Filosofia negativa? Bourdieu e os fundamentos da razão

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Filosofia negativa? Bourdieu e os fundamentos da razão* Arthur Oliveira Bueno Dois excessos: excluir a razão, admitir tão somente a razão. PASCAL Um dos últimos trabalhos que Pierre Bourdieu publicou em vida, Medi- tações pascalianas, poderia ser qualificado, com algum exagero, mas não sem razão, de seu livro mais filosófico. O próprio autor reconhece, nas primeiras frases da introdução, que aborda ali “certas questões que teria preferido deixar por conta da filosofia” (Bourdieu, 2001, p. 9). Parado- xalmente, trata-se também, em boa medida, de um livro contra a filosofia, como atesta a crítica da razão escolástica que permeia todo o escrito e visa sobretudo, embora não apenas, essa disciplina. O título, nesse sentido, é duplamente revelador. De um lado, porque coloca a obra sob a égide de Pascal, para quem “a verdadeira filosofia zomba da filosofia” (Idem, p. 10). De outro, porque remete a Descartes e Husserl, mas não sem ambiguidade e até ironia – pois o que dizer de uma crítica às distorções do “pensamento pensante”, marcado pelo enclausuramento escolástico, que ainda assim se denomina Meditações ? De um jeito ou de outro, o debate direto com a filosofia confere a esse livro um caráter peculiar. Nele, Bourdieu não apenas reapresenta aspectos consolidados de seu pensamento numa forma abstraída de contextos parti- culares de pesquisa (embora o leitor seja constantemente remetido a estes), * Este artigo reproduz, com pou- cas modificações, texto destinado à disciplina de pós-graduação “Pensamento sociológico con- temporâneo”, ministrada no primeiro semestre de 2006 pelo professor Sergio Miceli, a quem agradeço os comentários feitos na ocasião e o estímulo constante.

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Apoiado na discussão detida de alguns dos argumentos centrais das Meditações pascalianas,de Pierre Bourdieu, o artigo busca mostrar que na obra do sociólogo há umatensão permanente entre (crítica ao) universalismo e (crítica ao) relativismo. Evidencia-seprimeiramente como Bourdieu apresenta desde seus escritos iniciais uma perspectivamarcada por certas ressonâncias relativistas, na qual a noção de arbitrário desempenhaum papel central. A seguir, confronta-se esse conjunto de proposições com as críticas deHabermas (e do próprio Bourdieu) a Foucault e às correntes ditas pós-modernas, paraentão explicitar de que maneira o autor apresenta, desde meados da década de 1970.

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  • Filosofia negativa?Bourdieu e os fundamentos da razo*

    Arthur Oliveira Bueno

    Dois excessos: excluir a razo, admitir to somente a razo.pAsCAl

    Um dos ltimos trabalhos que Pierre Bourdieu publicou em vida, Medi-taes pascalianas, poderia ser qualificado, com algum exagero, mas no sem razo, de seu livro mais filosfico. O prprio autor reconhece, nas primeiras frases da introduo, que aborda ali certas questes que teria preferido deixar por conta da filosofia (Bourdieu, 2001, p. 9). Parado-xalmente, trata-se tambm, em boa medida, de um livro contra a filosofia, como atesta a crtica da razo escolstica que permeia todo o escrito e visa sobretudo, embora no apenas, essa disciplina. O ttulo, nesse sentido, duplamente revelador. De um lado, porque coloca a obra sob a gide de Pascal, para quem a verdadeira filosofia zomba da filosofia (Idem, p. 10). De outro, porque remete a Descartes e Husserl, mas no sem ambiguidade e at ironia pois o que dizer de uma crtica s distores do pensamento pensante, marcado pelo enclausuramento escolstico, que ainda assim se denomina Meditaes ?

    De um jeito ou de outro, o debate direto com a filosofia confere a esse livro um carter peculiar. Nele, Bourdieu no apenas reapresenta aspectos consolidados de seu pensamento numa forma abstrada de contextos parti-culares de pesquisa (embora o leitor seja constantemente remetido a estes),

    * Este artigo reproduz, com pou-cas modificaes, texto destinado

    disciplina de ps-graduao

    Pensamento sociolgico con-

    temporneo, ministrada no

    primeiro semestre de 2006 pelo

    professor Sergio Miceli, a quem

    agradeo os comentrios feitos na

    ocasio e o estmulo constante.

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    como desenvolve de maneira mais sistemtica argumentos antes apenas esboados ou que o autor, como ele prprio afirma, vinha preferindo deixar, ao menos em parte, sob a forma implcita de um sentido prtico das coisas tericas (Idem, p. 11). Entre estas questes, est uma que lhe era dirigida h tempos, assim como havia sido endereada, de modo geral, a todos os principais nomes de sua gerao intelectual na Frana. Trata-se da acusao de relativismo (nas suas formas epistemolgica, moral ou esttica) ou do pro-blema, nos termos em que Bourdieu o nomeia, dos fundamentos da razo.

    No sendo possvel abordar como esse tema se apresenta em toda a obra do socilogo francs, suficiente citar uma entrevista concedida em 1989, momento em que as linhas principais de seu pensamento estavam bem defi-nidas, para mostrar como a questo ainda era problemtica. Perguntado se, ao afirmar como fundamento das aes humanas o habitus, um produto da histria, ele no caa no relativismo, condenando os agentes incomunica-bilidade, isto , ao solipsismo, Bourdieu respondeu: A praxeologia uma antropologia universal que recupera (entre outras coisas) a historicidade, portanto a relatividade, das estruturas cognitivas, sempre sublinhando o fato de que os agentes pem universalmente em prtica estruturas histricas (Bourdieu, 1996, pp. 158-159).

    Mencionando a um s tempo os aspectos relativos e os universais da conduta humana, a resposta parece constituir mais uma tpica soluo bourdieusiana para as oposies estreis nas quais muitas vezes se baseiam as controvrsias cientficas e filosficas. A uma segunda anlise, entretanto, ela mostra mais fugir questo do que resolv-la. Bourdieu diz, em suma, que sua teoria praxeolgica da ao a qual, por meio de conceitos como habitus, historiciza a conduta humana pretende ter validade universal, correspondendo prtica de todos os agentes humanos. Com isso, justifica a utilizao do conceito de habitus nas sociedades modernas assim como nas tradicionais, mas nada diz sobre a possibilidade de que diferentes descries do mundo, sendo todas produtos da histria (e portanto, segundo esse racio-cnio, relativas), tenham condies de ser confrontadas, debatidas e, atravs desse processo, confirmadas ou refutadas ainda que provisoriamente , de modo que umas se mostrem melhores, mais vlidas ou, se se quiser, menos relativas ou arbitrrias que outras.

