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201 10 O OUTRO COMO SEMELHANTE ALTERIDADE UBUNTU E RECONCILIAÇÃO RACIAL SUL-AFRICANA Christina Roquette Lopreato 1 Para apresentar o tema Figurações do outro na história escolhi fazer uma viagem intelectual à África do Sul e trilhar caminhos até então por mim desconhecidos. Foi uma escolha ousada e, em certo sen- tido, temerária por ter que lidar com o mistério que envolve o que não nos é familiar. Em minhas andanças pela literatura e pela história sul- africana, busquei compreender as figurações do outro neste país que comportou duas mentes e dois mundos. O desafio deste percurso intelectual foi refletir sobre a inquietante questão formulada por Eugène Enriquez, 2 o outro, semelhante ou inimi- go? na qual o autor indaga de que modo o outro entra como apoio, mas também como intrusão na construção do sujeito humano. Ao ouvir com olhos atentos as vozes de brancos-negros-mestiços nos escritos sul-afri- canos de intelectuais, literatos, jornalistas, militantes, autoridades go- vernamentais e religiosas, entre outras fontes consultadas, a descoberta mais fascinante desta pesquisa foi a concepção nativa de alteridade, a ubuntu. Neste ensaio, ela constitui a chave explicativa para se pensar como o branco opressor, que durante o regime de apartheid considerou o negro nativo, o outro, inimigo, foi alçado a semelhante com o fim do regime segregacionista. 1 Instituto de História. Universidade Federal de Uberlândia – UFU. 2 ENRIQUEZ, Eugène. O outro, semelhante ou inimigo? In: NOVAES, Adauto. Civiliza- ção e Barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Figurações do outro.indd 201 28/11/2008 15:01:56

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o outro como semelhante alteridade ubuntu e reconciliação racial sul-africana

Christina Roquette Lopreato1

Para apresentar o tema Figurações do outro na história escolhi fazer uma viagem intelectual à África do Sul e trilhar caminhos até então por mim desconhecidos. Foi uma escolha ousada e, em certo sen-tido, temerária por ter que lidar com o mistério que envolve o que não nos é familiar. Em minhas andanças pela literatura e pela história sul-africana, busquei compreender as figurações do outro neste país que comportou duas mentes e dois mundos.

O desafio deste percurso intelectual foi refletir sobre a inquietante questão formulada por Eugène Enriquez,2 o outro, semelhante ou inimi-go? na qual o autor indaga de que modo o outro entra como apoio, mas também como intrusão na construção do sujeito humano. Ao ouvir com olhos atentos as vozes de brancos-negros-mestiços nos escritos sul-afri-canos de intelectuais, literatos, jornalistas, militantes, autoridades go-vernamentais e religiosas, entre outras fontes consultadas, a descoberta mais fascinante desta pesquisa foi a concepção nativa de alteridade, a ubuntu. Neste ensaio, ela constitui a chave explicativa para se pensar como o branco opressor, que durante o regime de apartheid considerou o negro nativo, o outro, inimigo, foi alçado a semelhante com o fim do regime segregacionista.

1 Instituto de História. Universidade Federal de Uberlândia – UFU.2 ENRIQUEZ, Eugène. O outro, semelhante ou inimigo? In: NOVAES, Adauto. Civiliza-ção e Barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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Ubuntu: concepção nativa de alteridade

Ubuntu ungamntu ngabanye abantu(Provérbio xhosa)

A palavra africana ubuntu, de difícil tradução na linguagem oci-dental, exprime a essência do provérbio xhosa: uma pessoa depende das outras pessoas para ser uma pessoa. Para entender o significado da pala-vra ubuntu, o sociolingüista de Johanesburgo, Buntu Mfenyana, explica que é preciso separar o prefixo ubu, que se refere ao abstrato, de ntu, o ancestral que dá sentido humano à vida dos homens em sociedade pela cooperação, compartilhamento e compaixão. Ubuntu é a qualidade de ser humano, significa humanidade individual que se expressa na relação com os outros. E é nesta relação entre seres humanos que se reconhece a humanidade de cada um. A pessoa não é uma entidade solitária inde-pendente, mas interdependente.

Nesta visão de mundo africana, alicerçada no coletivismo, no vi-ver comunitário, busca-se alcançar o bem-estar de todos. Impregnado na tradição nativa dos negros sul-africanos, o espírito de coletividade ficou registrado nos relatos de viajantes e missionários que tiveram con-tato com as tribos em suas incursões pela África do Sul. Na matriz da sociedade tribal, terra e comunidade são inseparáveis. A terra dá a vida, a segurança e a identidade da tribo. Não há proprietário individual e as relações comunais envolvem laços de responsabilidade mútua, de obri-gação mútua, de apoio mútuo, de culto aos ancestrais e de respeito às crianças e aos mais velhos. Cabe ao chefe da tribo e seus conselheiros evitar a divisão e buscar o acordo quando das disputas domésticas e entre diferentes tribos.

Apesar das tensões inerentes a qualquer agrupamento humano, os nativos cultivavam o “estar-juntos”. Foi com a chegada dos brancos oci-dentais nas terras do sul da África que eles experimentaram uma transi-ção dramática e traumática num curto espaço de tempo. Em pouco mais de dois séculos de interação com os brancos, que lá se fixaram a partir de meados do século XVII, suas terras foram subtraídas, a economia de subsistência destruída, além de terem sido destituídos de sua herança pas-toril. Ainda que esta passagem tenha sido abrupta e sobretudo destrutiva,

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a idéia de cooperação perdurou entre os negros e a afinidade histórica dos nativos com a alteridade ubuntu resistiu ao passar do tempo.

A construção do apartheid

Raça é, politicamente falando, não o começodo gênero humano, mas sua decadência, não o nascimento

natural do homem, mas a sua não natural morte. Hannah Arendt

Os primeiros estrangeiros a aportarem em terras sul-africanas fo-ram os holandeses, em 1642. Movidos por interesses comerciais pri-vados, instalaram-se na Cidade do Cabo com o objetivo de estabelecer uma base de apoio para os seus navios que se dirigiam ao Oriente e de se manter afastados dos habitantes locais. Esses primeiros afrikaners, como se autodenominaram, viviam em casas por eles construídas, sem vizinhança, produziam para subsistência e comercializavam o excesso de produção para suprir o restante das suas necessidades. Seu modo de viver independente e individualista contrastava com o espírito de co-letividade dos nativos, a alteridade ubuntu. Aos poucos, os afrikaners foram adentrando o território e apossando-se das terras. Foi o início de um longo processo de expropriação da terra que, juntamente com a escravidão e o uso de mão-de-obra barata, criaram os hábitos e as ins-tituições da sociedade do apartheid. Por quase 150 anos, os holandeses construíram um pequeno fragmento da civilização européia no conti-nente africano. No entanto, tiveram que se defrontar com os ingleses em 1795, que anexaram a Cidade do Cabo, de importância estratégica para a Inglaterra por ser vital como caminho para as Índias, sua mais importante possessão na época. Apesar da presença holandesa ter in-fluenciado o modo de viver dos negros africanos, foi com os ingleses que eles sentiram a sua desestabilização.

