Filhos da época...De algo que pode ser palpável ou digamos, psicológico? Todos já ouvimos...

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Revista Plural MASK — 2

Filhos da época wislawa szymborska

Somos filhos da época

e a época é política.

Todas as tuas, nossas, vossas coisas

Diurnas e noturnas,

são coisas políticas

Querendo ou não querendo,

teus genes têm um passado político,

tua pele, um matiz político,

teus olhos, um aspecto político.

O que você diz tem ressonância,

o que silencia tem eco

de um jeito ou de outro político.

Até caminhando e cantando a canção

você dá passos políticos

sobre um solo politico

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Versos apolíticos também são políticos,

e no alto a lua ilumina

com um brilho já pouco lunar.

Ser ou não ser, eis a questão.

Qual questão, me dirão.

Uma questão política.

Não precisa nem mesmo ser gente

para ter significado político.

Basta ser petróleo bruto,

ração concentrada ou matéria reciclável.

Ou mesa de conferência cuja forma

Se discutia por meses a fio:

deve-se arbitrar sobre a vida e a morte

numa mesa redonda ou quadrada.

Enquanto isso matavam-se os homens,

morriam os animais,

ardiam as casas,

ficavam ermos os campos,

como em épocas passadas

e menos políticas.

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Quando foi que nos acostumamos?

Anna Clara de Vitto1

Desde que iniciei meu período de isolamento social, em 19 de março de 2020 (não sou

grande fã de datas, mas algumas são inesquecíveis), tenho buscado atingir o equilíbrio,

talvez impossível, entre obter informação de qualidade, para não viver de maneira

irresponsável em um mundo paralelo, e evitar o adoecimento mental e físico devido às

notícias. Uma cifra tem me tirado o resto de leveza a que ainda me apegava, junto com,

naturalmente, o sono: no Brasil, contabilizamos há meses o assustador número de mil

mortos por dia em decorrência da Covid-19, não raro mais do que mil. Alguns

argumentarão: “é a média, estúpida”, atravessando-me com a ausência de possibilidade

de diálogo. Da mesma janela desde que tudo começou, a sofreguidão pela volta da

“normalidade” me parece cada vez mais ruidosa. O ponto de ônibus na frente do prédio

dito de alto padrão (de quê? Creio que não seja de civilidade) nunca esteve vazio, verdade

seja dita. Intramuros, a triste pressão, porém crível e até esperada, para a reabertura das

áreas comuns. E, claro, o desprezo pelo uso de máscaras de proteção, como se toda a

questão pudesse ser resumida ao risco individual. Ah, a liberdade individual, tão

tortamente compreendida! Nesse momento, me lembro de que não sou prosadora e, de

súbito, me vem à mente o belo e conhecido texto poético de Marina Colasanti, intitulado

Eu sei, mas não devia (alguém disposto a um café para debater as fronteiras entre a prosa

e a poesia?). Marina, em certo ponto do texto, indaga:

1 Poeta, leitora, aprendiz, oficineira, debatedora, servidora, antibolsonarista, antifascista, incorrigível.

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“A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em

doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor

aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está

cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o

pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés

e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se

consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não

há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica

satisfeito porque tem sempre sono atrasado. A gente se

acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.

Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-

se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma

para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de

tanto acostumar, se perde de si mesma”.

Quando foi que nos acostumamos a tornar a vida tão parca, tão mesquinha, tão

ensimesmada? A fechar o vidro do carro com a aproximação dos artistas, crianças,

mães, pessoas que, nos semáforos da vida, pedem dignidade aquém do mínimo

devido a qualquer ser humano? A ignorar o vizinho que bate na mulher e nos filhos,

o aumento explosivo das denúncias de agressão e feminicídio durante a

quarentena? A virar o rosto toda vez que mais uma pessoa negra ou indígena é

brutalizada sob os coturnos, armamentos, aparatos, leis, labirintos, silêncios do

Estado? A aplaudir a crescente precarização de trabalhadoras e trabalhadores? A

nos tranquilizar com o silenciamento ou mesmo o extermínio de corpos e afetos

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dissidentes? A nos confortar com falsos lemas, tais como “servir e proteger”,

“ordem e progresso”, “a lei é para todos”? A achar válido o desmonte da educação,

da saúde, da cultura, do serviço público? A seguir no automático diante das notícias

de abuso e estupro infantil? Quando nos acostumamos a contemporizar o

fanatismo que não se cansa de tolher direitos de mulheres, de meninas, de minorias

em direitos? Quando foi que passamos a ignorar fatos, números, a ciência? Eu

poderia voltar a 2016, 2018, a 1964, poderia puxar um fio infinito de malfeitos que

nos define como povo. Mas, hoje, a pergunta sem resposta é: quando foi que passou

a ser motivo de orgulho trocar a máscara de proteção pela capa da incolumidade

ilusória, pelo uniforme do ódio organizado?

Não é de hoje que as humanidades estão sob duro ataque. Mas a presente edição

da rica Revista Plural é um convite para que deixemos de nos acostumar, para que

sigamos “desafinando o coro dos contentes”, como nos ensinou e ensina Torquato

Neto.

Qual é o inominável que, livre da máscara, pulsa e fulmina de morte?

Quais resistências, sorrisos, prantos, esperanças as máscaras guardam e garantem?

São Paulo, 29 de agosto de 2020.

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O vírus não vencerá o capitalismo. A revolução viral não

chegará a ocorrer. Nenhum vírus é capaz de fazer a revolução.

O vírus nos isola e individualiza. Não gera nenhum sentimento

coletivo forte. De alguma maneira, cada um se preocupa

somente por sua própria sobrevivência. A solidariedade que

consiste em guardar distâncias mútuas não é uma solidariedade

que permite sonhar com uma sociedade diferente, mais pacífica,

mais justa. Não podemos deixar a revolução nas mãos do vírus.

Precisamos acreditar que após o vírus virá uma revolução

humana. Somos nós, pessoas dotadas de razão, que precisamos

repensar e restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, e

nossa ilimitada e destrutiva mobilidade, para nos salvar, para

salvar o clima e nosso belo planeta

Giorgio Agamben

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MÁSCARAS E MÁS CARAS

NIC CARDEAL

Máscaras escondendo risos, bocas silenciando agonias, os dentes, a língua, o ar que se

evapora, o ar que falta antes mesmo de ir embora. Quando chega um dia em que preciso

dela, acordo com falta de ar, o espaço parece pouco diante do receio de tê-la mínima para

o máximo da apreensão que se apodera dos meus estreitos entendimentos desses tempos

doloridos. Ajeito-a várias vezes, respiro com dificuldade, o ar se contrai entre mim e

minhas angústias. Mascaro minhas tristezas por trás da máscara — e vou. Porque vez ou

outra preciso ir, embora meu delírio diga que não. A casa que me guarda. Quero ficar. O

respiro secreto, inteiro, completo. Melhor lugar nesses tempos suspensos entre um

passado fresco e um futuro tão indecente — feito um pedaço extenso de nunca mais —

desmoronando a olhos vistos e bocas escondidas. É preciso ir. Diante da porta — essa

abertura verticalmente longa com base na altura do chão, que me guarda do estranho 'lá

fora' colecionador de desesperos — engulo em seco o desejo de nunca mais ter de ir. Mas

é preciso ir vez em quando. É preciso. Diante da porta — instrumento utilizado para

revelar algo depois de aberto, passagem entre dois lugares, mundos, estados — estou

paralisada. De máscara, na porta — lugar por onde se entra ou sai, por onde se prende,

repreende, liberta, dispersa, por onde se passa, ou fica. A chave entre os dedos, a chave

de girar para frente e para trás, cadeados, segredos, muitas voltas. Porta combina com

vento, voo, asa. Máscara combina com medo, falta de ar, todos os receios. Minha boca

mascarada, porta trancada de silêncios no vazio lá de fora. Porta aberta. Respiração curta,

coração acelerado. “Massacro meu medo/mascaro minha dor/já sei sofrer”()... E nem me

diga que tudo isso se pode jogar "num verso intitulado mal secreto" (), senhor deus das

palavras úteis ao desespero, porque não há poema que suporte o peso desumano das más

caras dos homens que nos desorientam! Sim, eis aqui minha confissão por trás da

máscara: "minha alma chora" (*)!

(*) de Jards Macalé e Waly Salomão, Mal Secreto)

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As máscaras que usamos.