    No fundo, isso que a pergunta pede quando fala em relativismo, so-lipsismo e incomunicabilidade, e que Bourdieu deixa de responder. Alguns anos depois, porm, essa questo, a princpio filosfica, mas com a qual toda cincia tem de lidar, abordada explicitamente nas Meditaes pascalianas

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    no sem alguma ambiguidade, como se ver. At porque o livro comporta, tambm, uma crtica a formas absolutistas de universalismo que permite compreender como a prpria acusao de relativismo pde chegar a ser direcionada a Bourdieu, e na qual certos argumentos de Pascal assumem um lugar central.

    Pascal e a crtica ao fundamento

    No desprovido de consequncias que Bourdieu tenha escolhido, para batizar suas meditaes, um filsofo como Pascal, por todas as razes que o prprio socilogo apresenta no incio do livro: a ateno ao poder simblico; a solicitude diante do povo, sem populismo; e a atitude compreensiva ante os comportamentos humanos aparentemente mais inconsequentes. Para a questo que motiva este texto, entretanto, particularmente significativo que Bourdieu justifique a sua escolha mencionando outros aspectos da obra, menos percebidos, como o cancelamento da ambio do fundamen-to (Bourdieu, 2001, p. 10). Com efeito, nos momentos em que cita passagens do autor de Penses que se mostra mais claramente a inclinao bourdieusiana para relativizar qualquer tentativa de fundar o conhecimento, bem como os valores morais ou estticos, na razo ou em princpios que no sejam histricos.

    Seria possvel mencionar muitos dos argumentos pascalianos transcritos no livro, mas, dentre esses, o trecho sobre a lei talvez seja o mais interessante, por conter em forma condensada o ncleo do que ser em seguida desen-volvido por Bourdieu. Para Pascal, o fundamento (mstico) da autoridade das leis est no costume, no em alguma forma de justia: quem lhes presta obedincia, porque so justas, obedece justia que imagina, mas no essncia da lei, que est inteiramente contida em si mesma. Assim, bastaria abalar os costumes estabelecidos, sondando inclusive em seus alicerces e com isso assinalando sua falta de autoridade e justia pois eles tambm se mantm apenas pelo fato de serem algo recebido , para aniquilar as leis vigentes. Justamente por isso, quem desejar que estas se mantenham precisa fazer com que o povo no sinta a verdade da usurpao, que foi introduzida antigamente sem razo, depois tornou-se razovel: preciso fazer com que seja vista como sendo autntica, eterna, e ocultar seu comeo se quisermos que no acabe logo (Pascal, apud Bourdieu, 2001, p. 114).

    O comentrio de Bourdieu que se segue enfatiza as afirmaes de Pascal e desenvolve, em termos prprios, alguns dos pontos levantados:

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    Assim, o nico fundamento possvel da lei deve ser buscado na histria, a qual,

    precisamente, aniquila todo tipo de fundamento. No princpio da lei, no existe

    outra coisa seno o arbitrrio (no duplo sentido), a verdade da usurpao, a

    violncia sem justificativa. A amnsia da gnese, que nasce do fato de se estar acos-

    tumado ao costume, dissimula o que est enunciado pela brutal tautologia: a lei

    a lei, e nada mais. Quem quiser examinar seu motivo, sua razo de ser, levando

    tal indagao at a sua fonte primeira, ou seja, fund-la remontando ao comeo

    primordial, maneira dos filsofos, descobrir sempre essa espcie de princpio de

    desrazo suficiente (Bourdieu, 2001, p. 114).

    A passagem encadeia uma srie de argumentos que, para compreender melhor, talvez seja necessrio desmembrar. Vale a pena, assim, deter-se so-bre um elemento que ela apresenta e que reaparece em muitos momentos do livro: a noo de arbitrrio. Na sequncia das proposies, ela surge como consequncia de a lei ser um produto da histria. Bourdieu men-ciona um sentido duplo: um tem a ver com o uso da violncia; o outro, com a lingustica de Saussure e o estruturalismo. J no Curso de lingustica geral, entretanto, a noo comporta certa ambiguidade, podendo ser inter-pretada de dois modos distintos. A princpio, diz-se que algo arbitrrio quando falta uma relao interior, um vnculo necessrio entre dois elementos. Assim, o lao que une significado (conceito) e significante (imagem acstica) arbitrrio porque no h uma relao de necessi-dade entre os dois. Este ltimo pode ser trocado e, no obstante, aquele continuar o mesmo, como demonstram as diferenas entre as lnguas e a prpria existncia de lnguas diferentes: pode-se dizer boi, boeuf ou Ochs, o significado no se altera (cf. Saussure, 1916, p. 100)1. Arbitrrio, nesse sentido (que se pode chamar de fraco), simplesmente o que no necessrio2. Prosseguindo no argumento, isso significa que uma relao completamente arbitrria como , para Saussure, aquela entre signifi-cante e significado implica a possibilidade de que um dos elementos seja substitudo de modo irrestrito: um significante poderia ser trocado por qualquer outro, sem que se altere em nada seu significado, pois no h ne-nhuma propriedade da imagem acstica (na palavra mar, por exemplo) que determine um dado sentido ou que imponha limites a este. Mas, com isso, a noo de arbitrrio adquire contornos mais fortes: ela passa a se referir no apenas quilo que no necessrio, mas especialmente ao que pode, sem prejuzo ou grandes diferenas, ser substitudo por qualquer outro elemento3.

    1. A afirmao de Saussure des-

    considera as variaes contextuais

    no significado dos termos, e o

    mesmo se far neste comentrio.

    2. Na maior parte dos casos,

    Saussure entende o vnculo

    necessrio como natural a pan-

    tomima citada como exemplo

    de signo inteiramente natural

    e, portanto, no arbitrrio (cf.

    Saussure, 1916) , como se

    essa fosse a principal maneira

    de estabelecer uma relao de

    necessidade entre dois elementos.

    Algumas vezes, no entanto, o

    linguista suo chega a falar,

    sem maiores especificaes, em

    vnculo racional, apontando

    talvez para a existncia de outras

    formas de conexo do tipo.

    3. por essa razo que Saussure

    se recusa a igualar signo lingus-

    tico e smbolo. Este ltimo tem

    como caracterstica no ser jamais

    completamente arbitrrio; ele

    no est vazio, existe um rudi-

    mento de vnculo natural entre

    o significante e o significado. O

    smbolo da justia, a balana, no

    poderia ser substitudo por um

    objeto qualquer, um carro, por

    exemplo (Idem, p. 101).