Os novos intrusos, guiados pela ânsia do investimento e da ex-pansão, moviam-se em busca do lucro. Chegaram na África como em-preendedores e abriram o país economicamente. Em pouco mais de 60 anos de domínio inglês, os negros perderam 90% das suas terras e, em

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razão das necessidades da economia dos brancos, foram forçados ao mercado de trabalho, ainda que mantendo-se social e politicamente à parte. Os ingleses difundiram as normas cristãs ocidentais como o único caminho para civilizar os negros, vistos como selvagens. Intro-duziram a clivagem entre as tradições tribais e os elementos ocidenta-lizados, enfraquecendo a estabilidade do modo de viver dos nativos e dificultando a sua resistência. Os missionários, que se instalaram em terras sul-africanas, fundaram escolas e com seu proselitismo atacaram a poligamia, a interferência dos ancestrais, valorizaram o trabalho, con-denaram a preguiça, introduziram o Deus cristão, foram se imiscuindo e destruindo os valores tribais.

A partir de 1870, com a descoberta de diamantes em terras do sul da África e depois do ouro, em 1886, teve início a disputa pela terra entre os brancos. Em 1899, ingleses e holandeses se confrontaram na guerra anglo-bôer que terminou com a derrota dos bôeres, em 1902. Se-guidores da doutrina calvinista, os bôeres viram no sofrimento da guerra um sinal de que eram os escolhidos de Deus. Implícita neste princípio religioso, encontra-se a base da desigualdade dos homens. Isto significa que existem duas espécies de pessoas: as predestinadas a serem salvas e as destinadas à condenação eterna. Assim, diz Eric Fromm,

[...] como este destino é determinado antes de elas nascerem, e sem que possam alterá-lo por qualquer coisa que façam ou deixem de fazer em vida, a igualdade da humanidade é negada desde a origem [...]. Este prin-cípio implica também em que não há solidariedade entre os homens, pois é negado o único fator que é a base mais forte da solidariedade humana: a igualdade do fado humano.3

Imbuídos da crença divina de que os membros de uma só comuni-dade religiosa devem representar a parte da humanidade escolhida por Deus, os bôeres, o povo eleito na terra prometida, reivindicaram para si o controle da nação. Com a devolução do poder político aos afrikaners pela Inglaterra em 1909, as repúblicas bôeres do Transvaal e do Orange

3 FROMM, Eric. O medo à liberdade. Tradução de Octavio Alves Velho. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1964. p. 83.

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Free State (ocupadas pelos ingleses durante a guerra anglo-bôer) e das colônias inglesas do Cabo e de Natal se uniram um ano depois, dando origem a um novo país.

A África do Sul nasceu em 1910 sob o signo da discriminação, do preconceito racial e do controle do poder por uma minoria racial branca. Um só país, dois mundos. Apartados por uma muralha de leis segregacionistas que separavam e classificavam as pessoas de acordo com a raça branca, negra e mestiça, os sul-africanos foram obrigados a portar o passe de identificação da sua raça (pass law), o que demonstrou para os negros que eles eram cidadãos de terceira classe. A população negra, considerada estrangeira em sua própria terra, nem mais tinha o direito de ser enterrada nas terras dos seus ancestrais.4

À exploração sistematizada dos brancos opôs-se a resistência orga-nizada dos negros. Sem direito a participar da administração, sem ter voz no Parlamento, os negros, sob a inspiração Gandhi, que viveu de 1893 a 1914 na África do Sul, iniciaram um processo de resistência pacífica e decidiram formar o Congresso Nacional Africano (African National Congress) em 1912, com o intuito de unir suas forças, defender seus di-reitos e encontrar mecanismos para formar sua própria união nacional. O despertar da consciência política entre os negros sul-africanos teve forte influência de Gandhi. O princípio da não-violência,5 por ele apregoado, foi a bandeira de luta do CNA, só abandonado com muita relutância em 1961 quando Nelson Mandela, líder dos negros, foi preso sob acusação de incitamento à greve e por ter deixado o país sem permissão para fun-dar, no exterior, a asa guerrilheira do CNA, Umkhonto we Sizwe.

Se a bandeira de luta do CNA era a África do Sul para todos que nela vivem, brancos, mestiços e negros indiscriminadamente, para os afrikaners não haveria uma sociedade comum no país. O apartheid

4 Em 1913, foi promulgada a Lei de Terras que proibia os negros de adquirirem terras fora das áreas designadas de reserva, que constituíam menos de 10% do total do país.5 Foi durante a sua estadia na África do Sul que Gandhi desenvolveu seu método de ação não-violenta, posteriormente por ele aplicado na luta que liderou contra a Inglaterra pela independência da Índia. Influenciado pelas idéias da não-violência de Tolstói, seu amigo e interlocutor, Gandhi advogou o mesmo princípio tolstoiano de que a violência engendra violência e o único método para se livrar dela é não usá-la. Cf. CLÉMENT, Olivier. Tolstoi et Gandhi. Cahiers Léon Tolstoi. Paris: Institut D’Etudes Slaves, 1985. p. 47-63.

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como necessidade essencial para a sobrevivência da nação foi defendido por uma nova intelectualidade afrikaner que foi estudar na Alemanha e de lá voltou influenciada pelos ventos dos nacionalismos e pela ascensão do fascismo e do nazismo. Repartir a nação e separar as raças foi a palavra de ordem da nova intelligentsia afrikaner nos anos 30, que já não mais con-siderava suficiente a segregação tradicional. Em fins da década de 1940, a purificação da nação sul-africana entrava no seu curso devastador.

O racismo tornou-se um princípio nacional a partir de 1948, quan-do o eleitorado branco votou no Partido Nacional e lhe delegou poderes para introduzir o apartheid na África do Sul, no preciso momento em que o resto do mundo começava a se mover na direção oposta. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, caiu por terra a idéia de superioridade branca e um novo conceito de direitos e de dignidade humana surgiu no cenário pós-guerra. A África do Sul instituiu o apartheid como doutrina nacional na contramão da história, talvez porque, naquele momento, o mundo não se importasse com ela e nem ela com o mundo. Era um país recolhido sobre si mesmo.

Assiste-se, assim, à aparição de um racismo de Estado, de um ra-cismo biológico e centralizador que, como observa Foucault, a socie-dade exercerá “contra si mesma, contra seus próprios elementos [...] um racismo interno – o da purificação permanente – que será uma das dimensões fundamentais da normalização da sociedade”.6 Na perspec-tiva da análise foucaultiana,

[...] a partir de um continuum biológico da espécie humana, a aparição das raças, a distinção entre as raças, a qualificação das raças como boas e outras como inferiores, será um modo de fragmentar o campo biológico que o poder tomou a seu cargo, será uma maneira de produzir um dese-quilíbrio entre os grupos que constituem a população.7

O apartheid, com sua estrutura binária de dois conjuntos diferentes e contrapostos de idéias e de pessoas, recortou a sociedade sul-africana.