Ingrid Caldas

“A vida é um grande Baile de Máscaras e

cabe a nós desvendar o que tem

atrás de cada máscara.”

Rafaél Cruz

É um incêndio que afogueia a face, um sufocar que desarma a alma.

Andando pelas ruas na tela da TV a nova realidade é um meio-rosto, olhos por vezes

assustados e inquietos ou sem expressão visível. O mistério para as mentes mais aguçadas

e criativas, o receio para os mais descrentes, sofridos.

O papel das máscaras vem de longe e de situações muito opostas se levarmos em conta o

papel fundamental de algo que protege ou disfarça.

De algo que pode ser palpável ou digamos, psicológico?

Todos já ouvimos alguém falar que fulano é mascarado. Este fulano é falso, dissimulado,

representa um papel ou persona.

Se há uma insatisfação consigo mesmo, ou uma enorme necessidade de se adaptar, ser

aceito em um meio social, cria-se um personagem.

O que vemos hoje, presenciando esta mudança brusca em tudo e todo um mundo que

girava de forma “previsível”, são máscaras. Muitas máscaras!

No meio delas as que nos causam espanto — será? — ainda são as que caem.

Nos mostram a face mais grosseira, ou desrespeitosa, ou ainda dolorosa.

A máscara que nosso papel social nos faz assumir, a que oportunamente alguém até nos

oferece para que assumamos um papel que não nos cabe.

Pessoas que impactam nossas vidas.

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Máscaras que protegem da realidade, sofrimento e decepção.

Mas tudo isso cansa, dá muito trabalho. E ao fim a realidade vem à tona!

É preciso parar de colocar uma máscara para cada situação que vivemos e ouvir mais o

que a nossa alma está dizendo. Precisamos conversar mais, usar mais nossos sentimentos,

ser humildes. Escutar, prestar atenção no que o outro sente e aprender. Todos nós somos

mestres e alunos durante todo o tempo.

Aquele que consegue ser ele mesmo, independentemente de ter poder, riqueza material,

fama ou sucesso, caminha rumo à sabedoria. A vida acaba. E isso nos está sendo exibido

da forma mais dolorosa e crua. E ela é vazia se não vier acompanhada de um propósito

maior.

Quem sabe se começarmos a aproveitar nossas máscaras para enxergar o que realmente

importa, o que se pode mostrar pelo nosso âmago exposto diante das mazelas alheias,

veremos que todos somos apenas um. Que precisamos todos uns dos outros.

Assim como evoluímos em poucos meses em coisas onde houve a necessidade premente,

deveríamos evoluir e alcançar uma sabedoria maior.

Mas por enquanto, observamos as pessoas sentirem-se tristes e perdidas, sem um

propósito que ajude a outras pessoas e a si mesmo.

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Tirem as crianças da sala

LUNNA GUEDES

Hoje eu acordei amarga. Com aquele gosto de café frio-amanhecido nos sulcos da

boca e pensei — enquanto alongava os músculos e nervos do corpo, pernas-pés-braços-

mãos e pescoço —, na falta que eu sinto das calçadas-ruas... e de todos os movimentos e

barulhos da cidade.

São Paulo ficou vazia, monótona. É outra cidade que, definitivamente, não quero me

acostumar! Olho para o céu e vejo o azul dia e o negro noite. É tudo tão imenso-cheio. E

aqui embaixo é tudo tão pouco-pequeno-encolhido que me faz diminuir junto, como se

tivesse bebido do mesmo chá de Alice.

Sinto falta até da poluição a esconder tudo e a roubar o meu ar. A cobrir de fuligem-

ferrugem as fachadas dos prédios. A envenenar tudo que toca... e a me impedir de ver

essa gente sem graça com suas crenças no ontem e esse tal de amém eterno.

No meio de tanto sossego, eu percebi que a cidade me esconde quando me faz mais

uma no meio de seus tantos.

Atravesso ruas, dobro esquinas... e espero que a máscara-obrigatória me proteja

desses negacionistas com seus discursos vazios de verbos e tão cheios de substâncias

tóxicas que se repetem de boca em boca — tão letal quanto o vírus que nos trancou em

nossos calabouços. Essas pessoas são armas engatilhadas e prontas para o disparo: aperta

verde e confirma.

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Sair de casa virou uma espécie de batalha... e eu penso em Susan Sontag, que

escreveu sobre si mesma, diante da mais covarde das Guerras... a do Vietnã. Uma batalha

visível, ao contrário dessa que enfrentamos e que me deixou à deriva — a espiar janelas

e a imaginar vidas-personagens em cada moldura que a vista alcança. Reclamo com o

vento frio das manhãs e respondo aos pássaros que saem em revoadas impossíveis. Eu

dei para falar com as aves... que cantam incansáveis nas árvores, sem saber da sorte que

suas asas têm. Há maritacas aos montes por aqui. Alguns bem-te-vis e sabiás. Urubus e

pombos. Pequenos e ferozes beija-flores. Respostas, no entanto, não me oferecem... ao

contrário dos humanos, tão sábios e eloquentes em suas certezas antes mesmo do meio

dia.

Que inveja sinto das fugas dos pássaros. Observo-os em paralelo à menina que eu

fui — que escapava para o telhado a fim de observar as gaivotas. Como era delicioso

acompanhar o mergulho nas águas do mediterrâneo. O voo ligeiro das aves que cruzavam

os céus rumo ao leste pela manhã e a oeste pela tarde. Sempre quis saber para onde iam

em seus voos migratórios. Certas coisas apenas o imaginário pode desvendar, não cabe

aos olhos, que cumprem o seu papel de alimentá-lo... O que me levou a pensar no

comportamento da turba em tempos pandêmicos. Os adultos se comportam feito crianças

mimadas. Por todos os lados há alguém a fazer birra. Recusam-se a usar a máscara.

Apelam para o fantasioso e insistem — dando novo significado à teimosia — em certezas

que não são validadas. Na fila do supermercado, uma senhora que envelhece um pouco

mais a cada novo minuto, repete uma frase-sem-sentido. Na Farmácia, um rapaz faz o

mesmo... e eu penso na massa de modelar, distribuída pela professora do primeiro ciclo

de mesa em mesa. Eu respirava fundo, apoiava o peso da cabeça no braço esquerdo

e, de ângulo particular, observava o conjunto de figuras iguais a moldar tudo e nada. Ali

eu aprendi o que não seria: igual.

O combinado era crescer e me tornar um adulto responsável, consciente, ousado,

corajoso, autossuficiente! Mas quando olho ao redor, percebo que não há um único adulto

disponível para informar a hora do banho, das refeições e colocar todas essas crianças na

cama, anunciando a hora de dormir. Estão todos na sala, com os olhos arregalados e

grudados na televisão... tentando decidir de qual herói — do momento — gostam mais.

E tem para todos os gostos, menos para o meu... que sempre deu atenção aos vilões.

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Eu me lembro que quando menina, cruzava os braços à frente do corpo e reclamava

das ordens dadas pelos adultos responsáveis por meu crescimento e ouvia como resposta:

aproveite a infância, porque quando crescer terá responsabilidades que apenas a idade

aponta. Do último pássaro que passou por aqui... eu quis saber: você viu para onde

levaram os adultos? Saíram voando em bando e pareciam gargalhar da minha desgraça.

Foram embora e me deixaram para trás — com o gosto de café amanhecido no canto da

boca.

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Penso que a beleza que ainda resta no mundo é

justamente que nada está dado enquanto ainda

estivermos vivos. O vírus, que arrancou todos

do lugar, independentemente do polo político,

está aí para nos lembrar disso. A beleza é que,

de repente, um vírus devolveu aos humanos a

capacidade de imaginar um futuro onde

desejam viver.

ELIANE BRUM

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Correspondência

Os meus heróis usam máscaras.

Mariana Gouveia

Caríssimos,

Enquanto o vento balança no varal e seca as máscaras que eu lavei,

escrevo para vocês, que para mim, não têm rostos, apenas olhos atrás de

máscaras de diferentes cores e formatos. Nesses olhos eu vejo o quanto de

dedicação e amor vocês derramam, dentro do que é possível, para quem está

sofrendo a doença ou até para os familiares.

Nesses tantos de dias de pandemia — eu perdi a conta e parecem

séculos — eu pouco saí de casa e quase não precisei usar máscaras. Mas,

vocês não... é diário e por horas seguidas e nos relatos que leio, nas histórias

contadas em jornais vejo nomes por detrás de cada uma e muitas vezes, vi

lágrimas também, além de medo e dor.

