FIGURAS PARCELARES DA BOA-FÉ OBJETIVA E

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  • FIGURAS PARCELARES DA BOA-F OBJETIVA E VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM

    Luciano de Camargo PenteadoMestre e Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de So

    Paulo (FD-USP)Professor do Curso de Especializao em Advocacia Cvel da Fundao Getlio Vargas

    (FGV)Professor do Curso de Especializao em Direito Contratual da COGEAE-PUC/SP

    Professor dos Cursos de Especializao em Direito Civil; Direito Civil e Direito Processual Civil e Direito Contratual da Escola Paulista de Direito (EPD)

    Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Privado (RT)Membro do Corpo de Pareceristas da Revista Direito-GV (EDESP)

    Advogado em So Paulo

    1. Apresentao da proposta e justificativa: a idia de precedente judicial

    H vrias decises judiciais relevantes, no sistema brasileiro, a respeito da

    doutrina do que se vem denominando de vedao ao comportamento contraditrio.

    Entretanto, uma delas, j nem de todo recente, apresenta a vedao da atuao em duplo

    sentido, de modo claro, luz do que denomina teoria dos atos prprios.1 A partir dela

    talvez seja possvel lanar algumas consideraes especficas sobre o tema da boa-f

    objetiva, notadamente com relao proibio de incorrer na figura denominada de

    venire contra factum proprium.

    O objetivo do artigo procurar organizar as diferentes figuras da boa-f objetiva

    e, detectando aquela pertinente ao venire contra factum proprium, verificar de que

    modo a deciso a aplica, para, finalmente, expandir seus argumentos para outros casos

    possveis de soluo de acordo com idnticos ou ao menos semelhantes critrios de

    identificao. Antes de aprofundar nos argumentos da deciso em si mesma

    considerada, portanto, analisaremos alguns temas de teoria do direito obrigacional

    correlatos figura do venire, bem como o papel da jurisprudncia na percepo e

    construo de peculiares locais do sistema de direito privado.

    A deciso selecionada referente a um dos inmeros casos envolvendo um

    loteamento irregular feito pelo municpio de Limeira.

    Sua ementa j de todo significativa: Loteamento. Municpio. Pretenso de

    anulao do contrato. Boa-f. Atos prprios. Tendo o municpio celebrado contrato de

    promessa de compra e venda de lote localizado em imvel de sua propriedade, descabe 1 Sobre a matria ver, entre outros, Alejandro Borda, La teoria de los actos proprios, 3 ed., Buenos Aires, Abeledo Perrot, 2000.

  • o pedido de anulao dos atos, se possvel a regularizao do loteamento que ele mesmo

    est promovendo. Art. 40 da Lei 6.766/79. A teoria dos atos prprios impede que a

    administrao pblica retorne sobre os prprios passos, prejudicando os terceiros que

    confiaram na regularidade de seu procedimento.2

    O julgado, da lavra do Min. Ruy Rosado de Aguiar, como muitos outros

    relatados por ele, enfrenta um complexo tema de fato e de direito luz de uma doutrina

    translcida e sedimentada. Entretanto, o objetivo deste trabalho procurar, a partir do

    caso concreto, sistematizar uma dogmtica dos atos prprios, procurando compreender

    do ponto de vista da teoria geral do direito, qual sua especfica e particular

    circunscrio, especialmente tomado o modelo da teoria geral da relao jurdica.

    Justifica-se tal tipo de procedimento quer pela compreenso que temos da

    importncia do precedente judicial como fonte do direito, j apontada em nosso

    trabalho de doutoramento3 - quer pela necessidade de exame aprofundado da

    racionalidade destas, para procurar a coerncia com o sistema e uma justificativa que,

    ultrapassando razes polticas e ideolgicas possa se situar, heuristicamente, no campo

    propriamente jurdico, a ponto de se poder afirmar ou infirmar que se trata de uma boa

    deciso judicial.

    A argumentao jurdica deveria ter nem sempre tal se verifica uma

    especfica maneira de prestigiar o caso concreto, a qual propiciasse uma expanso dos

    argumentos da deciso para outras anlogas, bem como uma comunicao maior entre

    jurisprudncia ou ainda dos casos judiciais com a doutrina. importante frisar que

    toda deciso judicial encerra uma operao complexa de raciocnio, no podendo ser

    considerada como um fim ltimo, mas, sim, como um destacado elemento no processo

    contnuo de resolver pendncias no foro do direito. O Judicirio no se presta

    exclusivamente para decidir conflitos concretos, mais ainda deve cuidar para que as

    suas decises possam servir de orientao para casos futuros.4

    J Karl Larenz identificava a necessidade, de um lado e o descuido, de outro, no

    tratar teoricamente decises e precedentes judiciais. Em suas palavras, em

    contrapartida, a interpretao de resolues judiciais tem sido surpreendentemente

    descurada, at o momento, na teoria, ao contrrio da interpretao das leis e dos

    preceitos jurdicos.5 Deste modo, procura-se insistir na necessidade desta especfica

    2 STJ, 4 T, Resp 141879/SP, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, v.u., j. 17.03.1998, DJU 22.06.1998, p. 90.3 Efeitos contratuais perante terceiros, Tese, USP, 2006.4 Jos Rogrio Cruz e Tucci, Precedente judicial como fonte do direito, So Paulo, RT, 2004, p. 25.5 Karl Larenz, Metodologia da Cincia do Direito, 3 ed., Lisboa, FCG, 1997, trad. Jos Lamego, p. 506.

  • mudana de perspectiva apta a verificar quais sejam as razes profundas desta deciso

    em particular e tambm procurar interpret-la do com a mesma intensidade com que se

    procura interpretar ordinariamente a lei e os preceitos jurdicos.

    A surpresa de Larenz justifica-se por vrias razes, desde o descaso com o

    estudo da jurisprudncia como fonte de direito, quer diante do fato de que h certo

    receio de que o estudo de caso seja visto ou como matria exclusiva dos estudos

    prprios do sistema de common law, quer como uma atividade de certo modo redutora

    das potencialidades da dogmtica, no que esta apresenta de potencial generalizador e

    abstrator. Para muitos, parece que o estudo do caso algo que deve ser deixado em

    segundo plano porque o caso, ao fim das contas um exemplo, secundrio dentro do

    discurso terico, este sim importante e plenamente satisfatrio, na exata medida em que

    poderia abranger um sem nmero de casos concretos e seria, deste modo, dotado de

    muito maior fora normativa.6

    Para provar esta assertiva basta ver o tratamento dado ao estudo da

    jurisprudncia nos manuais brasileiros clssicos e nos tradicionais livros de

    acompanhamento de curso de bacharelado, ou ainda o papel reconhecido a esta como

    fonte de direito.7 Os julgados de sentido uniforme ou vm versados, insista-se, como

    exemplo da teoria, ou como fundamentao de assertivas tericas, mas nunca como

    substrato a partir do qual se constri ou se reconstri a teoria afirmada. A trajetria

    destas linhas prope-se, de certo modo, a questionar tal tendncia. Entretanto, para que

    6 Mostra a importncia do precedente judicial e sua verdadeira virtualidade aplicativa Jos Rogrio Cruz e Tucci, Precedente judicial como fonte do direito, So Paulo, RT, 2004, p. 18.7 Venosa, por exemplo, aps parecer inicialmente compreender o papel da jurisprudncia como central, trata do modo como o professor deve fazer uso dela de forma lacnica: Ademais, essencial que o professor, na sala de aula, no se limite a expor os dogmas do Direito, mas que vincule esses ensinamentos ao direito vivo, a ilustraes de casos prticos, decididos pelos tribunais (Slvio de Salvo Venosa, Direito civil Parte geral, 3 ed., So Paulo, Atlas, 2003, p. 48). Ou seja, acaba, no fim das contas, reduzindo a jurisprudncia a uma forma de exemplificao das leis e da doutrina. Orlando Gomes, por sua vez, chega a identificar um direito judicirio, mas aps expor a existncia de teses que propugnam pelo enquadramento da jurisprudncia como fonte do direito, decide-se pela negativa: Mas esse direito judicirio, muito restrito, alis, no chega a ser fonte formal, porque a regra criada no julgamento no possui os caracteres de generalidade, abstrao e permanncia, prprios das normas jurdicas. Por outro lado, incontestvel a influncia dos precedentes, que conduzem a uniformidade dos julgamentos, mas, desde que no tm fora obrigatria, os juizes no esto adstritos a segui-los (Introduo ao direito civil, 18 ed., Rio de Janeiro, Forense, 2002, p. 46). interessante que autores tradicionais, como Washington de Barros Monteiro, por exemplo, tendam a verificar um papel mais pronunciado para a jurisprudncia, dedicando inclusive mais pginas ao tratamento do tema e, inclusive, dando exemplos concretos de como atuou historicamente para preencher lacunas ou para criar o direito do caso concreto de modo espontneo e prprio, a ponto de se reconhecer nela ao menos uma caracterstica, ainda que remota, de fonte do direito: O homem caminha segundo sua fantasia e a lei claudica; o homem reclama e a lei surda. a jurisprudncia que forosamente segue o homem e o escuta sempre. O homem, no lhe impe seus arestos, mas por sua livre vontade, fora-a a pronunciar-se. Em algumas matrias, como na referente locao, a jurisprudncia antecipa-se ao trabalho legislativo, chegando mesmo a abalar conceitos jurdicos tradicionais (Curso de direito civil parte geral, 19 ed., So Paulo, Saraiva, 2003, p. 21).

  • tal tarefa seja possvel, conviria apresentar ao menos o pano de fundo do que seja a

    teoria dos atos prprios, invocada pelo julgado, para que, bem compreendida, possa ser

    confrontada com o teor da deciso, no para incorrer no mesmo erro que se critica, mas

    visando dar a moldura do argumento invocado na deciso, at para que se perceba, logo

    de incio, os seus mritos.