6 FOUCAULT, Michel. Tradução de Alfredo Tzveibel. Argentina: Altamira, [1996]. p. 57. Tradução nossa.7 FOUCAULT, [1996], p. 206. (Genealogia del racismo).

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Duas mentes num só país. No regime racista, o negro, o outro, é o ini-migo que se combate. O racismo, afirma Foucault,

[...] é o modo de estabelecer uma cesura no âmbito que se apresenta como ambiente biológico. Em grandes linhas, isto é o que permitirá ao poder tratar uma população como mescla de raças ou mais exatamente subdividir a espécie em subgrupos que formam as raças. São estas as primeiras funções do racismo: fragmentar, introduzir cesuras nesse con-tinuum biológico que o biopoder investe.8

Desse modo, o apartheid representa a codificação de um sistema opressivo de leis e de regulamentos para manter o negro em posição inferior. O regime sobreviveu às custas da violência e da repressão aos seus opositores. Leis draconianas, promulgadas ao longo das décadas de 1950, 60 e 70, institucionalizaram o separatismo em todos os níveis da vida: educação, moradia, saúde, emprego, transportes, esporte, lazer e nas relações pessoais. O relacionamento entre brancos e negros foi proibido e considerado crime o casamento entre eles. Medo, inseguran-ça, frustração, humilhação, dor e agonia foram sentimentos que atra-vessaram a vida dos negros sul-africanos durante os 45 anos de regime de opressão. No país cindido, o refinamento do regime de apartheid separava os negros não só dos brancos, mas também dos mestiços (co-loured – “cores intermediárias”),9 de acordo com a classificação étnica (malaios, chineses, indianos, entre outras).10 Nem brancos nem negros, os mestiços constituíam a parcela da população sem lugar, sem poder, sem certezas e porque alguns eram mais brancos do que os outros de-senvolveram entre eles mesmos o preconceito da cor. O exclusivismo

8 FOUCAULT, [1996], p. 206.9 Em seu romance, cujo enredo se passa na África do Sul pós-apartheid, Gordimer refere-se à classificação dos coloured como “cores intermediárias”. Cf. GORDIMER, Nadine. De volta à vida. Tradução de Ivo Korytowski. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 120.10 Para informações detalhadas sobre os vários grupos de mestiços (coloured), definidos de acordo com a Lei de Registro da População (The Population Registration Act), consultar o alen-tado livro The mind of South Africa, de Allister Sparks, escritor sul-africano cujo olhar perscru-tador se volta para dentro da África do Sul e ajuda a esclarecer a complexidade dessa sociedade. SPARKS, Allister. The mind of South Africa. New York: Alfred A. Knopf, 1990. p. 85.

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do regime separatista impedia o convívio entre as diferentes raças. So-bre o negro, recaíram as mais pesadas punições do regime.

Se o Estado implementou o apartheid como princípio nacional, a Igreja Reformada Holandesa (Dutch Reformed Church) da África do Sul conferiu suporte religioso ao defender que os objetivos do apar-theid estavam de acordo com as leis de Deus. Com a santificação do apartheid, o governo racista dos afrikaners, imbuídos da missão divina de reestruturar a África do Sul, apostou no conformismo e na resignação dos sul-africanos. A noção ubuntu de alteridade e do viver comunitário, tão caros aos princípios tribais dos nativos, foram expurgados da vida cotidiana, mas não do foro íntimo daqueles que carregavam consigo os valores dos seus ancestrais. Recuperar a consciência da própria huma-nidade que cada um carrega consigo, amortecida nos negros pela perda da autoconfiança em moldar seu próprio destino, foi a bandeira de luta dos movimentos anti-apartheid deflagrados no início dos anos 1950 e intensificados nas décadas seguintes.

O desmoronar do apartheid

A emancipação mental é pré-condiçãopara a emancipação política

Steve Bantu Biko

As restrições às liberdades individuais dos sul-africanos como a censura que impôs limites ao direito à livre expressão, a lei do passe e o toque de recolher que limitaram o direito de ir e vir, entre outras proibições, despertaram a indignação de uma parcela da população que protestou contra as leis discriminatórias, inicialmente de forma pacífica até assumir, no correr dos anos de vigência do regime segregacionista, a feição violenta. Como relata Nadine Gordimer, escritora sul-africana laureada com o Prêmio Nobel da Literatura em 1991:

[...] as enormes campanhas de resistência passiva foram travadas pelo po-der da indignação controlada. Elas eram contrárias à violência e tinham como base um profundo respeito pela lei e pela ordem: respeito pelas leis

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fundamentais do ser humano, a carta não-escrita que está dentro de você e de mim [...] que nos faz saber, a partir das fontes mais profundas do co-nhecimento e da experiência humana, que eu não tenho nenhum direito que você não deva ter. Esse conceito de protesto reconhecia que a lei de qualquer país nem sempre está de acordo com a carta não-escrita.11

Em seu ensaio não-ficcional, Gordimer defendeu a importância do ato de protesto quando há violação da “carta não-escrita” da huma-nidade que cada um carrega consigo. Ela definiu o protesto como “a necessidade de abrir a boca numa sociedade amordaçada [...] e quanto maior for o número de pessoas que não tenham medo de abrir a boca, menos haverá a temer”.12 Também ressaltou a força do protesto estu-dantil contra o regime do apartheid que, na sua opinião, despertou os acomodados, os entorpecidos pelo conformismo cego, em especial os negros que, ao se deixarem sucumbir ao estigma da cor, se envergonha-vam da sua negritude.

Na liderança do movimento estudantil, Steve Bantu Biko desta-cou-se no cenário dos anos 1960, quando os líderes negros mais expres-sivos como Mandela, Luthuli13 e Tambo,14 entre outros, encontravam-se presos ou haviam sido banidos do país. Biko, que sentia na pele a dificuldade de ser negro num país governado por brancos racistas, foi o inspirador e fundador do movimento da Consciência Negra e da organização estudantil South African Students’Organization (SASO). Em seus discursos, apontava as duas forças que oprimiam o negro: a

11 GORDIMER, Nadine. O gesto essencial: literatura, política e lugares. Tradução de Wal-déa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. p. 108.12 GORDIMER, 1992, p. 105. (O gesto essencial).13 Albert John Luthuli, conhecido como Chefe Luthuli, foi o primeiro sul-africano a receber o Prêmio Nobel da Paz (1960). Na década de 1950, presidiu o Congresso Nacional Africano e foi, juntamente com Nelson Mandela, um dos importantes personagens na história da luta dos negros sul-africanos pela construção de uma África inter-racial. Nadine Gordimer o considera um símbolo da dignidade humana e sobre ele escreveu, em 1959, um ensaio biográfico intitulado Chefe Luthuli. Cf. GORDIMER, 1992, p. 49-63. 14 Oliver Tambo estudou com Nelson Mandela na Fort Hare University e juntos formaram a Liga Jovem do Congresso Nacional Africano, em 1943. No início da década de 1960, quando da forte repressão do governo aos militantes mais combativos contra o apartheid, Tambo exilou-se em Lusaka e lá presidiu um dos braços do CNA no exterior.