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Eu nasci em um lugar onde as máscaras eram usadas em uma

cerimônia que se repetia desde os bisavós, no mês de Junho e que meu pai

sempre tratou de seguir, por isso, desde menina, eu e meu irmãos

aprendemos a preparar a massa feita com a goma da mandioca e embolar os

jornais, revistas e fazer a minha própria máscara. Moldava o contorno do

rosto e dava a ela a figura que eu queria ser. Claro que eu sempre escolhia

um bicho, e como meu pai dizia que cada um representava a sua natureza eu

me via sendo ave, borboletas. O povo da frente trazia na face o interior de

sua natureza e monstro cruéis apareciam. Era a cultura de um povoado, que

aos poucos foi se desfazendo com a morte de algumas pessoas, que traziam

a história na alma ou a mudança de cidade – que foi nosso caso – e as

máscaras viraram histórias contadas aos filhos, nas noites de São João.

Mas vocês não! Embora, as máscaras fizessem parte da profissão,

vocês foram obrigados a usar como equipamento de segurança enquanto

salvam vidas ou veem algumas se perderem. Li relatos lindos em

madrugadas de insônia sobre coragem, sobre marcas que ficavam

estampadas nos rostos como se fosse uma prensa, sobre a vida tão frágil

diante de um vírus que abalou o mundo. Parecia que eu estava diante desses

filmes de ficção científica onde os mocinhos usavam roupas brancas, luvas

e as máscaras não eram a base de efeitos especiais. Eram de pano ou de

material que na verdade não protegia e por isso, muitos desses heróis também

não puderam ser salvos.

Aprendi, que quando a batalha fica difícil o mais importante é quem

estava do seu lado durante a luta, talvez mais do que a própria luta e tenho

certeza de que em cada vida que se foi, um de vocês esteve ali, do lado e

posso garantir que fez a maior diferença e eu poderia até dar nomes a alguns

de vocês tão perto de mim... mas perderia o sentido dessa carta dizer que o

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João fez mais diferença do que a Marli, por que não teve um dia sequer desde

que esse maldito vírus se instalou que um plantão não teve um rosto

mascarado contendo uma lágrima pela perda, pela sensação de impotência,

pelo cansaço, fadiga ou dor.

Em um sistema de saúde como o nosso, diante de todas as

dificuldades que já sabíamos que tínhamos, o trabalho de vocês foi e é de

maior importância. Poderia ter sido muito pior, se é que existe algo pior do

que está aí. Mas sim! Poderia ter sido muito mais, porém, por trás de cada

máscara de técnico, enfermeiro, médico, assistente social, fisioterapeuta e

todos os outros profissionais de saúde tem alguém que se importa com o

outro, com a vida que ali está e isso é de uma importância imensa nesse

momento.

Em cada afago na mão, cada emoção repassada através do olhar, cada

vontade de abraço que não pode ser dado há um herói que se emociona por

não estar em segurança com a família, que se fragiliza porque não pode dar

mais atenção para quem está sofrendo.

Hoje, digo que, de uma maneira geral, os meus heróis usam máscaras.

Obrigada pela dedicação e cuidado!

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Entre o vírus e o hospedeiro Adriana Aneli

BEM PLANTADO, NÃO SE DESENRAIZA

BEM ACOLHIDO, NUNCA SE PERDE.

LAO-TZU

Hoje é 27 de julho do ano de 2020. Há 135 dias, não saímos do nosso apartamento.

Ao versículo: “Não conviverás. Covid 19(20)”, obedecemos, irrestritamente.

De tempos em tempos, caminho até a fronteira imaginária do hall do elevador e,

armada de álcool em spray, óculos e máscara, sigo em busca de suplementos e outros

gêneros-de-nem-tanta-necessidade, que nos chegam pelo elevador, graças à força sobre-

humana dos que dispõem de mais coragem, menos suscetibilidades e da impossibilidade

de exercer a profissão de modo remoto.

Neste reino, nossas próprias escolhas adentram, após minuciosa desinfecção

(embora um tanto da vilania de fora insista em atravessar frestas e chegar até nós por

fibras ópticas).

No mergulho às facetas do isolamento, experimentamos perdas. E ganhos.

É o tempo de adeus, sem despedidas. Sonhos e amigos se foram. Restou a dor

insepulta, saudade que chega em sobressalto, em soluços. No amargo dos dias que

seguem, comentamos óbitos empilhados em estatísticas e soluções represadas no dolo das

repartições públicas.

Tempo de impotência. De cansaço. De autopenitencia. De autocomiseração...?

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Reagimos: caminhadas de 40 minutos em marcha acelerada, diariamente, por

pensamentos compartilhados. Deles nascem esperanças e outras ansiedades.

Resistimos: abraço quem somos e o que nos tornamos nestes tantos e tantos meses;

recolho diálogos e gestos que dão sentido a esta quarentena.

Ressignificamos as nossas funções e a de objetos que nos cercam; lemos, arruma-

mos, cozinhamos, trabalhamos, estudamos: renovando vida em cada cômodo desta casa.

Saberemos, quando chegar o futuro: “houve perdão e possibilidades naquela vida

fechada”.

Então, acompanhamos de perto as mudanças miúdas da paisagem, uma pessoa que

caminha, os cães brincando na varanda defronte, a orquídea sobre nossa mesa, a azaleia

que floresce e floresce. Em você, atropelos do humor; em mim, vincos no rosto e aquele

tanto de cabelos brancos...

Chegarão as vacinas; sairemos.

Usaremos nossas máscaras: sob elas, rosto novo de pele tenra e contornos em

formação.

Vida recém-criada. A carne viva.

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O pesado verbo da ignorância.

Beatriz Aquino

Um homem louco dita regras na televisão. E uma turba obediente e insana

grita palavras de ordem. Me faz lembrar Bauhaus tomada, me faz lembrar Roma

sob as chamas ou a República de Salò, onde morei por alguns meses, com seus

jardins assustadoramente simétricos e suas organizadíssimas construções. A turba

furiosa me lembra os anos sessenta, os cassetetes dos soldados na cabeça dos

estudantes, os ratos invadindo o corpo das mulheres, a tortura constitucionalizada,

aquele delegado do DOPS fumando um cigarro e decidindo o destino de rapazes

imberbes, escolhendo qual mãe iria chorar de desespero aquela noite.

Me pergunto que filme é esse que não param de rebobinar. Se somos mesmo

essa reedição grotesca onde fanáticos por sangue e ordem fundam clubes. Clubes

disfarçados de igrejas. A Igreja Universal, o Reino de... É tudo tão grandioso. O

homem louco quer ir longe. O homem na tv, com sua cabeça de leão vaidoso,

esbraveja e diz absurdos, e a turba ri. Ri, aplaude. Nem sabe que morre a cada

aplauso, nem sabe que mata em si o amor próprio e mata no outro qualquer

possibilidade de democracia, mas ri e aplaude. Nossos heróis foram mortos e tantos

outros suicidaram-se de corrupção. Não há ninguém além do homem na tv, que

enterra corpos na surdina, que leva sua voz até os microfones das igrejas, que faz

do seu plenário um templo, que vende fé aos miseráveis, coisa pouca e mínima,

mas essencial a sanidade da alma.

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O homem que vende antídotos e milagres me assusta, decerto. Mas o que

assusta mais é a turba cega, surda, sedenta. Nero, Mussolini e Hitler sem essa

multidão guiada, não seriam nada mais que homens. Homens bem frágeis até. Com

seus problemas de auto estima, com seus traumas de infância, seus Complexos de

Édipo, suas dificuldades de ereção. Esses homens, com suas genitálias sutis

carregando enormes fuzis para disfarçarem o medo do ridículo seriam personagens

mambembes, caricaturas. Riríamos deles, lhes atiraríamos tomates não fosse a

turba que projeta e vê com tanta definição nessas criaturas, a sua própria loucura.

Seria fácil cuidar do homem na Tv. Encontrar-lhe um hospício decente ou

um circo para que ele se apresentasse e fosse feliz. Mas uma turba não se gerencia

assim tão fácil. Ela se esconde atrás do rosto plácido do leiteiro, do olhar paciente

do taxista, do ar gentil do banqueiro, da bondosa senhora que alimenta os pássaros

na praça, mas que sangraria um ser humano pela garganta caso esse ameaçasse a

gorda pensão de seu falecido marido militar. A turba enlouquecida está nas retinas

do pastor milionário, mora entre os lábios do senador vendido, se aloja nas pastas

dos jovens deputados que ainda titubeiam o passo.

