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FICHA TÉCNICA Título original: Fates and Furies Autora: Lauren Groff Copyright © 2015 by Lauren Groff Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2016 Tradução: Beatriz Sequeira Revisão: Rita Carvalho e Guerra/Editorial Presença Design e ilustração da capa: Melissa Four Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. Depósito legal n. o 416 761/16 1. a edição, Lisboa, novembro, 2016 Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730‑132 BARCARENA [email protected] www.presenca.pt

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F ICHA TÉCNICA

Título original: Fates and FuriesAutora: Lauren Groff

Copyright © 2015 by Lauren Groff

Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2016

Tradução: Beatriz SequeiraRevisão: Rita Carvalho e Guerra/Editorial PresençaDesign e ilustração da capa: Melissa FourComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.

Depósito legal n.o 416 761/16

1.a edição, Lisboa, novembro, 2016

Reservados todos os direitos

para a língua portuguesa (exceto Brasil) à

EDITORIAL PRESENÇA

Estrada das Palmeiras, 59

Queluz de Baixo

2730 ‑132 BARCARENA

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Chuviscos grossos do céu, como uma cortina subitamente cor‑rida. As aves marinhas interromperam a afinação, o oceano

emudeceu. As luzes das casas foram-se esbatendo sobre a água, até se tornarem cinzentas.

Duas pessoas caminhavam pela praia. Ela era loura e elegante, num biquíni verde, embora fosse maio, no Maine, e estivesse frio. Ele era alto, vívido; tremeluzia nele uma luz que captava a atenção, prendendo-a. Os seus nomes eram Lotto e Mathilde.

Por um minuto, ficaram a observar uma pequena lagoa formada pela maré, cheia de criaturas espinhosas que, ao desaparecer, faziam ascender espirais de areia. Depois, ele segurou o rosto dela com as mãos e beijou-lhe os lábios pálidos. Podia morrer de feli‑cidade nesse preciso momento. Numa visão, viu o mar erguer-se para os sugar, lambendo‑lhes a carne e revirando os seus ossos entre os molares de coral, nas profundezas. Se ela estivesse ao seu lado, pensou, sairia a flutuar, cantando.

Bom, ele era jovem, com vinte e dois anos, e tinham‑se casado em segredo nessa manhã. Uma extravagância, dadas as circuns‑tâncias, podia ser perdoada.

Os dedos dela a descer pelas suas costas abaixo queimavam‑-lhe a pele. Ela empurrava-o por trás, fazendo-o subir uma duna coberta de hastes de ervilhas‑do‑mar e descer novamente até ao lugar em que a parede de areia os protegia do vento, onde não sentiam tanto frio. Por baixo da parte de cima do biquíni, a sua pele arrepiada adquirira um tom azul lunar e, com o frio, os seus mamilos tinham-se retraído. Ajoelhados, agora, apesar de a areia

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ser dura e de magoar. Não tinha importância. Estavam reduzidos a bocas e a mãos. Ele colocou as pernas dela em redor das suas ancas, fê‑la deitar‑se, cobriu‑a com o seu calor, até ela deixar de tremer, transformou as suas costas numa duna. Os joelhos despro‑tegidos dela estavam voltados para o céu.

Ele ansiava por algo impronunciável e poderoso: o quê? Con‑sumi-la. Imaginou-se a viver no calor dela para sempre. As pessoas da sua vida tinham‑se ido afastando, uma a uma, como peças de um dominó; cada movimento a prendia mais, para que ela não o pudesse abandonar. Imaginou uma vida inteira a fazerem amor na praia, até se transformarem num daqueles casais de idosos que fazem caminhadas rápidas pela manhã, cuja pele se assemelha a polpa de noz envernizada. Mesmo depois de velho, continuaria a conduzi-la para as dunas e a obter o que pretendia dos sensuais e frágeis ossos de ave dela, da anca plástica e do joelho biónico. Drones nadadores‑salvadores surgiriam no céu, fazendo cintilar as suas luzes, bramindo: Fornicadores! Fornicadores!, para os expulsar com sentimentos de culpa. Seria assim, para todo o sempre. Fechou os olhos e desejou que assim fosse. As pestanas dela encostadas à face dele, as coxas dela à cintura dele, a primeira consumação daquela coisa aterradora que tinham feito. O casamento signifi‑cava que era para sempre.