    Autores como Capitant concebem, entretanto, papel central para a

    jurisprudncia, afirmando inclusive que chega a se apresentar como um direito

    costumeiro moderno. Diz, poeticamente, que ela completa, enriquece, modifica, cobre

    de uma vegetao nova o direito escrito encontradio nos textos legislativos.8

    O acrdo que pretendemos aqui analisar pode ser visto, em si mesmo, como um

    interessante precedente judicial. Por precedente judicial pode-se entender diversas

    entidades, mas procuramos ter a viso de que o precedente: i) um caso julgado; ii)

    dotado de argumentao jurdica racional; iii) que se presta a extenso a demais casos a

    serem julgados. Tem assim, uma construo retrospectiva e uma vocao prospectiva. A

    construo retrospectiva funda-se no fato de que se trata de uma deciso, de um corte

    que demonstra uma argumentao voltada para a soluo do caso, soluo esta que

    apresentada e fundamentada de modo a que se possa identificar como um todo dotado

    de sentido intrnseco, ainda que por vezes este sentido necessite muitas vezes ser

    reconstrudo logicamente. A vocao prospectiva verifica-se nas situaes em que a

    deciso pode ser estendida para casos a julgar ou julgados que guardem analogia de fato

    ou de direito com o caso j decidido pelo precedente. Ou seja, o verdadeiro precedente

    pode ser utilizado, de diferentes modos, a casos futuros.

    Ora, o elemento crucial que efetivamente justifica a recepo analgica da

    deciso anterior para a soluo da hiptese posterior o princpio da universalidade,

    entendido como uma exigncia natural de que casos substancialmente iguais sejam

    tratados de modo semelhante. ele, com efeito, o componente axiolgico que sempre

    revestiu a idia de Justia como qualidade formal. Alm disso, a mxima jurdica que

    extrada da deciso anterior e que, como visto, constitui efetivamente o precedente,

    sofre um tal processo de generalizao que se insere em uma categoria de dogma dotado

    de extenso lgica. Desse modo, o caso concreto julgado passa a ser apenas um

    exemplum dentro de um conjunto genrico de casos.9

    8 Henri Capitant, De la cause des obligations, 3 ed., Paris, Dalloz, 1927, p. 10.9 Jos Rogrio Cruz e Tucci, Precedente judicial como fonte do direito, So Paulo, RT, 2004, p. 25.

  • O objeto da referida deciso era uma ao de anulao de contrato de

    compromisso de compra e venda, celebrado entre municipalidade e cidado, em que o

    primeiro, por conta da irregularidade de loteamento, postulava o desfazimento do

    negcio. O loteamento fora por ele municpio estabelecido, para venda de terrenos a

    muitos cidados. Entretanto, verificou-se posteriormente a impossibilidade de sua

    constituio por conta da proximidade com o aeroporto municipal. Alm disso, o

    empreendimento no havia sido registrado, como o exige a L 6766/1979, devendo

    tambm por este motivo ser regularizado, tendo em vista at a proibio de que trata o L

    6766/1979 37 vedado vender ou prometer vender parcela de loteamento ou

    desmembramento no registrado.

    O relatrio do acrdo afirma que argumenta o Municpio que est

    impossibilitado de regularizar o loteamento em tela, visto que dependeria da interveno

    de outros rgos pblicos, inclusive do Ministrio da Aeronutica, cujas normas no

    permitem a realizao do empreendimento face proximidade de aeroporto. Sustenta,

    por outro lado, a invalidade do contrato por ilicitude e impossibilidade do seu objeto,

    pois a administrao revogou o ato administrativo que autorizara a contratao.

    Inexistindo o loteamento, impossvel ser a entrega do imvel objeto do compromisso.

    Verificada pelo demandante a irregularidade, postulava seu desfazimento.

    Diante de um loteamento feito pelo municpio em desobedincia das normas jurdicas

    existentes para esta categoria de parcelamento do solo urbano, entendia que a

    ilegalidade no podia persistir e que, deste modo, o compromisso de compra e venda

    que visava a alienao de determinado lote necessitava ser anulado. O argumento do

    municpio assaz interessante e convincente: a nulidade deve ser espancada do mundo

    do direito e para isso existem remdios prprios que impe sua decretao quando

    presente.

    Entretanto, o argumento de proteo do adquirente do lote, a consolidao de

    sua situao jurdica pelo decurso do prazo, o pedido de anulao por parte daquele que

    deu causa nulidade so outros contra-argumentos relevantes e que merecem

    ponderao para que no se permita que a primeira impresso tome conta e impea uma

    decantao do raciocnio em guas mais profundas e serenas.

    O ponto central a respeito da doutrina da boa-f que analisado no voto, que no

    conhece do recurso especial, o fato de ela vedar a possibilidade do municpio

    implantar o loteamento e, ato contnuo, anular os contratos necessrios para sua

    constituio como realidade urbanstica, com fundamento diverso do que ensejou a

  • criao do loteamento. Ou seja, existe uma particular impossibilidade, detectada neste

    caso concreto, de voltar sobre os prprios passos, ou seja, de venire contra factum

    proprium, ainda que o municpio tenha revogado a licena do loteamento. O venire

    contra factum proprium consubstanciar-se-ia no contrariar o ato prprio do ente estatal

    que faz loteamento e depois deseja a anulao dos contratos gerados por este

    loteamento, empreendido pelo mesmo sujeito de direitos. Esta contrariedade seria

    proibida pelo que o acrdo denomina de teoria dos atos prprios.

    Ainda que seja importante no perder de vista a centralidade do caso concreto,

    algumas consideraes de carter mais terico se fazem necessrias, vista de depurar a

    linguagem da doutrina, para que possamos aprofundar nas razes de decidir. Estas

    consideraes basicamente se circunscrevem a aspectos da doutrina da boa-f, dentro da

    que se inclui a chamada teoria dos atos prprios e a figura do venire contra factum

    proprium.

    2. Boa f objetiva e boa-f subjetiva. Figuras parcelares da boa-f objetiva. Enquadramento do venire contra factum proprium

    Tradicionalmente, no estudo da boa-f, comum distinguir a boa-f objetiva da

    boa-f subjetiva. A primeira atua como modo de interpretar negcios jurdicos (CC

    113), como fonte de criao de deveres secundrios de prestao (CC 422) e como

    limitao ao exerccio do direito subjetivo em sentido amplo (CC 187). A segunda

    consiste em estado de ignorncia, anlogo ao erro negocial, daquele que no sabe estar

    em uma situao irregular e, nada obstante esta nescincia, atua como se titular do

    direito fosse, ainda sem a titularidade e sem a conseqente legitimao para o exerccio.

    Poderia se afirmar que, se legitimao h, esta de fato, mas reconhecida pelo sistema

    justamente por conta da putatividade resultante da ignorncia.

    Deste modo, por exemplo, contraria a boa-f objetiva o prestador de servios de

    contabilidade que entrega boletos em atraso, ainda que sua obrigao seja a de apenas

    fazer o clculo, na medida em que dificulta a prtica dos atos a que teleologicamente o

    contrato se destina. Tambm viola a boa-f objetiva a renovao automtica de relaes

    contratuais, notadamente as de consumo, quando no prevista em lei nem objeto de

    contratao pelas partes.

    J no que tange boa-f subjetiva, pode-se dar como exemplo o do possuidor

    que, de boa-f, tem a seu favor uma srie de efeitos jurdicos, como a contagem de

    prazo reduzida para fins de usucapio, na modalidade ordinria (CC 1242 caput e

  • 1260), o direito de reteno, como garantia de indenizao por benfeitorias e acesses

    realizadas no imvel (CC 1219) e ainda, entre muitos outros, certos benefcios em

    matria de acesso imobiliria, quer perante o titular do terreno a que acede materiais

    (CC 1255 caput), quer ainda perante o que desempenha acesses em imvel de sua

    titularidade (1256 caput, interpretado a contrario sensu).

    Ainda que no faam, muitas vezes, recurso explcito categoria, os tribunais,

    por vezes, recorrem a esta idia ao vedar comportamentos que se contradigam entre si,

    praticados pelo mesmo sujeito de direitos. Ou seja, implicitamente, adotam a idia de

    boa-f como coerncia de comportamento, que aqui se quer aproximar da dimenso

    objetiva desta categoria dogmtica.

    Assim, por exemplo, decidiu o TJRS, no julgamento de demanda envolvendo

    seguradora e segurado, que aquela no poderia se eximir mediante clusula exonerativa

    de responsabilidade, nos casos em que no houvesse realizado vistoria prvia, no caso

    concreto, no imvel dos autores. De todo descabida a pretenso da seguradora, que

    deixou de realizar vistoria prvia ou de exigir a nota fiscal dos bens quando da

    contratao do seguro, quando evidentemente, lhe era conveniente captar o cliente, e

    que disso se vale coma inteno de arbitrar a seu bel prazer o valor do prejuzo.10 No

    caso concreto, exigira mesmo notas fiscais dos mveis que guarneciam o imvel

    danificado. Afastou-se a questo justamente pela teoria dos atos prprios, que veda os

    comportamentos contraditrios no espao jurdico.

    Pode-se ver como a boa-f objetiva apresenta vrios papis fundamentais no

    sistema de direito positivo. Tratam-se, por exemplo, da funo de imputar a

    responsabilidade extra-contratual diante da ruptura imotivada de negociaes, de vedar

    o exerccio inadmissvel de posies jurdicas, de impedir a quebra da base do negcio

    jurdico, determinando, quando esta se romper, um re-equilbrio das prestaes

    negociais de acordo com a alterao das circunstncias advindas. Alm destas,

    importante funo consiste na criao de deveres anexos ou instrumentais que, pela

    incidncia da clusula geral de boa-f, obrigam as partes contratantes

    independentemente da declarao de vontade e mesmo contra ela.

