procuraram articular diferentes reas de conhecimento na abordagem de seu objeto de estudo, h tambm uma quantidade significativa de trabalhos que utilizam mais de dois procedimentos metodolgicos para coletar os dados empricos. Constatamos que o cruzamento mais frequente foi a utilizao simultnea do registro etnogrfico, registro fotogrfico, filmagens em vdeo, uso de desenhos das crianas e a observao participante. H consenso nos trabalhos examinados de que em pesquisas com crianas necessrio lidar com mais de um procedimento metodolgico para compreender o fenmeno que se quer estudar. Nesse sentido, os trabalhos apresentados vm intensificando uma diversidade de alternativas metodolgicas que ultrapassam as formas tradicionais de pesquisar crianas. Diramos, como

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    Quinteiro (2000, p.112), que os novos procedimentos usados formam um feixe que no se esgota e que apresenta inmeras dificuldades para serem vencidas pelo pesquisador. Sumariamente apresentaremos algumas indicaes referentes aos procedimentos de pesquisas com crianas que mais se destacaram.

    O Registro etnogrfico h forte tendncia para o uso da etnografia em pesquisas com crianas. Considerando a natureza dessa metodologia, os autores dos trabalhos, em sua maioria, excluindo os que os desenvolveram com crianas indgenas, indicam, tal qual Andr (1999), a necessidade de adio de palavras como orientao, do tipo, de inspirao, de cunho, para situar a diferena entre fazer etnografia e utilizar essa ferramenta como um dos instrumentos de observao. Nota-se que em alguns estudos os autores so mais enfticos, explicitando que em pesquisas educacionais no possvel levar ao p da letra os preceitos clssicos da etnografia. Nesse caso, sublinham que, sem dvida nenhuma, a etnografia contribui para estabelecer maneiras criativas de contato e interao com os sujeitos investigados. Em outros trabalhos, os pesquisadores anunciam que a utilizao das estratgias do mtodo etnogrfico poder ser um elemento frtil para permanecer no campo, para decifrar e anotar o modo que os pesquisados dialogam com a cultura contempornea, ou ainda, para compreender de que maneira a cultura contempornea se manifesta nos sujeitos investigados. Assim, advertem que o texto e o contexto so, para qualquer pesquisador, importantes ferramentas conceituais, e a etnografia importante recurso para realizar a leitura desse universo. nessa perspectiva que se insere a utilizao da etnografia em pesquisas com crianas.

    O conjunto dos trabalhos que se utilizaram da etnografia indica o uso do caderno de campo, bloco de anotaes ou, ainda, dirio de bordo. A recomendao escrever o que se v e em casa, ao digitar as anotaes, reorganiz-las tecendo alguns comentrios que complementem o vivido. Existe igualmente um nmero significativo de trabalhos em que indicam ser necessrio manter o registro etnogrfico intacto e ao lado, em outra folha anexa, escrever as observaes e as impresses. Nesse caso, quando for realizar a anlise, o pesquisador coloca as duas folhas lado a lado para elaborar as interpretaes. Tal exerccio indicado como sendo mais fidedigno com a realidade. Sendo assim, alertam que importante no sucumbir tentao de julgar o que se vai analisar, outrossim, necessrio tentar compreend-la nos seus prprios termos.

    O registro fotogrfico aparecendo em 18 das 25 pesquisas selecionadas, a fotografia nas pesquisas com crianas, mais do que um clic, um importante recurso metodolgico. O coletivo dos autores examinados afirma que a fotografia ajuda a tomar posse das coisas transitrias que tm direito a um lugar nos arquivos da memria. Sendo assim, falam da possibilidade de olhar para a imagem congelada, retratada pela foto, inmeras vezes, um exerccio pleno de ver e rever a cena, os personagens e o contexto. Tal possibilidade agua a memria, a imaginao, a criao e a reconstituio da prpria histria vivida, pelas imagens e nas imagens. Indicam que a fotografia mostra sempre o passado lido aos olhos do presente, embora j no seja o mesmo passado, mas sua leitura ressignificada. Diante disto, a leitura das imagens se apresentou como um instrumento de aproximao da realidade scio-histrica e cultural do grupo fotografado. Portanto, mas do que ilustrar as sees do texto ou dar-lhe um colorido, a fotografia reconstri o prprio olhar do pesquisador, apresentando-se como outras possibilidades de escritas outros textos da realidade estudada.