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externa, operada pela máquina institucional do apartheid com suas leis restritivas e a interna, a mais importante delas, a auto-rejeição de ser negro. Afirmava que “a pior prisão é aquela que eles fazem que você construa em volta de si mesmo” e instigava os negros a derrubarem os muros da auto-segregação. O complexo de inferioridade era, na sua avaliação, a grande barreira para os negros se libertarem. Recuperar a auto-estima, revertendo a auto-imagem negativa que paralisava a von-tade de enfrentar a opressão, estava no cerne da sua luta. O orgulho de ser negro foi a pedra-de-toque da sua filosofia da consciência negra.

Biko acreditava que num país em que os negros eram a maioria, o apartheid existia porque possuía o esmagador poder psicológico de controlar as mentes da população negra. Enfatizava que o branco não era invencível e conclamava os negros à luta para matar a idéia de que um tipo de homem é superior a outro tipo de homem. Incentivava a solidariedade e a integração entre eles para juntar forças e romper as amarras da submissão. Reavivava, assim, a alteridade ubuntu adorme-cida nos negros.

Suas idéias foram abraçadas pela juventude negra universitária que as colocou em movimento. Em junho de 1976, Soweto explodiu. Ao final da rebelião dos universitários que se recusaram a aprender a língua afrikaner, muitos jovens estavam mortos. O massacre de Soweto foi o início de um período revolucionário na África do Sul e também o moti-vo para maior endurecimento do regime. As perseguições às lideranças negras se intensificaram, suas instituições foram fechadas e a lei contra o terrorismo foi usada para prender suspeitos de atos criminosos que, ao serem condenados, não tinham direito a recurso, inclusive da pena de morte. Biko, que já havia sido detido em maio de 1976 sob acusação de incitar o ódio racial e de infringir as normas do seu banimento, estatuto legal de isolamento da sua comunidade que o regime atribuía aos seus opositores, foi preso pela última vez em 18 de agosto de 1977. Menos de um mês depois, em 12 de setembro, estava morto. Aos 30 anos, sob custódia.

Sua morte repercutiu em vários países. A comunidade internacional passou a olhar para a África do Sul e a condenar o apartheid. Biko teve seu nome consagrado pela defesa de uma África do Sul plural, multirra-cial, onde brancos, negros e mestiços pudessem viver juntos. No funeral

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de Steve, que contou com a presença de várias delegações estrangeiras, Desmond Tutu, então bispo de Lesotho, durante a cerimônia religio-sa ressaltou que Biko havia iniciado um processo irreversível de luta contra a injustiça, a exploração e a opressão e que “nada, nem mesmo a arma mais sofisticada, nem mesmo a mais brutal e eficiente repressão policial, nada seria capaz de parar as pessoas uma vez que elas se deter-minaram a conquistar sua liberdade e seu direito à humanidade”.15 Des-tacou também que Biko, com sua mente brilhante que tocava o coração das pessoas, alertou que enquanto os negros não afirmassem sua huma-nidade individual não haveria a remota chance para a reconciliação na África do Sul porque “a reconciliação só pode existir entre duas pessoas que afirmam sua própria individualidade e reconhecem e respeitam a dos outros”.16

Com a morte de Steve Biko os alicerces do apartheid foram aba-lados. A comunidade internacional passou a pressionar o regime segre-gacionista com sanções econômicas. Internamente, a população negra, mais consciente da sua força, iniciou uma onda de greves e boicotes. O Conselho das Igrejas da África do Sul, que congregava as igrejas multirraciais, presidido desde 1978 por Desmond Tutu, pregou a de-sobediência civil às leis segregacionistas por serem estas contra as leis de Deus que se resumem em duas: amar a Deus sobre todas as coisas e amar ao próximo como a ti mesmo. Tutu invocou as lições da história que ensinaram aos homens que “quando um povo decide libertar-se, nada, absolutamente nada, poderá detê-lo”.17

Os anos 1980 foram decisivos para a queda do regime segregacio-nista. Em 1982, o governo sul-africano propôs uma nova constituição permitindo a representação dos mestiços e indianos. Na Câmara tripar-tite (brancos, mestiços e indianos) formada em 1984, os negros, uma vez mais excluídos da participação política, protestaram. Neste mesmo ano, Desmond Tutu foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz por sua lide-rança na campanha contra a injustiça e a opressão e pela construção de uma

15 TUTU, Desmond. The rainbow people of God: making a peaceful revolution. New York: Random House, 1996. p. 18. Tradução nossa.16 TUTU, 1996, p. 19, tradução nossa. (The rainbow people of God).17 TUTU, 1996, p. 171, tradução nossa. (The rainbow people of God).

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África multirracial. A ligação entre religião e política, que sempre anda-ram lado a lado na história sul-africana, teve seus vínculos estreitados.

Na condenação ao regime de apartheid mais uma vez o destaque recaiu sobre Desmond Tutu, arcebispo da Cidade do Cabo desde 1985. Se o discurso da predestinação dos calvinistas deu a justificativa religio-sa ao regime racista, o anglicano Desmond Tutu demonizou o apartheid pregando que o regime não é cristão e nem bíblico porque “na Bíblia a única separação assinalada é a dos que crêem e dos que não crêem [...] e o apartheid prega o separatismo, a desunião, a inimizade [...] e exalta a qualidade biológica, o que é irrelevante para se determinar o valor do ser humano”.18 Tutu pregava a destruição do apartheid e a construção de uma outra África do Sul, fundada nos pilares da união, espírito co-munitário e harmonia entre as diferentes raças por pertencerem todas à mesma família humana, a família de Deus.

A partir de 1988, as relações entre a Igreja e o Estado ficaram mais tensas. As igrejas multirraciais abraçaram a campanha anti-apartheid do Movimento Democrático de Massa, deflagrada pela Frente União Democrática. Ancorado no discurso religioso, Tutu aconselhou a popu-lação a desobedecer as leis injustas porque, para ele, à lei injusta não se deve obediência. Apregoava que se o regime ainda detinha o poder, havia perdido a sua autoridade moral.

