FILHO, Manoel Mendonça; Vasconcelos, Michele de Freitas Faria de. Questões de Método e Pesquisa...

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134 ISSN: 1808-4281 ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 10, N.1, P. 134-150, 1° QUADRIMESTE DE 2010 http://www.revispsi.uerj.br/v10n1/artigos/pdf/v10n1a10.pdf ARTIGOS Questões de método e pesquisa dos dispositivos institucionais de confinamento do presente Questions of method and research of the institutional devices of confinement of the present Manoel Mendonça Filho* Professor dos Núcleos de Pós-Graduação em Educação e em Psicologia da Universidade Federal do Sergipe - UFS, Aracaju, SE, Brasil Michele de Freitas Faria de Vasconcelos** Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil RESUMO Partimos de uma análise de conjuntura que marca no Brasil, nos últimos 30 anos, processos de precarização do trabalho, hegemonia do capital financeiro especulativo sobre a produção, gestão retórica das imagens como modo de dominação e disseminação do confinamento como dispositivo de controle, resultando na desqualificação da vida posta à disposição do tecnicismo vazio de sentido. Contrastando suas experiências com o pano de fundo da imagem ‘Estado capitalista financeiro no Brasil’, dois pesquisadores entrelaçam problemas de pesquisa: análise dos modos de objetivação das denominadas ‘políticas públicas’ de segurança (mais especificamente o sistema prisional) e saúde mental (serviços substitutivos de saúde mental). Problematiza-se como tais ‘políticas’ se articulam e compõem com o boom do confinamento dos últimos anos. Aqui apresentadas como ‘etno-pesquisa- interferência’, de inspiração foucaultiana em conversa com as formulações mais recentes da sócio-análise francesa e da Etnometodologia, articula-se um modo pesquisante pelo qual procedimentos, técnicas e instrumentos se constituem orientados pelo imperativo estratégico do método, que é ao fim e ao cabo, uma decisão político-afetiva de compromisso com a ativação do desejo nas pessoas como alternativa. Palavras-chave: Pesquisa interferência, Método, Capitalismo financeiro, Confinamento, Políticas públicas. ABSTRACT The article begins with a conjunctural analysis which sets, in the last 30 years, work instability processes, hegemony of speculative financial capital over production, rhetoric management of images as a way to domination and dissemination of confinement as a control mechanism which results in the disqualification of life put at disposal of meaningless technicism. Setting their experiences against the backcloth of the ‘financial capitalism State in Brazil’ image, two researchers intertwine research issues: the analysis of modes of objectification of the so-called security (more specifically the prison system) and mental health (substitutive mental health services) ‘public policies’. It is analyzed how such 'policies' articulate and make up

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Questões de Método e Pesquisa Dos Dispositivos

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    ISSN: 1808-4281 ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 10, N.1, P. 134-150, 1 QUADRIMESTE DE 2010

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    ARTIGOS

    Questes de mtodo e pesquisa dos dispositivos institucionais de confinamento do presente Questions of method and research of the institutional devices of confinement of the present Manoel Mendona Filho* Professor dos Ncleos de Ps-Graduao em Educao e em Psicologia da Universidade Federal do Sergipe - UFS, Aracaju, SE, Brasil Michele de Freitas Faria de Vasconcelos** Doutoranda em Educao pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil

    RESUMO Partimos de uma anlise de conjuntura que marca no Brasil, nos ltimos 30 anos, processos de precarizao do trabalho, hegemonia do capital financeiro especulativo sobre a produo, gesto retrica das imagens como modo de dominao e disseminao do confinamento como dispositivo de controle, resultando na desqualificao da vida posta disposio do tecnicismo vazio de sentido. Contrastando suas experincias com o pano de fundo da imagem Estado capitalista financeiro no Brasil, dois pesquisadores entrelaam problemas de pesquisa: anlise dos modos de objetivao das denominadas polticas pblicas de segurana (mais especificamente o sistema prisional) e sade mental (servios substitutivos de sade mental). Problematiza-se como tais polticas se articulam e compem com o boom do confinamento dos ltimos anos. Aqui apresentadas como etno-pesquisa-interferncia, de inspirao foucaultiana em conversa com as formulaes mais recentes da scio-anlise francesa e da Etnometodologia, articula-se um modo pesquisante pelo qual procedimentos, tcnicas e instrumentos se constituem orientados pelo imperativo estratgico do mtodo, que ao fim e ao cabo, uma deciso poltico-afetiva de compromisso com a ativao do desejo nas pessoas como alternativa. Palavras-chave: Pesquisa interferncia, Mtodo, Capitalismo financeiro, Confinamento, Polticas pblicas. ABSTRACT The article begins with a conjunctural analysis which sets, in the last 30 years, work instability processes, hegemony of speculative financial capital over production, rhetoric management of images as a way to domination and dissemination of confinement as a control mechanism which results in the disqualification of life put at disposal of meaningless technicism. Setting their experiences against the backcloth of the financial capitalism State in Brazil image, two researchers intertwine research issues: the analysis of modes of objectification of the so-called security (more specifically the prison system) and mental health (substitutive mental health services) public policies. It is analyzed how such 'policies' articulate and make up

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    with the confinement boom of the last years. Here presented as ethno-interference research, of foucaultian inspiration in dialogue with the most recent formulations of French social analysis and Ethno-methodology, it articulates a way of making research in which proceedings, techniques and instruments constitute themselves oriented by strategic imperative of method that is, at the end, a political-affective decision of commitment with the activation of desire in people as an alternative. Keywords: Interference research, Method, Financial capitalism, Confinement, Public policies.