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    A filmagem em vdeo Tambm um recurso bastante utilizado em pesquisas com crianas. A utilizao desse procedimento geralmente coincide com o uso do registro fotogrfico. Dessa forma, o registro em vdeo vem contribuindo marcadamente na captao de imagens que revelam os diferentes jeitos de ser criana em suas peculiaridades, bem como a dinmica do mundo cultural que circunda as (re)produes infantis presentes no contexto da instituio. O emprego da filmagem nas pesquisas uma maneira de obter dados os mais prximos possveis ao movimento das crianas, pois a imagem filmada e a sua transcrio, simultaneamente, articulam entre si a possibilidade de captar com maior expanso e expresso aquilo que no perceptvel primeira vista.

    Nesta direo, os trabalhos analisados sinalizam que a imagem captada espontaneamente pode traduzir uma situao que no se reproduz uma segunda vez; a filmagem traz algo diferente da observao e do registro escrito, pois o que a observao a olho nu muitas vezes no percebe ou deixa escapar, a filmagem capta com maior veracidade. Assim, afirmam os autores, a cada cena assistida e revista percebiam novas significaes e novas interpretaes. A filmagem, portanto, foi tornando-se para eles uma memria audiovisual.

    A observao participante A observao participante ou a observao com participao tem sido o ponto forte nas pesquisas com crianas; aparece 22 vezes dos 25 trabalhos examinados. Encontramos argumentaes nas vozes-escritos dos pesquisadores do tipo: em pesquisas com crianas impossvel observar sem participar, a observao sempre com participao. Tambm pela leitura dos trabalhos fica explicito que o pesquisador no tem como fugir da participao, j que as crianas esto o tempo todo pedindo e puxando os adultos para suas brincadeiras, interaes, relaes, produes, experimentos e dilogos. Os pesquisadores tornam-se um Outro, que observa e tambm observado. Dessa forma, pesquisados e pesquisadores vo pouco a pouco estabelecendo e criando laos, o que favorece as relaes e o desenvolvimento de uma participao sensvel s produes das crianas. A observao participante possibilitar o acesso dos adultos ao que as crianas pensam, fazem, sabem, falam e de como vivem, esmiuando suas peculiaridades e as particularidades desse grupo geracional. Esta forma aberta e desprovida de amarras poder aprofundar as heterogeneidades das infncias.

    O que se constata que os pesquisadores realizavam suas observaes em um perodo de dois a trs dias por semana, durante, no mximo, oito meses de coleta de dados. As observaes ocorriam em todo o contexto da creche, em que lhes era facultado participar e acompanhar diferentes momentos da vida em curso no espao e tempo das instituies pesquisadas. Geralmente os pesquisadores se detinham em um grupo de crianas, porm contextualizando todas as relaes no intuito de compreender as significaes do universo estudado.

    Desenhos das crianas no conjunto das pesquisas analisadas, essa estratgia tomada como importante recurso metodolgico, embora aparecendo em menor proporo: apenas em sete dos 25 trabalhos analisados. O desenho infantil considerado uma produo cultural das crianas e um instrumento revelador das representaes infantis. A justificativa que mais aparece nos trabalhos em relao ao uso dos desenhos das crianas que a iconografia representa uma possibilidade de reconstruir o espao da creche como lugar da infncia. Afirmam que, para alm de simplesmente desenhar, necessrio elaborar uma interpretao dos desenhos a partir dos olhares e falas de seus autores as crianas. O desenho

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    compreendido como atividade de criao e expresso humana. Nesse sentido, com a especificidade do desenho, aparece a considerao de quatro aspectos que o descrevem: o autor (a criana que o desenha), o prprio desenho em si, a fala do autor que o produz e o contexto em que ele produzido. Esses aspectos, em se tratando de pesquisas com crianas, so essenciais para as anlises.