A turba insana está dentro de casa, no discurso católico-purista da mãe, nos

comentários machistas do pai, na mão do rapaz que se levanta contra a namorada

e que a mata se for preciso, caso seja contrariado. A turba enlouquecida está por

toda parte, tão disponível e de fácil acesso quanto o sonho da padaria, quanto o pão

que sai do forno todos os dias.

A turba enlouquecida, essa que elege ditadores e que para eles levantam

estátuas, que os chamam de messias e mito, e que diz em alto e bom som que os

fins justificam os meios ao ouvir do homem na tv que ladrão bom é ladrão morto,

somos nós...

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N U A

Roseli Pedroso

Há uma semana enclausurada em meus 42 metros quadrados sem direito a

uma varanda gourmet. Minhas camisetas já estão mais justas e os músculos

flácidos. Isso não é por conta do confinamento, é preguiça mesmo. Contudo,

sei da necessidade de me exercitar. Ontem à noite percebi que alguns

produtos básicos se encontravam no fim. Pensei: vou encomendar pela

internet e eles me entregam.

Três grandes supermercados estão congestionados sem previsão para

entrega. Desespero.

Despertei por volta das sete horas e fui correndo tentar fechar uma compra

num dos supermercados. Sem previsão de entrega. Nos três. Em minha rua,

a poucos metros do meu prédio tem um supermercado, na rua paralela outro

e mais à frente outro. Em minha rua tem padaria, farmácia, lojas. Tudo

fechado, exceto farmácia e supermercado.

Fui protelando a hora de descer e fazer de vez as compras. Uma insegurança

em colocar os pés para fora do meu apartamento. Pensei: ah, o que tenho

aguenta mais uma semana. Não vou.

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No entanto, uma semente de desespero abriu fendas em minha alma. Me

troquei, peguei a bolsa, sacolas e desci para a rua. Vazia, estranha,

desconhecida. Nem as putas da esquina se encontravam fazendo ponto.

Fui num fôlego só. Cheguei ao mercado, peguei o carrinho e saí

desembestadamente pegando todos os itens necessários de minha lista. Os

demais clientes, assim como eu, encontravam-se calados, olhar assustado,

desviando seu carrinho do meu, ninguém ficando junto num mesmo

corredor. Uma coreografia interessante. Um acordo mudo entre todos. Olhos

baixos ou fixos nas mercadorias desejadas. Claro, não encontrei álcool.

Somente os destilados enfileirados em suas gôndolas. Solitários. Fiquei

tentada em fazer um estoque para me ajudar a passar as horas. A lógica

superou a loucura e deixei-os de lado. Já me encontrava tempo demais fora

de casa. Novamente bateu desespero. Tenho certa idade, meus cabelos

platinados podem chamar a atenção do vírus, encontro-me fora de forma,

estou sozinha… Foram tantos pensamentos desordenados a poluir a mente

que corri para o auto atendimento. Não queria nem chegar perto da moça do

caixa. Coitada. Pelo que pude observar, ela silenciosamente me agradeceu a

escolha. Reconheci o medo em seus olhos também.

Registrei as mercadorias, paguei, organizei as três sacolas lotadas em meus

ombros e saí em disparada rumo à segurança de meu lar. Ao aguardar o

semáforo abrir para o pedestre, dois sem teto se aproximaram pedindo ajuda

para comprar algo para comerem. Vergonhosamente, disse não ter dinheiro

e comecei a orar para que o sinal abrisse. Um deles se afastou — o outro —

, ficou emparelhado comigo dizendo impropérios. Chamou-me de velha

sovina, desejando que o tal vírus me acolhesse a alma não cristã. De olhos

embaçados, atravessei a rua correndo risco de atropelo ou possível queda.

Subi onze andares carregando o peso das sacolas e de minha alma encolhida,

quase uma ervilha.

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Ao girar a chave, deixei a realidade lá fora. Despi por completo e — nua —

, levei as roupas para a máquina de lavar, joguei o tênis no tanque. Corri para

o chuveiro onde pude finalmente, deixar as lágrimas represadas virem à tona

misturando-se à água do chuveiro. Soluços, engasgo, vergonha da minha

humanidade tão mesquinha e medrosa.

Aos poucos acalmei. Consciente da água desperdiçada, levantei do chão,

fechei o registro, me enrolei na toalha. Ao longe, ouço a voz potente da nossa

“Pimentinha” cantando a oração do momento:

Se eu quiser falar com Deus, tenho que ficar a sós/Tenho que apagar a

luz…Tenho que ter mãos vazias/Ter a alma e o corpo nus…

Enquanto organizo os mantimentos na dispensa, constato a falta de um

item: Droga, que merda, esqueci do café!

Deus!!! Olhai por nós!

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“Talvez outro vírus muito mais benéfico

também se espalhe e, se tivermos sorte, irá nos

infectar: o vírus do pensar em uma sociedade

alternativa, uma sociedade para além dos

Estados-nação, uma sociedade que se atualiza

nas formas de solidariedade e cooperação

global”.

SLAVJOJ ZIZEK

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VESTINDO PAULINA

EMERSON BRAGA

Apesar de seu invejável arsenal de dispositivos eletrônicos portáteis, naquela

manhã, Bernardo acordou mais tarde do que deveria. Não sou homem de me atrasar,

reclamou à mulher que, com uma candura inútil, lhe pedia calma. Só não deu uns berros

na própria esposa porque sua camisa predileta e seu terno mais caro estavam lavados e

bem passados. Após se vestir às pressas, pensou em gritar pela gravata e pelas meias, mas

sua jovem senhora já estava lá, de braço estendido, adiando para outro momento o direito

sagrado de ser xingada até que a morte os separasse. Tão objetivo quanto um caçador do

período Pleistoceno, ele pensou nos atalhos e desvios que exigiria do motorista para que

chegasse ao trabalho há tempo. Não costumava descumprir horários, era um homem de

palavra, era um homem de ação, era um homem com agá, era um homem que matava um

leão por dia. Enfim, era um homem.

Apesar da hora avançada, tinha tudo sob controle, ao menos até abrir a gaveta que

guardava com exclusividade um par de A. Testoni que deveria estar impecável. Seus

sapatos de luxo, tão caros, tão estilosos, abandonados ali desde o casamento do filho de

um dos sócios da empresa. Quanto a isto não poderia responsabilizar a mulher e nem a

empregada. Cuidar do brilho daquele calçado específico era uma responsabilidade que

ele, há tempos, reclamara para si. Mulheres são boas em polir panelas, mas, um sapato

caro destes? Talvez tenha pensado enquanto caminhava em direção à área de serviço onde

encontraria o material necessário para revitalizar o couro adormecido de seus gêmeos da

sorte.

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Retirar a roupa já vestida poderia amarrotá-la, risco que ele não estava disposto a

correr. Porém, se engraxasse o par de sapatos no estado de nervos em que se encontrava,

poderia desencadear um desastre sem jeito e pôr tudo a perder. Foi justamente aí, num

destes segundos em que a masculinidade de um homem é posta à prova, que Bernardo

viu dependurado junto à lavanderia o avental cor-de-rosa. Sem pensar duas vezes,

trespassou a alça em volta do pescoço antes de firmar o nó com as duas mãos. Não poderia

correr o risco de que o acessório doméstico se desprendesse colocando em risco a

integridade da armadura que camuflava seu medo de fracassar.

Com habilidade masculina e a ajuda de um isqueiro, esquentou a graxa na própria

lata antes de espalhar a pasta sobre toda a superfície dos sapatos. Enquanto o betume

esfriava, pôs a escova para trabalhar com movimentos cuja virilidade as mãos de uma

mulher seriam incapazes de reproduzir. Depois, usando estopa e flanela, poliu os calçados

que, ao final do processo, pareciam recém-saídos da loja.

De pulso adornado com o Rolex, pegou a Montblanc que continha papéis mais

importantes do que sua mulher e se dirigiu ao elevador. Apenas quando diante do interior

espelhado, o homem se deu conta de que ainda vestia o avental. Teria se divertido com a

própria distração, se não estivesse tão tarde. Engenhoso, dotado de destreza natural nos

de sua espécie, usou a maleta para evitar que o elevador descesse, e, apesar do esforço

empregado para desfazer o nó que prendia o avental ao seu corpo, não obteve sucesso.