Diante das pressões internas e externas, o presidente Frederik W. De Klerk,19 que se autodenominava um “idealista prático”, anunciou, em seu célebre discurso de abertura do Parlamento, em 2 de feve-reiro de 1990, uma série de medidas que minaram a postura auto-ritária do regime de apartheid e abriram caminho para o diálogo. Suspendeu o estado de emergência em vigor no país desde 1986; eliminou a proscrição ao CNA e aos demais grupos de oposição ao governo como o Congresso Pan-africanista e o Partido Comunista Sul-Africano; decretou o fim da execução de pena capital; eliminou

18 TUTU, 1996, p. 171, tradução nossa. (The rainbow people of God).19 Fredrik Willem De Klerk assumiu interinamente a presidência da África do Sul em mar-ço de 1989 em substituição a P. Wilhelm Botha, que depois de sofrer um ataque cardíaco e diante das pressões para se afastar do cargo renunciou à presidência do país. Em 15 de se-tembro de 1989, De Klerk foi eleito presidente com a promessa de integrar a maioria negra no processo de decisão do país. Estava disposto a ouvir o clamor dos negros.

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parte da censura à imprensa e anunciou a libertação dos presos polí-ticos. Com essa atitude, o presidente sul-africano atendeu boa parte das reivindicações do CNA e de outros grupos oposicionistas para o início das negociações rumo à construção de uma nova África do Sul, multiracial e democrática.

Com a libertação em 11 de fevereiro de 1989 de Nelson Man-dela, o mais importante prisioneiro do regime, encarcerado durante 27 anos, que se tornou uma lenda viva para a população negra, uma nova era na África do Sul teve início: a da negociação para a mudan-ça do regime.

Tempos de negociação: a tensão criativa

Nesta grande oscilação, entre crer e descrer,

transtorna-se o coração, cheio de nada saber.

Fernando Pessoa

Por sua liderança junto à população negra, Mandela representava as aspirações e as esperanças dos negros para fazer da África do Sul um país multirracial e multiétnico. No longo caminho rumo à constru-ção de uma outra África, democrática e sem distinção de raças, etnias, credos, Mandela tinha pela frente a difícil missão de libertar oprimidos e opressores, reacender em cada um deles a chama da humanidade e edificar a ponte do diálogo entre eles. A pressão por mudanças aumen-tava tanto interna quanto externamente. A minoria branca reclamava do decréscimo no seu padrão de vida, afetado pela instabilidade política e social em que vivia o país e pelas sanções econômicas internacionais. A população negra, por sua vez, andava cética diante das promessas de mudanças profundas anunciadas pelo predecessor de De Klerk no poder, o “velho crocodilo” De Botha.

Durante o período que presidiu a África (1978-1989), De Botha apenas reformulou o sistema de dominação. Ao invés de aplacar o cla-mor das massas com algumas melhorias, acendeu a chama da revolta.

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Na análise acurada de Allistair Sparks, De Botha não soube interpre-tar o alerta de Alexis de Tocqueville de que “o momento mais perigo-so para um mau governo é quando ele procura fazer remendos [...]” ou seja, “[...] os momentos revolucionários tendem a aparecer quan-do os oprimidos começam a melhorar e as aspirações de mudança se fortalecem”.20 Se para os brancos as reformas foram consideradas grandes concessões, os negros as entenderam como insulto às suas aspirações. Após 1984, as rebeliões se intensificaram e o governo reagiu declarando estado de emergência, o que levou o país a uma escalada da violência durante os anos de 1986 a 1989. No governo, a ala mais moderada insistia na necessidade de negociação, enquanto os mais próximos ao presidente, os “securocratas”, alimentavam a idéia de conspiração contra o regime.

A tensão estava no ar. Não se tratava apenas de acabar com a segregação racial e admitir a maioria segregada na sociedade, mas de dar poder aos negros. A transformação da África do Sul num novo país era complexa. O apartheid tornou-se “credo nacionalista dos afrika-ners, uma religião civil com sanção teológica pela sua Igreja e imposta por seu movimento político, o Partido Nacional”.21 Os afrikaners, des-cendentes de holandeses, declaravam-se oriundos da África, e depois de mais de três séculos de domínio já não mais tinham laços filiais com a Holanda e nem uma mãe-pátria para onde retornar.

Mas, o apartheid não mais comportava reformas. E por ironia da histó-ria, o arquiteto das mudanças que poriam fim ao regime segregacionista foi o presidente De Klerk, filho de Jan De Klerk, um dos mentores do apartheid. Ao libertar Mandela e anunciar a abertura das negociações para se formular uma nova constituição para o país, regida pelos princípios de direitos iguais para todos, De Klerk colocou por terra o que sua família havia construído. Ele contribuiu, de forma decisiva, para o desmoronar do muro que separava brancos e negros. Entretanto, muitos obstáculos ainda precisavam ser re-movidos para se erguer a ponte entre eles. Os estereótipos construídos por ambos os lados estavam fincados em cada uma das margens.

20 SPARKS, Allister. Tomorrow is another country. The inside history of South’s Africa negotiated revolution. South Africa: Struik Book, 1995. p. 69. Fifth impression.21 SPARKS, 1995, p. 8. (Tomorrow is another country).

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A divisão africana, no entanto, ia além das raças. O país estava frag-mentado e dividido dentro da própria comunidade negra e também entre os brancos. Na opinião de Desmond Tutu, Mandela era a única esperan-ça de unir as forças comprometidas com a instalação da democracia na África do Sul. Ele tinha melhores chances do que De Klerk de desviar o país do desastre e evitar a guerra civil pela sua habilidade para estabele-cer o diálogo com os líderes das organizações formadas por militantes negros que lutavam contra o apartheid como o CNA, o Congresso Pan-Africanista e o Inkhata, liderado pelo chefe zulu Mangosuthu Buthelezi e também pela capacidade, já demonstrada,22 de fazer os brancos sentirem que havia lugar ao sol para eles, apesar do que fizeram.

Medo, tristeza e esperança eram os sentimentos palpitantes na vida dos sul-africanos quando o regime do apartheid soçobrava. O medo, não mais dos negros, mas dos brancos pelo receio da perda dos privi-légios que circundaram a vida dos que dominaram o país por mais de três séculos. A população negra alimentava a esperança de se ver livre da opressão. A tristeza pelas vidas desperdiçadas, entre elas a de Biko, se fez sentir entre os que combatiam o apartheid. Mas era preciso olhar para a frente e projetar novos tempos para o país. Para Tutu, a chave do futuro de uma nova África com direitos iguais para todos estava nas mãos de Mandela pela sua capacidade ímpar de aplacar o medo, de nutrir a esperança e de dizer aos brancos sul-africanos: “[...] agora que vocês vão tomar posse do seu verdadeiro legado, deverão tornar-se ver-dadeiros humanos, porque descobrirão que ser humano significa com-partilhar, participar, importar-se com os outros, ser compassivo”.23 A

22 Em 5 de julho de 1989, Mandela, ainda prisioneiro do governo segregacionista, encontrou-se com o então presidente De Botha, em reunião secreta. Durante quatro anos (1986-1989) repre-sentantes do governo sul-africano e da liderança negra reuniram-se clandestinamente para ne-gociar a mudança de regime.O processo de negociação tornou-se de domínio público a partir da soltura, em fevereiro de 1990, de Nelson Mandela, que se destacou como líder inconteste deste processo. Neste sentido, é exemplar o registro das impressões de Coetzee sobre Mandela. Ao conhecê-lo, o então primeiro-ministro compreendeu porque Mandela despertava tanta atenção e reconhecimento internacional. Ele era “um homem de valores antigos, um homem que me fez lembrar meus estudos da cultura latina e romana a quem se poderia aplicar, como a um velho cidadão romano, dignitas, gravitas, honestas, simplicitas”. Cf. SPARKS, 1995, p. 24.23 TUTU, Desmond. País está no limiar da nova era. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 6 fev. 1990. Caderno Internacional, p. 9.