    As decises de nossos tribunais ainda so um tanto quanto tmidas a respeito da

    concretizao dessas aplicaes, havendo, entretanto, honrosas excees que aplicam

    com ousadia a clusula geral de boa-f objetiva.

    10 TJRS, 2 T., Recurso Inominado 71000703181, rel. Des. Luiz Antnio Alves Capra, v.u., j. 31.08.2005 (Bol. AASP 2458, p. 1.156).

  • A respeito do assunto da alterao das circunstncias, j se decidiu a respeito de

    leasing que:

    No caso dos autos, constata-se mais uma vez, a exemplo de tantas outras

    oportunidades, a desarmonia entre agentes de negcio jurdico em virtude de ter havido

    a quebra da base objetiva do negcio que celebraram.

    No h que se identificar, pelo contexto das razes da inicial, quanto ao pedido

    principal de reajuste das prestaes que se tornaram excessivamente onerosas, em

    decorrncia de que se deu o desequilbrio das prestaes. Basta constat-lo. Em casos

    como o dos autos nossos tribunais tm repetido, ad nauseam, a necessidade de reviso

    do contrato, a possibilidade de reviso dos ndices de clculo do valor das prestaes,

    para que o contrato de execuo diferida no seja causa de vantagem excessiva de uma

    parte em detrimento de outra.

    No se aplica in casu a teoria da impreviso, j de muito abandonada pela

    doutrina mais moderna do direito civil. Aplica-se a teoria da quebra da base objetiva do

    negcio jurdico, que parte do pressuposto econmico da paridade e harmonia das

    vantagens e desvantagens econmico-financeiras do negcio, quebra esta a ningum

    atribuvel como causa querida ou provocada de prejuzo grande para uma das partes e

    lucro desmedido para outra.11

    Esta funo da boa-f de manter o equilbrio do sinalagma contratual. de

    muita importncia para contratos de cumprimento diferido em relao ao momento da

    sua celebrao. Entretanto, interessa-nos mais, por ora, o papel da boa-f na medida em

    que pode vedar o chamado venire contra factum proprium. Literalmente, venire contra

    factum proprium significa vir contra um fato prprio. Quando o ministro, no seu voto,

    invoca a teoria dos atos prprios, est falando desta vedao, ou seja, da proibio do

    comportamento contraditrio esta razo implcita a toda a sua argumentao e,

    portanto, fundamento da deciso, quer se tome a palavra em seu sentido lgico, quer se

    tome a palavra em seu sentido axiolgico. O significado desta teoria o de que ningum

    estaria autorizado a contrariar um comportamento por si mesmo praticado

    anteriormente, desde que este tenha uma funo orientativa, ou seja, na medida em que

    dirija a conduta dos sujeitos ou implique na tomada de deciso por parte deles. Na exata

    proporo em que informao relevante e necessria para o agir, o ato prprio vincula,

    de modo que no pode ser contrariado sob pena de esta mudana de orientao quebrar

    a lealdade. Em determinados jogos iterados, o prprio comportamento dos agentes passa

    11 TJSP, 34 C, Apc/Rev 77257509, rel. Des. Rosa Maria de Andrade Nery, v.u., j. 09.11.2005

  • a integrar as regras do jogo, principalmente naqueles que exigem de per si cooperao.

    Por conta de que a vinculatividade pessoal deriva de ato prprio daquele contra quem se

    invoca o venire, a teoria que o visa coibir tambm conhecida como teoria dos atos

    prprios.

    Nota-se uma verdadeira eficcia vinculativa de atos, ainda que no atos jurdicos

    em sentido estrito. A parte que os pratica gerando confiana na outra parte de que

    aquela orientao de conduta seria mantida, ao alterar o comportamento, imprimindo-

    lhe direo oposta quela original, frustra a expectativa de confiana e viola a boa-f

    objetiva. Tal fenmeno agrava-se nas situaes em que h legtimo investimento

    econmico pautado por aquela expectativa, pois ento verifica-se ainda com maior

    intensidade o dano jurdico a merecer preveno ou reparao, conforme ao caso em

    que se afigure.

    Ao afirmar que a teoria dos atos prprios impede a pretenso anulatria da

    prefeitura, dado at mesmo a necessidade de proferir decises em massa diante do

    chamado atolamento dos tribunais, os fundamentos de tal teoria no so espraiados.

    Alm disso, tal no o escopo prprio e especfico da deciso judicial, o que justifica a

    omisso, mas nem por isso de se deixar de expor agora o em que tal teoria consista. A

    vedao da violao a atos prprios imporia a impossibilidade de anular, no caso

    concreto, um contrato, ou uma srie de contratos, a que a parte postulante ela prpria

    deu causa em sentido jurdico e econmico, ao colocar em andamento o projeto de

    loteamento.

    Ao proceder deste modo, como se houvesse a criao de uma situao jurdica

    por ato unilateral (projeto de loteamento) que impulsionou a celebrao de contratos, e

    que, logo depois, tambm por ato unilateral (pedido de anulao) se deseja desfazer a

    situao jurdica, para chegar na situao jurdica exatamente oposta. Tal

    comportamento seria inadmissvel e da a manuteno da sentena de primeiro grau e do

    acrdo, pelo no conhecimento do recurso. A situao seria anloga a de um jogador

    que, tendo manifestado a sua deciso e desempenhado o comportamento

    correspondente, desejasse t-la por no tomada e, assim, desfeita.

    No se disse que o loteamento, cujo registro faltava12, era regular, ou que

    nenhuma providncia devesse ser tomada13. Apenas se defendeu que no se pode anular

    12 O Municpio de Limeira ajuizou contra Adriana Aparecida Trento ao anulatria de compromisso de compra e venda de imvel situado em loteamento sem registro.13 A ao foi julgada improcedente ao argumento de que compete ao Municpio a regularizao do parcelamento de rea urbana.

  • os contratos, unilateralmente, fundado em fato a que o prprio sujeito que postula a

    invalidade deu azo. Especialmente nos casos em que houve investimento na expectativa,

    ou seja, em que a parte agiu confiando naquele primitivo comportamento.

    Na pioneira obra de Riezler, que parece ter sido a primeira a tratar da matria de

    modo sistemtico, so identificadas quatro situaes paradigmticas, segundo informa

    Menezes Cordeiro, de venire: a) o cumprimento voluntrio de negcio jurdico invlido,

    b) a constituio de uma determinada situao jurdica por deciso unilateral e

    potestativa de uma pessoa, c) a criao de situao de aparncia em que as pessoas

    confiam e d) criao de risco conexa a uma situao jurdica. Por fim, reconhece no

    turpitudinem suam alllegans non auditur aquele que alega a sua torpeza no deve ser

    ouvido - uma situao de recurso ao prprio no direito.14

    Mas antes de aprofundar na teoria dos atos prprios, fundamento da deciso do

    ministro Ruy Rosado a que se dedicam estas linhas, preciso apresentar a moldura

    maior dentro da qual se move, qual seja a das denominadas figuras parcelares de boa-f

    objetiva. Para compreender a boa-f objetiva, especialmente no campo obrigacional,

    absolutamente imprescindvel compreender que se trata de clusula geral e, portanto,

    dificilmente definvel, diante da maleabilidade e fluidez das hipteses de sua aplicao.

    Muito antes que isso, a boa-f objetiva determina a necessria descrio de tipos de

    situaes em que particularmente relevante e aplicvel a fim de que por meio destes

    tipos se possa compreender o papel tpico da figura do venire.

    A boa-f, segundo a insupervel classificao feita por Menezes Cordeiro ao

    tratar do exerccio inadmissvel das posies jurdicas, apresentaria oito figuras

    parcelares, ou seja, tipos de argumentos recorrentes com vistas a sua aplicao tpica.

    Entre eles estariam o venire contra factum proprium, o tu quoque, a exceptio doli,

    desdobrada em exceptio doli generalis e exceptio doli specialis, a inalegabilidade das

    nulidades formais, o desequilbrio no exerccio jurdico, a supressio e a surrectio.

    Sendo figuras parcelares de uma clusula geral e no noes prprias de uma

    definio conceitual, preciso desde j salientar que, em sua aplicao, no necessrio

    que todos os pressupostos estejam presentes, havendo a possibilidade de se julgar, no

    em termos de tudo ou nada, mas em termos de um mais e de um menos. Do mesmo

    modo, determinada situao jurdica pode ser reconduzida a mais de uma das figuras

    parcelares da boa-f, porque estas gozam de certa plasticidade. Todas, entretanto,

    14 Erwin Riezler, Venire contra factum proprium Studien im rmischen, englischen und deutschen Zivilrecht, Leipzig, Verlag von Duncker & Humblot, 1912, p. 110 e ss. e p. 131 e ss..

  • resultam da incidncia do CC 422, em matria de contratos e de direito das obrigaes.

    So tipos em torno dos quais possvel agrupar os casos que tratem do tema da boa-f

    objetiva. Como tipos, permitem esta qualificao mvel.

    1) A primeira delas o venire contra factum proprium que se verifica,

    basicamente, nas situaes em que uma pessoa, durante determinado perodo de tempo,

    em geral longo, mas no medido em dias ou anos, comporta-se de certa maneira,

    gerando a expectativa justificada para outras pessoas que dependem deste seu

    comportamento, de que ela prosseguir atuando naquela direo. Ou seja, existe um

    comportamento inicial que vincula a atuar no mesmo sentido outrora apontado. Em

    vista disto, existe um investimento, no necessariamente econmico, mas muitas vezes

    com este carter, no sentido da continuidade da orientao outrora adotada, que aps o

    referido arco temporal, alterada por comportamento a ela contrrio.