Prestes a explodir, enfiou as mãos na parte superior da peça a fim de rasgá-la. Era um

homem forte, seus amigos da academia se admiravam da quantidade de séries que ele

fazia sem resfolegar. Não entendia por que um pedaço ordinário de pano havia sido

confeccionado com materiais de tamanha resistência. No visor digital do elevador, os

minutos trotavam tão incontroláveis quanto somente o tempo e os homens de verdade

conseguem ser. A promoção garantiria a montagem de uma varanda gourmet maior e

mais sofisticada do que a do condômino que vivia no Bloco Zeus. Não. Um avental não

comprometeria seu triunfo. Quando eu chegar ao escritório, peço pra Judite passar uma

tesoura nesta coisa. Não me importa que riam de mim na rua! Hoje voltarei para casa

como um deles e, de quebra, terei uma história engraçada para contar aos acionistas. Quer

saber? Sou homem o suficiente para entrar até no inferno vestindo isso, disse para si

mesmo, a despeito de sua masculinidade ferida, enquanto apertava os dedos molhados de

suor ao redor da alça da maleta que continha seu futuro.

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— Que surpresa a madame por aqui! Quer que eu chame um táxi? — perguntou

com cordialidade brincalhona o porteiro ao abrir passagem para Bernardo.

O homem de negócios pensou em dizer ali mesmo umas verdades àquele morto

de fome, mas, o tempo, o tempo, o tempo. Que atrevido! Nunca havia dado qualquer

liberdade aos funcionários do prédio, principalmente ao retirante de um metro e meio que,

por constrangedora ironia, atendia pelo nome de Betão. Ainda procurou com os olhos

pelo síndico, outro inútil de sotaque do norte que nunca estava por perto quando

precisavam dele. Porém, seu ímpeto de justiça foi contido pela certeza de que seria mais

prazeroso exigir a demissão do homenzinho depois que ascendesse ao andar mais alto da

firma de seguros.

Uma vez na rua, não teve dificuldade para conseguir um Uber Black. Batendo a

porta da frente com desnecessária energia, conferiu a própria aparência no espelho

retrovisor e se sentou ao lado do motorista, que lhe sorriu um desses sorrisos que sujeito

nenhum deveria dirigir a outro homem.

— Não me sentei aqui na frente pra bater papo, mas pra lhe apressar. Se você me

deixar no Plaza Coles em 15 minutos, eu lhe darei um agrado — sugeriu sem olhar para

o chofer, que parecia ter encontrado alguma satisfação na palavra “agrado”.

Após conferir e-mails e mensagens em seu iPhone, Bernardo guardou o celular no

bolso do paletó e, ao erguer os olhos, sentiu que a sorte havia saído de casa antes dele e

que não a alcançaria.

— Você pegou a Rebouças?! Não segue a porra desse GPS, senão você vai me

foder!

Foi como se sua revolta não causasse nenhum efeito no motorista. O homem, que

se divertia com o próprio descaramento, riu alto antes de meter a mão no meio das coxas

de seu passageiro e dizer:

— A safada é valente, hem? Gosto assim! Já tinha entrado num carrão destes?

Desorientado, Bernardo quis esmurrar seu abusador, mas havia desaprendido a

bater. Seu único instinto foi o de apertar bem as pernas e proteger o seu peito pressionando

fortemente a maleta contra ele, enquanto a mão do condutor avançava em direção ao seu

sexo. De olhos fechados, aproveitou a lentidão do trânsito e desceu do veículo aos

tropeços, cambaleando desorientado entre os carros.

— Olha a frente, sua puta drogada! — gritou um motorista de ônibus.

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— Venha aqui, bonita, senão esses brochas desgraçados vão passar por cima da

amiga — protestou uma travesti, tendo seu gesto repelido com aspereza.

Bernardo ainda pensou em pegar outro carro, mas, com aquele trânsito? Não

estava tão longe da empresa. Apertando o passo, talvez chegasse a tempo de, ao menos,

apresentar o seu projeto. Após assistirem ao que ele havia preparado, tudo seria perdoado

e os planetas retornariam às suas órbitas.

Enquanto caminhava pelas calçadas, sentiu-se habitando outro mundo, onde os

homens olhavam para o seu corpo como se tivessem algum direito sobre ele. Um

vendedor de churros chegou a apertar as próprias partes ao vê-lo passar ao lado de sua

carrocinha. Alguns metros à frente, enquanto esperava que a passagem de pedestres fosse

liberada, Bernardo teve sua bunda cutucada pela bengala de um velho. Quis dizer umas

verdades ao desavergonhado, mas o constrangimento reteve as palavras em sua boca.

Preferiu se afastar, pois temia que as pessoas julgassem sua indignação como exagero.

Já no saguão do prédio em que trabalhava, esboçou o gesto de correr para não

perder um dos elevadores. Sensíveis à urgência que testemunhavam, três jovens

executivos fizeram questão de segurar a porta até que ele embarcasse. Não demorou para

que os homens se pusessem a elogiar a cor de sua pele e a fazer comentários idiotas sobre

sua boca e seus cabelos. 22º, 24º, 27º... Bernardo contava os andares como quem tenta

ordenar os instantes finais da própria vida. Sentia junto ao seu pescoço a respiração de

um dos rapazes quando, finalmente, a porta se abriu e ele pôde saltar, ouvindo as

gargalhadas às suas costas.

Já diante da sala em que se dava a reunião, foi barrado pela secretária que agia

como se não o reconhecesse. Sem paciência para tentar entender o que havia, preferiu

driblar Judite, invadindo a sala sem ser anunciado.

— Senhores, desculpem-me pelo atraso! — disse, tentando transparecer uma

tranquilidade desgraçadamente arruinada.

— O que há, minha filha? De onde foi que você saiu? Aliás, isso não importa, não

é mesmo, senhores? Se estávamos esperando por você, valeu a pena cada segundo da

espera... Ah! Vamos lá! Qual de vocês contratou essa vagabunda?

Não havia outra explicação. Bernardo se encontrava preso em um sonho lúcido do

qual não conseguia acordar e nem coordenar os eventos. O presidente da Alfa Insurance

jamais o trataria daquela forma. Já haviam ido juntos a bordéis e cheirado pó até

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estourarem as narinas. Eram amigos. Não entendia o que havia, por que ninguém o

respeitava mais? Os homens naquela sala eram iguais a ele, frequentavam os mesmos

clubes e possuíam carros das mesmas montadoras. Enquanto feria com a unha do

indicador seu polegar a fim de emergir daquele pesadelo, um de seus colegas puxou-o

para o colo, fazendo com que ele deixasse a sala às pressas, enquanto todos riam de seu

embaraço.

Bernardo nem sequer se lembrava da última vez em que havia derramado uma

lágrima. Porém, depois de tomar o metrô, escolheu um banco isolado onde se sentou para

chorar em paz. Tomaria um bom banho antes de se esconder sob as cobertas e, de lá,

apenas sairia quando o mundo voltasse àquilo que ele entendia por normalidade.

Comovidas com sua angústia, duas estudantes o acolheram. Queriam saber o que se

passava, mas ele não conseguiu falar. Sofria de modo genuíno. Se fosse outra a ocasião,

teria sacado trezentos paus da carteira e levado aquelas novinhas para um motel. Mas,

naquele instante, tudo o que ele queria era que elas fossem suas amigas.

Quando chegou à sua estação, já mais calmo, Bernardo desembarcou sem deixar

de atirar às garotas um beijo com a mão. Era quase meio dia e estava faminto, então ligou

para casa e pediu à mulher para que o esperasse, a fim de cozinharem juntos.

Já no saguão do prédio, em um misto de alívio e de revolta, se apoiou no ombro

do porteiro antes de dizer:

— Eu deveria ter aceitado o táxi que você me sugeriu, Betão. Um motorista da

Uber me agrediu...

— Desgraçado! Eu sei bem como é isso. Queria ver se fosse com a filha ou com

a mãe dele. Ande, me dê sua bolsa.

Agradecido, Bernardo permitiu que o homem segurasse sua maleta. Não teve

ânimo para protestar quando Betão o conduziu até o elevador de serviço. Nunca havia

sentido tanta vontade de chegar em casa, de abraçar sua esposa, de dizer o quanto a amava

e de lhe pedir desculpas por todas as vezes em que fora para ela um homem ruim.