[Ele tinha planeado uma cama adequada, um sentido de ceri‑mónia; invadira a casa de praia de Samuel, o seu companheiro de casa, na qual passara a maior parte dos verões, desde os quinze anos, tendo conhecimento de que escondiam a chave no jardim, debaixo da carapaça da tartaruga. Uma casa com tecidos estam‑pados de tartã, florais e louça colorida, coberta de pó; o quarto de hóspedes, no qual, à noite, incidia o triplo clarão do farol, a praia rochosa, lá em baixo. Era o que Lotto tinha imaginado para a primeira vez com aquela magnífica rapariga que transformara, por magia, em sua mulher. Mas Mathilde tinha razão em insistir numa consumação ao ar livre. Ela tinha sempre razão. Muito em breve sabê-lo-ia.]

Terminou depressa demais. Quando ela gritou, as gaivotas escondidas pela duna voaram disparadas em direção às nuvens

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baixas. Mais tarde, ela mostrar-lhe-ia a escoriação provocada por uma casca de mexilhão na zona da oitava vértebra, quando ele a pressionara repetidamente contra a areia. Estavam tão comprimi‑dos um contra o outro que, quando se riam, o riso dele saía do ventre dela, e o dela, da garganta dele. Ele beijou-lhe as maçãs do rosto, a clavícula e o interior do pulso, com as suas veias azu‑ladas que pareciam raízes. A fome terrível que julgou ver saciada não cessou. O fim aparente no início.

— A minha mulher — disse. — Minha — talvez em vez de a consumir pudesse engoli-la por inteiro.

— Ai sim? — replicou ela. — Claro. Porque eu sou um bem móvel. Porque a minha família real me trocou por três mulas e um balde de manteiga.

— Eu adoro o teu balde de manteiga — disse ele. — Agora, és o meu balde de manteiga. Tão salgadinha. Tão doce.

— Para — disse ela. Tinha perdido o sorriso, tão tímido e cons‑tante, que ele ficou alarmado por a ver ao perto sem ele. — Nin-guém é de ninguém. Fizemos algo grandioso. É novo.

Ele olhou‑a pensativamente, mordeu‑lhe com doçura a ponta do nariz. Amara-a com todas as suas forças, nessas duas sema‑nas e, ao fazê-lo, considerara-a transparente, uma placa de vidro. Conseguia entrever rapidamente a bondade que existia no âmago dela. Mas o vidro é frágil, teria de ser cuidadoso.

— Tens razão — respondeu ele, pensando, não, pensando no quão profundamente pertenciam um ao outro. Em como tinha a certeza dessa pertença.

Entre a pele dele e a pele dela existia um espaço mínimo, mal era suficiente para que o ar circulasse, para aquele mar de suor que agora lhes causava arrepios de frio. Mesmo assim, uma terceira pessoa, o casamento de ambos, tinha conseguido imiscuir-se.

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Subiram pelas rochas em direção à casa que tinham deixado iluminada, no crepúsculo.

Uma união, o casamento, composta de partes distintas. Lotto era vistoso e repleto de luz; Mathilde, tranquila, cautelosa. Era fácil crer que a melhor metade era a dele, a que dava o tom. Era verdade que tudo o que ele tinha vivido até ali o conduzira firmemente a Mathilde. Que se a sua vida não o tivesse preparado para o momento em que ela entrou nela, não teria havido eles.

Os chuviscos engrossaram, transformando-se em pingos. Per-cor reram a última extensão da praia a correr.