    Existem assim, quatro pressupostos do venire: um comportamento, a gerao de

    uma expectativa, o investimento na expectativa gerada ou causada e o comportamento

    contraditrio ao inicial, que se toma como ponto de referncia.

    Na vedao ao comportamento contraditrio existem dois comportamentos

    lcitos, diferidos no tempo15, os quais se contradizem de modo direto e no negocial, no

    podendo a situao, portanto, ser solucionada pelos remdios obrigacionais gerais.16 So

    exemplos de comportamento contraditrio a demanda por cumprimento de contrato nulo

    quando a nulidade de responsabilidade do demandante, a argio de incompetncia

    de tribunal arbitral e perante a justia comum, quando existe clusula arbitral

    primitivamente questionada17, entre outros.18 Nas fontes romanas, encontra-se, por 15 Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-f no direito civil, Coimbra, Almedina, 2001, p. 745.16 o indivduo obrigado a honrar as expectativas que criou, atravs da correspondncia confiana que despertou designadamente, casos em que a pessoa no pode justamente venire contra factum proprium. Estamos, pois, no campo da proibio do comportamento contraditrio, ainda fora da dogmtica do negcio jurdico, ou se, se quiser, partindo desta, como forma normal de vinculao no direito civil, para l dos confins da declarao negocial e da conseqente vinculao em autonomia privada (Paulo Mota Pinto, Sobre a proibio do comportamento contraditrio (venire contra factum proprium) no direito civil In Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Volume comemorativo, 2003, p. 277).17 Paulo Mota Pinto, Sobre a proibio do comportamento contraditrio (venire contra factum proprium) no direito civil In Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Volume comemorativo, 2003, p. 270.18 No mesmo sentido, identifica quatro pressupostos de aplicao do venire: luz destas consideraes, pode-se indicar quatro pressupostos para aplicao do princpio de proibio ao comportamento contraditrio: (i) um factum proprium, isto , uma conduta inicial; (ii) a legtima confiana de outrwm na conservao do sentido objetivo desta conduta; (iii) um comportamento contraditrio com este sentido objetivo (e, por isto mesmo, violador da confiana); e, finalmente, (iv) um dano ou, no mnimo, um potencial de dano a partir da contradio (Anderson Schreiber, A proibio de comportamento contraditrio tutela da confiana e venire contra factum proprium, Rio de Janeiro, Renovar, 2005, p. 124).

  • exemplo, o fragmento adversus factum suum (...) movere contraversias prohibetur,19 a

    propsito de uma situao concreta. Ou seja, contra um fato prprio, no se pode mover

    uma ao de impugnao. Existe uma vinculao mnima de responsabilidade perante o

    ato prprio. Mostra-se, portanto, que o fato prprio tem alguma eficcia vinculativa para

    alm dos limites da autonomia privada negocial em sentido estrito.

    Quanto aos efeitos do venire, afirma Paulo Mota Pinto:

    O principal efeito ser o da inibio do exerccio de poderes jurdicos ou

    direitos, em contradio com o comportamento anterior. Por outro lado, a proibio de

    comportamento contraditrio torna ilegtima a conduta posterior, podendo assim,

    constituir o agente numa obrigao de indenizar, designadamente por violao de uma

    obrigao (no caso, por exemplo, de o comportamento posterior contraditrio visar a

    cessao dos efeitos de um contrato). Pode acontecer, contudo, que a conseqncia seja

    a eventual constituio de uma obrigao do agente.20

    O venire contra factum proprium tem aplicao predominantemente extra-

    contratual. uma fonte autnoma de obrigao porque importa a quebra da confiana

    que o factum proprium cria, independentemente de outro ato jurdico. Inclusive este fato

    no precisa ser ato jurdico. Basta com que crie expectativa. Nota-se aqui, de modo

    ntido, a impreciso da distino entre boa-f em sentido objetivo e subjetivo. O

    expectare subjetivo, outra coisa se fundado ou no. Esse no propriamente um

    critrio de objetividade, mas de veracidade, de adequao entre a subjetividade e a

    realidade. A expectao , entretanto, sempre subjetiva, encontrando-se na esfera

    psquica daquele a quem favorece a alegao do venire.

    A noo jurdica de expectativa medieval e cannica. Entendia-se que o bispo

    detinha, com relao ao territrio da diocese, ius in re. O coadjutor detinha ius ad rem,

    porque na hiptese de vacncia da sede, assumia o cargo. Tratava-se de uma expectativa

    de direito que direito real, dado que tem suas caractersticas de inerncia e

    funcionalidade. Este regime determinava a possibilidade de uma tutela mnima dos

    interesses do coadjutor, que poderia, por exemplo, ajuizar possessrias para tutelar sua

    situao jurdica. Diante desta conformao, entende-se que no se pode, perante o

    direito, frustrar expectativas legtimas sem contrariar a regra da boa-f.

    19 D. 1, 7, 25.20 Paulo Mota Pinto, Sobre a proibio do comportamento contraditrio (venire contra factum proprium) no direito civil In Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Volume comemorativo, 2003, p. 305.

  • Perante esta perspectiva, poderia se indagar se a tutela da boa-f resume-se,

    ento, tutela da expectativa de direito ou se pode considerar que existe direito, prvio

    incidncia da regra da boa-f, direito este que se pode considerar adquirido. Sabe-se

    que o direito adquirido estudado como uma espcie de barreira aplicao de novas

    leis, mas dificilmente trata-se do problema do ponto de vista do conflito de posies

    jurdicas, perspectiva essa que o CC/1916 74 par. un. parecia apontar.

    O texto do dispositivo afirma que: chama-se deferido o direito futuro, quando

    sua aquisio pende somente do arbtrio do sujeito, no deferido quando se subordina a

    fatos ou condies falveis. A expectativa pode se considerar como um direito futuro

    no deferido, quando depender de outros elementos externos ao patrimnio de seu

    titular para se tornar direito adquirido e direito futuro deferido quando depender apenas

    da vontade do titular para se tornar direito adquirido. No primeiro caso, a frustrao da

    expectativa seria uma obstao maliciosa do fato ou condio subordinante, o que pode

    implicar venire contra factum proprium, nos casos em que a criao da expectativa

    dependa da atuao de um sujeito de direito que depois viola a regra da boa-f obstando

    a converso da expectativa em direito adquirido. Neste sentido, no s o venire pode

    implicar responsabilidade civil, como ser fonte autnoma de criao de direitos e

    deveres, a ponto de poder implicar mesmo a sua conseqente tutela especfica pelas

    regras e princpios prprios da legislao processual civil.

    Estas ponderaes se reforam ao se considerar o sentido do termo condio

    no LICC 6 2. Afirma o dispositivo que: Consideram-se adquiridos assim os direitos

    que o seu titular, ou algum por ele, possa exercer, como aqueles cujo comeo do

    exerccio tenha termo pr-fixo, ou condio preestabelecida inaltervel, a arbtrio de

    outrem.

    A inalterabilidade da condio para a aquisio de um direito pode-se dar de

    diversos modos, sendo a condio a termo de acepo mais ampla que o de clusula

    acessria de negcio jurdico. Trata-se de condio como evento subordinativo,

    qualquer que seja ele. Aquele que obsta o implir da condio pode incorrer tambm em

    violao da boa-f objetiva pela frustrao da expectativa. Neste caso, apenas haver a

    consubstanciao de venire contra factum proprium quando a base da expectativa tenha

    por pressuposto o comportamento daquele que frustra a sua consolidao.

    2) A segunda delas o tu quoque. Literalmente, significa e tu tambm, em

    aluso frase de Jlio Csar dita a Brutus. O tu quoque verifica-se nas hipteses em que

    existe um determinado comportamento dentro do contrato que viola seu contedo

  • preceptivo e que, apesar disto, propicia a que a parte exija um comportamento conforme

    ao contrato em relao ao seu parceiro de programa contratual. Existe uma contradio

    em que um dos sujeitos na relao obrigacional exige um comportamento em

    circunstncias tais que ele mesmo deixou de cumprir.

    Pela figura do tu quoque objetiva-se a vedao de dois pesos e duas medidas, ou

    seja, da adoo de comportamentos contraditrios no interior de relaes obrigacionais

    com referncia a determinado direito subjetivo derivado do contrato. Diferencia-se do

    venire porque no se objetiva, aqui, a tutela da expectativa de continuidade do

    comportamento, mas apenas a sua manuteno para preservar o equilbrio contratual, o

    carter sinalagmtico das trocas. Assim, por exemplo, tem corretamente tratado as

    questes referentes a desconto indevido em contrato de conta corrente os tribunais que

    determinam a devoluo com os juros do cheque especial, visando a que a parte

    prejudicada receba igual tratamento do que a instituio bancria, quando atua na

    posio inversa, emprestando dinheiro.

    A figura que melhor representa o tu quoque a exceo do contrato no

    cumprido. Atravs deste modelo, a pretenso ao cumprimento, nos contratos bilaterais

    s plenamente eficaz se lhe for subjacente o desempenho da prestao a ela

    causalmente vinculada. Assim se explica o CC 476: nos contratos bilaterais, nenhum

    dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigao, pode exigir o implemento da do

    outro. Neste caso especfico, a exceo paralisa a pretenso, ou seja, impede que seja

    juridicamente tutelada de modo a satisfazer o seu contedo. O enunciado, em termos de

    tu quoque, equivale a dizer: voc no pode cobrar enquanto no pagar o que deve; se o

    fizer, surpreende-me sua conduta e o direito fornece um meio de tutela. Em outras

    palavras, a pessoa que viola uma regra jurdica no pode invocar a mesma regra a seu

    favor, sem violar a boa-f objetiva, na modalidade denominada tu quoque, que tem

    outros enunciados conhecidos, como turpitudinem suam allegans non auditur, ou ainda,

    equity must come with clean hands. Trata-se de uma concretizao maior do princpio

    do sinalagma, a apontar, no mbito obrigacional, as conexes existentes entre as

    prestaes. A vedao ao tu quoque mostra a necessidade de que haja um equilbrio no

    exerccio de direitos resultantes da mesma fonte jurdica para ambas as partes de um

    contrato.