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interdependência entre os homens, a relação da humanidade de cada um com a humanidade do outro, ubuntu, era freqüentemente reavivada por Desmond Tutu. Ele insistia em lembrar aos seus ouvintes e leitores que “quando você é diminuído pelo fato de eu tratá-lo como algo menor do que um ser humano, a minha própria humanidade também diminui”.24

A espinhosa missão de negociar o processo de transição e con-vencer os sul-africanos a recolherem as armas e estenderem as mãos coube a Mandela. O primeiro passo dessa difícil caminhada rumo à negociação foi congregar as forças políticas de cada um dos lados para, em seguida, estabelecer os canais de negociação. Desde a sua soltura, Mandela defendeu o diálogo entre brancos e brancos,25 negros e ne-gros, negros e brancos e entre brancos-negros-mestiços. As dificuldades eram muitas. O maior desafio era, assim, mudar os hábitos e a cultura de militância das organizações políticas e prepará-las para o diálogo. Lidar com as diferenças no interior do próprio CNA, coalisão de alas distintas com matizes ideológicas diversas que compartilhavam a idéia comum de libertar o país do apartheid, requeria habilidade política de Mandela, seu presidente de honra. Convencer a ala militante que tinha se envol-vido com a guerrilha a abandonar o seu projeto revolucionário de der-rubada do apartheid, acalentado durante os anos de opressão, foi uma conquista importante pois, com a fragilização do regime, o momento se mostrava propício para erguer as barricadas. Por sua vez, os exilados do CNA, grupo combativo que continuou a militância no exterior e que havia retornado ao país, necessitavam conhecer os novos ventos que sacudiam a África do Sul e se readaptarem ao novo molde de combate ao apartheid. Mas, a incumbência mais difícil de Mandela para juntar as forças do CNA foi convencer a ala Inkatha, comandada pelo líder tribal zulu Buthelezi, a participar das conversações.

Por outro lado, para levar adiante o projeto de abolição do apar-theid, o presidente De Klerk, numa manobra arriscada, convocou um

24 TUTU, 1990, p. 9. (País está no limiar da nova era).25 Os brancos sul-africanos estavam divididos quanto ao destino do apartheid. Os que dis-cordaram da atitude do presidente De Klerk de afrouxar o regime o chamaram de traidor e também condenaram a soltura de Mandela protestando nas ruas de Pretória com cartazes que anunciavam o orgulho de ser branco. Cf. BRANCOS protestam em Pretória. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 16 fev. 1990. Caderno Internacional, p. 8.

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plebiscito em 17 de março de 1992, em que somente a população bran-ca teve direito ao voto. Com a vitória do sim de 68% dos votantes, De Klerk saiu fortalecido para implementar as mudanças. Diante dos infla-mados protestos dos negros alijados de participar do plebiscito, Man-dela pediu paciência para não interromper as negociações. No entanto, Desmond Tutu manifestou seu incômodo quanto à atitude excludente, ao afirmar, no seu desagravo, que

[...] a dor e o desapontamento ocupam posição de destaque entre as emo-ções que muitos sul-africanos negros sentiram diante do plebiscito em que a minoria branca decidiu o futuro da reforma no nosso país. Senti-mos dor porque é profundamente inquietante para nós, a maioria, termos sido de novo relegados à condição de objetos sobre os quais as decisões são tomadas.26

Todavia, Tutu não abandonou o tom da reconciliação, projeto po-lítico-espiritual por ele abraçado durante sua campanha por uma nova África multicolorida e democrática:

Este país é suficientemente grande para eles também [...] desde que não queiram impor suas opiniões pela força. Precisamos lhes dizer que, na nova África do Sul, eles serão livres para continuar defendendo seus pontos de vista antediluvianos, desde que não infrinjam os direitos dos demais. Obviamente, esperamos que eles acabem enxergando que seus interesses serão melhor defendidos se adotarem o ideal democrático.27 Durante o processo de negociação, a violência recrudesceu no

país, mas as conversações sobreviveram aos ataques. Com avanços e recuos, os vinte e seis participantes do fórum multipartidário de nego-ciadores, o Multiparty Negotiation Forum (MPNF), trocaram as sus-peitas e as desconfianças pela confiança mútua e com o fio do respeito mútuo foram tecendo a trama do entendimento, estreitando os laços de

26 TUTU, Desmond. Exercício racista. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 mar. 1992. Espaço aberto, p. 2.27 TUTU, 1992, p. 2. (Exercício racista).

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dependência mútua. Foram quatro anos de aprendizado da difícil arte de negociar num país de predomínio da cultura da intolerância racial e étnica. A tensão criativa acompanhou a travessia das negociações e deu o tom dos (des)encontros que resultaram no acordo firmado por Nelson Mandela e F.W. De Klerk, em 16 de novembro de 1993, o qual pôs fim ao apartheid e demarcou o início de uma nova era para o país com a convocação das primeiras eleições multirraciais e democráticas da África do Sul.

Nas eleições realizadas em 27 de abril de 1994,28 fruto de nego-ciações tensas e intensas, Mandela elegeu-se presidente da África do Sul. Thabo Mbeki e F.W. De Klerk elegeram-se primeiro e segundo deputado-presidente, respectivamente. Juntamente com eles, outros quatrocentos sul-africanos foram eleitos deputados constituintes com a incumbência de fazer a nova Constituição do país.

A luta de Nelson Mandela pelo fim da dominação no país, quer de brancos ou de negros, marcou sua trajetória política-militante e está registrada na sua autobiografia, escrita na prisão: “Lutei contra a do-minação branca e lutei contra a dominação negra. Acalentei o ideal de democracia e da sociedade livre na qual as pessoas viveriam juntas em harmonia e com igual oportunidade. Era um ideal que esperava estar vivo para ver realizar-se.”29

Depois de uma longa caminhada para a liberdade, Mandela, ao to-mar posse como presidente da África do Sul, em 10 de maio de 1994, aos 75 anos, proferiu a frase-símbolo de um novo tempo para a nação que (re)nascia, na qual “nunca, nunca, nunca mais esta terra viverá novamen-te a experiência da opressão de uns sobre os outros”. Na nova África a ser construída, Mandela acenou que “todos os sul-africanos, tanto negros quanto brancos serão capazes de andar de cabeça erguida, sem medo nos seus corações, seguros do seu inalienável direito à dignidade humana”.