[Suspendam‑nos ali, na vossa mente: magros, jovens, saindo da escuridão para o calor, voando sobre a areia e a pedra frias. Voltaremos a eles. Por enquanto, é dele que não poderemos des‑viar a atenção. É ele quem se destaca.]

Lotto adorava a história. Dizia sempre que tinha nascido no centro calmo de um furacão.

[Desde o princípio, um sentido de oportunidade perverso.]A mãe dele era bonita, então, e o pai ainda estava vivo. Verão,

final da década de sessenta do século xx. Hamlin, Florida. A casa da plantação ainda era tão nova que as mobílias conservavam as etiquetas. As portadas não tinham sido aparafusadas e pro‑vocavam um estridor tremendo na primeira passagem furiosa da tempestade.

Agora, brevemente, o Sol. Gotas de chuva pingavam das laran jeiras ácidas. Durante a pausa, a fábrica de engarrafamento

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ribombava, do outro lado dos dois hectares de terreno de vegeta‑ção rasteira da família. À entrada, duas empregadas, o cozinheiro, um jardineiro e o capataz da fábrica encostavam as orelhas à porta de madeira. No interior da divisão, Antoinette estava mergulhada em lençóis brancos e o enorme Gawain segurava a cabeça quente da mulher. A tia de Lotto, Sallie, estava acocorada para segurar o bebé.

Lotto fez a sua entrada: com ar de duende maléfico e membros compridos, mãos e pés gigantes, pulmões que eram muito mais do que fortes. Gawain ergueu-o à luz, junto da janela. O vento soprava outra vez com mais força, os carvalhos vivos dirigiam a tempestade com os braços cobertos de musgo. Gawain chorava. Tinha atingido o topo.

— Gawain Júnior — disse.Mas, afinal, era Antoinette quem tinha tido todo o trabalho e o

ardor que sentira pelo marido já começava a ser metade desviado para o filho.

— Não — disse ela. Pensou num encontro com Gawain, no veludo castanho‑avermelhado do teatro e em Camelot a passar no ecrã. — Lancelot — disse. Os seus homens iriam ter nomes de cavaleiros. Não deixava de ter vontade própria.

Antes de a tempestade voltar a ganhar força, o médico che‑gou  para suturar Antoinette. Sallie untou a pele do bebé com azeite. Parecia-lhe que estava a segurar o seu próprio coração nas mãos.

— Lancelot — murmurou. — Que nome. De certeza que vais ser sovado. Mas não te preocupes. Vou assegurar-me de que sejas Lotto. — E uma vez que conseguia mover-se por trás do papel de parede como o rato a que se assemelhava, Lotto era o que lhe chamavam.

O bebé era exigente. O corpo de Antoinette estava arrasado, os seios destruídos. A amamentação não foi um sucesso. Mas assim que Lotto começou a sorrir e ela percebeu que ele era uma reprodução sua em miniatura, com as suas covinhas e encanto, perdoou-lhe. Era um alívio encontrar ali a sua própria beleza.

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A  família do marido não era propriamente encantadora, eram descendentes de todo o tipo de nativos da Florida, desde os nati‑vos Timucua, passando pelos espanhóis, os escoceses e os escravos que tinham conseguido fugir, aos Seminoles e aos oportunistas; a maioria deles tinha aspeto de bolacha de água e sal demasiado cozinhada. Sallie tinha um rosto pontiagudo, ossudo. Gawain era hirsuto, enorme e silencioso; contava-se uma piada, em Hamlin, acerca de ele ser apenas metade humano, descendente de um urso que atacara a mãe a caminho do alpendre. Historicamente, Antoinette apreciava os que tinham modos untuosos e usavam brilhantina no cabelo, os que caminhavam com passos delicados, os endinheirados extravagantes, mas ao fim de um ano de casa‑mento, deu por si tão inflamada com o marido que, à noite, quando ele chegava, seguia‑o para debaixo do chuveiro, completamente vestida, como se enfeitiçada.

