Fichamento Brasil, África e Atlântico

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FACULDADE SANTA FÉ DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA BRASIL IMPÉRIO – RENATA CARVALHO JÉSSICA MARQUES LEITE – 4º PERÍODO Costa e Silva, Alberto da. O Brasil, a África e o Atlântico no século XIX. RJ: Nova Fronteira; UFRJ, 2003, p. 21 a 40. “O início do século XIX caracteriza-se por um aguçamento dos nacionalismos. [...] Na América, as colônias espanholas e portuguesa independentizam-se; na África, os grandes agrupamentos étnicos se consolidam.” (p. 21) “Na realidade, a África só abria para o exterior um pouco da casca. Assim fora desde sempre. [...] Até meados do século XIX, o europeu só avançava alguns passos para fora de seus muros e paliçadas em algumas poucas áreas e, na maior parte dos casos, com o consentimento e o apoio dos africanos, ou sob sua vigilância.” (p. 21) “Isso não impediu que se fossem estabelecendo, desde o século XVII, mas sobretudo a partir do XVIII, fortes vínculos entre certos pontos do litoral africano e as costas atlânticas das Américas, como conseqüência do tráfico de escravos. [...]

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FACULDADE SANTA FDEPARTAMENTO DE HISTRIA E GEOGRAFIABRASIL IMPRIO RENATA CARVALHOJSSICA MARQUES LEITE 4 PERODO

Costa e Silva, Alberto da. O Brasil, a frica e o Atlntico no sculo XIX. RJ: Nova Fronteira; UFRJ, 2003, p. 21 a 40.

O incio do sculo XIX caracteriza-se por um aguamento dos nacionalismos. [...] Na Amrica, as colnias espanholas e portuguesa independentizam-se; na frica, os grandes agrupamentos tnicos se consolidam. (p. 21)

Na realidade, a frica s abria para o exterior um pouco da casca. Assim fora desde sempre. [...] At meados do sculo XIX, o europeu s avanava alguns passos para fora de seus muros e paliadas em algumas poucas reas e, na maior parte dos casos, com o consentimento e o apoio dos africanos, ou sob sua vigilncia. (p. 21)

Isso no impediu que se fossem estabelecendo, desde o sculo XVII, mas sobretudo a partir do XVIII, fortes vnculos entre certos pontos do litoral africano e as costas atlnticas das Amricas, como conseqncia do trfico de escravos. [...] muitos dos escravos trazidos para o Brasil e que foram trabalhar em Minas ou Gois vieram de regies do interior do continente africano, das savanas e das bordas dos desertos. [...] (p. 21)

[...] A independncia do Brasil, por exemplo, no ficou despercebida na frica e o prova terem sido dois africanos os primeiros reis a reconhec-la, o Ob semwede, do Benim, e o Ologum Ajan, de Eko, Onim ou Lagos. Em Angola, os acontecimentos de 1822 tiveram enorme impacto, chegando a gerar uma corrente favorvel separao de Portugal e unio ao Brasil. (p. 22)

No territrio brasileiro, reis e nobres africanos, vendidos por seus desafetos como escravos, buscaram, algumas vezes, reconstruir as estruturas polticas e religiosas das terras de onde haviam partido. [...] Outros sonharam voltar frica e reconquistar as posies perdidas, no se excluindo que hajam conspirado para isso. No faltaria quem lhes levasse as mensagens a adeptos e descontentes na terra natal, pois a tripulao dos navios negreiros era em grande parte africana. [...] (p. 22)

De colnias havia somente o Cabo da Boa Esperana e as possesses portuguesas. No tinham elas, porm, as dimenses territoriais com que figurariam depois nos mapas. [...] Os numerosos estabelecimentos europeus encravados em outros pontos da Costa pagavam aluguel ou direitos de comrcio aos reis, rgulos ou chefes locais. [...] Havia ainda o caso especial de Freetown, na Serra Leoa, onde os ingleses colocaram, como colonos, no reino temne de Koya, ex-escravos que combateram ao lado deles na guerra pela Independncia dos Estados Unidos. [...] (p. 23)

