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FICHA TÉCNICA
Título: Pais Contra FilhosAutor: Nuno Magalhães GuedesCopyright texto: © by Nuno Magalhães Guedes e esta edição © by Editorial Presença, Lisboa, 2015Ilustrações: Pedro Potier Composição, impressão e acabamento: Multitipo - Artes Gráficas, Lda.Depósito legal nº 396 290/156.ª edição, Lisboa, agosto, 2015
Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730 ‑132 [email protected]
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Capítulo 1
— Jota, o teu jogo é no sábado, como de costume, não é?
Toda a gente, família, amigos, professores, o tra‑tava por JP. O pai também, mas de vez em quando limitava ‑se à primeira letra.
— Sim, porquê?— É que então talvez te peça as balizas empresta‑
das para domingo. Pode ser?— Claro! — respondeu logo o JP, até bastante
satisfeito com a ideia de o seu material de futebol poder ser útil para os jogos do pai com os amigos.
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Sobretudo as balizas, de que o JP tanto se orgulhava! Eram feitas de tubos plásticos, desmontáveis e fáceis de transportar, e tinham sido engenhosamente cons‑truídas pelo pessoal do Megamax Futebol Clube.
Mas emendou logo a resposta, aproveitando para se vingar de uma das exigências que o pai fazia para permitir que as balizas ficassem arrumadas no chão da garagem:
— Isto é, empresto se deixarem tudo bem arruma‑do e encostado à parede!...
— Brincalhão...— Sim, sim — continuou o JP, repetindo uma das
frases habituais do pai —, porque eu não que ro pro‑blemas com o vizinho de baixo, o senhor Sar mento!
— Não era má ideia se acabasses de comer a sopa — interrompeu a mãe.
— Está ótima! — elogiou o marido. — É de quê?— Foi uma experiência que resolvi fazer: alho‑
‑francês, ervilhas e umas ervinhas secretas.— E não tem um bocadinho de presunto?— Tem...— Bem me parecia!O JP é que não queria que a conversa se desvias‑
se de um assunto tão importante como o futebol para temas comezinhos, fossem eles culinária ou outra coisa qualquer. Até porque havia sempre o perigo de a Carolina ou de o irmão mais novo, o Pulga, se intro meterem com uma daquelas pergun‑tas que davam imenso trabalho aos pais a explicar.
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— E o que é que há assim de tão especial no domingo? — tornou o JP, depois da última colher de sopa. — Não é um dos vossos jogos normais?
O JP não tinha em conta muito elevada os jogos do pai com os amigos, apesar de os adultos não serem da mesma opinião. A forma física de vários dos participantes não ajudava e, muitas vezes, as partidas resu miam ‑se a pre textos para boas patuscadas. Mas sempre era uma maneira de fazer exercício e alguns não se portavam nada mal em campo. O pai era um desses, bem acompanhado pelo irmão mais novo, o tio Fernando Luís, que, pela diferença de idades, também alinhava no Megamax. Já o outro irmão, o tio Pedro, pai dos pri mos ‑craques Miguel e Manel, era bastante mais tosco.
Mas o pai estava ocupado a tentar pôr ordem no Pulga e não respondeu:
— Porta ‑te bem e senta ‑te direito, António!— Esse jogo deve ser muito importante para pre‑
cisarem das balizas... — insistia o JP.— Não é nada de especial — esclareceu o pai.
— Foi um colega do trabalho que nos desafiou para um jogo contra a equipa dele. E com as balizas sem‑pre dá melhor aspeto. Pelo menos parece um pouco mais profissional.
O JP ficou todo inchado com esta última observa‑ção, mas não o deixou transparecer:
— O tio Fernando Luís também joga?
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— Penso que sim, se vocês não rebentarem com ele na véspera... Ele não vai jogar convosco no sábado?
— Isso nem se pergunta. É um dos melhores do Megamax.
— O tio Fernando é que tem sorte — queixou ‑se o António. — Joga no clube do JP e na equipa do pai. E a mim ninguém me deixa ir para o parque jogar...