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    Dito isso, pode-se ento, voltando a Bourdieu, compreender qual a conexo entre o carter arbitrrio (no sentido saussuriano) da lei e a arbitrariedade enquanto uso da violncia. Se, como foi visto, o socilo-go francs pode basear o carter arbitrrio da lei em sua historicidade, porque a variao das normas legais de acordo com as pocas e sociedades demonstraria a inexistncia de qualquer vnculo natural entre estas e a sociedade humana em geral. Tomando essa arbitrariedade em seu sentido forte e levando-a s ltimas consequncias, isso implicaria que no exis-tem diferenas significativas entre uma lei e outra. No se poderia, ento, afirmar que esta mais justa do que aquela a justia est apenas na ima-ginao daquele que a obedece, disse Pascal , pois, sendo completamente substituveis, as leis estariam, como os signos que formam a lngua, fora de discusso:

    [...] a prpria arbitrariedade do signo pe a lngua ao abrigo de toda tentativa

    que vise a modific-la. A massa, ainda que fosse mais consciente do que , no

    poderia discuti-la. Pois, para que uma coisa seja posta em questo, necessrio

    que se baseie numa norma razovel. Pode-se, por exemplo, discutir se a forma

    monogmica do casamento mais razovel do que a forma poligmica e fazer valer

    razes para uma e outra. Poder-se-ia, tambm, discutir um sistema de smbolos,

    pois que o smbolo tem uma relao racional com a coisa significada; mas para

    a lngua, sistema de signos arbitrrios, falta essa base, e com ela desaparece todo

    terreno slido de discusso; no existe motivo algum para preferir soeur a sister,

    Ochs a boeuf etc. (Idem, pp. 106-107; grifos meus).

    Assim, se algo como a lngua no pode ser discutido, porque falta uma base, um terreno slido um fundamento, poder-se-ia dizer para tanto. Embora o prprio trecho mostre como, para Saussure, as normas legais ou os costumes no se igualam s convenes lingusticas em termos de arbitrariedade, pressupondo uma equivalncia do tipo que Bourdieu, seguindo Pascal, pode afirmar na discusso sobre a lei que a histria ani-quila todo tipo de fundamento. Mas ento, se no pode ser discutida ou se a discusso no pode, por definio, chegar a lugar algum, pois lhe falta uma base que sirva de critrio e medida , no h motivo para que uma lei suceda, supere, sobrepuje outra, seno outro arbitrrio: o da fora. E se ela consegue se manter, porque o costume faz com que no se perceba, ou se esquea, essa violncia sem justificativa que est em sua origem: como afirmou Pascal, a usurpao [...] foi introduzida antigamente sem razo,

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    depois tornou-se razovel (Bourdieu, 2001, p. 114). No fosse pela fora do costume, o arbitrrio da fora (alicerce de todo o sistema, diz Bourdieu [Idem, p. 115]) seria revelado em plena luz do dia. Disso decorre que tudo o que se possa invocar para justificar uma lei no passa de racionalizao a posteriori: o arbitrrio histrico da instituio histrica [...] procura se fazer esquecer como tal ao tentar erigir-se em razo mtica, com as teorias do contrato, verdadeiros mitos de origem das religies democrticas [...] ou ento, de maneira mais banal, naturalizando-se e obtendo assim um reconhecimento enraizado no desconhecimento (Idem, pp. 114-115).

    Estendido para o conjunto das produes humanas, esse encadeamento de proposies resulta numa concepo geral da vida social, em suas dimen-ses diacrnica e (por assim dizer) sincrnica, na qual a noo de arbitrrio desempenha papel central. Assim, no que se refere relao contempornea entre diversos microcosmos sociais, pode-se ver Bourdieu afirmar:

    O arbitrrio situa-se no princpio de todos os campos, at dos mais puros, como

    os mundos artstico ou cientfico: cada um deles possui sua lei fundamental, seu

    nomos [...]. No h nada a dizer a respeito dessa lei a no ser, como dizia Pascal, que

    a lei a lei, e nada mais. Ela s se enuncia, quando acontece que o faa, a ttulo

    excepcional, sob a forma de tautologias. Irredutvel e incomensurvel a qualquer

    outra, ela nunca pode ser referida lei de um outro campo ou ao regime de verdade

    a implicado (Idem, p. 117).

    A afirmao de que a relao entre as leis dos campos incomensurvel no deixa de indicar que, mais do que uma mera incompatibilidade entre as crenas e os investimentos favorecidos por cada um, a independncia entre os diferentes campos acaba produzindo uma forma de incomunicabilidade entre eles (Idem, p. 21; grifo meu). Assentadas em crenas coletivas que, no limite, tm como princpio um nada (como afirma explicitamente Bourdieu a partir de um texto de Mallarm4), as fices produzidas nesses microcosmos sociais no podem referir-se mutuamente, traduzir-se umas na linguagem das outras, o que, bem entendido, cancela qualquer possibilidade de debate que no gire em falso, sobre o vazio.

    por isso, alis, que a adeso de um agente a um campo no passa pela razo e pela prova, mas pelo costume, pelo hbito (o qual, sem violncia, sem arte, sem argumento, nos faz acreditar nas coisas [Pascal, apud Bourdieu, 2001, p. 22; grifos meus]) e pelo corpo: A crena, inclusive aquela que constitui o fundamento do universo cientfico, da ordem do autmato,

    4. Comentadas mais longamente

    em As regras da arte (cf. Bourdieu,

    1996, pp. 308-311), as afirma-

    es do poeta so citadas de pas-

    sagem nas Meditaes pascalianas:

    ocorreu-me por vezes lamentar

    no haver seguido as pegadas de

    Mallarm, o qual, recusando-se a

    operar em pblico o desmonte

    da fico e, consequentemente,

    do mecanismo literrio, expor a

    pea principal ou nada, preferia

    salvar a fico e a crena coletiva

    no jogo, enunciando esse nada

    dos princpios apenas no registro

    da denegao (Bourdieu, 2001,

    pp. 15-16).

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    isto , do corpo, o qual, como Pascal costuma lembrar, tem razes que a razo desconhece (Bourdieu, 2001, p. 22) 5. assim que, tal como ocorre com a lei no argumento pascaliano,

    [...] o questionamento dos princpios da crena [...] ameaaria a prpria existncia

    do campo. Os participantes no tm nada a responder quanto s questes sobre as

    razes da pertinncia, do engajamento visceral no jogo, e os princpios que podem

    ser invocados nesse caso no passam de racionalizaes post festum destinadas a

    justificar, tanto para si como para os outros, um investimento injustificvel (Idem,

    p. 124; grifos meus).

    Bourdieu no se detm tanto, nas Meditaes pascalianas ou no restante da obra, nas consequncias dessas ideias para a dimenso diacrnica dos acontecimentos humanos. Mas no seria ilegtimo derivar delas uma viso que, identificando os produtos histricos contingncia e arbitrariedade, no pode conceber a histria seno como um puro e simples encadeamento de acasos (Idem, p. 140), cujo sentido seria dado diferentemente do que ocorre no modelo hegeliano, em que se descreve uma espcie de partog-nese continuada da razo que se fecunda a si mesma (Idem) apenas por mudanas arbitrrias nos costumes, nas leis, na arte, na moral e no conhe-cimento, sem justificativa e sem razo.

    Impasses de uma filosofia negativa

    Mas se o argumento de Bourdieu resumir-se a isso, como no dar razo queles que apontaram um relativismo em sua teoria6? Mais ainda, como no lhe dirigir algumas das crticas que Jrgen Habermas fez ao ps-estru-turalismo em geral, e especialmente obra de Michel Foucault?