    Boom do confinamento Em A histria da loucura, Foucault (2004, p. 399) afirma que o isolamento/internamento do louco articula-se com a crise dos hospitais gerais, ou seja, da era do grande internamento, uma crise que no se liga a protestos polticos, mas que sobe lentamente de todo um horizonte econmico e social. Para ele, o nascimento do hospcio no sculo XIX respondia demasiadamente a uma necessidade real. Nesse cenrio, se o internamento ainda fazia sentido, dizia respeito a uma populao indigente, incapaz de prover a suas necessidades. que, no contexto das sociedades de produo e, mais tarde, do capitalismo industrial, d-se a transformao da populao pobre em populao produtiva:

    H a toda uma reabilitao moral do Pobre, que designa, mais profundamente, uma reintegrao econmica e social de sua personagem. Na economia mercantilista, no sendo nem produtor nem consumidor, o Pobre no tinha lugar: ocioso, vagabundo, desempregado, sua esfera era a do internamento, medida com a qual era exilado e como que abstrado da sociedade. Com a indstria nascente, que tem necessidade de braos, faz parte novamente do corpo da nao, produzindo-se, ento, uma relao entre pobreza e populao, [...] uma populao ser tanto mais preciosa quanto mais numerosa for, pois oferecer indstria uma mo-de-obra barata. (FOUCAULT, 2004, p. 405-06)

    Se o internamento passvel de crtica pelas incidncias que pode ter sobre o mercado de mo-de-obra, ele o ainda mais porque constitui, e com ele toda a obra da caridade tradicional, um financiamento perigoso (FOUCAULT, 2004, p. 407). Gesta-se outro modo de insero da pobreza: as mulheres de vida alegre que, levadas para as manufaturas do interior, poderiam tornar-se mulheres trabalhadoras? (FOUCAULT, 2004, p. 397). Nesse panorama em que se desenvolve a idia de pobre como populao produtiva, gesta-se a concepo de trabalhador livre, tratando-se, porm de uma liberdade restrita, de um indivduo que,

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    da perspectiva da produo, s conta como fora de trabalho, ou seja, s livre para vender sua mo de obra. Aqui cabe uma pergunta: uma vez retirada toda essa populao, o que sobraria nas casas de internamento? Os que no podem ser colocados em nenhum outro lugar (FOUCAULT, 2004, p. 397), os pobres que no esto aptos a produzir, que no podem ser utilizados pela engrenagem capitalstica 1. A esses, o destino o internamento: loucos e criminosos 2. No sculo XIX, ento:

    A loucura se individualiza, gmea estranha do crime, pelo menos ligada a ela, por uma vizinhana ainda no posta em questo. Nesse internamento esvaziado de seu contedo, [nessa nova diviso], essas duas figuras subsistem sozinhas; as duas simbolizam o que pode haver de necessrio no internamento: so elas que doravante se apresentam como as nicas que devem ser internadas. (FOUCAULT, 2004, p. 399)

    E no contemporneo? Que modos de confinamento/internamento, que novos corpos se individualizam e, ao s-lo, so condenados a um carimbo-passaporte, ao isolamento-apagamento em espaos em que outros se encarregam de seus corpos? Com a passagem da era industrial, fordista, para a era do consumo, das imagens, enfim, para a contemporaneidade, estamos vivenciando a transposio das sociedades disciplinares para as sociedades de controle. Em tal processo, as formas do complexo de relaes de fora que [...] prevalecem tendem mais abertura do controle contnuo e permanente que ao fechamento descontnuo das instituies disciplinares (PIOVEZANI FILHO, 2004, p. 145). Com a entrada em cena do capital extraterritorial, as relaes de poder tornam-se mais fluidas, mais invisveis, cada vez menos coercitivas, escorregadias e fugidias, rejeitando, assim, qualquer confinamento territorial. Nessa direo, Bauman (1999) anuncia o fim do panptico, o fim da era do engajamento mtuo entre supervisores e supervisionados, lderes e seguidores, capital e trabalho. Se, nas sociedades disciplinares, o objetivo era esquadrinhar toda a populao, bloqueando-se, para isso, a sada das pessoas de dentro dos pesados muros das Instituies Totais (GOFFMAN, 2001): escola, quartel, fbrica, hospital etc.; agora, a excluso impede a entrada nos espaos onde funciona a sociedade de bens e servios e as Instituies Totais funcionam como bloqueadoras do escape desatualizam-se no contato com o espao do capitalismo global traduzido em voltil, em ciberespao [...] o banco de dados ilustra [...] essa [nova] espacialidade e o controle dos que no podem entrar (BAPTISTA, 2001, p. 81).