A presena europia na frica era, portanto, muito limitada. Discreta. No se comparava do Islame, que desde o sculo IX, atravessara o deserto e se fora lentamente derramando pelo Sael e a savana [...] No incio do sculo XIX, das savanas no Senegal ao planalto do Adamaua, as instituies polticas aspiravam a ajustar-se ao modelo muulmano, e as elites liam o rabe e estudavam o Alcoro, ainda quando as massas continuassem fiis s crenas tradicionais. Em muitos lugares, muito antes do primeiro pregador muulmano, chegavam do Egito, da Lbia, do Magrebe ou do Sael islamizado o turbante, a sela com estribo, certos modos de vida e at mesmo um volume do Alcoro, com o prestgio de objeto mgico. (p.23)

Tambm a abertura dos litorais atlnticos teria efeitos muito mais profundos sobre a frica [...]. Pela difuso das plantas americanas, [...]. Pela introduo das armas de fogo. Pelo surgimento de nova e crescente demanda de escravos, [...]. E pela atlantizao de boa parte do comercio distancia, com perda para as rotas caravaneiras do Sael e do deserto e para as estruturas polticas que delas dependiam. (p. 23-24)

Tal qual sucedera, vrios sculos antes, com a chegada do cavalo como animal de guerra s estepes ressequidas e s savanas da frica Ocidental, as armas de fogo alteraram as tticas de guerra e as relaes de fora interafricanas. Cresceu o poder centralizador dos reis, que monopolizavam o comrcio externo e, portanto, o acesso aos mosquetes e plvora. Novos estados surgiram de chefias que controlavam os caminhos para o mar e outros se consolidaram e expandiram, muitas vezes sobre a base de um intenso sentimento nacional. (p. 24)

Na frica, sempre houve naes, como as definiu Renan: povos unidos pelo sentimento de origem, e lngua, histria, crenas, desejo de viver em comum e igual vontade de destino. [...] Mas o preconceito teima em chamar tribos s naes africanas, sem ter em conta a realidade de que no podem ser tribos grupos humanos de mais de 60 milhes de pessoas, como os haus, [...]. Assim no Danxom. [...]: dela e de sua representao como estado no se excluam ancestrais e vindouros. (p. 24-25)

O sentimento nacionalista expande-se e se adensa na frica do sculo XIX. Torna-se mais intenso em estados muito antigos, que podiam ter vrios sculos de existncia, [...]. Afirma-se em novos reinos, que tomaram forma e fora sob o estmulo do trfico de escravos. Como o Achanti, [...]. Como Danxom, negreiro quase que desde o seu incio. Como Jalofo, Fante e Warri, [...]. (p. 25)

Do nacionalismo surge uma nova idia de estado. [...] O modelo do Mali no qual a nao mandinga se impunha sobre as demais, sem exigir dessas que abandonassem lngua, religio, costumes e os prprios reis, que geralmente continuavam no mando, ainda que vassalos do mansa passa a sofrer a competio de um outro em que, tal qual sucedera na Frana e viria a acontecer na Alemanha e na Itlia, se tentaria aglutinar os povos dominados ao dominante, dissolv-los e acultur-los, para uniformizar o estado. [...] Mas no apenas novos estados, como esses, aspiravam uniformidade. Reinos antigos tambm ambicionaram tornar-se teocracias. [...] (p.25)

As guerras santas na frica derivaram do renascimento, na segunda metade do sculo XVIII, de um Islame fervoroso e militante, de que do exemplo os vaabitas, na Arbia, e o reflorir, no Egito e no Magrebe, do sufismo e da ordem mstica e militar da Cadirija. [...] (p. 25)