Já na sala de seu apartamento, deitado no sofá e com a cabeça posta no colo da

mulher, ele falou sobre todas as coisas horríveis que haviam lhe acontecido enquanto

estivera fora.

— E você acha que foi tudo culpa do avental da Paulina? — perguntou a mulher

que, experimentando um misto de piedade e desforra, acariciava uma das alças do avental.

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— Não. O culpado sou eu e todos os outros lá fora. Meu Deus, como vocês

aguentam? — sentenciou Bernardo, empurrando o sexo para o meio das pernas como se

quisesse fazê-lo desaparecer sob a vergonha que o constrangia.

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O VÍRUS DO AMOR

Obdulio Nuñes Ortega

Moravam no mesmo andar do antigo edifício. Velhos conhecidos por olhares,

pouco se falavam. Os jovens, filhos do interior, vieram para São Paulo para estudar. A

instauração da Quarentena foi apenas mais um capítulo na marcha de acontecimentos. A

súbita decisão governamental pelo isolamento social os encontrou hesitantes entre

ficarem ou retornarem às suas famílias. A capital apresentava o maior número de casos e,

receosos que pudessem eventualmente infectar pais e avós, decidiram ficar. Tudo isso foi

tema da primeira conversa mais longa que tiveram, a voz meio difusa pelo uso das

máscaras. Iniciada no elevador, continuou no corredor junto às portas de seus

apartamentos, com a distância protocolar.

Surgiu uma conexão imediata entre os dois desgarrados. Estabeleceram o hábito

de conversarem postados nas respectivas varandas, em entardeceres ultrajantes de tão

belos, espraiados em céus outonais-vanilla-sky. Certa noite, madrugada silente, ele a

ouviu chorar. Tiago chamou por Ana. Não obteve resposta. Bateu na porta da vizinha. Ao

abri-la, se derramou em seus olhos avermelhados e inchados. Indo contra os protocolos,

dispensadas as palavras, se abraçaram. As bocas se procuraram. As línguas caladas-

eloquentes trocaram saliva e sorveram prazer. Desobedientes civis, mergulharam sem

máscaras no desejo um do outro. O amor a iluminar a noite, virulento. Sentiram-se

eternos.

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Revezavam os leitos, alastrando ambos os apartamentos do fogo da paixão e da

alegria da entrega. Camas e lençóis, contaminados de seus joviais fluídos, refletiam as

primeiras luzes da manhã em composições cada vez mais inauditas de corpos

entrelaçados. Apesar do sofrimento coletivo, os dois quase abençoavam a quarentena que

os uniu. Planos para o futuro naturalmente surgiam em meio a longas conversas e beijos

amiúde. Ainda assim, omitiram das respectivas famílias o encontro proibido. Esperariam

tudo passar para que não ficassem aflitos com os jovens amantes. Por isso, os pais de

ambos receberam com surpresa a notícia da internação dos filhos como sendo um casal

de namorados com insuficiência respiratória.

Os jovens não apresentavam tosse. A febre confundia-se com o calor que geravam

na sofreguidão do amor. O mal estar se instalou quase ao mesmo tempo. Preocupados um

com o outro, procuraram os postos de saúde. Lotados. Devido ao fato de serem jovens,

foram dispensados. Voltaram para casa, cansados e ofegantes. Quando pioraram, pediram

ajuda ao porteiro que chamou a ambulância. Permaneceram intubados por alguns dias e

vieram a óbito com um intervalo pequeno entre as partidas. Entre tantas mortes, a história

dos estudantes apaixonados passou despercebida, a não ser entre os habitantes das

pequenas cidades de onde vieram.

O País, enlutado, ainda teria que passar por outras tragédias – resultantes de uma

doença incubada dois anos antes.

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A PRIMEIRA TV EM CORES

Silmara Franco

A humanidade já se dividiu entre quem tinha TV em cores e quem não tinha.

Quando a nossa chegou, concluí: não éramos mais pobres.

A Semp, moderna e formosa, substituiu a velha Telefunken preto-e-branco

na estante na sala. Sentadinha no sofá de curvim, eu acompanhava a saga do

casal Regina Duarte & Francisco Cuoco em “Selva de Pedra”. Morria de

vontade de saber como eram, de verdade, as roupas das moças. Nos anos

1970, as cores ferviam nos guarda-roupas. Pela Telefunken, só restava

imaginá-las. O enredo tinha que ser muito bom.

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Então, meu pai fez a surpresa e agora eu poderia ver a Lucélia Santos

coloridona, em “A Escrava Isaura”. Lerê, lerê. Didi, Dedé, Mussum e

Zacharias me fazendo rir em azul, verde e vermelho nas tardes de sábado.

Lembro do meu pai exclamar, diante da tela de vinte polegadas: “Que

espetáculo de imagem!”. Os ajustes, porém, continuavam a acontecer da

mesma forma. Meu irmão no telhado, ajeitando a antena, e alguém na sala,

informando, “Piorou!”, “Melhorou!”, “Agora o 5 está ruim!”.

A programação contava com meia dúzia de canais, é verdade. Mas a diversão

já ganhara significativo upgrade. E a gente falava “tv a cores”. Eu era

grandinha quando a nação brasileira descobriu que o certo era “tv em cores”.

Para meu pai, porém, não fez a menor diferença. Fiel à antiga expressão até

hoje, por vezes ele a customiza e solta um “tv à cor”.

A Semp durou muito. É certo que, depois de um tempo, ela passou a viver

mais no conserto do que em casa. Era coisa corriqueira, meu irmão descendo

as escadas com o trambolho nos braços, ajeitando no carro pra levar na

Colortel. Semana seguinte, a bichinha estava de volta. Até o próximo (ou

mesmo) problema. Eu, que não entendia lhufas de eletrônica, só pensava que

“tubo” deveria ser uma coisa complicadíssima.

A televisão mudou tanto, que nem deveria mais se chamar assim.

Smartphone é TV. Tablet é TV. Computador é TV. A TV está em todo lugar,

virou uma coisa só, tudo junto e misturado. Uma espécie de deidade da

comunicação, o Santo Pixel a nos guiar. A TV é muito maior que a TV.

Assisto, com leve assombro, a facilidade que meus filhos têm para desejar

substituir seus aparelhos: quero celular novo; quero computador novo; quero

tablet novo. A Telefunken – que tinha seletor manual e eu gostava de virar

de uma vez, só para ouvir o barulho, tráááá – me viu dar os primeiros passos,

entrar na escola, aprender a escrever. A Semp acompanhou minha

adolescência inteirinha, conheceu o primeiro namorado, ao vivo e em cores.

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A seguinte, que eu não me lembro a marca, estava presente quando

comemorei meu primeiro emprego, e também quando meu mundo ficou

preto-e-branco por um instante, na primeira demissão. Coitadas das TVs de

hoje, de vidas tão breves. Nem comento com meus filhos, para não ouvir, “Ai

mãe, você é tão século passado”.

Admito, tenho saudade das nossas velhas TVs. Grandalhonas, pesadas, com

muitos botões e poucas funções. Eram uma porcaria em termos de

tecnologia, e a culpa por essa saudade tem nome: nostalgia. É gostoso

lembrar delas como parte não só da mobília, mas da família. Saber que suas

transmissões estão, indelevelmente, inscritas em minha biografia. Mesmo

com a dura constatação que, apesar das tardes de sábado colorizadas, nós

ainda continuávamos pobres, pobres, pobres de marré deci.

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aonde irão garrafas

de barcos aprisionados

¿onde gastei

sonhos de liberdade

enquanto sufocava

emanações tardias da floresta?

¿quem fará

a rolha saltar e romper

os grilhões imaginários

de um pensar que é sonho?

como serão os sonhos

fora da garrafa

longe da mata

vagando pelo ar

na sensação de prisão

que nunca acaba

desamparo infantil

¿marca a ferro e fogo gravado?

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por cidades-fantasmas

como barcos carvoeiros

que não mais se escapam

ao ancoradouro

rangendo mensagens

sonhos sem vida

embalados em vidro

papéis amassados

envoltos em maresia

¿serão poemas

ilusões

ou

tardios pedidos de socorro?

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NARRATIVAS

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é poeta e autora de Água indócil (Urutau, 2019)

e MEADA (ed. da autora, 2019).