    Um desses questionamentos decorre da recusa, prpria de uma genealogia do poder, a buscar tornar as aes dos atores compreensveis a partir de uma tradio de significados partilhados, tal como faria uma hermenutica. Fou-cault prope, em vez disso, a explicao de discursos e comportamentos com base nas prticas de poder subjacentes. Um acontecimento como a proibio da luta de gladiadores na Roma tardia seria atribudo, nessa perspectiva, no influncia humanizadora do cristianismo, mas substituio de uma formao de poder por outra7. Os argumentos invocados para justificar as diferentes posies nesse debate so, de acordo com a crtica de Habermas, considerados apenas disfarces de uma prtica de dominao que lhes subjaz

    5. Em conexo com o problema

    do arbitrrio cultural, que surge

    em diferentes formulaes mas

    j no sentido indicado aqui em

    livros como O amor pela arte

    (1966-69) e A reproduo (1970),

    esse um tema presente na obra

    de Bourdieu desde as verses

    iniciais de sua teoria social: Se

    todas as sociedades [...] conferem

    tamanho valor aos detalhes apa-

    rentemente mais insignificantes

    da postura, da compostura, das

    maneiras corporais e verbais,

    que, tratando o corpo como

    uma memria, elas lhe confiam

    sob uma forma abreviada e

    prtica, isto , mnemotcnica,

    os princpios fundamentais do

    arbitrrio cultural. O que assim

    incorporado se encontra posto

    fora das tomadas de conscincia,

    portanto ao abrigo da transfor-

    mao voluntria e deliberada,

    ao abrigo mesmo da explicitao:

    nada parece mais inefvel, mais

    incomunicvel, mais insubsti-

    tuvel, e por isso mais precioso,

    do que os valores incorporados,

    feitos corpo (Bourdieu, [1972]

    2000, pp. 297-298).

    6. assim que Cyril Lemieux

    (2001), por exemplo, pode

    acusar a teoria bourdieusiana

    de no possuir os meios para

    fundamentar, ou mesmo com-

    preender, a crtica moral presente

    nas anlises e tomadas de posio

    polticas de seu autor.

    7. O exemplo no provm dos

    textos de Foucault, mas de um

    comentrio de Paul Veyne (1979)

    sobre sua obra, que Habermas

    retoma criticamente.

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    inconscientemente. Para explic-los, no preciso nenhuma pr-compreen-so hermenutica, mas somente o conceito da histria como uma mudana de configurao, desprovida de sentido e caleidoscpica, de universos de dis-curso que nada tm em comum seno a determinao de ser protuberncias de poder em geral (Habermas, [1985]* 2000, p. 388).

    Do ponto de vista de uma historiografia genealgica, portanto, o sentido das pretenses de validade (referencial ou normativa) residiria nos efeitos de poder que possuem, isto , na sua contribuio para a afirmao de uma estrutura de dominao subjacente. O problema, entretanto, que no se pode aceitar uma hiptese como essa sem destruir a prpria base de validade daquele que a profere. Se as pretenses de verdade ou de validade normativa do discurso do prprio historiador genealogista se esgotassem nos efeitos de poder que elas poderiam desencadear, a crtica seria apenas mais uma formao de poder-saber e, nessa condio, to relativa quanto os discursos que analisa. Foucault por vezes reconhece tal impasse, sem no entanto resolv-lo: No momento, e sem que possa prever um termo, meu discurso longe de determinar o lugar de onde ele fala evita o solo em que poderia se apoiar (Foucault, [1969] 1972, p. 249). Outras vezes, porm, chega a professar o que Habermas chama de um irracionalismo confesso, cujo maior exemplo sua interpretao de Nietzsche:

    Aparentemente, ou melhor, segundo a mscara que ela usa, a conscincia histrica

    neutra, despojada de toda paixo, dedicada apenas verdade. Mas se ela interroga a si

    mesma e se, de uma maneira mais geral, interroga toda conscincia cientfica em sua

    histria, ela descobre ento as formas e transformaes da vontade de saber que instin-

    to, paixo, obstinao inquisidora, refinamento cruel, maldade; ela descobre a violncia

    das preconcepes. [...] A anlise histrica desse grande querer-saber que percorre a hu-

    manidade mostra portanto que no h nenhum conhecimento que no repouse sobre

    a injustia (que no h pois no conhecimento um direito verdade ou um fundamento do

    verdadeiro) [...] (Foucault, [1971] 1994, p. 155; grifos meus).

    Ao mesmo tempo, e a despeito de afirmaes fortes como essas baseadas em Nietzsche, no deixa de haver na crtica de Habermas certa incompreen-so de pressupostos gerais do empreendimento foucaultiano. Pois como o filsofo francs afirmou numa conferncia em 1978, suas anlises no visam propriamente saber o que verdadeiro ou falso, fundamentado ou no fun-damentado, real ou ilusrio, cientfico ou ideolgico, legtimo ou abusivo. O que lhe interessava no era uma pesquisa da legitimidade dos modos

    * A data entre colchetes refere-se

    edio original da obra. Ela

    indicada na primeira vez que a

    obra citada. Nas demais, indica-

    se somente a edio utilizada pelo

    autor (N.E.).

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    Arthur Oliveira Bueno

    histricos de conhecimento que se preocuparia com qual falsa ideia o co-nhecimento faz de si mesmo e a que uso excessivo ele esteve exposto; qual dominao, por consequncia, ele se encontrou ligado. Mais que interrogar a validade do conhecimento e a legitimidade da dominao, Foucault pretendia ver quais so os laos, quais as conexes que podem ser indicadas entre os mecanismos de coero e elementos de conhecimento, quais jogos de refern-cia e de apoio se desenvolvem entre uns e outros (Foucault, 2000, p. 183). Projeto que no est necessariamente assentado em pressupostos relativistas, j que as questes ligadas validade dos discursos e legitimidade das ordens sociais so propositalmente deixadas de lado, em favor da mera exposio das ligaes entre o saber e o poder. O que mostra como as objees de Habermas se apoiam, em alguma medida, numa superinterpretao do que est em jogo nos escritos de Foucault8.

    No entanto, a forma como esse programa seguido tambm capaz de mostrar a pertinncia das crticas habermasianas. Em nenhum livro talvez isso seja mais claro do que em Vigiar e punir: ali, nos momentos em que se trata de explicar as mudanas na legislao e nas prticas punitivas, as determinaes provenientes dos raciocnios morais so em vrios pontos sugeridas, mas apenas para logo em seguida serem abandonadas. No so negadas ou refutadas, somente deixadas de lado9. O que resulta numa espcie de neutralizao de sua influncia, em favor da questo do que, naquelas mudanas, pode ser atribudo aos efeitos de poder. Mas, ento, no justi-ficado indagar se uma historiografia que deixa de lado o poder to efetivo quanto outros da validade dos discursos no acaba, ainda que isso resulte de uma escolha voluntria, enviesando a anlise e dando a impresso de que as nicas foras em ao na histria so aquelas provenientes das relaes de poder em sentido estrito? Desse modo, a interpretao de Habermas no faria seno explicitar, pelo exagero, certas tendncias potencialmente inscritas na obra do filsofo francs.