A jihad mais famosa, e a que mais interessa aos brasileiros, foi a de Osm den Fodio, um xeque, poeta, telogo e pensador fulo (fulani ou peul), sufista e cadirija. Nasceu ele no reino de Gobir, no norte da atual Nigria, [...]. Para Osm e seus amigos fulos, era escandaloso que os fiis fossem governados por mpios e que se reduzissem islamitas escravido. Instou com o soberano de Gobir para que no mais fizesse concesses ao sincretismo prevalecente na Haualndia, para que fizesse calar os tambores, transformando-os em manjedouras, e para que abandonasse os ritos de fertilidade da terra, que conflitavam com o Islame. Diante da recusa deste, [...] Osm den Fodio cumpriu a sua hgira em Gudu, onde se fez imame de um pequeno estado teocrtico. Em 1804, [...] proclamou a guerra santa contra o sarqui de Gobir e os outros reis haus. Seus textos de pregao e propaganda, em rabe, fulfulde e hau, ganharam rapidamente as cidades e atraram para os seus exrcitos os letrados e mercadores urbanos, [...]. Em 1812, vitria aps vitria, Osm den Fodio tornou-se califa de um grande imprio, o de Socot, controlado por uma aristocracia fula, que rapidamente se hauaizou. [...] Os fulas haviam montado a cavalo [...], e, a cavalo, foram vencidos em Oshogbo, em 1840, pelos exrcitos de Ibadan. A revoluo islmica de Osm den Fodio iria, porm, iludir a floresta, passar por entre o lorubo dos orixs e prolongar- se no Brasil, com as chamadas guerras dos males, na Bahia. (p. 26)

[...] Os poucos fulas e os muitos haus e iorubas recm convertidos ao Islame, que as guerras fizeram prisioneiros e embarcaram como escravos para o Brasil, aqui prosseguiram a catequese e o sonho do califado. A essas insurreies, [...] o povo baiano deu o nome justo, porque percebeu o seu carter poltico-religioso. Chamou-lhes guerras dos mals, isto , dos islamitas, pois imal quer dizer moslim em iorubano. (p. 27)

Os prprios documentos por elas deixados, as rezas, as transcries de suras e os amuletos apreendidos pela polcia, estavam escritos em rabe. Na maioria dos casos, em rabe correto e bem-ortografado, [...]. (p. 27)

Consta que as ordens para a rebelio baiana de 1835 foram dadas por um imame, limamo ou limanu, de nome Mala Abubacar, que teria sido enviado de volta frica (8). [...] (p. 27)

Os escravos e libertos que promoveram as chamadas guerras dos mals encontravam-se, na Bahia, [...] sob o jugo de infiis. Os que eram livres tinham o governo do Imprio do Brasil por ilegtimo, uma vez que no se fundava na crena e no direito islmicos; os cativos no podiam aceitar de forma alguma sua condio, em tudo contrria lei divina, pois, para o Islame, s o incru pode ser escravizado (10). (p. 28)

Antes da chegada dos libertos brasileiros e dos sors (ex-escravos redimidos pelos ingleses e postos como colonos na Serra Leoa), j havia grupos de islamitas em Lagos, Badagri e outros pontos do sul do lorubo. [...] A chegada de muulmanos da Bahia, do Recife, de Fourah Bay e de Foulah Town aumentou-lhes o nmero e o nmero dos que eram, embora imigrantes, muulmanos iorubas e emprestou a Islame at ento menosprezado o lustro de dois grupos, os sars e os aguds (ou brasileiros), que se faziam cada vez mais prsperos, porque tinham intimidade com ofcios e profisses, adquiridas no Brasil ou na Serra Leoa, crescentemente necessrias s cidades litorneas, onde a influncia europia se ia impondo (11). Eles praticavam abertamente a sua crena e construram as .mais antigas mesquitas de Lagos. [...] (p. 28)