    As crianas nas pesquisas: anlise das concepes de infncia e criana que se entrecruzam nos trabalhos em foco

    Partindo do pressuposto de que as escolhas dos procedimentos de pesquisa so diretamente atravessadas pela concepo de criana e infncia dos pesquisadores e que tais concepes conformam os delineamentos terico-metodolgicos, iremos trazer de maneira breve algumas indicaes dos trabalhos analisados. Destaca-se nesses trabalhos a concepo de criana como ator social em seu sentido pleno, sujeito competente, dotado de capacidade, de ao e culturalmente criativo. Podemos dizer que h uma crescente tendncia em legitimar as particularidades das crianas, por meio de registros de suas prprias falas, comportamentos e culturas infantis. Os autores dos trabalhos advertem que a infncia e a criana nessa acepo so tomadas como categoria social e histrica, o que lhes possibilita romper de vez com o carter evolucionista, biologizante e desenvolvimentista. Desse modo, podemos inferir que nas concepes que predominam nos 25 estudos apresentados na ANPED referentes ltima dcada, a criana retratada considerando a importncia de levar em conta seu alto grau de protagonismo, ou seja, fala-se de uma criana que produz cultura e ao mesmo tempo produto dessa cultura.

    Essa concepo centraliza as interaes sociais como mecanismo de anlise dos grupos infantis. Assim, os trabalhos falam da necessidade de considerar as crianas como sujeitos de relaes sociais amplas e que essas integram suas vidas. Participando nas relaes sociais, as crianas se apropriam de valores e comportamentos prprios do local e do tempo em que vivem. Esse processo histrico, social, cultural e psicolgico (Kuhlmann, 1998). Para os pesquisadores este tem sido o caminho que possibilita descortinar o lugar das crianas, vendo-as como agentes ativos.

    A concepo de infncia e de criana demonstrou seguir uma mesma linha de pensamento terico-metodolgico: h uma ntida convergncia entre os autores da amostra selecionada, tanto de nfase terica, foco de anlise, como de mtodo e procedimentos eleitos na investigao das duas categorias ou at mesmo em relao s problemticas levantadas nas pesquisas sobre as crianas. As concepes enfatizadas circulam em torno do pressuposto de que a infncia uma condio da criana, sem, contudo, negar a imaturidade biolgica desse sujeito.

    Os trabalhos analisados demonstraram ainda que as dimenses socializao, aprendizagem e desenvolvimento infantil esto inter-relacionadas. Contudo, constatamos que fogem de uma anlise mais profcua no que diz respeito compreenso dos processos de aprendizagem e aspectos do desenvolvimento infantil. Quase todos os trabalhos (21 dos 25 analisados 84%) referem-se aos processos de socializao, dando nfase s relaes sociais

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    entre adultos e crianas e entre as crianas. Isso posto, confirma-se a crescente busca dos autores pelo referencial terico-metodolgico da recente rea da Sociologia da Infncia.

    Entendemos, entretanto, que a elaborao de orientaes terico-metodolgicas para captar as relaes sociais das crianas e suas culturas, tanto no que tange definio de procedimentos quanto anlise dos dados, no constitui tarefa fcil, por tratar-se de um campo de pesquisa em construo, sujeito, ainda, a muitos equvocos, controvrsias e ambiguidades. Portanto, dados os limites deste trabalho, terminamos questionando com base nas indicaes dos estudos examinados, se com a renovao conceptual da categoria infncia possvel ou no falarmos da existncia de uma autonomia conceptual das culturas infantis.