Antoinette tinha sido criada numa casa de estilo saltbox, na costa de New Hampshire: com cinco irmãs mais novas, e correntes de ar tão tenebrosas no inverno que, antes de conseguir vestir a roupa, de manhã, pensava que morreria. Gavetas cheias de botões guardados e pilhas gastas. Batatas cozidas em seis refeições segui‑das. Fizera uma viagem completa até Smith, mas não pudera sair do comboio. Uma revista pousada num lugar ao lado do seu estava aberta numa página com fotografias da Florida, com árvores a gotejar fruta dourada, o Sol, o luxo. O calor. Mulheres com cauda de sereia ondulando num verde mosqueado. Estava predestinado. Foi até ao fim da linha, até o seu dinheiro acabar, seguiu à boleia até Weeki Wachee. Quando entrou no gabinete do diretor, ele admirou o cabelo ruivo dourado que lhe chegava à cintura, as curvas ziguezagueantes e murmurou, Sim.

O paradoxo de ser uma sereia: quando mais preguiçosa parece, mais arduamente trabalha a sereia. Antoinette sorria langorosa‑mente e deslumbrava. Manatins escovavam-lhe o cabelo; bluegills mordiscavam-lhe o cabelo. Mas a água estava ligeiramente fria, a vinte e três graus, a corrente era forte, a calibragem do ar nos pulmões era exata, de modo a regular a capacidade de flutuação ou de afundamento. O túnel pelo qual as sereias nadavam para

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chegarem ao teatro era escuro e longo e, por vezes, prendia‑lhes o cabelo, mantendo-as ali agarradas pelo couro cabeludo. Ela não conseguia ver o público, mas sentia o peso dos olhos deles a atra‑vessar o vidro. Esforçava-se mais pelos espetadores invisíveis; fazia-os acreditar. Mas, por vezes, enquanto sorria, pensava nas sereias como as conhecia: não naquela Pequena Sereia viçosa que fingia ser, mas naquela que desistiu da língua, do canto, da cauda e do seu lar para ser imortal. Naquela que, com o seu canto, fazia um navio repleto de homens embater contra as rochas e ficava a observar, feroz, enquanto eles se iam afundando, sem forças, nas profundezas.

É claro que ia aos bungalows, quando lho pediam. Conheceu atores de televisão e cómicos, jogadores de basebol e, uma vez, até aquele cantor que meneava a anca, durante os anos em que ele se transformara numa estrela de cinema. Trocaram promessas, mas nenhuma delas se concretizou. Não lhe iriam ser enviados quais‑quer aviões a jato. Não teria conversas a sós com realizadores. Não iria ser instalada numa casa em Beverly Hills. Entrou nos trinta. Trinta e dois. Trinta e cinco. Não podia ser uma jovem esperança do cinema, percebeu-o, ao apagar as velas. Tudo o que tinha diante de si era a água fria, o ballet lento.

Depois, Sallie entrou no palco do teatro subaquático. Tinha dezassete anos, estava queimada do sol. Tinha fugido de casa; queria uma vida! Algo mais do que o irmão silencioso, que pas‑sava dezoito horas por dia na sua fábrica de engarrafamento e que vinha a casa para dormir. Mas o diretor das sereias limitou-se a rir‑-se na cara dela. Tão escanzelada, parecia mais uma enguia do que uma fada marinha. Ela cruzou os braços e sentou-se no chão dele. Ele ofereceu‑lhe a concessão do bar de cachorros quentes para a fazer levantar. E então, ela entrou no anfiteatro escurecido e ficou estupefacta com o vidro cintilante, onde Antoinette se encontrava a meio da atuação, com uma parte de cima de um biquíni vermelho e uma cauda. Absorvia toda a luz.

A atenção fervorosa de Sallie dilatou‑se até ao tamanho da mulher que estava na janela e aí permaneceria, invariável, para sempre.