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    A esse respeito, afirma Coimbra (2001) que agora aqueles que, no conseguirem ser domesticados, docilizados e tornados produtivos, so mostrados como perigo social e, por extenso, dispensveis. A autora conversa com Wacquant:

    Acompanhando tudo isso o Estado no mais sustenta a infra-estrutura indispensvel ao funcionamento de uma sociedade e adota uma poltica de eroso sistemtica das instituies pblicas. Abandona lgica do mercado do livre mercado e do cada um por si segmentos inteiros da populao, em especial, aqueles que privados de todos os recursos [...] dependem completamente dele. a poltica urbana do abandono concentrado3. (COIMBRA, 2001, p.251)

    Todavia, vale pontuar que o processo de passagem acima apontado no se traduz numa oposio, e sim numa intensificao e generalizao da lgica disciplinar:

    [...] a crise contempornea das instituies no significa que os espaos fechados que definiam os espaos limitados das instituies deixaram de existir, de maneira que a lgica que funcionava outrora principalmente no interior dos muros institucionais se estende, hoje, a todo o campo social. (HARDT, 2000, p. 369)

    Conjuntura neoliberal em que o suposto Estado Democrtico de Direito funciona de fato e de direito como um Estado mnimo social e mximo penal. Aliadas a antigos modos, presenciamos outras formas de confinamento, cuja imagem emblemtica bem pode ser a da clula domiciliar onde se pede tudo por delivery, se paga contas com um carto, ou ainda melhor, via computador. Lar de um corpo que compra, que viaja, que se relaciona via internet sem precisar de deslocamento espacial. Nesse cenrio atual, o que h, ento, uma descentralizao do confinamento: a lgica da descentralizao burocrtico-administrativa, no final das contas, remete todos a uma mesma raiz. O que haveria de revolucionrio nisso? O que est sendo implantado, s cegas, so novos tipos de sanes, de educao, de tratamento. Os hospitais abertos, atendimentos a domiclio (DELEUZE, 1992, p. 216). O mote agora reduzir custos no cuidado dos corpos, diminuindo, inclusive, a circulao dos mesmos. A setorizao do cuidado, a assistncia de volta pra casa apresentam-se, ento, imbricados com a mesma lgica de corpos digitalizados, zapeando na rede: contente-se com a sua incluso digital, o seu bito foi registrado. Do mesmo modo, no paradoxal, apesar de parecer, assistirmos, nos ltimos

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    20 anos, no Brasil e no mundo, um boom do encarceramento, como demonstram os dados apresentados por Wacquant (2001).

    Pesquisa, estratgia poltica e compromissos afetivos: a questo do mtodo Que linhas, que dobraduras, que artes do vivvel esto implicadas na construo e na anlise de um problema de pesquisa? Um problema de pesquisa nunca est dado: nem de antemo nem a posteriori. Linhas emaranhadas e imprevisveis, que nunca repetem sua prpria forma, sem comeo nem fim, parecem tec-lo e, nessa tessitura - sem desconsiderar a importncia de manter cursos e conservar alguns focos -, se encontram mil pontos, dos quais se pode bifurcar (CORAZZA, 2002). Produzir uma caracterizao do cotidiano do sistema prisional do Estado de Sergipe, mais especificamente da Casa de Deteno de Aracaju (CDA). Produzir uma caracterizao do cotidiano do sistema de sade mental do municpio de Aracaju, mais especificamente do Centro de Ateno Psicossocial (CAPS) para lcool e outras Drogas (AD), mais especificamente ainda, de como estas se articulam com certos modos de subjetivao de masculinidades dentro desse sistema. Produzir caracterizaes que se apiem em uma experincia de pesquisa marcada pela insero sistemtica e regular no campo, escapando aos esteretipos e s falsas imagens sobre as condies concretas de funcionamento dos sistemas carcerrio e de sade mental 4. Eis o enunciado, de difcil consecuo, do objetivo das pesquisas aqui anunciadas. Tal objetivo requer uma cuidadosa discusso sobre mtodo. No que se refere ao sistema prisional, pela opacidade e totalitarismo do tipo de organizao em que nos inserimos. No que se refere ao sistema de sade mental, no terreno da reforma psiquitrica - em se tratando de uma pesquisa que ocorre num servio substitutivo de sade mental, CAPS AD -, pelo risco de se produzir uma discusso incua, que no analise os limites e desafios de um movimento antimanicomial tomado de assalto pelo Estado, ou seja, que corre cotidianamente o perigo de se institucionalizar/burocratizar. Parecendo bvio, os dois ltimos pargrafos supracitados, introdutrios da questo de mtodo que aqui se seguir, tm funcionado muito como as expresses bordo utilizadas nos sistemas de confinamento, que no s os prisionais: prontamente enunciada, a coisa se esgota em si e no faz derivar consequncias efetivas. Diante de instituies totais e, no nos enganemos, das novas espacialidades e dispositivos de controle que funcionam no contemporneo, a posio da pesquisa se deteriora ainda mais rapidamente at os limites de uma sobreimplicao (LOURAU,