— Mas quem é que tu pensas que és? — picou ‑o a Carolina. — Uma pulga da tua idade ainda devia andar de fraldas!
— Pulga!? Mas pulga, o quê? Quem é que aqui é pulga? — indignava ‑se sempre o irmão mais novo.
A mãe, habituada a que aquelas cenas dessem para o torto, não deixou que a discussão se desenvolvesse:
— Tudo sossegado! E não abrem a boca até o prato ficar vazio e o levarem para a cozinha!
O JP assumiu calmamente que aquela instrução não lhe era aplicável e voltou ao seu assunto preferido:
— E, ó pai, a equipa desse colega do escritório vale alguma coisa?
— Se queres que te diga, não faço a mínima ideia. Nunca os vi jogar. Mas também não estou muito preocupado com isso...
— Grande lata! — interrompeu a Carolina. — O JP a falar!
— Eu não tive nada a ver com a vossa discussão. E, além disso, já estou no fim.
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Sentindo ‑se autorizado a prosseguir pelo silêncio da mãe, que interpretou como assentimento à sua tese, o JP continuou:
— Mas podem levar uma grande tareia...— Não há perigo — fanfarronou o pai. — Temos
o melhor jogador do mundo!— E quem é esse craque secreto? — quis o JP
saber, divertido, já à espera da resposta.— É evidente que sou eu! — concluiu o pai.— Buuuu! — fez a Carolina, que entretanto se
tinha despachado a terminar o seu prato.— Grande gabarola, pai! — respondeu o JP.— Gabarola, eu?! Se não me tivesse casado com
a tua mãe, estava neste momento a jogar em Itália com um contrato milionário...
— Pois, pois, na liga dos veteranos!...— Pergunta ao avô Fernando, se não acreditas!
E só por causa disso, para o ano vou mesmo jogar para Itália!
— Ó pai, não vais nada! — disse o Pulga, já a começar a ficar preocupado.
— Vou, vou!— Tanto disparate! — suspirou a mãe, levantando‑
‑se para ir buscar a sobremesa.O JP estava mesmo interessado no embate que o
pai ia ter pela frente e voltou à carga:— E essa equipa do teu colega do escritório está
muito habituada a jogar junta?
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— Deve ser mais ou menos como a nossa. Tal vez seja um pouco melhor porque tem muita gente do ginásio onde ele anda. E as pessoas que andam nos giná sios normalmente apresentam uma boa forma física. E isso já é meio caminho andado...
— Ah! — aproveitou a mãe. — Afinal reconhe‑ces a utilidade de fazer ginástica! E ando eu há tanto tempo a tentar que tu vás para o meu ginásio... Só te fazia bem!
— O pior é a falta de tempo — desculpou ‑se o pai dos três irmãos. — A que horas é que querias que eu fosse fazer ginástica?
— Ora, ao fim da tarde, durante a hora do almoço, sei lá!...
— Ao almoço é impossível. E ao fim da tarde, quando é que chegaria a casa para jantar? Já saio tão tarde do escritório...
— O pai é como eu — observou o JP —, não gosta de tempos mortos1.
— Mas, pai — reforçou a Carolina —, a ginástica fazia ‑te muito bem. A minha professora disse na escola para todos dizermos isso aos nossos pais e às nossas mães.
— Só que à mãe já não é preciso dizer — concluiu o Pulga.
1 «Não quero tempos mortos!» é a frase preferida do JP e a divisa do Megamax Futebol Clube.
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— Só me faltava agora uma professora moder‑ninha a enviar recados — desabafou o pai.
E foi o JP quem veio em sua defesa:— O pai já faz muito exercício no futebol aos
domingos. Vocês sabem lá quantos quilómetros se percorrem num jogo!
— Tens toda a razão! — aplaudiu o pai. — O fute‑bol vale mais do que todas as ginásticas juntas.
— Ainda se vocês corressem alguma coisa que se visse... — contestou a mãe. — E as poucas gorduras que abatem recuperam ‑nas logo a seguir com o lan‑chinho e as cervejas.