“com os olhos à deriva na janela, tentei me convencer de que não,

corujas não voam para cima de telhados em plena manhã, não, nenhum

presságio, talvez o ruído indevido da rua anuncie o final dos tempos

sem direito a funeral, a mesma paisagem cínica, de máscara? nem isso.

as horas são todas iguais, o oxímetro separa o pânico da pneumonia, é

melhor trabalhar antes que eu morra, são tantas janelas, nenhuma é a

minha, é necessário tomar sol, disseram, mas o ruído indevido da rua

ensurdece o desejo de estar viva, não, normalidade não há mais, não há

normal nem anormal, o nada é o horizonte que nunca decepciona. aqui,

cinco mil trezentos e sessenta horas de conteúdo gratuito para o seu

desenvolvimento pessoal durante a quarentena, disponíveis durante os

próximos quinze dias, apresse-se, mas eu só queria estar vazia. entende?

o nada é o horizonte que nunca decepciona. o nada nasce bom. a espera

o corrompe. entende o que eu quero dizer? talvez o cheiro da comida

empurre vida num corpo morto que se bate contra as paredes. mas

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como, um corpo morto de rosto rosado e mãos quentes? talvez um

creme na cara. hora de gritar na janela. fora, genocida! fora, eu não

quero morrer de vírus! mas, no fundo, sei que estou condenada. foi

antes, bem antes de algum prenúncio do apocalipse. foi na época das

eleições. não, eu não leio nenhum livro sagrado. orações não me

interessam. estou já condenada, eu sei, para o inferno com essa fé de

barganha! tento me convencer que fé e esperança são defeitos distintos.

em mim, talvez nem uma, nem outra sobreviveram aos naufrágios

sucessivos. quem sobreviveria?

mas

hoje

você

me

chamou

pelo

nome

como

se

chama

algo

perigosamente

próximo

do

coração”.

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autora dos livros dentro de um bukowski

e diário das coisas que não aconteceram

Ser domesticado é um ato silente. Parece mesmo coisa para os menos

abastados, aqueles que devem obediência a não se sabe quem como se

favores fossem, sem que qualquer obrigação tenha sido feita.

Somos uma demanda. Da demanda somos objetos. Sem consumo dos

nadas perecíveis absurdos todo comando parece frouxo.

Somos uma manada. Embora um ou outro rebele-se e ande por outros

vales tudo supostamente lhe faltará. Quanto mais aprisionados mais nos

mostramos. Quanto mais a fome aproxima menos nos olhos dos outros

olharmos.

Somos também “America First“, meu bem. Não se engane. Somos “Our

home first“. O macro e o micro se repetem. Já diziam os alquimistas

que estavam chegando.

Somos micro matérias. Temos líderes, dependendo de quem se segue

(seu líder) você é aquela célula louca do organismo, um futuro câncer.

É você que estraga o sistema.

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Somos seguidores. Da maré, do vento, da moda, das viagens, dos

princípios, das ideias, das ordens, das sugestões, do Instagram, Twitter,

devotos não dos outros, mas de nós mesmos.

Colocamos até o substantivo depois do nome. Corona vírus. Imitamos

macaquinhos. Gripe Aviária, Vaca Louca, Febre Amarela, Gripe

Influenza. Mas admitamos: somos Cowrona Vairus na cópia. Agora

sem máscaras.

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é autora, dramaturga, professora de dramaturgia

e teoria literária, e pesquisadora da obra

de Samuel Beckett

há alguns anos já um mal estar difuso, a dificuldade de acreditar em

projetos futuros, projetos feitos em moldes de gesso antigo. se

conseguia às vezes algum silêncio era para detectar que de fato aquela

fonte antiga havia parado de sussurrar água em fios manantes. aos rios

ao norte do futuro pude lançar então apenas um olhar e desaprender o

gesto de buscar o devir do gesto na outra margem.

mas.

quando a morte começou a ceifar em wuhan, falei para a minha

sobrinha, talvez não role a sua viagem para o canada, se prepara. sabia

e não sabia, via nebulosamente, e senti apaticamente que se

concretizava o pressentido — intuição calculada com as variáveis tédio

e náusea.

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agora à janela não sei. ouço ao longe a sirene das ambulâncias e o riso

de crianças esquecidas na praça vilaboim por pais indiferentes. há

menos de tudo lá fora e aqui um pastiche de vida, da vida como era

praticada então.

amanhã é domingo de ramos. depois nosso senhor morre e ressuscita.

quando morre o mundo, a terra ressuscita? ou será mais explícita a

metáfora destes tempos? morremos em total abandono, para revivermos

totalmente irmãos.

aos rios ao norte do futuro poderei então lançar a rede que você

hesitante carregará de sombras escritas com alguma esperança. tomara.

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ô

é poeta... nas horas mais impróprias

O inesperado se sobressai novamente. Isso não me afetaria tanto, se não

afetasse a quem amo. Quando isso acontece, escavo mais informações

e coloco junto aos habituais no maço de cartas.

Sim, sempre ando com elas junto ao corpo, são menos de azar e mais

ciganas.

Me preparei para estar no ninho novamente, desde o princípio de todo

esse pandemônio. Algo grande se aproximava e os líderes se mostravam

seguidores, repetindo um ao outro, sem dar atenção às cartas de seus

próprios jogadores.

Não precisavam fazer previsões ciganas, por intuição e sim, parar de

blefar e aceitar as estatísticas sobre os demais jogadores, como num

jogo de poker.

Claro que por aqui não esperava nem um nem outro. Sempre foi gritante

que nosso governante maior e seus seguidores não seguem a lógica.

Para dizer a verdade, já estávamos à deriva, mesmo em um mar de

informações e sempre que penso nisso, lembro do tormento que esse

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momento, mesmo sem vírus, nos trouxe.

Ignoramos Pessoa, que nunca ignorou os grandes navegadores,

repetindo seu mantra, “Navegar é preciso, viver não é preciso!”.

Repito isso e reflito, do jeito que o mar atual se mostrou repleto de

ignorâncias, até essa frase seria interpretada ao pé da letra, onde os

“istas” do momento, diriam de boca cheia: viu, até Fernando Pessoa

sabia que o dinheiro é que importa, viver não é preciso.

Nesse momento, ouviríamos alguns poucos ao longe, ainda apoiando e

gritando mais que todos os outros. Algumas coisas já estão escassas no

mercado, principalmente por egoísmo e mesquinhez, faltam até

humanos. E tudo isso afeta a quem amo, mas saiba que não apenas o

meu próprio sangue.

Eu ainda lamento por quem os sinos dobram, mas não posso me calar,

pois minha caverna tem janelas, de onde vejo e ainda grito: AMOR!

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Cansada de trabalhar textos dos outros, traduzindo documentos

técnicos e jurídicos por mais de 40 anos, meteu-se a escrever

tardiamente. Ao mesmo tempo ousada e prudente, acha que o

mundo é divertido e os obstáculos e dificuldades constituem

desafios. O pé que tem na França, onde morou por quatro anos,

inicialmente como estudante de Linguística e depois casada, tem

muito peso em sua personalidade.

Confinamento

Estamos bem e em paz, em Atibaia, meu marido e eu. Tenho a

impressão de sermos os únicos a não ter do que nos queixar. Aceitamos

as circunstâncias. “Livre arbítrio consiste em aceitar de bom grado o

que não se pode evitar.” Esta afirmativa de Jung me marcou

intensamente. Desde então, ao acontecerem os grandes eventos de

minha vida, pus meu livre arbítrio em prática. Não adianta a revolta,

escolho a tranquilidade. O que tiver que ser será. Nada haverá que não

possa suportar. Tudo será para o meu bem. Depois estarei mais forte,

mais segura.

Ficamos tristes pelas pessoas que estão adoecendo ou perdendo seus

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entes queridos. Desejamos do fundo do coração que a situação termine,

que as pessoas se curem, vivam!

Enquanto isso, vivemos cada dia com simplicidade. Serviços de casa.

Comidinhas. Um bom vinho. Pratos novos. Cuidamos do jardim e da

horta. É tão bom comer o que plantamos.

Leio, escrevo, estudo, aprendo. Troco mensagens com os amigos.

Experimento a calma.