28 Nas eleições de 27 de abril de 1994, o CNA conquistou 62,65% dos votos. Os demais partidos obtiveram a seguinte votação: Partido Nacional (National Party), 20.4%; Partido da Liberdade Inkhata (Inkhata Freedom Party) 10.5%; Frente da Liberdade (Freedom Front) 2.2%; Partido Democrata (Democratic Party), 1.7% e Congresso Pan-Africanista (Pan-Afri-canist Congress), 1.2%. Cf. Tomorrow is another country. SPARKS, 1995, p. 227-228. 29 MANDELA, Nelson. Long walk to freedom. The autobiography of Nelson Mandela. Great Britain: Abacus Book, 2003. p. 438. Tradução nossa.

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O perdão e a reconciliação racial

Conte-me, e eu vou esquecerMostre-me, e eu vou lembrar

Envolva-me, e eu vou entenderBonsai

A reconciliação foi o lema de Mandela durante seu governo de tran-sição do apartheid para a democracia. A nova África do Sul, multirracial e democrática, não podia comportar as atitudes que dominaram a cultura de intolerância do apartheid. Mas como lidar com o ressentimento, o ódio e o desejo de vingança daqueles que foram violentados na sua dig-nidade humana? O ressentimento é “como tomar veneno e esperar que a outra pessoa morra”, disse Shakespeare. E o ódio e o desejo de vingança são “como ácido que corrói e quando a pessoa se dá conta está vazia por dentro”, observou Desmond Tutu.30 O arcebispo Tutu reconhecia que o passado brutal que fez aflorar esses (res)sentimentos não se apaga e pre-cisava ser enfrentado, pois do enfrentamento das violações dos direitos humanos dependia o futuro da nova nação a ser construída. Como um dos personagens centrais do processo de transição para o novo regime políti-co liderado por Mandela, Tutu defendeu a necessidade de entendimento como forma de se evitar a vingança, de reparação como freio à retaliação e de ubuntu contra a vitimização. Ao mesmo tempo, rejeitou a anistia branca aos colaboradores do regime de opressão.

Com o intuito de promover a reconciliação entre os sul-africanos brancos, negros e mestiços, o presidente Mandela instalou, em abril de 1996, a Comissão de Verdade e Reconciliação31 (Truth and Reconcilia-tion Commission). Composta por dezessete membros com diversidade de raça, credo, idade e gênero, o objetivo da Comissão, presidida por Tutu, foi estabelecer o mais completo quadro possível das causas, natureza e

30 TUTU, 1996, p. 214. (The rainbow people of God).31 Os trabalhos da Comissão de Verdade e Reconciliação foram divididos em três comitês: Comitê de Violação dos Direitos Humanos, Comitê de Reparação e Reabilitação e Comitê de Anistia. Para mais informações sobre o funcionamento dos comitês, consultar WILSON, Richardson A. The politics of truth and reconciliation in South Africa: legitimizing the post-apartheid State. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.

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extensão da violação dos direitos humanos cometidos no período de março de 1960 a maio de 1994, além de avaliar os pedidos de anistia, recomendar medidas de reparação e apresentar propostas para a preven-ção de futuras violações dos direitos humanos.

Verdade e perdão, perdão e reconciliação, palavras que cami-nharam juntas na Comissão de Verdade e Reconciliação. A busca pela verdade32 sobre o que ocorreu durante o regime de terror não traria os mortos de volta, nem desmancharia o que foi feito, mas ajudaria a rea-bilitar a dignidade de quem foi silenciado e auxiliaria a promover uma cultura de respeito aos direitos humanos. Para aquietar o passado de violências, na história escondida do apartheid, a Comissão propôs en-frentá-lo com os testemunhos públicos de vítimas e de algozes. Ambos tiveram a oportunidade de contar suas experiências. Neste fórum de revelações, abertas ao escrutínio público, passaram pessoas ilustres e desconhecidas, poderosas e sem poder, letrados e iletrados, negros e brancos. Durante dois anos, voz após voz, a verdade da brutalidade do regime foi se desvelando e com ela o sofrimento das vítimas. Não mais importava a cor da pele, mas a humanidade perdida de cada um dos testemunhos, porque o apartheid não só desumanizou a vítima como também o agressor.

Acompanhar os trabalhos da Comissão ajuda a compreender o custo humano da difícil transição do regime político. Com o slogan “a verdade dói mas o silêncio mata”, a Comissão de Verdade e Reconci-liação funcionou como uma espécie de microcosmo da sociedade em transição. Como a solicitação para testemunhar era individual, a ver-dade de cada testemunho, em especial de políticos e agentes das forças repressoras, foi ouvida pela primeira vez. Cada narrativa carregava a marca do narrador. Cada voz tinha seu percurso individual, mas confe-ria sentido às outras.

Para alguns depoentes, a oportunidade de contar sua versão da verdade foi como acordar de um pesadelo e ter a certeza de não mais viver sob a tirania do silêncio. Vozes de pessoas marginalizadas, que nunca tiveram atenção das autoridades ou da mídia, se fizeram ouvir

32 Neste ensaio, verdade é desvelamento do que foi escondido e silenciado nos porões do regime de apartheid.

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nas audiências públicas promovidas pela Comissão em várias cidades sul-africanas e também foram transmitidas pelo rádio, importante meio de comunicação de acesso da maioria da população. Dos vários de-poimentos recolhidos e analisados com sensibilidade pela jornalista e escritora sul-africana Antjie Krog, em seu livro Country of my skull, um deles é exemplar não só do respeito à diversidade que o negro nativo sul-africano carrega consigo, como também exemplar do preconceito basilar do apartheid: aos moldes lombrosianos, o negro foi considera-do um criminoso nato. De forma tensa e ambígua, Lekotse, pastor de ovelhas negro, contou sua experiência de passar, juntamente com sua família, uma noite em poder das forças de segurança que invadiram sua casa. Desde então, sua visão de mundo e seu próprio lugar no mundo deixaram de fazer sentido e, ainda que sobrevivente, ele se sentia um homem morto. Lekotse descreveu como naquele dia a porta da sua casa foi brutalmente derrubada à noite pela polícia que adentrou sua mora-da com os cachorros que conduzia, insultando sua família e colocando abaixo os pertences que se encontravam nos armários. A conduta ba-rulhenta e ameaçadora dos policiais com seus cães foi, conforme seu relato, pior que a do chacal, o inimigo mais temido pelos pastores, que age silenciosamente entre a noite e o dia, entre a vida e morte.