— O que é que tu querias? As grandes vitórias têm de ser celebradas condignamente!
E o pai continuou, a brincar:— Tem de se saber ganhar com dignidade! E se
nós não festejássemos, o adversário até se podia sentir ofendido...
— Ó pai, sabes o que é que era giro? — per‑guntou o JP.
E sem esperar pela resposta, continuou:— Era nós jogarmos contra a vossa equipa!— Nós, quem?— Nós, o Megamax, claro!— O quê!? Um jogo de pais contra filhos?— Sim, não era giro?— Não há hipótese — declarou o pai, pondo um
ar subitamente sério.
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O desapontamento lia ‑se na cara do JP:— Mas porquê? Qual é o problema?— O problema é que vocês levavam a cabazada
do século e nunca mais se recompunham!— Disparate! — comentou a mãe com ar reprovador.— E nenhum pai quer ter a responsabilidade de
trau matizar um filho para o resto da vida... — pros‑seguiu o pai, de um modo teatral.
— Disparate! — repetiu a mãe, sem impedir que um sorriso lhe escapasse.
— Ó mãe, deixa lá — contra ‑atacou o JP —, não há perigo de eu ficar complexado, porque quem de certeza apanha dez a zero são os veteranos!...
— Veteranos? Mas quais veteranos? — fingiu ‑se o pai indignado. — Mais respeitinho, rapaz! Mais respeitinho pelos meus cabelos brancos!
— Mas o pai não tem cabelo branco! — sur preen‑deu ‑se o António.
— Pois não, pois não, Pulga! É uma maneira de dizer...
— Pulga? Mas quem é que aqui é pulga?— Ai!... Está tudo doido! — deitou a mãe as mãos
à cabeça.
Muitas vezes, depois das aulas, o JP e o primo Manel escapavam ‑se para o enorme relvado que havia perto de casa do primeiro e que servia de palco aos gran des jogos de sábado à tarde do Megamax Futebol Clube.
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Ali, tranquilamente, num parque quase sempre deserto nos dias de semana, davam uns toques, trei‑nando remates. Como vinham da escola e eram só os dois, não justificava ir a casa buscar as balizas do clube. As árvores resolviam bem o problema.
Ao contrário do que era habitual, quem estava entre os postes era o JP, preparando ‑se o Manel para soltar uma bomba com o seu pé direito.
O JP avisou:— Se for para muito longe, vais tu buscá ‑la!— Isso é que era bom! Há pouco, quando estava
à baliza, fui sempre eu quem a foi procurar, mesmo aos canteiros e às moitas...
— Está bem, está bem, mas dispara lá isso!— Tens preferência? Lado esquerdo, lado direito,
rasteiro, chapéu, em jeito, em força?... É só dize‑res... Comigo o cliente tem sempre razão!
— É como quiseres, que eu defendo ‑as todas.— Pois, pois — ripostou o Manel, ajeitando a
bola. — Qualquer dia estás apto a tirar a camisola número um ao super ‑Pedro2.
— Isso é no dia em que eu entender — respon‑deu, no mesmo tom, o JP.
Toda a gente sabia que ele detestava jogar a guarda ‑redes. Aliás, era uma verdadeira nulidade nessa posição. Um dos seus pontos fracos era ter
2 O Pedro é o guarda ‑redes principal do Megamax.
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medo de apanhar com uma bolada na cara, e, por isso, também procurava sempre escapar ‑se a fazer parte da barreira nos livres. Já o Manel defendia razoa velmente e não se importava de jogar à baliza, se bem que fosse muito mais forte no ataque. O Mega max não tinha titulares garantidos, mas com toda a certeza, tal como o JP seria indiscutível no meio ‑campo, um dos lugares da frente de um onze ideal seria seu. No entanto, a sua disponibilidade para atuar entre os postes já por mais de uma vez tinha sido muito apreciada. Quando nos jogos de sábado faltava um dos guarda ‑redes habituais, ou o Pedro ou o Zé, era o Manel quem costumava salvar a situação, para evitar o estafado esquema da rotação na baliza entre toda a equipa a cada golo sofrido.