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Tornou-se indispensável. Costurava lantejoulas em caudas de fingir, aprendeu a utilizar um respirador para raspar as algas do lado do vidro que tinha a fonte. Um dia, um ano mais tarde, quando Antoinette estava sentada na sala dos canos, a desenrolar a cauda encharcada para libertar as pernas, Sallie aproximou-se. Entregou a Antoinette um folheto do novo parque da Disney, em Orlando.

— És a Cinderela — murmurou.Antoinette nunca se sentira tão compreendida em toda a sua

vida— Pois sou — respondeu ela.E foi. Foi metida dentro do vestido de cetim com aros por baixo,

a tiara de zircónio. Tinha um apartamento num pomar de laranjei‑ras, uma nova colega de quarto, Sallie. Antoinette estava deitada a apanhar sol, na varanda, com um biquíni preto e os lábios pintados de batom vermelho, quando Gawain subiu as escadas, transpor‑tando a cadeira de baloiço da família.

Ele preenchia a entrada: dois metros, tão hirsuto que a sua barba se prolongava pelo corte de cabelo, tão solitário que as pessoas o sentiam no seu rasto, quando passava. Con side-ravam‑no lento; contudo, na altura em que os pais morreram num acidente de automóvel, tinha ele vinte anos, deixando‑o com uma irmã de sete, foi o único a compreender o valor da terra da família. Utilizou as poupanças como entrada para construir uma fábrica para engarrafar a água límpida e fria da nascente da família. Revender património da Florida aos res‑petivos proprietários talvez fosse totalmente imoral, mas era o estilo americano de ganhar dinheiro. Acumulou riqueza e não gastou nada. Quando o seu anseio por uma mulher se tornou demasiado intenso, construiu a casa da plantação, com enormes colunas coríntias a toda a volta. Ouvira dizer que as mulheres adoravam colunas de grandes dimensões. Esperou. Não apare‑ceram mulheres nenhumas.

Depois, a irmã telefonou‑lhe a pedir‑lhe que levasse uma série de objetos de família para o novo apartamento, e ali estava ele, esquecendo-se de como respirar, quando vira Antoinette, cheia de

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curvas e pálida. Ela poderia ser perdoada por não compreender o que estava a ver. Pobre Gawain, o seu cabelo emaranhado, as suas roupas de trabalho sujas. Sorriu e voltou a deitar-se para ser novamente adorada pelo Sol.

Sallie olhou para a amiga, para o irmão; sentiu as peças a encaixar. Disse:

— Gawain, esta é a Antoinette. Antoinette, este é o meu irmão. Ele tem alguns milhões no banco.

Antoinette pôs-se de pé, flutuou pela divisão, colocou os óculos de sol na cabeça. Gawain estava suficientemente perto para ver as pupilas dos olhos dela engolir a íris, e depois, para se ver a si próprio, refletido no preto.

O casamento foi apressado. As sereias de Antoinette estavam sentadas, de caudas cintilantes, nas escadas da igreja, lançando mãos cheias de alimento para peixes aos recém-casados. Os ian‑ques azedos suportaram o calor. Sallie tinha esculpido uma decora‑ção para o bolo, em massapão, que representava o irmão a levantar uma Antoinette inerte só com um braço, o adágio, o grande final dos espetáculos das sereias. Uma semana depois, foi encomendada a mobília para a casa, foram procuradas empregadas e os buldó‑zeres começaram a escavar a terra para construir uma piscina. Com o conforto assegurado, Antoinette ficou sem imaginação para gastar o dinheiro; tudo o resto tinha qualidade de catálogo e era suficientemente bom para ela.

Antoinette assumiu que o conforto lhe era devido; não estava à espera do amor. Gawain surpreendeu-a, com a sua clareza e gentileza. Ela cuidou dele. Quando lhe cortou todo aquele cabelo, encontrou um rosto sensível, uma boca gentil. Com os óculos com armação de osso que lhe comprara, com fatos feitos à medida, ele adquiriu um ar distinto, se não bonito. Ele sorria-lhe do outro lado da divisão, transformado. Nesse momento, a luz tremeluzente que havia nela transformou-se em chama.