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    Pesquisas com crianas: possibilidades e desafios metodolgicos

    Anne Carolina Ramos

    Resumo

    Nas ltimas duas dcadas temos visto uma preocupao crescente e um decorrente aumento no nmero de pesquisadores que tm se interessado em conhecer a vida e o cotidiano das crianas a partir de suas prprias perspectivas. Todavia, acessar os mundos sociais de meninos e meninas no uma tarefa necessariamente fcil, uma vez que a prpria aceitao do pesquisador por parte das crianas no se faz sem impasses. Entre eles existem diferenas que envolvem questes comunicativas, comportamentais, cognitivas, relaes de poder, interesses e o prprio tamanho fsico, pontos que precisam ser profundamente refletidos e debatidos pelo pesquisador. Por outro lado, adultos e crianas tambm tm um modo diferente de conhecer, viver, experimentar e agir no mundo, o que traz novos desafios para os estudos que buscam analisar o ponto-de-vista das crianas. O presente trabalho parte de minhas reflexes e experincias como pesquisadora no campo de estudos das infncias e tem por objetivo colocar em foco as prprias relaes estabelecidas entre pesquisadores e crianas em campo. Neste trabalho, eu defendo a ideia de que a forma como o pesquisador entra, age e permanece no campo crucial para que ele consiga desenvolver uma pesquisa com crianas, na qual elas no ocupem o lugar de objeto de estudo, mas sejam consideradas como sujeitos ativos nas produes de suas prprias biografias. Palavras-chave: infncia; pesquisa com crianas, pesquisa de campo; mtodos qualitativos. Abstract:

    In the last two decades we have seen an increasing concern and a resultant increase of the number of researchers who have been interested in knowing the life and the day-to-day of children from childrens perspectives. However, it is not necessarily easy to access the social worlds of boys and girls, since many obstacles lie in the way of a researchers attempts to be accepted by the children. These include obvious differences in communication strategies, behavior, patterns of cognition, (real or perceived) power relations, interests and even physical stature, which the researcher needs to address. On the other hand, adults and children also have different ways of experimenting and finding out about the world, and living and acting in it, which brings new challenges for the researches that want to analyze the point-of-view of children. This study is a result of my thoughts and experiences as researcher in the field childhoods studies, and aims to focus on the relations established between researchers and children in the field. In this paper I defend the idea that the way a researcher enters the field and acts within in is crucial for developing this research with children, in which the children are not objects of study, but active subjects producing their own life-stories. Keywords: childhood; research with children; field research; qualitative methods.

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    Abrindo o dilogo

    O presente simpsio intitula-se I Simpsio Luso-Brasileiro em estudos da criana: perspectivas sociolgicas e educacionais e coloca sob relevo, como seu prprio subttulo enuncia, um aspecto de extrema importncia para a atualidade: as pesquisas com crianas. Trata-se de um tema caro a todos ns aqui reunidos, estudiosos e pesquisadores interessados nas infncias. Mas trata-se tambm de um desafio que nos bate porta, uma vez que desenvolver pesquisas com crianas no uma tarefa necessariamente fcil ou simples. Requer estudo, preparo e habilidade por parte do pesquisador, assim como tato, pacincia e muito jogo de cintura para tecer os fios dessa conversa. Desenvolver pesquisas com crianas um desafio que s consegue conhecer profundamente aquele que se arrisca no campo, aquele que se coloca cara a cara com as crianas, indagando-se curioso sobre as mincias e os emaranhados de seus cotidianos. Isso porque, desenvolver pesquisas com crianas no o mesmo que desenvolver pesquisas sobre crianas, da a importncia do foco de debate escolhido para este simpsio.