    E por isso que, apesar de tudo que separa os projetos intelectuais de Foucault e Bourdieu, existem elementos comuns suficientes entre os dois para que as objees habermasianas, em seu sentido geral, possam ser formuladas tanto a um quanto ao outro. Nesse aspecto, significativo que Foucault, em sua aula inaugural no Collge de France, tenha sugerido que se visse a oposio do verdadeiro e do falso como um sistema de excluso, fundado em separaes que, de sada, so arbitrrias, ou que, ao menos, se organizam em torno de contingncias histricas; que no so apenas modificveis, mas esto em perptuo deslocamento; que so sustentadas por todo um sistema

    8. Como argumentou, no geral

    com razo, Dominique Jani-

    caud (1989). A ideia da crtica

    habermasiana como uma supe-

    rinterpretao de ric Alliez

    (1996, p. 19).

    9. Por exemplo: Ser uma

    transformao geral de atitude,

    uma mudana que pertence

    ao campo do esprito e da sub-

    conscincia? Talvez. Com maior

    certeza e mais imediatamente,

    porm, significa um esforo para

    ajustar os mecanismos de poder

    que enquadram a existncia dos

    indivduos (Foucault, [1975]

    1977, p. 72).

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    de instituies que as impem e reconduzem; enfim, que no se exercem sem presso, nem sem ao menos uma parte de violncia (Foucault, [1971] 1996, pp. 13-14). Esto a, como se v, os mesmos elementos presentes no argumento que Bourdieu extrai de Pascal: o arbitrrio histrico, a instituio social, a violncia. E tanto aqui como l, conduzindo a uma perspectiva que tende a relativizar certos pilares da racionalidade.

    O prprio Bourdieu, entretanto, faz crticas muito semelhantes s de Habermas em diversos momentos de Meditaes pascalianas, tanto a Foucault como, mais genericamente, ao pensamento dito ps-moderno. Os alvos principais so os mesmos. De um lado, critica-se algo que se pode chamar de relativismo epistemolgico, isto , a reduo de todas as relaes de sentido (e de cincia) a relaes de fora e a lutas de interesse (Bourdieu, 2001, p. 133), fazendo com que se enxergue numa assero apenas uma injuno ou uma ordem disfarada, na lgica uma polcia dos espritos, na pretenso cientificidade um mero efeito de verdade, destinado a suscitar a obedincia, ou uma pretenso velada hegemonia inspirada pela vontade de poder (Idem, p. 40). De outro lado, aponta-se para a existncia de um segundo relativismo, de ordem moral, e nesse sentido que Bourdieu critica a analtica foucaultiana do poder que, atenta s microestruturas de domi-nao e s estratgias de luta pelo poder, acaba por excluir os universais e, em particular, a pesquisa de qualquer espcie de moralidade universalmente aceitvel (Idem, p. 130).

    Mas, se isso est correto, como Bourdieu poderia ser alvo das mesmas crticas que ele, em outros momentos das Meditaes, dirige a Foucault e aos ps-modernos? De qualquer modo, a tenso no lhe passa desper-cebida. O autor chega a manifestar desconforto com o perigo de cancela-mento das prprias bases, semelhante a retirar o solo em que se pisa, que decorre de alguns de seus principais argumentos: eu no podia deixar de sentir, enquanto escrevia sobre a skhol e todas essas outras coisas, o efeito em ricochete de meus propsitos. Jamais experimentara com tamanha intensidade a estranheza do meu projeto, espcie de filosofia negativa que corria o risco de parecer autodestrutiva (Idem, p. 16). Mais adiante, Bourdieu ainda mais claro sobre os paradoxos que caracterizam o modus operandi de suas anlises:

    No estar o socilogo ameaado por uma espcie de esquizofrenia, na medida

    em que condenado a tratar da historicidade e da relatividade num discurso com

    pretenses universalidade e objetividade, a caracterizar a crena numa anlise

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    condicionada suspenso de qualquer adeso ingnua, a submeter a razo escolstica

    a uma crtica inevitavelmente escolstica, tanto em suas condies de possibilidade

    como em suas formas de expresso, em suma, a detonar aparentemente a razo por

    meio de uma argumentao racional, maneira desses pacientes que comentam o

    que dizem ou o que fazem por um metadiscurso que o contradiz? (Idem, p. 113)

    Entretanto, as questes no so deixadas nesse estado. Percebendo os im-passes a que poderia chegar se levasse s ltimas consequncias alguns de seus principais argumentos, Bourdieu se ocupar explicitamente, em boa parte das Meditaes pascalianas, do problema dos fundamentos (at ento negados) da razo10. Esse esforo no significar, porm, o abandono do conjunto das teses anteriormente professadas, na medida em que tanto um como outro se basearo no mesmo princpio a historicidade da razo , o que se pode ver claramente numa afirmao como esta:

    [...] as cincias histricas no esto condenadas mera constatao (pascaliana),

    por si s salutar e libertadora, do arbitrrio original. [...] Cabe propriamente a tais

    cincias fundar, no em razo mas em histria, se assim se pode dizer, em razo

    histrica, a necessidade ou a razo de ser propriamente histrica de microcosmos

    separados (e privilegiados) onde se elaboram enunciados sobre o mundo com

    pretenso universal (Idem, p. 129).

    Os fundamentos sociais da razo

    O problema consiste ento em mostrar como a histria, at aqui um fator de relativizao de todo fundamento, pode fornecer uma base segura para a razo. Uma primeira resposta essencialmente negativa: Bourdieu recusa de imediato qualquer tentativa de fundamentar a racionalidade em princpios metafsicos ou naturais. preciso admitir que a razo no caiu do cu, como um dom misterioso e fadado a permanecer inexplicvel, sendo, portanto, histrica de cabo a rabo (Idem, p. 132). Mas isso por si s no resolve a questo. Persiste a possibilidade de que simplesmente no haja um fundamento para a razo, como postulam ou pressupem as vrias formas de relativismo, cnico ou ctico. Bourdieu no entanto rejeita essa posio, bem como a reduo das pretenses de validade a efeitos de poder que, como foi visto nos casos de Pascal e Foucault, geralmente a acompanha. Assim, se antes o autor das Meditaes pascalianas enfatizara que historizar relativizar (Idem, p. 113), agora ele diz: no porque a razo histrica

    10. Uma tentativa similar, nesse

    sentido especfico, quela em-

    preendida por Foucault durante

    a fase final de sua obra, nos dois

    ltimos volumes da Histria da

    sexualidade e em textos e entre-

    vistas do perodo, embora com

    estratgias tericas e resultados

    bastante distintos.