Dez meses mais tarde, chegou o furacão, o bebé. Era tomado como certo por aquele trio de adultos que Lotto era especial. De ouro.

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Gawain verteu nele todo o amor que reprimira por tanto tempo. Um bebé como um pedaço de carne moldado da esperança. Uma vida inteira a ser acusado de pateta, Gawain pegava no filho e sentia o peso da genialidade nos braços.

Sallie, por seu lado, acalmava a casa. Contratava amas e despe‑dia-as, por não serem ela. Mastigava banana e abacate, quando o bebé começou a ingerir alimentos, e colocava‑lhos na boca como se ele fosse um pintainho.

E assim que Antoinette recebeu o sorriso recíproco, canali‑zou as suas energias para Lotto. Punha Beethoven a tocar na aparelhagem áudio, o mais alto possível, gritando termos musi‑cais sobre os quais lera. Fazia cursos por correspondência sobre Mobiliário Americano Primitivo, Mitologia Grega, Linguística, e lia-lhe na íntegra os artigos que escrevia. Talvez aquela criança toda suja de ervilhas, sentada na sua cadeirinha, apenas captasse uma décima segunda parte das suas ideias, pensava, mas nin‑guém sabia quanto permanecia no cérebro das crianças. Se ele ia ser um grande homem, o que ia, disso ela tinha a certeza, ela iria iniciar a grandeza dele desde logo.

A extraordinária memória de Lotto revelou-se quando ele tinha dois anos, e Antoinette sentiu-se recompensada. [Um dom  sinistro; iria tornar tudo mais fácil para ele; mas pregui‑çoso.] Uma noite, Sallie leu-lhe um poema infantil antes de ele  adormecer, e de manhã, ele desceu até à sala do pequeno‑-almoço, pôs-se em cima de uma cadeira e recitou-o em voz alta. Gawain aplaudiu, espantado, e Sallie enxugou as lágrimas num cortinado.

— Bravo! — elogiou Antoinette friamente, e ergueu a chávena para que lhe servissem mais café, disfarçando o tremor da sua mão. Sallie lia-lhe poemas mais longos, à noite; o rapaz debitava‑-os na perfeição, de manhã. Crescia nele uma segurança, a cada novo êxito, a sensação de estar a subir uma escada invisível. Quando os parceiros do negócio das águas vinham à plantação, com as mulheres, para passar fins de semana prolongados, Lotto esgueirava‑se para o andar inferior e gatinhava no meio do escuro para debaixo da mesa de jantar dos convidados. Nesse

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esconderijo, via pés a transbordar das partes superiores dos mocas sins dos homens, as conchas húmidas de tom pastel das cuecas das mulheres. Levantava-se a gritar o poema «Se», de Rudyard Kipling, ao som de uma ovação ensurdecedora. O prazer dos aplausos daqueles estranhos era afetado pelo sorriso débil de Antoinette, o seu suave: «Vai para a cama, Lancelot», em lugar de um elogio. Ela já tinha reparado que, quando o elogiava, ele deixava de se esforçar arduamente. Os puritanos conhecem o valor da grafiticação diferida.

Lotto cresceu no meio do fedor húmido da Florida central, das  aves selvagens de pernas longas e da fruta colhida das árvores. Desde que começou a andar, as suas manhãs eram pas‑sadas com Antoinette, as tardes a vaguear pelo terreno arenoso, as nascentes frias a gorgolhar vindas do solo, pelos pântanos com os aligátores a observá-lo do meio dos juncos. Lotto era um adulto minúsculo, articulado, radiante. A mãe manteve-o em casa mais um ano, sem o inscrever na escola e, até ingressar na primeira classe, não conheceu outras crianças, uma vez que Antoinette era boa demais para a cidade pequena, as filhas dos capatazes eram muito dadas e travessas, e ela sabia muito bem onde isso levaria, não, muito obrigada. Havia pessoas na casa para  o servir em silêncio: se ele atirasse uma toalha ao chão, alguém a apanharia; se ele quisesse comida, às duas horas da manhã, esta aparecia, como se por magia. Todos se esforçavam para lhe agradar, e Lotto, não dispondo de outros modelos, tam‑bém agradava. Escovava o cabelo de Antoinette, deixava Sallie pegar‑lhe ao colo, mesmo quando já era quase do tamanho dela, passava uma tarde inteira sentado, em silêncio, ao lado de Gawain, no escritório, acalmado pela bondade tranquila do pai, pela forma como, de vez em quando, dava mostras do seu sen‑tido de humor, como uma aberta de sol por entre as nuvens, e os deixava a todos espantados. O pai ficava feliz só por se lembrar que Lotto existia.