    Desenvolver pesquisas com crianas significa reconhec-las como atores sociais plenos, como sujeitos ativos na construo de seus mundos sociais, dando a elas espao para que ajam como co-autoras e etngrafas de suas prprias biografias (Zinnecker, 2000). Acontece que ingressar nos mundos sociais das crianas, dando a elas esse lugar legtimo de co-autoria, no uma tarefa necessariamente fcil, uma vez que muitos desafios se fazem presentes. Primeiramente porque adultos e crianas tm um modo diferente de conhecer, viver, experimentar e agir no mundo (Alanen, 1994, p.41), o que lana um impasse importante para ns, pesquisadores adultos, que desejamos desenvolver uma sociologia pautada no ponto de vista das crianas. Em segundo lugar porque para fazermos uma pesquisa com crianas, ns precisamos, antes de tudo, sermos aceitos por elas. Isso sem contar a aceitao dos diretores, dos coordenadores pedaggicos, dos supervisores, dos psiclogos, dos professores e dos pais, que normalmente precedem a prpria aceitao das crianas, principalmente quando as pesquisas so desenvolvidas em ambientes escolares.

    Mas voltemos ao aceite das crianas, que possivelmente o aceite mais desafiador que temos a frente. Eu no estou me referindo aqui apenas ao aceite que diz sim, eu gostaria de participar dessa pesquisa, mas aquele aceite que profundo, que toca na intimidade dos sujeitos, permitindo que pesquisadores e crianas construam uma ponte interpessoal que dem a eles a chance de tomarem gosto um pelo outro (Errante, 2000). Eu estou me referindo a um aceite que faz do pesquisador algum com quem [as crianas achem que] vale a pena conversar (Geertz, 2006, p.107). E aqui surgem novos desafios, como o fato de existir, entre crianas e adultos pesquisadores, diferenas que envolvem questes comunicativas, comportamentais e cognitivas, assim como interesses muitas vezes diversificados. Alm disso, o prprio tamanho fsico, assim como as relaes de poder entre adultos e crianas tambm se fazem presentes, uma vez que os adultos normalmente ocupam o lugar de pais, cuidadores, professores ou instrutores, e no necessariamente de parceiros das crianas.

    Neste trabalho eu gostaria, justamente, de focar minhas anlises nas relaes estabelecidas entre pesquisadores e crianas em campo. A idia que eu gostaria de defender e discutir aqui que a forma como o pesquisador entra, age e permanece no campo crucial para que ele consiga desenvolver uma pesquisa com crianas, na qual elas no ocupem o lugar de

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    objeto de estudo, mas sejam consideradas como sujeitos ativos nas produes de suas prprias biografias. Isso significa dizer que meninos e meninas s aparecero efetiva e legitimamente nas pesquisas quando o pesquisador conseguir conferir a eles o lugar de intrpretes competentes de seus mundos sociais, o que depende fundamentalmente da sua prpria capacidade de imerso nos contextos de vida infantis. Uma vez que as investigaes interpretativas emergem das interaes estabelecidas entre as pessoas, a construo do papel do pesquisador um processo contnuo, que depende substancialmente da forma como ele se relaciona com as crianas no campo. Nesse sentido, eu gostaria, partindo de minhas reflexes e experincias como pesquisadora interessada nas crianas e em suas infncias5, de abordar e discutir trs ideias principais: a) que importante que o pesquisador assuma uma postura de adulto atpico (Corsaro, 1997) que diminua as diferenas existentes entre adultos e crianas; b) que importante que o pesquisador possibilite que as crianas falem por meio de suas mltiplas linguagens (Malaguzzi, 1995; Graue & Walsh, 2003; Sarmento, 2006), o que captura o verdadeiro sentido de dar voz s crianas nas pesquisas; c) que importante que o pesquisador se descentre de seu olhar de adulto para poder perceber o olhar da criana (Sarmento & Pinto, 1997), o que possibilita o seu deslocamento de uma perspectiva de estudo sobre as crianas para uma perspectiva de estudo com as crianas. Analisemos mais profundamente esses trs aspectos. Um adulto atpico entre as crianas:

    Entrar em campo nem sempre algo fcil, principalmente quando se trata de estabelecer uma relao de reciprocidade e confiana entre adultos e crianas. Os pesquisadores no so figuras conhecidas e familiares para as crianas e, se por um lado, eles podem despertar curiosidade, por outro, eles tambm podem suscitar certo desinteresse ou desconfiana. As relaes estabelecidas com as crianas vo depender fundamentalmente do modo como o pesquisador entra em campo e se comporta com elas; do tempo que ele se dedica construo de laos e ao engajamento da conversa. Quando entramos em uma sala de aula repleta de meninos e meninas a nos olhar curiosos, o que dizemos? Onde nos posicionamos? Como agimos? Seguramente essas so perguntas que nos fazemos bem antes de colocarmos nossos ps no campo e que nos inquieta permanentemente quando estamos l. Construir uma imagem de adulto atpico (Corsaro, 2003), ou seja, um adulto que no nem o professor, nem o coordenador pedaggico ou o psiclogo escolar, mas um adulto que est ali apenas interessado em olhar e conhecer a vida e os movimentos das crianas uma tarefa que desafia tanto os pesquisadores quanto as prprias crianas, uma vez que isso tambm pode ser algo relativamente novo para elas.

    5 Os exemplos que sero trazidos ao longo do texto so oriundos do trabalho que desenvolvi durante minha

    pesquisa de doutorado, onde analisei, por meio de entrevistas em pares, as relaes entre avs e netos na perspectiva das crianas (Ramos, 2011).

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    preciso atentar que as crianas no esto habituadas a dar entrevistas e a explicar o que elas sabem aos adultos em contextos diferentes daqueles vivenciados nas relaes professor-aluno. Raramente pedido s crianas que elas nos ensinem coisas sobre suas vidas assim como raramente os adultos possuem uma postura mais simtrica em relao a elas. Por outro lado, no raro que crianas e adultos tenham perspectivas diferentes em relao a comportamentos considerados adequados ou a atividades percebidas como perigosas, o que faz com que muitas vezes elas evitem estar na companhia deles, dificultando ainda mais a aproximao do pesquisador das culturas de pares das crianas.

    Na minha experincia de campo, feita com crianas entre sete e dez anos de idade, a conquista deste lugar de adulto atpico se fez visvel quando eu comecei a observar que a minha presena no atrapalhava as suas atividades e brincadeiras na sala de aula. Quando sozinhas, elas no paravam de brincar, correr ou gritar porque eu chegava ou estava com elas. Isso no significa que elas me ignorassem ou que eu no interagisse com elas. A diferena que eu no controlava ao menos diretamente suas atividades ou comportamentos. Desde o incio eu procurei assumir uma postura diferente daquela frequentemente adotada pelos adultos em relao s crianas. Por isso, para decises do tipo: Posso ir ao banheiro?, Posso ir ao ambulatrio?, Posso ir tomar gua?, Posso copiar essa atividade nesta folha?, quem respondia era sempre a professora. Aos poucos as crianas tambm foram me conhecendo melhor, o que fez com que elas mesmas me posicionassem em outro lugar dentro da escola.

    Eu me interessava pelas coisas que elas estavam fazendo, fazia perguntas, dava pequenas sugestes e tambm deixava que elas fizessem perguntas sobre minha vida e meu trabalho. Ns conversvamos sobre minha pesquisa, sobre porque eu estava interessada em conhecer aquilo que elas sabiam, sobre como seriam as entrevistas, de modo que elas pudessem decidir se elas gostariam ou no de participar dessa atividade. Ao contrrio dos professores, eu no interagia com elas apenas na sala de aula: eu tambm estava l na entrada, no recreio, no refeitrio e na sada da escola, o que abria o nosso leque de contato. Quando as crianas estavam na minha companhia, muitas vezes elas me convidavam para conversar, para jogar figurinhas ou para me mostrar os brinquedos que haviam trazido de casa, coisas que elas raramente faziam com os outros adultos. Com o tempo ns fomos criando uma relao de maior cumplicidade, o que fez com que o fato de eu no ser mais criana no proibisse a minha participao ainda que limitada de algumas situaes vividas por elas em suas culturas de pares.