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    que somos obrigados a concluir, como em geral se costuma fazer, que ela seja redutvel histria (Idem, p. 132).

    com isso em vista que Bourdieu, ainda no incio do livro, afirma: No desconheo que o que tenho a dizer aqui [...] est enraizado nas experincias singulares, e singularmente limitadas, de uma existncia particular [...]. Ser que por conta disso meu propsito se torna particularizado ou relativizado? (Idem, p. 11). A pergunta retrica e a resposta, evidentemente, negativa. Para justific-la, o autor toma como exemplo os pensadores reunidos em torno do convento de Port-Royal, crculo de que Pascal fazia parte: Ainda que a lucidez especial desses senhores a respeito dos valores aristocrticos e dos fundamentos simblicos da autoridade [...] possa dever algo posio de onde procediam suas disposies crticas perante os poderes temporais, [...] nada disso invalida as verdades reveladas por essa mesma lucidez (Idem, pp. 11-12). Em outras palavras, embora os discursos sejam sempre produto da histria e de condies sociais que delimitam o que pensado ou pensvel, isso no invalida necessariamente o contedo das asseres. E no porque poder-se-ia descobrir que aquele que descobriu a verda-de tinha interesse em faz-lo que essa descoberta estaria por isso mesmo comprometida (Idem, p. 12). H, assim, uma independncia relativa das pretenses de validade dos discursos com relao s condies sociais e aos interesses de que so o produto.

    Chega-se, com isso, a um resultado paradoxal: a razo no pode situar-se fora da histria, mas tampouco pode, como Bourdieu agora diz, ser redu-zida a esta ltima. ao mesmo tempo histrica e trans-histrica, relativa e universal (ou com pretenso universal), o que s possvel conceber quando se tem em vista a independncia relativa entre a validade dos enunciados e suas condies sociais de enunciao. Mas a trans-historicidade no dada de antemo. Est, pelo contrrio, constantemente posta prova, sujeita a todo tipo de barreiras, distores e arbitrariedades da, talvez, a ambiguidade de certas afirmaes de Bourdieu, que confere razo seja um carter universal, seja uma pretenso universalidade. De fato, os primeiros captulos de Meditaes pascalianas so dedicados justamente exposio dos limites que o pensamento deve s suas condies sociais de produo, isto , daquilo que tem por efeito reduzi-lo histria. Isso significa que o progresso da razo, em suas diversas formas (conhecimento, arte, moral), no automtico e tampouco est inscrito em alguma lei geral do desen-volvimento, exigindo todo um trabalho coletivo, essencialmente histrico, para produzir verdades com valor trans-histrico:

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    [...] uma viso realista da histria leva a examinar de que maneira, e sob que con-

    dies histricas, verdades irredutveis histria podem ser arrancadas da histria.

    [...] na histria, e to somente na histria, que se deve buscar o princpio da

    independncia relativa da razo perante a histria, da qual o produto; ou melhor,

    na lgica propriamente histrica, embora inteiramente especfica, segundo a qual

    so institudos os universos de exceo onde se realiza a histria singular da razo

    (Idem, p. 132).

    A universalidade da razo no est dada de uma vez por todas por al-gum fundamento originrio, natural ou metafsico; deve ser conquistada e depende, assim, da atuao de condies sociais especficas. por isso que, para Bourdieu, a histria singular da razo no se d em qualquer lugar do espao social, mas em certos universos de exceo, os mesmos cujos problemas ele havia apontado anteriormente. Fundados na skhol e na dis-tncia escolstica em relao necessidade e urgncia, um privilgio que no deixa de imprimir limitaes a suas produes simblicas, tais universos so tambm, por conta de algumas de suas propriedades, particularmente capazes de favorecer o avano da razo: as cincias sociais devem continuar buscando na lgica especfica dos campos escolsticos, mundos paradoxais capazes de impor e inspirar os interesses mais desinteressados, o princpio de existncia das obras de arte, de cincia ou de literatura naquilo que elas possuem de histrico, mas tambm de trans-histrico (Idem, p. 139).

    Na discusso desse ponto, Bourdieu toma como modelo o campo cient-fico, concentrando-se assim numa dimenso especfica da razo o conheci-mento 11, ainda que os argumentos valham, de maneira geral, para todos os universos escolsticos (nos quais se incluem, por exemplo, os campos jurdico e artstico) 12. O que diferencia tais microcosmos do resto do espao social e os torna particularmente favorveis ao progresso da razo , em primeiro lugar, o fato de serem o produto de um longo processo de emergncia histrica no decorrer do qual se afirma progressivamente a necessidade especfica (Bour-dieu, 2001, p. 140) a cada um deles. Tal processo de autonomizao, quando bem-sucedido, tem como resultado a instaurao de leis especficas que regu-lam a concorrncia interna segundo critrios prprios: a razo cientfica um produto da histria e [...] ela se afirma cada vez mais medida que se amplia a autonomia relativa do campo cientfico em relao s constries e determina-es externas, ou melhor, medida que esse campo consegue impor de modo mais ou menos soberano suas leis especficas de funcionamento, mormente em matria de discusso, de crtica etc. (Idem, p. 130).

    11. O cerne do argumento j

    estava num texto de 1975, inti-

    tulado justamente La spcificit

    du champ scientifique et les con-

    ditions sociales du progrs de la

    raison, depois republicado, com

    poucas modificaes, como Le

    champ scientifique (cf. Bour-

    dieu, 1976). Embora propenso

    a sublinhar a arbitrariedade dos

    produtos histricos, Bourdieu

    no podia deixar de postular

    algum tipo de validade para a

    cincia, sob pena de cancelar as

    bases do que ele prprio escrevia.

    Mas s do meio da dcada de

    1980 em diante que o autor esbo-

    ar esquemas semelhantes para

    as outras dimenses da racio-

    nalidade, inclusive formulando

    a questo nos termos poltico-

    normativos de uma Realpolitik

    da razo, destinada a instituir

    condies sociais favorveis a seu

    progresso. Ver Bourdieu (1987b),

    e, para o caso especfico da moral,

    Bourdieu (1992a).

    12. O caso da arte o mais

    ambguo. Das trs dimenses

    da razo, a nica que, no

    tratamento especfico dispensado

    nas Meditaes, no analisada

    segundo esquema semelhante

    quele aplicado ao universo

    cientfico, embora essa possibi-

    lidade seja sugerida em vrios

    momentos. J no artigo de 1975

    Bourdieu afirmava que, nos casos

    extremos representados pelo

    campo religioso e pelo campo

    da produo literria, a verdade

    oficial no outra coisa seno a

    imposio legtima (isto , arbi-

    trria e desconhecida como tal)

    de um arbitrrio cultural expri-

    mindo o interesse especfico dos

    dominantes (Bourdieu, 1975, p.

    110). Argumentos semelhantes

    tambm esto presentes num

    texto posterior, dedicado espe-

    cificamente ao campo artstico,

    onde entretanto se afirma que,

    contrariamente quilo que um

    relativismo ingnuo ensina, o

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    Os campos escolsticos no deixam de constituir, em certo sentido, mundos sociais idnticos aos demais, com concentraes de poder e de capital, monoplios, relaes de fora, interesses egostas, conflitos (Idem, p. 133), e tudo o que isso pode implicar em termos de violncia (sobretudo simblica) e de fora do costume, para retomar o argumento pascaliano.