    Sobre este princpio, j escrevemos que:

    A palavra sinalagma deriva do direito grego, como se viu supra, n. 2. Embora

    significasse primitivamente uma troca, j no sculo VI aparece em um edito, empregada

  • no sentido de qualquer negcio privado21. Contrato e sinalagma so conceitos que

    devem ser coextensivos, a tal ponto que se quer sustentar no direito atual a existncia

    mesma de um princpio do sinalagma. Este princpio no se resume ao puro e simples

    equilbrio econmico do contrato, vai alm para abraar a necessidade de equilbrio

    entre os direitos e deveres que dele derivam.22

    Segundo Menezes Cordeiro, haveria uma trplice funo do tu quoque: a)

    manter, dentro do espao contratual, o equilbrio sinalagmtico, b) manter o equilbrio

    do exerccio de direitos subjetivos que deferem o mesmo contedo de bens e, tambm,

    c) vedando o que se possa entender como abuso de direito, que na prtica se trata de

    atuao de posio jurdica de que no se titular ou que foi obtida de modo indevido.

    Assim, temos a exceo do contrato no cumprido, o esquema de tutela dos direitos de

    vizinhana, que procura equilibrar o direito de propriedade com a segurana dos

    vizinhos (CC 1277 caput) e a vedao aos atos emulativos (CC 1228 2), todos

    exemplos no direito brasileiro da eficcia do tu quoque.23

    3) A exceptio doli generalis consiste em um outro tipo de atuao da boa-f

    objetiva no sentido de veicular seu contedo material para especficas situaes

    subjetivas. A exceptio doli atua no sentido de paralisar o exerccio de pretenses

    claramente dirigidas contra a parte contratante de modo doloso. Trata-se, nas palavras

    de Menezes Cordeiro, da situao jurdica pela qual a pessoa adstrita a um dever pode,

    licitamente, recusar a efetivao da pretenso correspondente.24

    21 Cfr. Pasquale Voci, Tradizione, donazione, vendita da Costantino a Giustiniano in IVRA n. XXXVIII, 1987, Napoli, Jovene, p. 138-139. O edito em questo, como outros do perodo justinianeu no um edito pretoriano, mas de prefeito. 22 Luciano de Camargo Penteado, Doao com encargo e causa contratual, Campinas, Millennium, 2004, p. 93.23 A descrio do tu quoque a partir desta perspectiva feita com clareza por Menezes Cordeiro: Parta-se do direito subjetivo, paradigma de posies jurdicas individuais. Qualquer atribuio jussubjetiva tem, subjacente, no s a situao do titular-beneficirio, mas a de outros membros do espao jurdico. A concesso de uma permisso normativa especfica de aproveitamento , num ponto de vista ontolgico no estereotipado, possivelmente, a cominao de deveres a outras pessoas caso dos direitos relativos e de direitos absolutos que, implicando situaes de conflito, pressuponham esquemas relativos para os dirimir, como sucede no caso tpico da vizinhana e, necessariamente, a colocao de no-permisses para todos os no-beneficirios. Toda a conjuno permisso-dever-no permisso exprime uma regulao material querida, com efetividade, pelo Direito. Esta e no um jogo formal de posies jurdicas envolvidas desenraizadas concita o interesse e a preocupao do jurdico. A pessoa que, mesmo fora do caso nuclearmente exemplar do sinalagma, desequilibre, num momento prvio, a regulao material instituda, expressa, mas s em aprte, no seu direito subjetivo, no pode, depois, pretender, como se nada houvesse ocorrido, exercer a posio que a ordem jurdica lhe conferiu. Distorcido o equilbrio de base, sofre-lhe as conseqncias. A nova situao criada altera a configurao da posio jurdica do exercente; no limite, pode ir at extino (Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-f no direito civil, Coimbra, Almedina, 2001, p. 851).24 Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-f no direito civil, Coimbra, Almedina, 2001, p. 719

  • O motivo dessa faculdade justamente o fato de a outra parte ter agido com

    dolo. Assim, como obteve uma posio jurdica indevidamente, esta no pode ser

    exercida. Aquele contra quem se a pretende exercer pode paralis-la alegando a exceo

    de dolo. Nas Institutas de Gaio, existem diversos exemplos do que os romanos

    consideravam, em seu esprito, excees.25 Assim, por exemplo, a demanda por um

    valor a ttulo de emprstimo contratado, mas ainda no efetivado, no poderia ser

    excepcionada desta maneira. O esprito do mecanismo era interessante fonte de

    aplicao de vetores de justia material a exemplo do que sucede, a ponto grande, com a

    doutrina da boa-f em sentido objetivo. Afirma o texto que as excees foram

    estabelecidas em defesa dos demandados, pois acontece com freqncia que de acordo

    com o direito civil, uma pessoa esteja obrigada e, nada obstante isto, resulte injusto que

    seja condenada em juzo. A exceo de dolo tem sido pouco aplicada no Brasil de

    forma consciente, mas pode ser um recurso deveras interessante para paralisar o

    exerccio de alegados direitos subjetivos em sentido amplo, nos casos no claramente

    subsumveis ao venire ou ao tu quoque.

    4) A exceptio doli specialis nada mais seria do que uma particularizao da

    exceptio doli generalis referida a atos de carter negocial e a atos dele decorrentes,

    quando o primeiro houvesse sido obtido com dolo. Assim, a generalis, como o prprio

    nome diz, gnero e a outra espcia. A diferena especfica encontra-se nos casos em

    que a fonte da que dimana o possvel direito um negcio jurdico e no qualquer outra

    fonte. O carter excessivamente geral das duas figuras acaba por tornar sua aplicao

    perigosa em termos de segurana jurdica, valor que parece preservado pelas figuras

    anteriormente consideradas, na medida em que tem pressupostos concretos de

    verificao.

    De todo modo, claro que se pode enquadrar o caso sob comento numa hiptese

    de exceptio doli, por parte da prefeitura, na medida em que dolosamente captura

    recursos mediante contratos de compromisso de compra e venda que pretende depois

    ver anulados. Contra a pretenso anulatria, os prejudicados tem a seu favor a exceo

    de dolo para fazer valer um contedo de justia material imperativo, decorrente da regra

    da boa-f objetiva.

    5) A inalegabilidade das nulidades formais verifica-se, por sua vez, em especiais

    circunstncias que impedem a alegao da nulidade pela parte a quem esta aproveitaria,

    quer por ter dado causa a esta, quer por se tratar de nulidade de forma, no de contedo.

    25 Inst Gaio 4, 116-117.

  • Trata-se de uma hiptese especfica de venire, em que o fato prprio um ato nulo,

    sendo esta nulidade, entretanto, de carter meramente formal. uma das redues

    teleolgicas a que se deve necessariamente chegar para se ter uma compreenso

    adequada do que seja a nulidade e sua relao com a boa-f objetiva.26 Trata-se de um

    imperativo de justia material, que leva ao cumprimento dos contratos, ainda que nulos,

    entre as partes, quando isto for possvel.

    Assim, pela inalegabilidade das nulidades formais, no se pode em juzo postular

    nulidade de atos jurdicos, notadamente bilaterais, mas tambm os unilaterais, a que o

    postulante deu causa a esta nulidade, quando esta for de carter formal. Quando se fala

    de carter formal da nulidade no se quer pontuar apenas a nulidade por vcio de forma

    pblica (e.g. CC 108), mas tambm toda e qualquer nulidade que no diga respeito

    substncia do ato, o que, evidentemente demanda anlise casustica.

    6) O desequilbrio no exerccio jurdico verifica-se nos casos em que existe um

    despropsito flagrante entre exerccio e o direito que legitima referida atuao. Existiria,

    em determinados casos, uma grande diferena entre o contedo da titularidade e como

    ela foi exercida, podendo o mesmo exerccio ser controlado com apelo boa-f

    objetiva. Assim, o titular do direito de construir tem limites impostos pelo fim

    econmico e social do direito, nas situaes de vizinhana a faculdade de utilizao do

    imvel controlada pelo CC 1277, os atos emulativos so vedados, ensejando

    responsabilidade do proprietrio (CC 1228 2). Uma das figuras tpicas verifica-se nos

    casos em que uma pessoa, dolosamente, pede determinada quantia a outra a quem deve

    restituir por alguma razo conexa (o que pode ser relevante na matria de indenizao

    por benfeitorias e acesses), existindo, portanto, desproporcionalidade entre vantagem e

    sacrifcio.

    A figura do desequilbrio no exerccio do direito, entre ns, nada mais do que

    uma aplicao parcial da clusula geral do CC 187. O dispositivo introduz como

    mdulo limitador da atuao de direitos a boa-f objetiva. Aquele que, ainda que sem

    culpa, excede os limites da boa-f na atuao de seu direito, acaba por incorrer em

    violao a esta regra, possibilitando o ajuizamento da pertinente demanda indenizatria.

    7) A suppressio verifica-se de tal modo que o tempo implica a perda de uma

    situao jurdica subjetiva em hipteses no subsumveis nem prescrio, nem

    decadncia. Trata-se de uma caducidade que tem por causa a inao prolongada em

    26 Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da Boa-F no Direito Civil, Coimbra, Almedina, 2001, p. 790.

  • segmento temporal significativo. No se aplica ao simples no ajuizamento de uma ao

    ou de uma reconveno. Um exemplo tpico o uso de rea comum por condmino em

    regime de exclusividade por perodo de tempo considervel, que implica a supresso da

    pretenso de reintegrao por parte do condomnio como um todo. Os alemes

    identificam a hiptese como de Verwirkng. O seu contedo seria o de um direito no

    exercido durante lapso de tempo razoavelmente largo e que, por conta desta inatividade

    perderia sua eficcia, no podendo mais ser exercitado.