Se o primeiro imame-em-chefe de Lagos, Idris Salu Gana, foi um hau, possivelmente vindo do norte, e se os muulmanos africanos viam com certa desconfiana os que se tinham convertido do outro lado do Atlntico (12), cedo os brasileiros passaram a figurar entre os principais dignitrios islamitas. E continuam, at hoje, a contar entre eles. [...] (p. 28)

Os muulmanos no predominaram, contudo, entre os brasileiros e os abrasileirados que se estabeleceram na costa atlntica da frica. A maioria era de cristos ou cristianizados, estes ltimos a praticarem a um s tempo, ou paralelamente, a religio dos orixs e aquela a que se converteram na outra margem do oceano. Brancos e mulatos, uns poucos, e vrios deles negros, nascidos na frica ou no Brasil, tornaram-se, do mesmo modo que os imals traficantes de escravos. Alguns deles fizeram- se famosos, como Francisco Flix de Sousa [...]. O comrcio dividiu certas famlias: [...] a trocarem escravos, azeite de dend, noz de cola, sabo e pano da Costa por tabaco, cachaa, ouro e tudo o que se usava na rua, na sala, no quarto e na cozinha. Negociantes em grande de gente e coisas, [...] fundaram cidades [...] onde construram, para si mesmos ou para outros grupos, igrejas, mesquitas, [...]. Tudo num estilo arquitetnico derivado das formas barrocas, rococs e neoclssicas aprendidas no Brasil. [...] (p. 29-30)

Esse um enredo. O outro o da luta contra o trfico humano, que serviu de roupagem limpa poltica britnica de controle do Atlntico e das rotas para a ndia. A histria tem suas ironias. O movimento generoso e humanitrio para destruir a ignomnia do comrcio de negros confundiu-se com o que iria transformar, num espao curto de tempo, quase toda a frica em colnia europia. Sob pretexto do combate ao mercadejo de escravos, ingleses e franceses ocuparam cidades e portos africanos, humilharam e depuseram chefes, sobas e reis, depois de debilit-los, vedando-lhes a compra de armas e plvora, impedindo a cobrana de taxas de passagem pelas terras sob sua soberania e destruindo o monoplio comercial em que muitos deles fundavam o seu poder. (p. 30)

A partida para Cuba, em 1865, do ltimo barco de escravos no terminaria, no entanto, com o trfico de braos humanos. Este continuar, at bem depois da Primeira Guerra Mundial, numa direo que j percorria muitos sculos antes do descobrimento da Amrica: atravs do Saara, do Indico e do mar Vermelho, para o mundo islmico. Mais importante ainda: crescem a escravaria na frica e o comrcio inter-regional de cativos. A fim de atender demanda europeia [...], expande-se na frica uma agricultura de exportao [...] e desenvolvem-se grandes plantagens do tipo americano, [...]. escravo quem percorre a p imensas distncias, a carregar cabea [...] produtos que os europeus desejam em quantidades crescentes. [...] (p. 30-31)

[...] As grandes rotas mercantis africanas desviam-se das Amricas. [...] A Europa apossa-se praticamente das trocas com a frica: os que haviam, em nome da liberdade de comrcio, combatido o monoplio dos reis africanos fazem-se, vencida a luta, monopolistas. (p. 31)

Alterado o rumo do comrcio, trocam-se naturalmente os seus parceiros africanos e se modificam as relaes de poder. Alguns estados regridem: [...]. Outros se transformam: [...]. H aqueles que se tornam mais fortes, [...]. Outros, que opuseram maior resistncia aos europeus, acabaro por ser destrudos ou politicamente castrados. (p. 31)