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    1987) de tal ordem que as anlises so comprometidas de antemo, em geral pela natureza dos dados com que se opera ou se pensa operar. Dito isso, precisamos tambm enunciar como essas colocaes se relacionam com certa atualizao da produo do discurso cientfico no que se refere ao discurso de mtodo: se estamos indo na contramo de perspectivas essencialistas e universalistas, se no se trata mais de produzir a verdade, mas verdades circunstanciais, como falar em rigor? Qual o critrio de cientificidade? O que pode sustentar a especificidade do discurso cientfico do ponto de vista do que interessa ao pensamento? O rigor mantm-se na delimitao clara e distinta, mas dos procedimentos tcnicos e das circunstncias em que os objetos se constituem e as verdades se produzem. Uma densa descrio de procedimentos e a clara enunciao dos compromissos pelos quais se narra os acontecimentos o que pode liberar o pensamento para outras trajetrias e outras aventuras, onde se atualiza a especificidade do discurso acadmico, como se politiza o especialismo. Em ltima anlise, o rigor auferido pela efetivao do movimento estratgico. Qual a nossa estratgia? Qual nosso interesse e posio poltico-afetiva? Como, a partir de uma experincia, produzimos verdades que sejam condizentes com os compromissos na rede de relaes a partir da qual a experincia nos afeta? A pesquisa cientfica uma atividade social to submetida quanto qualquer outra s condies scio-histricas sob as quais se desenvolve, estando, assim, carregada de tonalidades poltico-afetivas na trama de nveis de titulao, paixes, condies de financiamento, cimes e cumplicidades, necessidade de produtividade acadmica, vaidades, interesses institucionais em relao ao eixo temtico e, evidentemente, esquemas de excluso e controle de perspectivas terico-crticas. O problema de pesquisa construdo e abordado no bojo dessa trama, a partir de certa poltica de teorizao e de vieses e compromissos afetivos, assumindo-se o nus e o bnus de assim compor. O mtodo como uma operao do esprito, antes de sua reduo a instrumentos e procedimentos, aqui foucautiana estratgia rigorosa de enfrentamento de um risco, um problema, um paradoxo. Premissa poltica-afetivamente implicada a orientar a inveno de tticas/tcnicas (instrumentos e procedimentos) que a efetivem. Aposta radical de um ponto de vista que nela arrisca tudo. Em ltima anlise, os instrumentos e as tcnicas utilizados se constituem orientados pelo imperativo estratgico do mtodo. Os procedimentos e instrumentos de uma pesquisa so da dimenso ttica. O mtodo, a estratgia, marca um interesse poltico desejante

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    que a ttica visa operacionalizar. O rigor na explicitao do movimento que se pe como modo de objetivao da dimenso poltico afetiva da estratgica em termos tticos de uma operacionalizao metodolgica em suas implicaes conjunturais ocupa, aqui, o lugar de critrio de cientificidade. Assim, compondo com uma perspectiva terico-metodolgica de inspirao foucaultiana, entrelaam-se gestos pesquisadores - dimenso de existncia que aparece no modo como esto selecionados e agrupados gestos de pessoas agindo segundo um esquema de funcionamento sujeito-pesquisador nos registros institucionais - e problemas de pesquisa: anlise das formas de objetivao das assim chamadas polticas pblicas de segurana (mais especificamente o sistema prisional) e sade mental (servios substitutivos de sade mental). Dito de outro modo, anlise de como tais polticas se articulam e compem com o boom do confinamento. Em nossas inseres tropeamos com prticas que indicam caractersticas de possveis mudanas histricas singulares: as conversas com agentes prisionais, tcnicos administrativos e gestores de diferentes escales do sistema mostraram a concordncia das anlises informais destes com as anlises feitas pelos internos. Ningum, com experincia neste sistema, defende, argumenta ou menciona com seriedade a tal funo de re-socializao, desde que informalmente. Uma expresso que no mbito do sistema prisional quase gria. Aparece em segmentos como Ah, mas segundo os princpios da re-socializao [...]; ? A gente no t aqui para re-socializar? [...], em situaes referidas distncia entre o que um grupo de agentes prisionais chamou de o real e o oficial. Assim, o termo re-socializao aparece como marcador de conversaes que sinalizam uma impossibilidade de seguir com uma linha de argumentao e raciocnio por se deparar com o descolamento do discurso da experincia comum, portal do sem sentido. Profissionais de sade mental, usurios, familiares em CAPS, almejando produo de autonomia e cidadania, reabilitao psicossocial? Palavras ao vento, palavras institucionalizadas, jarges repetidos diariamente! Ao proclam-las, parecemos continuar presos, como diria Chico Buarque, esperando, esperando o trem, esperando a morte, mesmo vivos, para esperar tambm. No entanto, pelo tempo que ocupam nos discursos gestores e pelos esforos em difundir informaes sobre o sucesso das finalidades institucionais dos dois sistemas, fazem repensar hbitos de anlise. A pista veio da fala de um tcnico de segundo escalo: uma sinuca de bico esse negcio de reabilitao pelo trabalho com tanto desemprego. Se dentro dos presdios a coisa funcionasse, ia ter gente cometendo crime para ter chance de ingressar no programa.

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    Todos estamos cumprindo pena: a pena de subsumirmos nossos corpos a uma existncia normalizada. Nossos corpos, virtualmente, so culpados. O corpo um aberto de possibilidades e a culpa advm dos nossos corpos insistirem, na maioria das vezes de forma inconsciente, em extravasar as fronteiras desse possvel pr-estruturado, dessa campnula de vidro em que nos colocaram. Os corpos devem ser vigiados. Esses homens, usurios de lcool e outras drogas, usurios do CAPS AD, esto cumprindo pena: ao ousarem borrar e interrogar o ideal de limpidez, do tudo est sob o controle, dos corpos normais, corpos sos, corpos fortes, corpos aptos, os corpos desses homens tornam-se corpos identificados, corpos abjetos, que nos oferecem o limite. Como? Limitando-os. Homens, corpos no cidados, agora adoecidos e no mais criminosos, devem cumprir pena no mais no presdio, no mais no hospital psiquitrico, mas no CAPS. Ir, frequentar o CAPS, essa a pena a cumprir se desejam se tornar novamente cidados, consumidores, consumidores de polticas pblicas. L, eles comem, bebem, dormem de dia, o que no podem muitas vezes fazer de noite; l, para no perderem a vaga que ganharam na loteria, muitos fingem, at para si mesmos, querer voltar a ser homem, ser trabalhador, homem honrado, bom filho, bom marido e bom pai; l, eles cumprem penas. Nova cultura de cidadania, o famigerado projeto de ampliao da democracia participativa, alardeado pelos governos brasileiros dos ltimos 10 a 12 anos, cria imagens de aes e dispositivos educacionais que seriam adotadas e desenvolvidas por organismos governamentais e setores da sociedade organizada visando uma mudana de cultura orientada pelo paradigma da Cidadania e dos Direitos Humanos. Documentos relativos a ciclos de dispositivos sociopedaggicos direcionados ao funcionalismo estatal e/ ou terceirizado conhecido como conferncias municipais, estaduais e nacionais de ... (sade, educao, juventude, direitos humanos, segurana, etc.) so exemplos emblemticos da modalidade discursiva que se tem em mente. Malgrado a repetida retrica estatal, a complexidade - e decorrente grau elevado de dificuldade de qualquer mudana cultural dimenso incontornvel prpria ao ritmo histrico que caracteriza os processos de produo de valores e crenas em relao aos modos de funcionamento e s prticas cotidianas. Isto coloca o problema para alm da facilidade com que apresentado na propaganda oficial. Assim, intervenes relativas aos modos de subjetivao, historicamente constitudos, prprios a uma sociedade, ou segmento desta, sempre foram desafios das cincias humanas. Est-se aqui em meio ao processo pelo qual os interlocutores formam ideias inditas ou do continuidade quelas existentes formao e transformao