    A razo desta supresso seria a de que teria o comportamento da parte gerado

    em outra a representao de que o direito no seria mais atuado. A tutela da confiana,

    desta forma, imporia a necessidade de vedao ao comportamento contraditrio.

    Verifica-se uma proximidade entre a situao da supressio e a do venire, sendo o fato

    prprio, aqui, a no atuao, ou seja, um comportamento omissivo, que implica a perda

    do direito ao exerccio da pretenso, de modo legtimo.

    Neste sentido, importante precedente judicial brasileiro reconheceu a figura da

    supressio em situaes jurdicas condominiais.27 Discutia-se se deveria prevalecer o

    critrio de distribuio de vagas de garagem previsto na conveno (ordem de chegada

    dos veculos) ou o critrio de sorteio, adotado consensualmente e no questionado h

    mais de vinte anos. Veja-se que o embasamento jurdico estrito deveria levar a dar

    prevalncia ao teor da conveno, mas a supresso deste direito ocorreria pelo seu no

    exerccio, no podendo a parte interessada, obter tutela de sua postulao a alterar o

    critrio adotado na prtica.

    Como decidiu o acrdo, isso, porm no quer dizer que a posse prolongada e

    consensual entre todos os demais condminos salvo o autor embargante no produza

    efeitos jurdicos. Essa situao sedimentada, embora no gere usucapio, tem como

    conseqncia, em razo da figura da supressio, a impossibilidade de mutao sem

    consentimento da maioria. O interessado na alterao do critrio, durante longo tempo

    era morador do edifcio h mais de vinte anos, titular de direitos decorrentes de

    compromisso de compra e venda no exerceu seu direito, implicando, desta forma,

    uma espcie de renncia tcita ao seu contedo. Pela boa-f objetiva, sua pretenso foi

    obstada, com fundamentos no venire contra factum proprium e na supressio.

    So igualmente significativos os seguintes trechos da deciso:

    No venire contra factum proprium, no permitido agir em contradio com

    comportamento anterior. A conduta antecedente gera legtimas expectativas em relao

    27 TJSP, 4 Cam. Dir Priv, EI 304.405.4/3-02, rel. Des. Francisco Loureiro, j. 12.01.2006, m.v..

  • contra-parte, de modo que no se admite a volta sobre os prprios passos, com quebra

    da lealdade e da confiana. (...) Na supressio, a situao de um direito que, no tendo

    em certas circunstncias sido exercido, por um determinado lapso de tempo, no mais

    pode s-lo, por defraudar a confiana gerada (...) Pois bem. A longa inrcia do autor

    embargante acomodou os interesses dos demais condminos, cada um ajustado ao seu

    espao de garagem, s suas vantagens e incmodos, aos quais nos acostumamos pelo

    decurso do tempo. No se mostra jurdico que a posio isolada e tardia de um nico

    condmino, que de modo abrupto desperta de mais de uma dcada de inrcia e contra a

    vontade de todos os demais, obrigue a um novo sorteio de vagas de garagem.

    Como se v a violao boa-f objetiva consiste em uma tentativa de desfazer a

    acomodao que o comportamento omissivo do sujeito. esta ruptura com a situao

    consolidada quieta non moveri que viola a confiana que deve existir no cenrio do

    direito.

    8) A surrectio verifica-se nos casos em que o decurso do tempo permite inferir o

    surgimento de uma posio jurdica, pela regra da boa-f. Normalmente, figura

    correlata suppressio. A surreio consistiria no surgimento de uma posio jurdica

    pelo comportamento materialmente nela contido, sem a correlata titularidade. Como

    efeito deste comportamento, haveria, por fora da necessidade de manter um equilbrio

    nas relaes sociais, o surgimento de uma pretenso.

    Deste modo, por exemplo, se ocorre distribuio de lucros diversa da prevista no

    contrato social, por longo tempo, esta deve prevalecer em homenagem tutela da boa-f

    objetiva. Trata-se do surgimento do direito a esta distribuio surrectio por conta da

    sua existncia na efetividade social.

    Como se v, estas figuras parcelares como que reproduzem a estrutura geral do

    venire contra factum proprium, a qual assume, deste modo, um papel reitor dentro do

    sistema de direito privado, ao menos em matria de boa-f objetiva.

    O venire contra factum proprium, evocado atravs da referncia, no julgado,

    teoria dos atos prprios, resume a idia do exerccio inadmissvel da posio jurdica, ou

    seja, verifica que existe, por trs da titulao formal de posies jurdicas emanadas da

    especfica relao jurdica, um limite material para sua atuao.

    3. Anlise dos argumentos do julgado

    O julgado toma como ponto de partida, basicamente, a ementa de deciso

    recorrida e os argumentos do municpio atrs mencionados. No ponto nmero 1 do voto,

  • a afirmao est redigida no sentido de que o municpio celebra contratos e os pretende

    anular, sob o fundamento de que o parcelamento no foi regularizado, faltando o

    registro. A argumentao centrada, materialmente, no que isto representa de conduta

    contraditria consigo mesmo, ou seja, um comportamento que oscila no tempo, criando

    uma situao jurdica em que se podia confiar e, ato contnuo, mediante o pedido de

    anulao, visando o desfazimento da situao jurdica. Veja-se desde logo a

    recondutibilidade do comportamento figuras do venire, da inalegabilidade das

    nulidades formais e da exceptio doli.

    O venire pode ser identificado na contradio imanente ao ato de lotear, de um

    lado, e querer, largo tempo depois, anular os atos prprios de loteamento. A

    inalegabilidade no fato de que a nulidade ausncia de regularidade do loteamento, pela

    prpria L 6766/79 poder ser desfeita pelo ente pblico. A exceptio doli verifica-se por a

    prefeitura, ainda que no pudesse ser feito o loteamento, t-lo realizado e agora,

    pretender desfaz-lo. Como se v, o exemplo concreto farto em circunstncias

    relativas s figuras da boa-f objetiva.

    Daqui, podem-se retirar dois fatos que parecem relevantes para o relator. O

    primeiro deles seria a celebrao de contratos, agora o pedido com vistas sua anulao

    e o segundo, o motivo do pedido, que seria a falta de registro prvio. Estes os trs eixos

    ao redor dos quais se estrutura a sua lgica intrnseca, a ordem das razes de seu

    discurso.

    Antes de prosseguir no julgamento do mrito da demanda, o relator retoma o

    texto do L 6766/1979 40, que fora analisado pelo tribunal.28 Segundo o referido 28 A Prefeitura Municipal, ou o Distrito Federal quando for o caso, se desatendida pelo loteador a notificao, poder regularizar o loteamento ou desmembramento no autorizado ou executado sem observncia das determinaes do ato administrativo de licena, para evitar leso aos seus padres de desenvolvimento urbano e na defesa dos direitos dos adquirentes de lotes. 1. A Prefeitura Municipal, ou o Distrito Federal quando for o caso, que promover a regularizao, na forma deste artigo, obter judicialmente o levantamento das prestaes depositadas, com os respectivos acrscimos de correo monetria e juros, nos termos do 1 do art. 38 desta lei, a ttulo de ressarcimento das importncias despendidas com equipamentos urbanos ou expropriaes necessrias para regularizar o loteamento ou desmembramento. 2. As importncias despendidas pela Prefeitura Municipal, ou pelo Distrito Federal quando for o caso, para regularizar o loteamento ou desmembramento, caso no sejam integralmente ressarcidas conforme o disposto no pargrafo anterior, sero exigidas, na parte faltante, do loteador, aplicando-se o disposto no art. 47 desta lei. 3. No caso de o loteador no cumprir o estabelecido no pargrafo anterior, a Prefeitura Municipal, ou o Distrito Federal quando for o caso, poder receber as prestaes dos adquirentes, at o valor devido. 4. A Prefeitura Municipal, ou o Distrito Federal quando for o caso, para assegurar a regularizao do loteamento ou desmembramento, bem como o ressarcimento integral de importncias despendidas, ou a despender, poder promover judicialmente os procedimentos cautelares necessrios aos fins colimados. 5 A regularizao de um parcelamento pela Prefeitura Municipal, ou Distrito Federal, quando for o caso, no poder contrariar o disposto nos arts. 3 e 4 desta Lei, ressalvado o disposto no 1 desse ltimo.

  • dispositivo legal, existiria a possibilidade de o municpio regularizar os loteamentos que

    apresentassem algum tipo de vcio, mediante a atuao do seu poder de polcia, visando

    proteger interesses dos adquirentes dos lotes e a preservao do padro de

    desenvolvimento urbano do municpio.

    A ilao permite chegar a um outro argumento, que que se a regularizao

    pode ser feita para outros casos em que outros sejam os loteadores, com maior razo

    deve ser feita pelo municpio quando ele prprio realiza o empreendimento. Ou seja,

    conclui-se que os poderes jurdicos de retificao, quando institudos a favor de

    determinado sujeito de direitos, so extensivos a atos por ele mesmo praticados, em

    homenagem analogia legis, no caso concreto.

    Invoca a deciso impugnada que afirmou que estaria a municipalidade alegando

    a prpria torpeza, contra negcios jurdicos hgidos, para se furtar ao dever de lotear e

    promover a execuo cabal do empreendimento.

    Mas a figura do venire parece mesmo a melhor para reconduzir o debate em

    torno deste caso: Sabe-se que o princpio da boa-f deve ser atendido tambm pela

    administrao pblica, e at com mais razo por ela, e o seu comportamento nas

    relaes com os cidados podem ser controlado pela teoria dos atos prprios, que no

    lhe permite voltar sobre os prprios passos depois de estabelecer relaes em cuja

    seriedade os cidados confiaram.