H uma data que assinala, da perspectiva brasileira, o incio da colonizao da frica pelas grandes potncias europias: 1851. E o ano em que os ingleses, para pr fim ao comrcio negreiro, bloqueiam a cidade de Lagos. O primeiro tiro de canho dado contra eles parte de um grupo sob a chefia de um brasileiro, um certo Lima (13). Ele, como seus vizinhos da Bamgbose Street, da Kakawa Street, da Campos Square, da Tokumboh, da Martins e da Igbosere Streets, compreenderam de imediato que a chegada dos britnicos significava o fim das trocas com o Brasil e, conseqentemente, do predomnio comercial que tinham tido na cidade. (p. 31)

A partir de 1851, vai acentuar-se o que o Reino Unido pretendia ser: um controle informal da frica. Londres desejava assumir uma posio de primazia mercantil no continente sem gastar em combate vidas humanas, sem despender dinheiro alm da linha das praias, sem assumir responsabilidades coloniais. O seu poder naval garantiria por si s a preponderncia econmica nos litorais, nos rios e nos portos. (p. 31)

Em 1870, eram imensos os espaos vazios no conhecimento que a Europa tinha da frica. Por sua vez, a maior parte das comunidades africanas ignorava existir o homem branco, ainda que utilizasse produtos por ele manufaturados. A presena europia no continente, at a vspera de 1900, s se fazia sentir a uma escassa minoria [...]. Os britnicos, com os quais competiam outros europeus, assumiam rapidamente o domnio do Atlntico. Nele j haviam ocupado Santa Helena, Ano Bom, as Malvinas, Fernando P e outras ilhas, entre as quais a nossa de Trindade, da qual s se retiram graas interveno da coroa portuguesa. Se no se apossaram de Cabo Verde, foi porque se iludiram com um projeto de fazer de Portugal um preposto do Reino Unido na frica. (p. 32)

Por volta de 1870, s estavam em mos europias a Arglia, o Senegal, Cabo Verde, as possesses portuguesas na Guin, em Angola e em Moambique, So Tom e Prncipe, Lagos e seus arredores, o Cabo da Boa Esperana, os demais territrios ingleses e boers na frica do Sul e alguns fortes, entrepostos e outros pontos da Costa e da Contra-Costa. Muitos desses estabelecimentos eram vistos pelos africanos como reas por eles cedidas em aluguel ou emprstimo, tal como haviam procedido no passado com outras gentes os diulas ou uangaras, os haus, os aros que entre eles se tinham instalado com fins comerciais. Ingleses e franceses pensavam de modo diferente: tinham esses territrios, por menores que fossem, como protetorados ou sob sua direta soberania. O choque entre as duas concepes era inevitvel. (p. 32)

Agravou-o e precipitou-o o terem assumido os britnicos, e atrs deles os outros europeus, o que se chamou de misso civilizadora, e, mais tarde, de fardo Ao homem branco, mscaras de um darwinismo sociolgico, que se traduzia, nas relaes humanas, em racismo e arrogncia cultural. No havia a menor compreenso pela diferena de modos de vida: tudo o que se afastava dos padres europeus era uma demonstrao de selvageria e barbrie. Os cnsules e administradores de enclaves europeus na frica queriam que se transformassem, pela adoo dos modelos prevalecentes na Europa, as estruturas polticas e os costumes sociais das comunidades que os consideravam como hspedes. Queriam que as diferenas se reduzissem a uma uniformidade imposta de fora, e a imposio desse querer, freqentemente atravs de aes armadas, no podia deixar de desembocar no imprio. (p. 32-33)

A percepo europia da frica era a de um continente vazio, j que quase no tinha brancos, um continente vazio a pedir povoamento e inverses. E, na Europa, sobejavam gente e dinheiro. A frica aparecia aos europeus como um El Dorado, [...] uma infindvel produo de marfim [...], e com extensas terras por cultivar. O Reino Unido, onde se principiara a segunda Revoluo Industrial, via multides de compradores nos africanos, ignorando que esses tinham hbitos de consumo de todo distintos dos europeus. A costurar essa viso prometedora, corria o sonho oitocentista do progresso ilimitado. Dele foram exemplos o famoso projeto, at hoje no papel, [...]. (p. 33-34)