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    de ideias irredutveis s caractersticas de um ou de outro interlocutor, s explicveis pelo singular scio-histrico da relao que os constitui. Diante do acima posto, nossa proposta discute a hiptese de que ao invs de se pensar as mudanas de estilo gerencial dos ltimos governos como uma abertura poltica, haveria, ao abrigo das imagens de abertura poltica e aperfeioamento democrtico, indcios de uma mudana nas funes societrias de trs grandes sistemas de sustentao do estado de direito no Brasil. Tal mudana criaria uma convergncia da rede pblica de escolas, servios assistenciais de sade e unidades prisionais nas implicaes destes com a produo institucional de violncia5 objetivada por uma atividade generalista de encargo direto dos corpos, agrupada sob a rubrica de fluxograma do estado policial como funo de servio social. Pelo desempenho dessa nova funo de encarregado direto pelos corpos se constituem saberes tcnicos relativos aos modos descentralizados de confinamento. Saberes comuns a professores de escolas pblicas, enfermeiros e assistentes da rede pblica de sade, agentes de reeducao e resocializao. Aps alguns anos de pesquisa-interferncia no Sistema Prisional e no Sistema de Sade, aprendeu-se que a contradio enunciada na dupla funo isolamento e reinsero compe coerentemente a funo institucional. O fato da idia de re-socializao pelo trabalho aparecer como falseta surgiu como analisador: se j no mais para o trabalho, o que orienta as prticas de socializao em uma sociedade em que, como nunca cultuado e na mesma medida precarizado, o trabalho j no valor absoluto? Progressivamente suspeita-se: A) da morte do deus trabalho e imediatamente de sua forma de culto: a educao; B) da finalidade desta segunda: melhoria da qualidade de vida das populaes. Do mesmo modo, o que se faz ento na rede de sade - j que no , pelo menos s e na maioria das vezes, produzir sade? E na escola - se j no educao o que a se ativa? E na priso - pela eloquncia da obviedade de que no socializao o fazer no sistema prisional? Seguindo e construindo linhas labirnticas, a partir de nossas artes do vivvel e de pesquisa, a construo do problema visou s condies scio-histricas de produo e reproduo da funo poltico-institucional de encargo direto pelos corpos. Visou, ainda e, sobretudo, s possibilidades de re-existncia pela ativao do desejo nos corpos, inclusive nos nossos. Trata-se de uma etno-interferncia sobre os modos de dizer e fazer encontrados em diferentes estabelecimentos e organizaes do sistema carcerrio e de sade mental.

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    Pesquisa-Interferncia Como fazer pesquisa transitando nos limites, por entre as disciplinas e saberes, na zona de indeterminao que entre eles se produz, atravessando velhos caminhos, na busca do que no foi percorrido? Como desenhar uma metodologia que implique o esforo de evitar simplificaes reducionistas, cedendo lugar a uma nova forma de experimentao que indica o desafio de se superar o isolamento e comprometer-se com as pessoas? O ponto de partida da nossa estratgia metdica consistiu em problematizar a inveno dos procedimentos de insero, construo de dados e anlise, seguindo as formulaes mais recentes da scio anlise francesa (interferncia) (LOURAU,1997) e a idia de uma regra de adequao nica do sentido das enunciaes (indexabilidade) trazida pela Etnometodologia (GARFINKEL, 2001). Esse movimento resulta no que aqui apresentada como etno pesquisa interferncia ou como etno-interferncia. Sugestes promissoras, ainda que discutveis, pelo que estas buscam no sentido de inverter o problema e transformar a ligao com o campo de pesquisa em vantagem. H aqui o explcito interesse de manter o enfoque da relao de reciprocidade e simultaneidade entre produo de conhecimento, interferncia no processo estudado e implicaes poltico-afetivas paradoxo de prticas especialistas que envolvem algum tipo de ao social, talvez no apenas destas. Isto no por uma propriedade que lhes pertena, mas, sem dvida, pelas capacidades e autoridades que os modos de recepo lhes atribui:

    [...] temos outras urgncias: no basta relativizar na pesquisa, como o antroplogo cultural; fazer dos documentos monumentos, como o historiador; conectar em rede, como o socilogo, embora tenha sido em tais bibliotecas que aprendemos a suspeitar da maior parte do que dito (e instado a fazer, pensar e ser) nas nossas. Somos necessariamente interventores diretos no campo social, dotados de poderes que podem favorecer ou matar definitivamente a vida, mesmo quando agimos em nome de verdades cientficas restritas ou locais. (RODRIGUES, 1998, p.45)

    Por meio do que intitulamos de etno-interferncia, atravs da trama insero-levantamento-caracterizao-anlises-discusso pblica de alternativas que o movimento de pesquisa operacionalizado visa a constituio de uma dispositivo com capacidade analtica e potencial de interferncia nas relaes cotidianas. O objetivo - em um sentido fraco j que, humanamente, se rompe com a iluso de que o futuro deva ser conforme o passado - que as verdades construdas deixem

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    de ser propriedade de especialistas e sirvam s pessoas diretamente vinculadas aos processos sociais em questo. Mas, como se torna operatria a noo lourauniana de interferncia? Falar em pesquisa interveno, ou termo equivalente, leva ao risco de se cair, quase que automaticamente, em uma atitude militante, nos moldes de uma cruzada. Esta seria orientada por um tipo de teleologia da libertao, anunciando aos quatro ventos seus propsitos de romper com os grilhes que acorrentam os escravizados. A imagem estereotipada da pesquisa participante se completa com a idia de que ela estaria instrumentalizada por uma metodologia clarividencialista, capaz de iluminar tudo o que est no campo inacessvel das trevas, dando, assim, conscincia. Se no se trata de cruzada, no se trata tambm de abstrair acontecimentos cotidianos que nos envolvem. Ao contrrio, a pesquisa nos aparece como alternativa poltico-afetiva de enfrentamento ao modelo das aes partidrias e/ou corporativas dos quais j se suspeita. Iluses de um comum senso: escapar usurpao dos interesses especficos, e ao vazio de certa gramtica, se instrumentaliza taticamente pela tarefa de encontrar um campo de coerncia conceitual que permita pensar acontecimentos no mbito de organizaes totais e dos modelos assistenciais, acionando um dispositivo de discusso coletiva das implicaes situacionais com a lgica capitalstica. Desse modo, imediatamente informado pelas circunstncias da pesquisa, o pensamento se debate para escapar aos sentidos habituais de um cotidiano ubquo (GUATTARI, 1992). Como alternativa noo de interveno, que se articula a uma ao que se pretende completamente orientada por um objetivo pr-estabelecido, utilizamos a noo de interferncia, a qual supe uma ao que no intenciona antecipar o sentido que sua aproximao com o campo de relaes construir, abrindo espao para deixar-se surpreender com tal campo e, nele, com os sentidos produzidos a partir de tal interferncia (ALTO, 2004). Questionando, ento, o modelo e as implicaes da pesquisa-interveno, no presente trabalho, o interesse maior se detm no tema das relaes que constituem as aes de pesquisa, no caso especfico, nos espaos de funo pblica em organizaes totais e em modelos assistenciais. Como pesquisa participante, em um sentido amplo do termo, aqui ficam acentuados dois aspectos: o primeiro, pensar o mtodo como especificao sistemtica de um proceder orientado por interesses de conhecimento singular de acontecimentos raros No se tratando de abordar processos regulares ou, dito de outro modo, sendo o caso de enfrentar os automatismos padronizados caractersticos da lgica capitalstica, inclusive os automatismos de pesquisa, fica-se obrigado a um esforo de experimentao metodolgica em busca de

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    entendimento sobre processos sociais em estado de fuso. Concebe-se, portanto, a questo metodolgica como estratgica no fazer pesquisante e no como um cargo de especialistas metodlogos:

    [...] uma vez que o objeto de pesquisa da sociologia a vida social na qual estamos todos envolvidos, a capacidade de fazer uso imaginativo da experincia pessoal e a prpria qualidade da experincia pessoal de algum sero contribuies importantes para a capacitao tcnica desta pessoa. (BECKER, 1993, p.45)

    O segundo aspecto implicado na noo de pesquisa participante, por conta mesmo do permanente estado de experimentao de como se concebe a pesquisa, surge a questo do tipo de pesquisador e do tipo de objeto de estudo que se especificam pela pesquisa. Considerando o pesquisar como acontecimento scio-histrico e, porque tal, executor, destinatrio, instrumento de polticas, a ttica de abordagem refere-se ao mapeamento da produo discursiva local e cotidiana, anlise de rotinas e automatismos padronizados que sustentam os funcionamentos institudos. O que se visa, estrategicamente, um comentrio sobre os jogos de linguagem (WITTGENSTEIN, 1994) que discuta as lgicas que os inspira. Neste plano, a pesquisa pde tornar-se interferncia medida que colocava em anlise, nos espaos das organizaes de sade e do sistema prisional, as imagens agostinianas6 postas como justificadoras dos modos de operar e os propsitos formalmente enunciados da referida funo pblica. A partir das consideraes realizadas, pode-se dizer que a pesquisa-interferncia insere-se num movimento mais amplo de re-orientao da pesquisa em cincias humanas, um movimento de rejeio de pretenses essencialistas e universalistas. Desse modo, a anlise aspira e, quem sabe inspire, o surgimento de outros mundos por outras prticas. A pesquisa passa, ento, a se mover segundo algumas marcas especficas: a) foco na dimenso local dos eventos sociais, nas atividades mais ordinrias da vida cotidiana; b) compromisso com o circunstancial, tanto da pesquisa, quanto do pesquisador e modo de conceber o objeto de estudo/problema de pesquisa; c) aproximao e compromisso com o desejo nas pessoas; e d) operacionalizao da interferncia atravs de dois dispositivos inseparveis: o dispositivo analtico e o articulacional, ou seja, o pesquisar uma atividade hbrida, porosa, como experimentao, negociao e composio - entre pessoas, entre espaos paisagens, o pesquisante e sua trajetria atravessando relaes - e no como interpretao de outra realidade circunscrita e a priori.