    No exemplo que narrarei a seguir, que retrata um momento em que fiquei sozinha com trs meninas uma de sete e duas de oito anos de idade durante o perodo do recreio, podemos ver como esse lugar de adulto atpico foi vivido por mim em uma situao de campo. Estava chuviscando e toda a turma tinha decido para o ptio coberto. Como elas ainda no haviam lanchado, me pediram se eu poderia pegar a chave da sala de aula com a professora para que elas pudessem fazer suas refeies. Assim, ficamos ns quatro na sala de aula. Enquanto elas lanchavam, eu fazia algumas anotaes no meu Dirio de Campo. Foi quando o lanche terminou e elas comearam a brincar:

    Catarina foi a primeira a levantar e a cutucar as colegas, convidando-as para brincar de pega-pega. Sbito elas comearam a correr pela sala, movimentando-se entre as classes. Eu continuei parada escrevendo, mas

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    cuidando o que acontecia. Tanto elas quanto eu sabamos que no era permitido correr dentro da sala de aula. Da a pouco rica pegou uma rgua e disse que era uma varinha mgica, que quem fosse encostado por ela viraria esttua. O pega-pega havia se transformado em se colar, segundo o nome dado pelas prprias crianas. Com os 30 cm de rgua, a brincadeira comeou a ficar mais ativa, porque agora era fcil alcanar a colega. No meio da gritaria e dos largos passos de quem fugia da varinha mgica com medo de ser colada, outra menina da turma que estava passando pelo corredor ouviu, abriu a porta e resolveu se juntar a elas. Agora eram quatro e a sala se tornara pequena para elas. Foi ento que ouvi Adriana gritar: A Anne o ferrolho!. Eu, que h muito tempo no brincava de pega-pega, no havia entendido qual seria a minha participao na brincadeira. Mas logo percebi que quando algum estava em perigo corria na minha direo e se atirava sobre mim, agarrado a minha roupa e permanecendo protegida contra os feitios da varinha mgica. Eu fui includa no jogo sem precisar correr ou falar. Eu era um lugar da brincadeira e tornou-se divertido correr at mim. De repente, ouvimos o sinal. O recreio havia terminado. Elas continuaram correndo, mas enquanto brincavam iam at a porta para observar se a professora estava chegando com o resto da turma. De repente, ouvimos murmurinhos no corredor. Adriana corre para a porta, espia, olha para cada uma de ns e diz, olhando fixamente nos meus olhos: Acabou a brincadeira! A professora chegou!. Naquele momento, eu entendi que eu realmente ocupava um lugar singular. Eu no proibia a brincadeira. Pelo contrrio, eu podia inclusive fazer parte dela. [Dirio de campo]

    Eu era adulta, mas eu no mostrava habitar um mundo completamente alheio e distante do delas. No bilhetinho que ganhei de Betina (9 anos), por exemplo, ela destaca justamente as coisas que ns duas teramos em comum: seramos emotivas, sorridentes e tudo mais.

    Fig. 1: Bilhetinho que ganhei de Betina (9 anos).

    Algo semelhante tambm aconteceu no desenho que ganhei de Ktia (9 anos). Podemos

    observar que ns duas temos muitas semelhanas: o mesmo penteado, o mesmo tom de cabelo, a mesma fisionomia, a mesma postura e usamos a mesma roupa: camiseta de manga longa, cala, sapato e echarpe. A nica coisa que nos diferencia a altura: um indicativo para diferenciar a minha situao de adulta e a dela, de criana.

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    Fig. 2: Desenho que ganhei de Ktia (9 anos).