    A teoria dos atos prprios foi muito bem aplicada pela deciso, na medida em

    que esta reconduo ao modelo obedeceu aos pressupostos do venire atrs lembrados.

    V-se, deste modo, como a anlise do julgador, no caso concreto, centrou-se no

    argumento do venire, sem invocar expressamente a figura, mas aludindo teoria dos

    atos prprios no seio da qual nasceu e se desenvolveu.29

    Aqui se tornam de uma lucidez ainda mais pronunciada as palavras de Ranieri a

    propsito da boa-f objetiva. Faz-se apelo boa-f objetiva como critrio capaz de

    fixar a medida do contedo da relao jurdica e o limite do direito de crdito.30

    Ou seja, pode-se verificar como a pretenso anulao do contrato, decorrente

    da relao jurdica entre a administrao e o particular, ainda que existente, deve ser

    materialmente balizada, isto , deve ser posta dentro de alguns parmetros concretos, os

    29 Em anlise sucinta desta deciso, afirma Anderson Schreiber: O Superior Tribunal de Justia, ao apreciar o recurso, ressaltou o carter contraditrio dos atos praticados pelo Municpio de Limeira e, com base na boa-f objetiva e na tutela da confiana, negou provimento ao pedido, proibindo o comportamento incoerente (Anderson Schreiber, A proibio de comportamento contraditrio tutela da confiana e venire contra factum proprium, Rio de Janeiro, Renovar, 2005, p. 204).30 Filippo Ranieri, Rinuncia tacita e Verwirkung, Padova, CEDAM, 1971, p. 5

  • quais limitam o exerccio do direito subjetivo. Assim, do ponto de vista da teoria da

    relao jurdica a figura do venire contra factum proprium um limite imanente s

    posies jurdicas dela decorrentes. Nada mais do que um diapaso a instituir uma

    concreta afinao dos direitos e deveres decorrentes de atos jurdicos. Trata-se de um

    mdulo de justia material, e, portanto, um remdio de exceo, no podendo ser

    utilizado como regra. Da que a invocao do venire tenha por pressuposto a ausncia

    de outros remdios obrigacionais tradicionais.31

    Ainda que em tese a administrao pblica tivesse, neste caso concreto, direito

    ao desfazimento dos atos, em virtude da irregularidade, a confiana despertada nos

    adquirentes dos lotes teria impedido o exerccio deste direito, que se pode considerar

    suprimido (suppressio). Ou seja, a concreta situao de confiana desenhada a favor dos

    muncipes teria uma eficcia obstativa da pretenso anulao dos atos, que

    tacitamente, pelo comportamento concludente, poderia ser considerada, como diriam os

    italianos, tacitamente renunciada.

    verdade que intrpretes latinos tendem a verificar nas situaes de suppressio,

    para torn-las mais adaptveis a suas categorias conceituais tradicionais, ao instituto da

    renncia, reconhecida muito embora tacitamente. Os intrpretes latinos recorrendo

    habilmente fico de uma renncia tcita ao direito forjaram um instrumento para

    paralisar o exerccio de um direito quanto tenha sido deslealmente utilizado em

    desprezo de uma confiana de outrem.32 O erro destas tendncias, entretanto,

    procurar reconduzir a remdios que pressupe exerccio de autonomia privada,

    conceitos e modelos de aplicao do direito que consistem em remdios de equidade

    que independem de declarao de vontade, ainda que tcita para sua atuao. No Brasil,

    inclusive, a matria de boa-f objetiva de ordem pblica e pode ser aplicada em

    qualquer caso, ainda que o contrato tenha sido formado anteriormente entrada em

    vigor do novo Cdigo Civil, desde que os efeitos sejam contemporneos a esta (CC

    2035 par. un.)

    Outra figura, embora no explicitamente invocada, mas que se manteve

    implicitamente latente nas razes de decidir a inalegabilidade das nulidades formais.

    31 Embora tratando do remdio anlogo que existe no sistema italiano, adverte para o perigo de transformar o venire [Verwirkng] em panacia, Elena de Carvalho Gomes, Abuso de direito, Verwirkung e direito das obrigaes: reflexes a propsito de um estudo de caso, In O direito da empresa e das obrigaes e o novo Cdigo Civil brasileiro, So Paulo, Quartir Latin, 2006, p. 76.32 Filippo Ranieri, Rinuncia tacita e Verwirkung, Padova, CEDAM, 1971, p. 9.

  • Ora, se a nulidade formal, ou seja, falta do registro, o municpio no a pode alegar

    contra o muncipe, sem ofensa boa-f objetiva.33

    Em nenhum momento, por exemplo, se recorre figura do abuso de direito para

    justificar a vedao, o que sadia percepo de que a proibio do venire tem sua razo

    de ser em dimenses mais profundas e objetivas, tendo radicao na prpria noo de

    exerccio inadmissvel de posies jurdicas.

    Ficou descartada a anlise do CC/1916 82, bem como a questo referida do

    impedimento pelo ministrio da aeronutica, por conta de razes processuais.

    4. Meno a outros julgados sobre venire

    A fora do julgado analisado como precedente pode ser vista na medida em que

    o STJ adota a idia do venire em outros julgados. Posteriormente a este julgado em

    concreto, h a meno a esta figura em trs outros, ao menos de forma expressa, sem

    considerar os que incidentalmente a adotam nas razes de decidir. Antes dele, j havia

    sido invocada em outros dois julgados.

    Em ordem cronolgica, a primeira deciso que invoca a figura do venire do

    prprio Min. Ruy Rosado. Trata-se de caso em que uma mulher no assina o contrato de

    compromisso de compra e venda, admite sua lide em juzo e no impugna o contrato por

    dezessete anos, vindo depois a se recusar a fornecer a escritura. Neste caso fica clara a

    importncia do venire como figura apta a criar direitos e deveres para as partes.34

    Em caso anlogo ao comentado, a Administrao questionou ttulo de

    propriedade por ela mesmo concedido a particular, fundado em equvoco na concesso

    do mesmo. Aplicou-se, para afastar a objeo a doutrina do venire.35

    33 Ora, se incumbe ao Municpio tratar de regularizar loteamentos irregulares promovidos por terceiros, para o fim de defender os direitos dos adquirentes dos lotes, com muito mais razo deve tratar de tomar essas providncias quando a promessa foi feita por ele mesmo.34 STJ, 4 T, Resp 95539/SP, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, v.u., j. 03.09.1996, DJU 14.10.1996, p. 39015. Promessa de compra e venda. Consentimento da mulher. Atos posteriores. Venire contra factum proprium. Boa-f. Preparo. Frias. 1. Tendo a parte protocolado seu recurso e, depois disso, recolhido a importncia relativa ao preparo, tudo no perodo de frias forenses, no se pode dizer que descumpriu o disposto no artigo 511 do CPC. Votos vencidos. 2. A mulher que deixa de assinar o contrato de promessa de compra e venda juntamente com o marido, mas depois disso, em juzo, expressamente admite a existncia e validade do contrato, fundamento para a denunciao de outra lide, e nada impugna contra a execuo do contrato durante mais de 17 anos, tempo em que os promissrios compradores exerceram pacificamente a posse sobre o imvel, no pode depois se opor ao pedido de fornecimento de escritura definitiva. Doutrina dos atos prprios. Art. 132 do CC. Recurso conhecido e provido.35 STJ, 2 T, Resp 47015/SP, rel. Min. Adhemar Maciel, m.v., j. 16.10.1997, DJU 09.12.1997, p. 64655. Administrativo e processual civil. Ttulo de propriedade outorgado pelo poder pblico, atravs de funcionrio de alto escalo. Alegao de nulidade pela prpria administrao, objetivando prejudicar o adquirente: inadmissibilidade. Alterao no plo ativo da relao processual na fase recursal: impossibilidade, tendo em vista o princpio da estabilizao subjetiva do processo. Ao de indenizao por desapropriao indireta. Instituio de parque estadual. Preservao da mata inserta em lote de

  • Outro interessante julgado, agora posterior ao julgado analisado neste artigo,

    cuidava da indenizao em razo de uso da talidomida. Entendeu que a mera licena

    dada pelo Estado no fato suficiente para gerar dever deste indenizar, pois neste caso,

    o regresso contra o laboratrio consubstanciaria venire e seria, deste modo, vedado. No

    caso concreto, a possibilidade de configurao de eventual venire desde j argumento