    Sem dvida, toda proposio com pretenso cientfica sobre o mundo fsico uma

    construo, que busca afirmar-se contra as demais, fazendo com que as diferentes

    vises assim confrontadas no interior dos campos cientficos derivem uma parcela

    de sua fora relativa, inclusive nos campos mais autnomos, da fora social dos que

    as defendem (ou de sua posio) e da eficcia simblica de suas estratgias retricas

    (Idem, pp. 134-135).

    Mas eles tambm so, sob outra perspectiva, como enfatiza Bourdieu, universos de exceo, algo milagrosos, onde a necessidade da razo encontra-se instituda em graus diversos na realidade das estruturas e das disposies (Idem, p. 133). Isso porque as leis e necessidades encarnadas nesses espaos so de tipo diferente daquelas vigentes em outros campos autnomos, como o econmico. Enquanto neste ltimo a concorrncia regulada pelo mecanismo do mercado, a competio no interior dos universos escolsticos tende na medida de uma autonomia conquistada socialmente e sempre em risco a se dar na forma de um debate racional, por fora de constrangimentos a um tempo lgicos e sociais, tais como a exigncia de vencer pelo poder dos argu-mentos e no pela coero de foras polticas ou econmicas.

    O enfrentamento anrquico dos investimentos e interesses individuais transforma-

    se em dilogo racional na medida em que (e apenas nessa medida) o campo

    suficientemente autnomo (logo dotado de considerveis barreiras ao ingresso) a

    ponto de excluir a importao de armas no especficas, notadamente polticas ou

    econmicas, nas lutas internas; na medida em que os participantes se veem forados

    a recorrer apenas a instrumentos de discusso ou de prova ajustados s exigncias

    cientficas nessas matrias (como o princpio de caridade), e portanto obrigados

    a sublimar sua libido dominandi em uma libido sciendi que s pode triunfar opon-

    do uma refutao a uma demonstrao, um fato cientfico a outro fato cientfico

    (Idem, pp. 135-136).

    Em espaos assim, preciso fazer valer razes, para que se possa a fazer valer; assim como para triunfar neles, preciso fazer triunfar neles argumen-

    tempo da histria da arte real-

    mente irreversvel e [...] apresenta

    uma forma de cumulatividade

    (Bourdieu, 1987a, p. 208).

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    tos, demonstraes ou refutaes (Idem, p. 133). E embora o conhecimento, a arte e a moral sejam feitos, como disse Foucault, de instinto, paixo, obstinao inquisidora, refinamento cruel, maldade, isso no constitui um empecilho para sua validade, nem uma demonstrao de seu carter infun-damentvel. Nesses microcosmos particulares, nesses universos de exceo, justamente pela paixo de ter razo que a prpria razo pode progredir (como afirma Louis Pinto [2000, p. 154] a partir de Bourdieu), em virtude de um processo de competio que, submetido primazia da argumenta-o fundamentada e ao controle mtuo dos concorrentes, conforma um esforo conjunto de reflexividade no qual a defesa da razo est entregue a um trabalho coletivo de confrontao crtica (Bourdieu, 2001, p. 135) 13.

    Consideraes finais

    O arbitrrio deixa, nesse sentido, de ser concebido como constitutivo dos campos, tanto em sua origem como em suas leis fundamentais, para se tornar elemento entre outros num campo de foras heterogneas, ameaa sempre presente a uma autonomia que, no entanto, possibilitada e mais ou menos reforada por mecanismos sociais tambm correntes nesses universos. A arbitrariedade dos produtos sociais volta, como em Saussure (embora em outro nvel), a ser uma questo de gradao. Todo campo que envolva pre-tenses de validade passa a poder ser situado, ao menos em tese, em algum ponto entre dois extremos: um no qual a verdade oficial no outra coisa seno a imposio legtima (isto , arbitrria e desconhecida como tal) de um arbitrrio cultural exprimindo o interesse especfico dos dominantes no campo e fora do campo; e outro onde todo elemento de arbitrrio (ou de impensado) social seria banido e no qual os mecanismos sociais realizariam a imposio necessria das normas universais da razo (Bourdieu, 1975, p. 110)14. Quanto maior for a autonomia de um campo erudito, mais ele se aproxima deste ltimo modelo, mais a fora da argumentao racional capaz de se impor ante tudo que possa haver nele de arbitrrio (Bourdieu, 2001, p. 41). As lutas em seu interior passariam, ento, a se desenvolver sob controle das normas constitutivas do campo e valendo-se apenas das armas nele autorizadas, fazendo com que [...] as proposies mobilizadas nessa luta se reconheam de maneira tcita ou explcita como passveis da prova da coerncia e do veredicto da experincia (Idem, p. 135)15.

    verdade que, entre a crtica (pascaliana) ao fundamento e a funda-mentao histrica da razo, nem tudo se harmoniza. Bourdieu concede

    13. H uma convergncia

    evidente entre essas ideias e

    certas diretrizes gerais da obra

    de Habermas. No pretendo

    abordar aqui nem o que aproxi-

    ma, nem o que distingue essas

    duas teorias no que se refere

    aos fundamentos da razo. Mas

    talvez se possa dizer, de maneira

    breve e muito imprecisa, que os

    escritos de Bourdieu fornecem

    uma imagem mais tensa, mais

    ambgua, e por isso mesmo mais

    viva (embora tambm menos

    rigorosa conceitualmente), do

    enraizamento social da racio-

    nalidade em suas imbricaes

    prticas com o arbitrrio cultural.

    14. Essa possibilidade que,

    seguindo o argumento de Me-

    ditaes pascalianas, estendemos

    aqui aos campos em geral no

    entanto aplicada pelo autor

    apenas ao universo cientfico. E

    no se deve esquecer que, para

    (um certo) Bourdieu, o campo da

    produo literria (no artigo de

    1975) ou o campo jurdico (em

    outro texto, posterior, Bourdieu,

    1991, p. 18) constituiriam, junto

    com o campo religioso, exemplos

    reais de universos inteiramente

    submetidos fora do arbitrrio.

    15. visvel a inadequao de

    certos termos, originalmente

    destinados a descrever o campo

    cientfico (refutao, demons-

    trao, prova da coerncia,

    veredicto da experincia),

    quando utilizados para remeter a

    processos de valorizao e disputa

    esttica. Essa uma dificuldade

    que Bourdieu no enfrentou

    explicitamente, e que capaz de

    explicar, ao menos em parte, sua

    reticncia em aplicar ao campo

    artstico o mesmo modelo geral

    de desenvolvimento da razo.