Uma noite, quando ele tinha quatro anos, Antoinette tirou-o da cama. Na cozinha, colocou cacau em pó numa chávena, mas esqueceu-se de adicionar o líquido. Ele comeu o pó com um

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garfo, lambendo-o e inclinando a chávena. Ficaram ali senta‑dos, às es curas. Há um ano que Antoinette negligenciava os seus cursos por correspondência em favor de um pregador da televisão que parecia um busto de esferovite esculpido por uma criança e pintado com aguarelas. A mulher do pregador usava sempre delineador de olhos preto e o cabelo penteado em cate‑drais elaboradas que Antoinette copiava. Antoinette encomen‑dava gravações proselitistas e ouvia‑as, com uns auscultadores enormes e um leitor de cartuchos de áudio, à beira da piscina. Depois, passava cheques de montantes elevados que Sallie quei‑mava na pia.

— Querido — murmurou ela, nessa noite, para Lotto. — Estamos aqui para salvar a tua alma. Sabes o que vai acontecer aos não crentes, como o teu pai e a tua tia, quando o Dia do Juízo Final chegar? — não esperava uma resposta. Oh, ela tinha tentado mos‑trar a luz a Gawain e a Sallie. Estava desesperada por partilhar o Céu com eles, mas eles limitavam‑se a sorrir timidamente e a afastar-se. Ela e o filho observariam com pesar, dos seus lugares nas nuvens, enquanto os outros dois arderiam lá em baixo, no fogo eterno. Lotto era o que ela tinha de salvar. Acendeu um fósforo e começou a ler a Revelação, numa voz apressada e trémula. Quando o fósforo se apagou, acendeu outro e continuou a ler. Lotto ficava a ver a chama consumir os finos paus de madeira. À  medida que a chama se ia aproximando dos dedos da mãe, sentia o calor nos seus próprios dedos, como se fosse ele quem se estivesse a queimar. [Trevas, trombetas, criaturas marinhas, dragões, anjos, centauros, monstros com muitos olhos; todos eles habitariam os seus sonhos, por várias décadas.] Ficava a ver os belos lábios da mãe a moverem-se, os olhos perdidos nas órbitas. Acordava de manhã com a convicção de que estava a ser observado, julgado em permanência. A igreja, o dia inteiro. Fazia expressões inocentes quando lhe ocorriam pensamentos maus. Mesmo quando estava sozinho, representava.

Lotto teria sido inteligente, normal, se os seus anos tivessem continuado a ser assim. Mais um miúdo privilegiado com as mágoas de um miúdo comum.

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Mas chegou um dia em que Gawain fez a sua pausa do trabalho diária, às quinze e trinta, e subiu o longo relvado verde em direção a casa. A mulher estava a dormir junto da zona mais funda da piscina, de boca aberta e com as palmas das mãos voltadas para o Sol. Ele cobriu-a suavemente com um lençol, para impedir que ela apanhasse um escaldão e beijou-lhe o interior dos pulsos. Na cozinha, Sallie estava a retirar biscoitos do forno. Gawain deu uma volta pela casa, descascou uma nêspera, revirou a fruta amarga na boca e sentou‑se em cima da bomba, ao lado das vinagreiras, olhando para a estrada de terra, até que, por fim, lá estava o seu rapaz, um mosquito, uma mosca doméstica, um louva‑a‑deus, montado na sua bicicleta. Era o último dia do sétimo ano. O verão era um rio amplo e vagaroso diante de Lotto. Iria haver orgias de repetições de séries, dos originais que perdera por causa da escola: de Os Três Dukes, de Happy Days. Iria haver capturas de sapos nos lagos, à meia-noite. A alegria do rapaz enchia a estrada de luz. O facto de ter um filho comovia Gawain, mas a pessoa em si era um milagre, grande, divertido e bonito, melhor do que as pessoas que o haviam concebido.