    suficiente para afastar o pedido de indenizao dirigido contra o ente estatal.36

    Outra interessante deciso, de lavra da Min. Nancy Andrighi, veda que a parte

    que autorizou juntada de documentos contendo registro de ligaes em determinado

    processo possa depois, em outra demanda, postular indenizao, sob pena de se

    configurar, mais uma vez, o venire contra factum proprium.37

    particular. Direito a indenizao pela indisponibilidade do imvel, e no s da mata. Precedentes do STF e do STJ. Recursos parcialmente providos. I Se o suposto equvoco no ttulo de propriedade foi causado pela prpria administrao, atravs de funcionrio de alto escalo, no h que se alegar o vcio com o escopo de prejudicar aquele que, de boa-f, pagou o preo estipulado para fins de aquisio. Aplicao dos princpios de que "nemo potest venire contra factum proprium" e de que "nemo creditur turpitudinem suam allegans". II- Feita a citao validamente, no e mais possivel alterar a composio dos polos da relao processual, salvo as substituies permitidas por lei (v.g., arts. 41 a 43, e arts. 1.055 a 1.062, todos do cpc). Aplicao do principio da estabilizao subjetiva do processo. Inteligncia dos arts. 41 e 264 do cpc. Precedente do stf: re n. 83.983/RJ. III- O proprietrio que teve o seu imvel abrangido por parque criado pela administrao faz jus a integral indenizao da rea atingida, e no apenas em relao a mata a ser preservada. Precedente do STJ: Resp n. 39.842/SP. IV- Recursos especiais conhecidos e parcialmente providos.36 STJ, 3 T, Resp 60129/SP, rel. Min. Antonio de Pdua Ribeiro, v.u., j. 20.09.2004, DJU 16.11.2004, p. 271 Responsabilidade Civil. Deformidades fsicas em razo do uso, pela genitora, de medicamento contendo Talidomida. Indenizao. Cabimento. Processual Civil. Recurso especial. Ofensa aos arts. 1, 2, 267, IV, 295, III, 468, 522, do CPC e 159 e 1518, do antigo Cdigo Civil. Prequestionamento. Ausncia. Incidncia da Smula 211/STJ. Embargos de declarao. Omisso. Inexistncia. Mero inconformismo da parte. Arts. 47 e 77, III, do CPC e 896, da Lei Material Civil. Violao. Inocorrncia. Art. 70, III, CPC. Denunciao lide. Impossibilidade, no caso. I - Ressentindo-se os arts. 1, 2, 267, IV, 295, III, 468, 522, do CPC e 159 e 1518, do antigo Cdigo Civil, do indispensvel requisito do prequestionamento, apesar da aposio do recurso aclaratrio, incide, na espcie, o bice das Smulas 282 e 356, do STF e 211, desta Corte. II - Diz o art. 896, do Cdigo Civil: "A solidariedade no se presume, resulta da lei ou da vontade das partes." No se pode considerar tenha a Lei 7.070, de 20 de fevereiro de 1982, estabelecido uma relao de solidariedade entre o laboratrio demandado e a Unio, vez que se trata de lei previdenciria e que, por seu contedo, no determina ser essa responsvel, direta ou indiretamente, pelos danos causados aos beneficirios. III - A mera circunstncia de a Unio Federal, por meio do Ministrio da Sade, haver concedido ao laboratrio ru licena para comercializao do remdio desastroso e nocivo, no gera, s por isso, o direito de regresso contra a Fazenda Nacional, ao plio da denominada responsabilidade objetiva. A licena de fabricao e comercializao, em tais casos, concedida vista das informaes de pesquisa fornecidas pelo prprio laboratrio e, assim, a via regressiva corresponder a venire contra factum proprium. IV - A clusula constante da transao judicial, efetivada em demanda anterior, que supostamente autorizaria a denunciao da lide, possui carter eminentemente restritivo quela demanda, no sendo permitido estender a sua aplicao a toda e qualquer ao promovida contra o ru. V - Recurso especial no conhecido.37 STJ, 3 T, Resp 605687/AM, rel. Min. Nancy Andrighi, v.u., j. 02.06.2005, DJU 20.06.2005, p. 273. PROCESSUAL CIVIL. DOCUMENTO. JUNTADA. LEI GERAL DAS TELECOMUNICAES. SIGILO TELEFNICO. REGISTRO DE LIGAES TELEFNICAS. USO AUTORIZADO COMO PROVA. POSSIBILIDADE. AUTORIZAO PARA JUNTADA DE DOCUMENTO PESSOAL. ATOS POSTERIORES. "VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM". SEGREDO DE JUSTIA. ART. 155 DO CDIGO DE PROCESSO CIVIL. HIPTESES. ROL EXEMPLIFICATIVO. DEFESA DA INTIMIDADE. POSSIBILIDADE. - A juntada de documento contendo o registro de ligaes telefnicas de uma das partes, autorizada por essa e com a finalidade de fazer prova de fato contrrio alegado por

  • Finalmente, temos tambm a recentssima deciso, confirmando o entendimento

    de que a restituio do indevidamente cobrado pela instituio financeira deve se dar

    nos mesmos moldes do mtuo bancrio, inclusive no tocante capitalizao. Outro

    entendimento, seria admitir o comportamento contraditrio.38

    5. Concluso: expanso dos argumentos do julgado

    Retomando o acrdo objeto da anlise, seria preciso considerar que,

    concretamente, os argumentos da deciso seriam os de que uma alienao no pode ser

    desconstituda por quem deu causa a ela, por vcio de forma, de modo unilateral, quando

    efetivada. No importa se o alienante particular ou ente pblico. No pode, na

    emblemtica enunciao do julgado, voltar sobre os prprios passos.

    A partir da se poderia, em primeiro grau de abstrao, afirmar que negcios

    jurdicos no podem ser desconstitudos por vcios de forma, pela parte que a estes

    vcios deu causa, nas situaes em que os demais figurantes confiam na seriedade do

    pacto, tendo confiado nesta seriedade e investido naquela confiana. Ou seja, os

    negcios jurdicos, em seu contedo preceptivo, vinculam o celebrante a manter de

    regra o pactuado, salvo os casos expressamente previstos em lei para sua

    desconstituio, como seriam os casos de leso, erro, coao, e.g..

    Em segundo grau de abstrao, pode-se afirmar que o fato prprio em quem

    outrem confia e investe, no pode ser alterado de modo abrupto e unilateral, sem

    violao boa-f objetiva. Ou seja, existe uma especfica tutela da confiana no sistema

    privado brasileiro, a que os tribunais procuram dar guarida.

    Daqui se pode extrair e, ao mesmo tempo, verificar a aplicao do princpio da

    confiana, como maneira especfica segundo a qual conforma-se o ordenamento jurdico

    essa, no enseja quebra de sigilo telefnico nem violao do direito privacidade, sendo ato lcito nos termos do art. 72, 1., da Lei n. 9.472/97 (Lei Geral das Telecomunicaes). - Parte que autoriza a juntada, pela parte contrria, de documento contendo informaes pessoais suas, no pode depois ingressar com ao pedindo indenizao, alegando violao do direito privacidade pelo fato da juntada do documento. Doutrina dos atos prprios. - O rol das hipteses de segredo de justia no taxativo, sendo autorizado o segredo quando houver a necessidade de defesa da intimidade. Recurso especial conhecido e provido.38 STJ, 3 T, AgEDclResp 762031/MG, rel. Min. Nancy Andrighi, v.u., j. 28.06.2006, DJU 01.08.2006, p. 446. Processual civil e civil. Agravo em embargos declaratrios em recurso especial. Bancrio. Repetio de indbito. Danos morais. Pessoa jurdica. Honra objetiva. Danos no comprovados. Reexame. Inadmissibilidade. Encargos cobrados. Taxa praticada pela instituio financeira. Ausncia de fundamentos capazes de ilidir a deciso agravada. - Em sede de recurso especial, inadmissvel o revolvimento do contedo ftico-probatrio dos autos. - direito do titular de contrato de abertura de crdito em conta-corrente (cheque especial) obter a restituio de valores indevidamente cobrados pela instituio financeira. - A remunerao do indbito mesma taxa praticada para o cheque especial se justifica, por sua vez, como a nica forma de se impedir o enriquecimento sem causa pela instituio financeira Agravo em embargos declaratrios em recurso especial no provido.

  • brasileiro. Se o sistema admite o princpio da confiana, o julgado assume, em concreto,

    o princpio, concretizando os valores nele contidos na deciso a que d cogncia.

    A proibio do comportamento contraditrio relaciona-se ao sentido profundo

    do direito39, justamente na medida em que preserva a seriedade dos atos jurdico e

    autoriza, no campo do voluntrio que a vinculao se d por ato prprio.

    V-se at hoje como em determinadas circunstncias, ainda que sem referir a

    figura do venire, os julgados notam a importncia da uniformidade e coerncia de

    comportamento, vedando as contradies. Um julgado muito interessante, versa o tema

    a partir do contrato de plano de sade. interessante notar que, ordinariamente, no se

    entende cabvel indenizao por dano moral em caso de mero descumprimento

    contratual. Entretanto, em casos especficos, notadamente nos de plano de sade, por

    conta do bem envolvido ser indisponvel - o que lembra o tema da eficcia horizontal

    dos direitos fundamentais, cabvel a indenizao pelo dano extrapatrimonial nos casos

    de flagrante descumprimento do fim do contrato. Assim caminham as decises mais

    recentes do STJ. No desconheo o entendimento desta Corte, alis invocado no

    Recurso especial, no sentido de ser indevida a reparao moral em hiptese de mero

    inadimplemento contratual. No caso sob exame, todavia, penso que a conduta da

    demandada desbordou dos limites do simples desrespeito ao contrato. (...) Na espcie a

    empresa foi alm. No bastasse haver imposto aludida limitao, ainda incentivou o

    falecido a migrar para plano superior, sob a promessa de contornar imediatamente tal

    restrio temporal, sem qualquer carncia. Porm, de forma contraditria, recusou a

    cobertura de cirurgias justamente sob o argumento de no haver sido transcorrido o

    prazo de carncia.40 A ementa da deciso significativa: Ao indenizatria. Dano

    moral. Plano de sade. Recusa indevida na cobertura de cirurgias. O reconhecimento,

    pelas instncias ordinrias, de circunstncias que excedem o mero descumprimento

    contratual, torna devida a reparao moral. Recurso Especial no conhecido. Ou seja, a

    contrariedade de comportamento fonte de especial dever de reparar o dano, pela

    verificao da figura do venire contra factum proprium.

    Os argumentos do julgado, em abstrato, reproduzem a estrutura do venire contra

    factum proprium. Deste modo, fazem dele um precedente judicial muito relevante, uma

    deciso judicial paradigmtica, que pode servir como fonte de inspirao para outras

    39 Paulo Mota Pinto, Sobre a proibio do comportamento contraditrio (venire contra factum proprium) no direito civil In Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Volume comemorativo, 2003, p. 269.40 STJ, 4 T., REsp 714947-RS, rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 28.03.2006, v.u., Bol. AASP 2486/4023.

  • decises futuras que tratem da matria, no sentido de potencializar a aplicao do

    instituto.

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