Muitas visitas: pardais, joões-de-barro, rolinhas, juritis, bem-te-vis,

sabiás do campo, algumas pombas. Vêm tomar banho e beber água na

piscina. Às vezes, um casal de tucanos pousa na árvore em frente, a

mesma que, um pouco desfolhada, abriga uma casinha de joão-de-

barro. Ainda não ousaram chegar mais perto. Ao contrário destes,

pequenos mas destemidos.

Bonita a chuva na piscina. Ou a superfície da água que o vento ondula.

Antes chovia e ventava, por que não tinha prestado atenção? A cada dia

uma nova foto do pôr-do-sol. Nas noites límpidas, vejo a lua, Vênus,

localizo algumas estrelas.

Desfrutamos a tranquilidade, com olhos de ver a natureza. Em uma

espécie de lua-de-mel, com tempo de sentir o carinho que temos um

pelo outro.

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...é sagitariana, degustadora de café,

é meio bruxa, meio arteira, meio artista...

editora da Scenarium, artesã de livros

e autora do romance Alice uma voz nas pedras

Na primeira semana, antes do caos social, eu decidi me recolher. Gosto

de ficar a casa. Mas, gosto imenso de sair as ruas, caminhar calçadas,

observar pessoas, prédios… a minha escrita precisa de movimentos. Eu

escrevo no ar e na pele por dentro… enquanto ando. Organizo a minha

realidade. Capítulos inteiros de meus romances foram escritos entre um

passo e outro. Eu sou feita de rituais, mas ao receber notícias de meu

país, algo do lado de dentro se iluminou e achei sensato recolher-me.

Depois de uma conversa com o mio amore, foi o que fizemos. Não

estocamos nada… acertamos que faríamos compras semanais, apenas o

necessário.

Eu ainda tentava assimilar o que era vivenciar uma pandemia, com as

notícias se multiplicando, o mundo sendo obrigado a se ausentar das

ruas — cenários típicos dos filmes e livros de ficção (vistos e lidos na

juventude).

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Li tudo o que eu pude a respeito do vírus e busquei por informações dos

meus. A primeira morte me fez constatar a fragilidade da matéria e eu

percebi que a única coisa possível a fazer era sobreviver ao momento.

Acalmei pessoas. Tranquilizei outras. Ouvi tudo e nada. Me recusei a

falar… há assuntos que devem ficar com a gente. Fui ler livros, assistir

televisão e pensar em como reorganizar meus dias. Estar pronta para a

realidade que virá depois que tudo isso passar. No momento, eu me

sinto naquele espaço tempo sagrado… a água está na chaleira e a xícara

em cima da mesa. E eu espero… tentando não me sentir na condição de

dinossauro.

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é autor do livro de poesias Caminhos tortos…

Enfim, sós!

O isolamento em casa começou uma semana antes do oficial. Para quem

tem filhas com problemas respiratórios, todo cuidado é pouco.

Complementando o quadro, obriguei-me a um isolamento do

isolamento de 15 dias, pois tive sinais de febre, dor de cabeça e garganta

raspando, que depois evoluiu para a tosse. Frente às incertezas com

tantas informações desencontradas, certo mesmo era não ir ao hospital

se não fosse grave (os testes já eram escassos, agora, quase inexistentes)

e se cuidar em casa, com distanciamento do restante da família. E foi

assim que fizemos, dentro do possível em um apartamento pequeno

com quatro pessoas. Nem consigo imaginar isolamento assim nas

comunidades e nos microbarracos.

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No olho desse furacão, trabalhadores da área da saúde, dos quais alguns

familiares e amigos, esgotados e sem equipamentos médicos de

segurança para enfrentar adversário tão poderoso, relatando o caos nas

alas de emergência. Prefeitos e governadores, independentes de suas

ideologias e ações passadas, em visível esforço para minimizar os

impactos e o gargalo que pode acontecer se vários casos explodirem ao

mesmo tempo. É um pensamento óbvio demais, não?

Seguir procedimentos recomendados pela OMS, preservar o povo, a

vida, evitar um número grande de baixas, seja qual for a idade.

Infelizmente, nem todos pensam assim.

Ao passo que a nuvem se dissipou da minha cabeça, tirando a suspeita

de Covid-19, assisti estarrecido e sem acreditar em tamanha crueldade,

ao “discurso da morte” de um ser mimado, irritadiço e birrento,

apontando como normal a morte de idosos. O mesmo discurso

defendido por megaempresários capitalistas. Inacreditável, mas real.

Misto de bravatas, ameaças e desrespeito, atitudes de criaturas assim

destoam de todo o mundo. Comoção, energias positivas vibrando para

saúde de todos, a imagem de Francisco solitário emanando paz e fé ao

mundo.

E assim, sigamos… Vai passar.

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é autora do livro de poesias o lado de dentro

e dos romances corredores e portas abertas…

Passando os olhos pelos sites e vendo as notícias sobre o mundo lá fora

e o Corona Vírus/COVID 19 é como se eu estivesse fora da realidade.

Confesso, que do lado de dentro dos meus muros a natureza me ajuda a

enfrentar esses dias. Não fosse pelos parentes, amigos expostos, alguns

bem na linha de frente dessa batalha, estaria eu resguardada desse mal

que aflige o mundo.

Sou mesmo privilegiada. Moro em um bairro de periferia, não recebo

visitas. Sou eu e meu marido e dois cães: Lolla e Yoshi. Também há

meu beija-flor, Chiquinho, que nasceu aqui no meu quintal e trina todos

os dias pela manhã a me acordar e passa o dia entre os rasantes de voos

em meus ombros ou mãos.

Embora não seja uma pessoa que saia muito sentir que estou presa é

quase como cortar o ar — esse, que tanto está fazendo falta e levando

vidas embora — e a tal liberdade de ir e vir. Não vou. Fico aqui. Molho

as plantas, cato folhas, brinco com os cães, com Chiquinho, escrevo e

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respiro essa natureza que reverbera em meu quintal. E busco a fé, que

me instiga em acreditar e ter esperança de que tudo isso vai passar.

Quando ouço falar sobre a quarentena e o ficar em casa, me espanta a

reação de algumas pessoas, como se ficar em casa, em família fosse um

castigo imenso. Que família eu criei pra mim? Com quem gosto de

ficar? Se não for com os meus, com os que escolhi viver, então, nem

vale a pena viver.

Será que mudaremos depois disso tudo? Não digo sobre economia, nem

sobre empregos ou a continuidade normal da vida, mas sim, de nós

mesmos. Como sairemos disso? Espero que pelo menos você sai vivo.

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é autor do livro de crônicas REALidade,

de contos Rua 2 e de Confissões…

Estou com as minhas atividades paralisadas desde meados de março.

Antes mesmo da Quarentena, intuía que assim seria. Os eventos da

terceira e quarta semanas foram transferidos ou cancelados. Antes que

tudo ficasse totalmente parado, ainda aproveitei três dias de sol no

litoral. Até que os prefeitos da Baixada decretassem o fechamento das

praias e a proibição para que carrinhos de alimentos ou ambulantes

atuassem na areia. Sem o conforto mental do encontro com as águas do

mar, minhas atividades se restringiram a sair para fazer compras no

supermercado, farmácia ou padaria. Enquanto me ocupava com a

pintura e outras reformas na casa de praia, escrevia, lia e caminhava

quase de madrugada para evitar encontrar muitas pessoas. Passei a

evitá-las — o que me fez lembrar da época que agia assim, adolescente

esquisito que era. A misantropia cresceu até se tornar característica

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renitente. Um comportamento difícil superar. Superá-lo foi um rito de

passagem para a vida adulta. Não aconteceu sem muita dor.

Voltei para casa para resolver outros assuntos e aqui tivemos que ficar

atentos aos procedimentos padrões em tempos de pandemia. A Tânia é

enfermeira e está na linha de frente no combate ao Covid-19.

Ficar em casa não é tão difícil para mim. Consigo escrever e ler

bastante. O maior esforço se dá no aumento da tensão — algo invisível

— porém facilmente identificável nas relações humanas mais próximas.

Por estar virtualmente “desempregado”, sinto-me deslocado —

principalmente para alguém que gosta de trabalhar. Inútil diante de

meus próprios olhos. Tenho que mentalizar positivamente e queria

contar com a compreensão de quem me cerca.

Mas…de qualquer forma, não apenas aceito como apoio as medidas

restritivas quanto a circulação de pessoas. O distanciamento social,

além dos hábitos de asseio pessoa, propiciará que possamos sobreviver

a este terrível episódio da História humana na Terra.

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