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    Pesquisa nesses espaos-tempos Sabe-se que, no contemporneo das sociedades ocidentais, a lgica hegemnica a capitalstica. O modo de operar de tal lgica, ao transformar tudo e todos em valores intercambiveis pelo equivalente universal, produz vazio de sentido, principalmente sob o mbito do capitalismo financeiro em que tudo desincorpora. Isso leva ao limite o efeito de heteronomia das instituies em face s relaes cotidianas. Diante disso, pensamos que uma possibilidade de (re)existncia d-se atravs da ativao do desejo nas pessoas, tensionados contra os interesses institucionais. O alvo da anlise so conjuntos de lgicas abstratas de ordenamento das relaes, articuladas em dispositivos de regulamentao da vida, as instituies. Tais feixes institucionais podem ser leis, normas e/ou pautas, formaes discursivas atravs das quais se objetivam e se legitimam valores. Em outros termos, entendemos como instituies:

    [...] no o estabelecimento ou local geogrfico, mas relaes e campos de fora institudos e produzidos percebidos como naturais que se opem constantemente a outros campos de fora instituintes. Da dizemos que as instituies diferentemente de como so vistas no so estticas, cristalizadas e, portanto, eternas. Esto em constante movimento, o que significa que podemos nelas interferir. (COIMBRA, 2001, p. 21-22)

    Todavia, uma vez organizadas entre si, as instituies produzem uma sensao de estabilidade que tende a ser naturalizada e uma operao contnua de moralizao. Nessa direo, aproxima-se o dilema institucional do dilema existencial:

    [...] toda instituio impe ao nosso corpo, mesmo em suas estruturas involuntrias, uma srie de modelos, e d nossa inteligncia um saber, uma possibilidade de previso, assim como de projeto. Ns reencontramos a concluso seguinte: o homem7 no tem instintos, tem instituies. O homem um animal se despojando da espcie. Assim, o instinto traduziria as urgncias do animal, e a instituio, as exigncias do homem. [...] o tipo homem um projeto de formao de instituies. (DELEUZE apud PAULON, 2006, p. 127)

    As instituies e os modos de subjetivao tomados aqui como campos enrijecidos dos repertrios de subjetivao so vetor e suporte, duplamente, de um complexo poder-saber: produzem-se e naturalizam-se as instituies, produz-se e naturaliza-se certo tipo de subjetividade, certo tipo de produo desejante, um certo percurso conformista do desejo ao processo moralizante das instituies (PAULON, 2006, p. 124-125). Na contramo de tal naturalizao, intentamos afirmar o sentido de produo histrica dos processos de subjetivao e das instituies.

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    Se instituies e subjetividades no so essncias, naturezas, origens, cabe a lio de Castoriadis (2004, p. 159) ao falar do dispositivo grego da democracia:

    Esta ruptura pressupe que esses mesmos indivduos que foram fabricados por sua sociedade, que so fragmentos ambulantes, puderam se transformar essencialmente, puderam criar os meios de pr em causa e em questo as instituies que haviam herdado, as instituies da sociedade que os formara.

    Retomando a questo do mtodo, qual seria nossa estratgia? Orientar a pesquisa pelo desejo das pessoas e no pelos interesses institucionais constitutivos da lgica capitalstica. Procedendo ao desmonte dos automatismos padronizados pelo descrdito nas redundncias retricas prestidigitadoras da Verdade, principalmente aquelas dos enunciados jurdicos. Partindo da idia de aprisionamento pelas imagens agostinianas (WITTGENSTEIN, 1994), lembramos aqui das reflexes sobre a tautolgia comunicativa apresentada por Lucien Sfez8 , para entender os modos oportunsticos pelos quais a lgica do capitalismo financeiro se articula. Mais uma vez, anuncia-se o escopo do nosso trabalho, das nossas pesquisas-interferncias: tentar resistir, tentar furar o cerco da lgica capitalstica, do tautismo comunicacional e dos automatismos tecnicistas, criando dispositivos de anlise coletiva das implicaes; produzir espaos-tempos em que os processos de institucionalizao que nos constituem possam ser postas em questo. So por nossas prticas, emergindo das relaes dos homens e das mulheres, e no por fatos externos a ns, que se estabelecem a justia e as injustias (CASTORIADIS, 2004). Em linhas gerais, o mtodo, no nosso caso, a estratgia para explicitar essa questo, colocando em funcionamento esses espaos-tempos de anlise coletiva das implicaes e crtica s instituies, s lgicas que nos orientam na ordenao de nossas relaes. , ento, no sentido de reativao do desejo nas pessoas, que se ressalta a importncia de reativar os saberes locais, fazendo ruir o lugar imaculado do especialista e o seu poder de estabelecer A verdade do mundo, garantindo-se objetividade por meio do calculo tcnico de base racional. Desde o sculo XIX e ainda nos dias atuais, os regimes de verdade que vigoram nas sociedades ocidentais tendem a ser veiculados, dentre outros equipamentos sociais, pela cincia, mais especificamente um modo hegemnico e legitimado de fazer cincia, a saber, o positivista, com seus ideais de neutralidade, objetividade e universalidade. Este elege determinados discursos como verdadeiros e considera outros como falsos. Contrapondo-se ao iderio positivista, que se intenta focar nos saberes locais: saberes dominados,

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    descontnuos, no qualificados e no legitimados pelos discursos englobantes, hierarquizantes e totalizantes produzidos pela cincia.