Como o Manel ainda não estivesse satisfeito com a posição da bola, que tinha de ser rigorosa ao milí‑metro para poder enfiar a pastilha do século, e a con tinuasse a ajeitar, o JP impacientava ‑se:
— Então, isso é para hoje ou para amanhã?— Eh pá, tem calma! Isto não pode ser de qual‑
quer maneira. Trata ‑se de um grande momento na história do futebol. Está zero a zero na final da Liga dos Campeões e falta um minuto para acabar o jogo. Não, trinta segundos. E o árbitro já deu seis minutos de compensação. E tu fizeste penálti sobre mim quando eu ia a marcar o golo decisivo...
— Mas chuta!!!
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— Ouve, na tua equipa o guarda ‑redes inicial tinha sido expulso, o suplente tinha ‑se magoado logo a seguir e as três substituições já se tinham esgotado. Só por isso é que tu estavas na baliza.
— Cala ‑te, que já não te posso ouvir!— Bom, então aqui vai — informou o Manel,
tomando bastante balanço, e tudo indicando que a posição do esférico, apoiado num precioso tufo de erva, estivesse por fim cem por cento adequada.
Com tantos preparativos, o resultado foi o que se esperava. O JP, perante a perspetiva do estoiro, encolheu ‑se todo, virou ‑se de lado, e protegeu a cabeça com as duas mãos no cabelo e os cotovelos à frente da cara. Ainda teve tempo de gritar:
— Ai, ai, mãezinha!A verdade é que o Manel não se comoveu e saiu‑
‑lhe um tiro excecional. Parte da frente do peito do pé bem assente na bola, a meio caminho entre o biqueiro e o remate em jeito, ganhando uma exce‑lente velocidade sem perder direção, tudo perfeito, mesmo na altura, não subindo mais do que uns vinte a trinta centímetros.
O JP até ficou muito satisfeito por a bola não lhe ter acertado e só perguntou, meio a medo:
— Já posso olhar?— Grande golo! — comentou o Manel com uma
sobriedade algo inesperada para quem acabava de dar a taça da Liga dos Campeões à sua equipa.
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Fingindo não perceber que tinha de ir a quilóme‑tros de distância buscar a bola, que ainda por cima era sua, o JP, sem sair da linha de golo, perguntou ao primo:
— Lembras ‑te da nossa conversa sobre a equipa dos nossos pais?
— O quê? Aquilo da equipa dos veteranos e dos farrapos humanos?3 — riu ‑se o Manel.
— Exatamente.— O que é que tem?— O que tem é que eles vão ter um jogo mais ou
menos organizado, contra a equipa de um tipo lá do escritório, e pediram ‑nos as balizas emprestadas...
— Ótimo! Não há problema nenhum. Até pode ser uma ideia gira e se não tiver muito que estudar, talvez vá ver o jogo.
— Sim, sim. E eu até aproveitei para falar ao meu pai na hipótese de jogarmos contra a equipa deles e dos cotas.
— E o que é que ele disse? — interessou ‑se o Manel.
— Deu ‑me tampa, mas lá no fundo não me pare‑ceu que pusesse a ideia totalmente de lado.
— Era baril darmos uma esfrega aos pais. Temos de pensar nisso a sério.
3 Referência a uma conversa entre os dois primos que ia dando para o torto. Ver o livro Uma Bolada no Vidro.
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E apercebendo ‑se, de repente, de que o JP não se mexia, lembrou ‑lhe:
— De que é que estás à espera para ir buscar a bola?
— Era a ver se pegava e ias tu...— Pois, pois. Mais cedo tirava um cinco a tudo!— Ai, não fales em estudos que me faz lembrar
os trabalhos que ainda tenho para fazer hoje!E enquanto o JP se encaminhava lá para o fundo à
procura da bola, a pensar se seria mesmo assim tão fácil ganhar à equipa do pai, como o Manel parecia acreditar, o primo repetia, convicto, a meia ‑voz:
— Grande golo! Grande golo!
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