[...] Em pouco tempo, o Reino Unido de tal modo se considerava o melhor pretendente da frica, que chegou a recusar os ttulos histricos de Portugal sobre vrios territrios que esse tinha por seus em seus mapas, mas onde muitas vezes no possua tropas permanentes nem colonos. [...] (p. 34)

O Reino Unido perseguira, durante algum tempo, a quimera de controlar os territrios que se estendiam das praias de Angola s de Moambique, [...]. Em 1877, o Embaixador britnico em Lisboa, Sir Robert Morier, sugeriu formalmente ao Foreign Office que se acrescentasse Portugal aos dois estados clientes do Reino Unido na frica: o Egito e Zanzibar (15). [...] O Reino Unido apresentava-se a eles como o herdeiro natural de um imprio empobrecido, que a histria por si s no podia mais justificar. (p. 34)

Entretanto, renascera o interesse portugus pela frica. E tanto Portugal quanto Frana, Alemanha e Itlia multiplicaram as respostas s pretenses britnicas de supremacia ao continente africano. Os portugueses e disso d testemunho a travessia do continente por Capelo, Ivens e Serpa Pinto procuraram consolidar o domnio das terras que separavam Luanda de Loureno Marques. No contavam com a resposta arrogante de seus aliados de tantos sculos, o ultimatum de 1890, que obrigou Lisboa a abandonar ao Reino Unido as terras que comporiam mais tarde o Malui, a Zmbia e o Zimbabu. (p. 34-35)

A humilhao portuguesa fluiu naturalmente da interpretao em favor do lobo das resolues da Conferncia de Berlim, reunida entre novembro de 1884 e fevereiro do ano seguinte. Dentre essas resolues, ressaltava a de que o direito de um pas europeu a terras africanas decorria primordialmente de seus ttulos de ocupao efetiva e dos tratados assinados com os nativos. A Conferncia resultar, alis, de uma descontrolada e febril busca de acordos de protetorados com reis, rgulos e at chefetes de aldeia e da proliferao de aes militares para imp-los. [...] (p. 35)

Na penltima dcada do sculo XIX acelerou-se a corrida pela diviso da frica. De fuzil apontado ao peito, sobas africanos cediam o poder a comandantes de tropas europias. Outros assinavam tratados de proteo, na ignorncia de que transferiam aos estrangeiros a soberania sobre suas terras e suas gentes: julgavam estar arrendando ou cedendo para uso provisrio um pedao grande ou pequeno de solo, como de praxe, quando um estrangeiro pedia o privilgio e a honra de viver e comerciar entre eles. No deixavam de espantar-se, por isso, quando dois grupos de brancos de lngua diferente disputavam entre si, e s vezes com violncia, essa honra e esse privilgio, em vez de em paz compartilh-los. De vrios dos grandes reis africanos as intenes europias no passaram, porm, despercebidas. (p. 35)

Em 1885, Portugal, com a ajuda do ento Chach de Ajuda, Juliano de Souza, logrou firmar com o rei Glel, do Danxom, o tratado de Aguanzum, pelo qual se estabelecia o protetorado portugus sobre o litoral daomeano, dando-lhe em conseqncia direitos sobre o interior. Os franceses, que haviam renovado com o mesmo rei, o acordo de 1878, de cesso de Cotonu, reagiram prontamente, obrigando Lisboa, em 1887, a renunciar a suas pretenses. [...] (p. 35-36)

Completou a Conferncia de Berlim uma outra, ainda mais sinistra e ameaadora, do ponto de vista africano: a de Bruxelas, em 1890. Chamaram-lhe sintomaticamente Conferncia Anti-Escravagista, e o texto que nela se produziu um violento programa colonizador. [...] Como os europeus partiam do princpio, de todo equivocado, de que na frica no havia governos, o artigo primeiro da Ata Geral da Conferncia recomendava a "organizao progressiva dos servios administrativos, judiciais, religiosos e militares nos territrios sob a soberania ou o protetorado de naes civilizadas'', [...]. Uma das principais disposies era aquela que restringia a compra de armas de fogo pelos africanos, por serem eles instrumentos de escravizao. (p. 36)