    Que tipo de saber vocs querem desqualificar no momento em que vocs dizem uma cincia? Que sujeito falante, que sujeito de experincia ou de saber vocs querem menorizar quando dizem: eu, que formulo este discurso, enuncio um discurso cientifico e sou um cientista? (FOUCAULT, 2001, p. 172)

    Depois de aprender a falar na gria do sistema, as duas pesquisas viram-se colocadas diante da questo da funo efetiva do sistema: um confinamento de corpos que no se pe como segregao, uma vez que o caso de lhes permitir uma vida em separado. Segundo nossa hiptese, trata-se, antes, de manter tais corpos com a vida em suspenso, numa latncia ancorada na promessa de vida no futuro. Confinamento do presente em uma temporalidade arrastada. Nesse terreno de hegemonia do capitalismo tecnofinanceiro e sua tomada de poder sobre as subjetividades, re-existir descrendo, descreditando, extravasando as fronteiras desse possvel pr-estruturado por ns habitado, eis a estratgia metdica para guerras com o vazio de sentido e com a naturalizao/universalizao. Indissociabilidade entre produo de conhecimento, pesquisa, poltica, afeto, em movimento transversal despido de concepes fundamentalistas; no restrita aos muros das especialidades. Pesquisa anti-normalizadora, desfocada da idia de produo de verdades universais, um caminhar menor, marcado por singularidade e inventividade, eis o proposto. Desmontar as estruturas institucionais sem que caiam por sobre as cabeas das pessoas. A estas, deixar em paz, e argumentar ferozmente contra os arcasmos oportunistas, negando se, enquanto pesquisador, as encomendas institucionais de carceragem e encargo direto pelos corpos. Aliar-se entre pessoas para tentar o que no se pde ainda, inclusive nos modos de fazer pesquisa. Referncias Bibliogrficas ALTO, S. (Org.). Ren Lourau: analista institucional em tempo integral. So Paulo: Hucitec, 2004. BAPTISTA, L, A. Narraes contemporneas: vagabundos e turistas nas prticas da sade mental. In: JAC-VILLELA, GREZZO; RODRIGUES (Org.). Clio-psych hoje: fazeres e dizeres psi na histria do Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumar; FAPERJ, 2001. BAUMAN, Z. Globalizao. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. BECKER, H. S. Mtodos de pesquisa em Cincias Sociais. So Paulo: Hucitec, 1993.

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    Aceito para publicao em: 23/12/2009 Acompanhamento do processo editorial: Deise Mancebo, Roberta Romagnoli e Marisa Lopes da Rocha

    Notas * Professor permanente do Ncleo de Ps-Graduao em Psicologia da UFS e do Ncleo de Ps Graduao em Educao da UFS **Graduada em psicologia pela UFS, mestre em sade coletiva pelo ISC/UFBA, bolsista CNPq; doutoranda em educao pela UFRGS, na linha de pesquisa Educao, Sexualidade e Relaes de Gnero, bolsista CAPES. 1 Capitalstico usado aqui no sentido dado por Guattari. Ver Caosmose. Rio de Janeiro: Ed. 34. 1992. 2 Saliente-se, porm, que, mesmo tidos como incapazes de produzir e, por isso, submetidos ao internamento, esses dois segmentos so atravessados pela lgica de produo capitalstica: aos criminosos, destina-se o trabalho forado nas workhouses; aos loucos, destina-se o trabalho teraputico nos asilos psiquitricos. Hoje, tambm costumam ser internados aqueles que transitam entre os dois rtulos, loucos e criminosos, a saber, os usurios de drogas. 3 Em aspas, Coimbra cita Wacquant 4 Os relatos das pesquisas mencionadas, bem como algumas linhas de argumentao, esto apresentados mais detalhadamente em A herana das galinhas: histrias e estrias do sistema prisional em Sergipe Mendona Filho, 2009 e Por uma genealogia das polticas de incluso de sade mental contemporneas: da produo de polticas identitrias e de modos variados de confinamento Michele Vasconcelos e Mendona Filho, ambos In: Poltica e Afetividade: narrativas e trajetrias de pesquisa. MENDONA FILHO, M. e NOBRE, M. T. Salvador/Aracaju: EDUFBA/EDUFS. 2009. 5 A noo de violncia institucional est apresentada e discutida em violncia institucional e funo educativa no estado do capitalismo financeiro, MENDONA FILHO, M. Educao e Cidadania: questes contemporneas. In: Neves, P. Educao, Cidadania: Questes contemporneas. So Paulo: Cortez. 2009. 6 No sentido Wittgensteiniano discutido em MORENO, A. Wittgenstein atravs das imagens. Campinas: Ed.UNICAMP. 1993. 7 atravs da naturalizao desses mesmos modelos que tendemos a resumir a Humanidade, com H maisculo, a uma forma-homem articulada a imagens de homem, masculino, branco, viril, chefe de famlia, trabalhador, consumidor, empreendedor, sadio, til ao capital. 8 Ver Sfez, L. Crtica da Comunicao. So Paulo: Loyola, 1994.