Mas, de repente, o mundo contraiu-se em redor do seu filho. Espantoso. Parecia a Gawain que tudo estava impregnado de uma claridade tão cáustica que conseguia ver os próprios átomos.

Lotto desmontou da bicicleta quando viu o pai junto da bomba antiga, aparentemente a fazer uma sesta. Estranho. Gawain nunca dormia durante o dia. O boi permaneceu imóvel. Um pica-pau pro‑duzia ruído contra uma magnólia. Um anolis passou a correr por cima do pé do pai. Lotto deixou cair a bicicleta e correu, segurou o rosto do pai e disse o nome dele tão alto que levantou os olhos para ver a mãe a correr, aquela mulher que nunca corria, uma prontidão branca, e a gritar, como uma ave que mergulha.

O mundo revelou-se como era. Ameaçado lá do fundo com as trevas.

Uma vez, Lotto tinha visto um poço natural abrir-se de repente e engolir o velho alpendre da família. Por todo o lado: poços naturais.

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Corria por estradas arenosas entre as nogueiras e sentia, ao mesmo tempo, o pavor de que o chão se abrisse debaixo dos seus pés e que ele fosse caindo por ali abaixo em direção às trevas e de que isso não acontecesse. Os prazeres antigos tinham sido desti‑tuídos de cores. O aligátor de quase cinco metros, cujo sustento o havia feito roubar galinhas inteiras do congelador, era agora apenas um lagarto. A fábrica de engarrafamento apenas mais uma grande máquina.

A cidade viu a jovem viúva vomitar sobre as azáleas, com o filho bem-parecido a dar-lhe palmadinhas nas costas. Os mesmos ossos das maçãs do rosto, o mesmo cabelo ruivo-dourado. A beleza faz o sofrimento destacar-se, faz do coração o seu alvo. Hamlin chorou pela viúva e pelo filho, não pelo maciço Gawain, o filho da terra.

Mas não era apenas a dor que a fazia vomitar. Antoinette estava novamente grávida, tendo-lhe sido prescrito repouso absoluto. Durante meses, a cidade assistiu à chegada de pretendentes, nos seus carros elegantes, de fatos escuros, transportando pastas, e especulou sobre quem iria ela escolher. Quem não se quereria casar com uma viúva tão rica e tão bonita?

Lotto estava a afundar-se. Tentou desistir da escola, mas os professores estavam habituados a considerá‑lo excelente e não o permitiram. Tentou fazer companhia à mãe a ouvir os programas religiosos dela, segurando‑lhe a mão inchada, mas Deus azedara nele. Reteve apenas as noções básicas: as histórias, a rigidez moral, a mania da pureza.

Antoinette beijava-lhe a palma da mão e deixava-o ir-se embora, plácida como um manatim na sua cama. As emoções dela tinham‑-se tornado subterrâneas. Observava tudo de uma distância tre‑menda. Começou a ficar roliça, cada vez mais gordinha. Por fim, como uma fruta enorme, dividiu‑se em duas partes: a Bebé Rachel, a pevide, caiu.

Quando Rachel acordava durante a noite, Lotto era o primeiro a chegar ao pé dela, a instalar‑se na cadeira e a dar‑lhe o biberão de leite, ao mesmo tempo que a embalava. Ela fê-lo sobreviver a esse primeiro ano, a sua irmã, que tinha fome, a quem ele podia alimentar.

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