Ao indagar aos policiais o que eles buscavam e por que agiam com brutalidade não obteve resposta. O acesso ao mundo dos intrusos lhe foi negado assim como a ação violenta dos policiais o impediu de dar a eles, naturalmente, acesso ao seu mundo. O respeito à diversidade, tão cara à sua visão de mundo, não importava para os brancos invasores. A polícia não somente invadiu a sua casa, mas a danificou de tal modo que ela jamais voltaria a ser o seu espaço privado novamente. Ao terminar sua narrativa relembrando o dia/noite que mudou sua vida para sempre, Lekotse reiterou o pedido feito aos intrusos para que matassem o seu corpo e o de seus familiares porque a alma já estava morta e o corpo vivo só lhes trazia problemas. Diante da Comissão, ele pediu que a po-lícia completasse o que deixou de fazer.

Relatos de abusos cometidos pelas forças repressoras, como o de Lekotse, foram ouvidos em todo o país. Com a responsabilidade de conduzir os processos de violação dos direitos humanos, a Comissão de Verdade e Reconciliação jogou luz sobre o passado, iluminou situações

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embaraçosas do presente e, ao propor a reparação e semear a reconcilia-ção, sedimentou a base do projeto nacional de Mandela de construção de um novo regime político democrático, assentado nos direitos iguais para todos e no respeito à dignidade de cada um dos habitantes do país. Ao enfrentar o passado vergonhoso do apartheid, os membros da Comissão tinham como objetivo transcender os conflitos do passado para tornar possível uma vida em comum no futuro. Conhecer o passado era funda-mental para compensar o que foi feito e prevenir a repetição dos abusos.

A Comissão foi um agente da reconciliação e da reparação e operou sob forte influência da religiosidade cristã. Ao defender a dignidade de toda pessoa, Desmond Tutu pôs em ação as palavras de Cristo – “Deus perdoa nossas dívidas assim como nós perdoamos nossos devedores” – e exaltou o perdão como fundamento da reconciliação. Perdoar não significava ser tolerante com o que aconteceu, mas abandonar o direito de pagar com a mesma moeda. Perdoar não significava esquecer, mas, ao contrário, lembrar as atrocidades, trazer à tona o passado sórdido e a brutalidade do regime e tornar possível o futuro. Pelo perdão buscava-se a reconciliação e, com ela, a chance de um novo começo de relacio-namento entre os sul-africanos, independente de raça, de classe social, de religião ou de qualquer forma de discriminação. Desmond Tutu evo-cou o espírito ubuntu – uma pessoa é uma pessoa porque reconhece as outras como pessoas, como sedimento da coabitação pacífica.

As reflexões de Hannah Arendt sobre o perdão iluminam a pers-pectiva da análise histórico-política sobre o perdão como fundamen-to da reconciliação racial sul-africana, que propus desenvolver neste ensaio. Para Arendt, o perdão é o corretivo necessário para os danos inevitáveis resultantes de uma ação que causou dor e sofrimento ao outro. Na concepção arendtiana, o perdão é uma ação e esta requer um relacionamento, expressão da condição humana de pluralidade, de pre-sença do outro. É um freio à vingança e remove a barreira que impede o relacionamento. Como um ingrediente da vida política, no dizer de Arendt, o perdão possibilitou, no caso sul-africano, lidar com os confli-tos do passado e sedimentar as bases da coabitação pacífica no futuro. A grande lição da Comissão de Verdade e Reconciliação foi que “[...] o perdão e o ubuntu ou respeito que tornou isto possível necessita ser cul-tivado pelo e no processo político em que se assume (na perspectiva de

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Arendt) que o perdão, como um elemento estrutural dos atos humanos, é uma necessidade da vida política”.33

O perdão foi a pedra-de-toque da reconciliação racial sul-africana, um princípio de estado que orientou a formulação do novo projeto na-cional multirracial e democrático de Mandela, que buscava construir uma outra África do Sul sedimentada no espírito ubuntu de interde-pendência entre as pessoas, na crença de que a humanidade de cada um só existe na relação com o outro, o semelhante, criado à imagem e semelhança de Deus.

O outro como semelhante

Um significa o outro e é significado por ele.Emmanuel Lévinas

A concepção nativa ubuntu que fomentou as discussões do per-dão como reconciliação pode ser aproximada das reflexões do filósofo Emmanuel Lévinas, sobrevivente do nazismo. No fundamento anti-au-toritário da sua filosofia, Lévinas estabelece a irredutível alteridade do outro. A origem do seu pensamento não está no ser, mas para além do ser, na constituição da subjetividade como sensibilidade. Ele postula como filosofia primeira a anterioridade da ética, entendida como res-ponsabilidade pelo outro. A ética é primeira e anterior porque é relação entre entes-humanos.

Da mesma forma que ubuntu, no pensamento de Lévinas34 é a pre-sença do outro que introduz o humano no ser. Ao me relacionar com o outro, eu me torno responsável por ele. E é a responsabilidade por ou-trem que possibilita a humanidade do homem. A ética é este movimento

33 Cf. YOUNG-BRUEHL, Elizabeth. Why Arendt Matters. New Haven: Harvard Univer-sity Press, 2006. p. 121. Tradução nossa.34 Sobre o pensamento de Emmanuel Lévinas, consultar, em especial, as suas obras Entre nós: ensaios sobre a alteridade, 2005 e Humanismo do outro homem, 1993. LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Tradução de Pergentino Stefano Pivatto. Petrópolis: Vozes, 2005; LÉVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Tradução de Pergentino Stefano Pivatto. Petrópolis: Vozes, 1993.

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Page 24: Figurações do outro - api.ning.comapi.ning.com/files/SnWEFZsbJPfa2yd4UR-SCM-l46IUe8zAiyleXiUB*0... · nos é familiar. Em minhas andanças pela literatura e pela história sul-

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Christina Roquette Lopreato

de sair-de-si para-o-outro, o “entre nós”, que dá sentido à minha hu-manidade e ao humanismo do outro homem.

A viagem intelectual pelo tema da alteridade possibilitou colocar em xeque o poder inquestionável do eu e da auto-suficiência do ser em si mesmo, supostos como referência para a construção do humano e do social na modernidade. No fazimento deste ensaio, que aqui se encerra, procurei compreender como a noção ubuntu de alteridade, que tal como a ética levinasiana se embasa no princípio da não-indiferença de um para com o outro, pode ser considerada a chave mestra da aproximação entre sul-africanos brancos, negros e mestiços.

Para finalizar, agradeço à artista plástica Maria Clara Souto Fer-raz pelo desenho-arte Caminhar África do Sul, feito especialmente para este texto. Ao leitor, deixo o convite-ubuntu para apreciar a imagem em branco-preto-terra da nova África do Sul em (re)construção, (re)cortada pelos nós aramados dos desafios, riscos e ansiedades do viver juntos.

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