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    aos universos escolsticos o privilgio de serem o lugar por excelncia do progresso da razo, onde tudo pode estar sujeito crtica e justificao, mas no chega a reconsiderar a afirmao de que os campos, inclusive os eruditos, tm como princpio leis fundamentais arbitrrias, indiscutveis, injustificveis, cujo questionamento ameaaria a prpria existncia desses espaos e, portanto, da racionalidade que a se desenvolve. No se com-preende, assim, em que bases o autor pretende estabelecer o mundo do senso comum como lugar em que podem encontrar-se, e achar terrenos de acordo, tanto aqueles que a esto reclusos, na impossibilidade de terem acesso disposio escolstica e s conquistas histricas dos mundos eru-ditos, como todos os que participam de algum dos universos escolsticos (e a quem ele oferece por outro lado o nico referente e a nica linguagem comuns para falar entre si [...]) (Idem, p. 118). A no ser que esse fundo de evidncias partilhadas por todos que garante [...] um consenso primordial sobre o sentido do mundo (Idem) seja, ele tambm, arbitrrio, constituindo uma espcie de subsolo no fundamentado onde se ergueriam solos no fundamentados.

    Ou isso, ou seria preciso supor alguma forma de embasamento para os conhecimentos e os valores que esto distribudos pelo espao social e se cristalizam, em cada campo, na forma de leis fundamentais e princpios de diviso especficos. Nesse caso, tudo o que Bourdieu disse sobre o carter automtico, impensado, injustificado numa palavra, dxico das crenas vigentes num universo social teria de ser interpretado no como signo de uma arbitrariedade dada a priori, mas como indicador dos mecanismos (ha-bituais, costumeiros, corporais) de limitao da discusso racional, passveis de serem vencidos ou mitigados por uma atividade de explicitao capaz de apreciar, sempre provisoriamente, a validade dessas crenas16. E isso no s dentro de cada campo, como tambm nas comunicaes e embates entre eles, com tudo o que pode haver de compreenso e incompreenso mtuas. Essa, contudo, uma interpretao que, se parece possvel em algumas das afirmaes do autor, no pode ser aplicada a muito do que ele escreveu.

    Por outro lado, a prpria estratgia de basear a razo em universos de exceo, embora satisfaa o objetivo de conferir alguma validade s obras a produzidas, no deixa de ser problemtica, no que ela pode implicar em termos de irracionalidade dos agentes e dos produtos excludos desses universos. Pois basta questionar, como fez a etnometodologia17, os limites entre os atores eruditos e no eruditos, e constatar que estes ltimos e seus proferimentos tambm esto sujeitos ao veredicto da experincia, prova

    16. Note-se que o conceito bour-

    dieusiano de doxa, pelo menos

    nas Meditaes pascalianas e na

    fase final de sua obra, no remete

    necessariamente a crenas falsas

    ou infundamentveis, mas apenas

    a algo em que se acredita (e que

    se pratica) de modo tcito, pr-

    reflexivo, inquestionado. Sobre

    isso, ver a discusso com Terry

    Eagleton (Bourdieu, 1992b).

    17. Ver Garfinkel (1984) e

    Cicourel (1974).

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    da coerncia e discusso, sendo passveis de refutao e expostos a pedidos de demonstrao (ainda que, diga-se, com graus de exigncia e explicitao menores do que nos campos escolsticos), para pr em questo qualquer tentativa de encastelar a razo em espaos nitidamente demarcados.

    Como quer que seja, sempre possvel que o leitor, tirando proveito da abertura de sentido caracterstica da escrita de Bourdieu, pretenda resolver tenses como essas interpretando-as a partir de uma das perspectivas opostas (a crtica ao fundamento ou a fundamentao social da razo), seja para de-fender o autor, seja para critic-lo18. Mas talvez no se possa escolher um dos lados sem ficar com a impresso de perder, junto com as ambiguidades, algo dos impulsos primeiros de uma sociologia que, transformando problemas metafsicos em problemas suscetveis de serem tratados cientificamente e, portanto, politicamente (Bourdieu, 1984, p. 49), frequentemente fez as vezes de filosofia, negativa ou no, zombando da filosofia.

    Referncias Bibliogrficas

    Alliez, ric. (1996), Da impossibilidade da fenomenologia. So Paulo, Editora 34.

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    18. assim que a duplicidade

    aqui enfatizada, com os cruza-

    mentos paradoxais ou aporticos

    que ela envolve, pde passar

    despercebida tanto pelos crti-

    cos de Bourdieu, como Cyril

    Lemieux (2001) e Nicholas

    Garnham (1993), como por

    adeptos como Loc Wacquant

    (1992), cada lado se apoiando,

    de modo parcial, numa das duas

    sries de argumentos.

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  • 196 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 23, n. 1196

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    Resumo

    Filosofia negativa? Bourdieu e os fundamentos da razo

    Apoiado na discusso detida de alguns dos argumentos centrais das Meditaes pasca-

    lianas, de Pierre Bourdieu, o artigo busca mostrar que na obra do socilogo h uma

    tenso permanente entre (crtica ao) universalismo e (crtica ao) relativismo. Evidencia-se

    primeiramente como Bourdieu apresenta desde seus escritos iniciais uma perspectiva

    marcada por certas ressonncias relativistas, na qual a noo de arbitrrio desempenha

    um papel central. A seguir, confronta-se esse conjunto de proposies com as crticas de

    Habermas (e do prprio Bourdieu) a Foucault e s correntes ditas ps-modernas, para

    ento explicitar de que maneira o autor apresenta, desde meados da dcada de 1970,

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  • 197junho 2011

    Arthur Oliveira Bueno

    um conjunto oposto de argumentos que buscam fundamentar a razo em bases sociais.

    Ao final, as duas perspectivas so confrontadas, de modo a expor seus cruzamentos

    paradoxais, assim como suas possveis conciliaes.

    Palavras-chave: Razo; Relativismo; Arbitrrio cultural; Filosofia; Pierre Bourdieu.

    Abstract

    Negative philosophy? Bourdieu and the foundations of reason

    Based on a detailed discussion of some of the central arguments of Pierre Bourdieus

    Pascalian Meditations, this article looks to show that the sociologists work contains

    a permanent tension between (the critique of ) universalism and (the critique of )

    relativism. Firstly the text shows how even Bourdieus earliest writings reveal certain

    relativist tendencies in which the notion of the arbitrary plays a central role. This

    set of propositions is then compared and contrasted with the critiques directed by

    Habermas and Bourdieu himself against Foucault and so-called postmodernist ap-

    proaches, before turning to how the author presents an opposing set of arguments

    from the mid 1970s onwards that seek to ground reason on social bases. Finally, the

    two perspectives are compared in a way that exposes their paradoxical intersections

    as well as their potential points of reconciliation.

    Keywords: Reason; Relativism; Cultural arbitrary; Philosophy; Pierre Bourdieu.

    Texto recebido em 9/2/2010 e

    aprovado em 21/12/2010.

    Arthur Oliveira Bueno dou-

    torando em Sociologia pela

    Universidade de So Paulo.

    E-mail: .

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