Imposto o domnio colonial, a conscincia europia deixou de considerar urgente o fim da escravido. [...] e subsistiu de facto por muito mais tempo, at quase os nossos dias no Sudo e at ontem na Mauritnia. Novas formas de servido viram-se, alm disso, criadas pelos administradores coloniais, como o trabalho compulsrio, [...]. (p. 36)

Tambm a liberdade de comrcio foi esquecida, to pronto se tornou intil como bandeira do arremesso imperial. Fez-se a partilha de mercados. Cada metrpole buscou excluir o mais que pde os demais pases dos portos por ela controlados. [...] (p. 36)

O cerco completo da frica s se dar, no entanto, nos ltimos dias do sculo XIX ou nos primeiros do Novecentos. E ser de breve durao. [...] (p. 37)

Os imprios, reinos e cidades-estado da frica eram entidades polticas inexistentes para os diplomatas europeus que participaram das Conferncias de Berlim e de Bruxelas. No os tinham como interlocutores. Mas, quando seus pases tiveram de ocupar os terrenos que dividiram no mapa, e seus militares de tornar efetivos tratados de protetorado que para os soberanos da frica eram contratos de arrendamento ou emprstimo de terras, toparam a resistncia de estados com firmes estruturas de governo e povos com forte sentimento nacional. (p. 37)

[...] Venceram-nos porque souberam jogar os povos vassalos contra os senhores e os inimigos tradicionais uns contra os outros. [...] Venceram-nos, mas algumas vezes com grande dificuldade e aps demorada luta. (p. 37)

O Danxom s foi verdadeiramente dominado, com a captura de Bhanzin, em 1894. E por dezesseis anos os franceses tiveram de combater, na Guin, na Costa do Marfim, no norte de Gana e na Libria, o grande Samori, antes de aprision-lo em 1898. O imprio fula-hau de Socot s se renderia, com a morte do sulto Atahiru Ahmed, em 1903, j em nosso sculo. (p. 38)

Durante o perodo colonial, muitas dessas estruturas de poder persistiram, como se fossem vassalas, tanto naquelas partes onde se adotou o governo indireto, preconizado por Lord Lugard, quanto em outras, nas quais os administradores europeus no puderam dispensar a intermediao dos rgulos tradicionais. Em alguns lugares, tendo os europeus substitudo por um pau mandado o soba ou chefe legtimo, este continuou a receber clandestinamente a obedincia de seus sditos e a sacrificar aos seus deuses e ancestrais. Muitas vezes, para melhor ocult-lo, valeram-se do chefe de palha, do falso chefe, que se fez visvel como se fora o verdadeiro lder, o qual continua a mandar em segredo (p. 38)

Na sua obra sobre as danas tradicionais brasileiras, Mrio de Andrade (20) conta como se processava a sada de um maracatu no Recife. Descreve os rituais em torno da calunga carregada pela dama do passo, e com grande intuio, afirma que a boneca tinha um sentido poltico. Tinha. Na frica e tambm, no passado, possivelmente, no Brasil. Calunga um smbolo de poder em Angola. [...] (p. 39)

O que seria de estranhar-se que assim no fosse, to intensas foram as relaes e as trocas entre as duas margens do Atlntico. O Brasil um pas extraordinariamente africanizado. [...] O escravo ficou dentro de todos ns, qualquer que seja a nossa origem. Afinal, sem a escravido o Brasil no existiria como hoje , no teria sequer ocupado os imensos espaos que os portugueses lhe desenharam. Com ou sem remorsos, a escravido o processo mais longo e mais importante de nossa histria. (p. 39-40)