    Tais exemplos no significam que as crianas no me identificassem como uma pessoa adulta, mas significa que elas me identificavam como uma adulta diferente das demais, o que foi importante para o prprio desenvolvimento de minha pesquisa. A criao de vnculos, perpassada por essa postura de adulto atpico por parte do pesquisador , a meu ver, parte fundamental do processo de pesquisa com crianas. Caso o pesquisador no consiga criar uma boa relao com as crianas, dificilmente conseguir conquistar a sua permisso para adentrar nas particularidades de sua vida e para criar uma relao de fluxo que fomente o [...] senso de confiana, de respeito e validao medida que a rememorao, o ato de contar, a audio e a investigao se desenvolvem (Errante, 2000, p.153). Muitas vezes chegamos no campo e queremos logo entrevistar as crianas sem dar tempo para que elas nos conheam, sem dizer a elas quem somos ou o que fazemos, sem deixar claro seus direitos de participantes ou permitir que elas optem ou no em fazer parte de nossos estudos.

    Penso que nenhuma pessoa, nem mesmo seus pais, podem exercer plenamente o direito de consentir pelas crianas. Eles podem, enquanto representantes legais, permitir a sua participao, mas ela, a criana, quem deve concordar ou no com a sua participao (Goldim, 2009), quem deve ou no querer participar, o que s pode acontecer plenamente se ela souber como, o qu, porqu e com quem ela est interagindo. Se o objetivo do pesquisador o de desenvolver uma pesquisa com as crianas, ento do mesmo modo elementar que elas atuem como co-participes desse processo, estabelecendo uma relao de partner com o pesquisador. O estabelecimento dessa posio de adulto atpico rearranja as diferenas entre adultos e crianas, fazendo com que elas se sintam mais vontade para falar ou no de si e para tomar decises em relao sua prpria permanncia e participao na pesquisa. Frases do tipo: obvio! obvio! obvio! Tem alguma dvida? quando pergunto se Andr (8 anos) gostaria de participar das entrevistas ou D-lhe Pedro Bial! Ganhei no Big Brother! quando Alexandre (9 anos) sorteado para os encontros, mostram o desejo das crianas em estar comigo e participar dos encontros de pesquisa, o que um diferencial importante para os estudos interpretativos.

    O desenvolvimento de pesquisas com crianas tambm perpassa pela escolha de uma metodologia que d a elas a possibilidade de se comunicarem por meio de suas mltiplas linguagens, ponto que eu gostaria de adentrar nesse momento.

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    Uma comunicao ativa: as crianas e suas mltiplas linguagens O uso de tcnicas mistas de entrevista, que contemplem as mltiplas linguagens das

    crianas, tem sido destacado por diferentes autores (Graue & Walsh, 2003; OKane, 2008; Scott, 2008) como um recurso importante na incluso de meninos e meninas nos inquritos investigativos. Muito embora as crianas consigam participar de entrevistas faladas, tcnicas substancialmente orais costumam deix-las rapidamente cansadas e tornam a atividade pouco divertida e prazerosa. Os estudos de OKane (2008) tm mostrado que as atividades que envolvem comunicaes mais ativas, articulando a fala com expresses grficas e corporais, costumam ser realizadas com muito entusiasmo pelas crianas, sendo avaliadas por elas como um importante fator de interesse na participao dos encontros de pesquisa.

    James, Jenks & Prout (2007) tambm destacam que o deslocamento de mtodos talk-centred para as task-centred activities permite que as crianas tenham acesso a formas de comunicao variadas, trabalhando com diferentes habilidades e possibilitando a sua expresso por meio de componentes diversos. preciso atentar que enquanto algumas crianas se expressam melhor pela fala, outras preferem desenhar, recortar, pintar, encenar ou escrever, e que um leque mais amplo de intervenes pode ajud-las nesse processo, assim como tornar o encontro menos previsvel e montono. Dar voz s c