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Filosof ia-Ontologia e Metaf isica em DelfimSantos «(...) Falando a estudantes, tenhouma recomenda- gdo a fazer-lhes: a iniciagdo filosofica exige humildade, serio esforgo de penetragdo no misterio que nos envolve. Ndo considerem nunca nenhuma filosofia como inimiga daquela a que vm dia chegaram. Em todas elas hd algo de verdadeiro em [correspondencia com a situagdo e o ponto de partida do filosofo. Ndo esquegam nunca que se alguma vez uma filosofia Ihes parecer adversa daquela que defendem e precisamente essa que convem estudarconn oarinho e amor, com o amor que os cris- tdosndo negam aos seus inimigos. (...) (...) Pela mmha patrte agradego-lhes muito cordial- mentee desejo-lhes que com toda a seriedadese devo- tem ao estudo da metafisica - a unica via capaz de configurar a cultura nacional, verdadeiramente combo- lida por pseudofilosofias sem prestimo nem valor». «...em comemoragdo do dia de S. Tomds» - Sao Tomds e o nosso tempo». Inedito, 7-3-51 J. 1. Filosofia: Objecto e Metodo Quando, em 1939, DelfimSantos publicava o seu livro «Da filosofia», comegava por escrever: «As p£ginas deste livro ofe- * Para elaboragao destetrabalho, partimos, em exclusivedas obras e trabalhosde D. Santos, na perspectiva da sua mensagem como um todo. Por usarmos, para tanto, Obras Completes de DelfimSantos, I, II e HI, Ed. da Fundac.ao C. Gulbenkian, Lisboa, para aqui remetemos o leitor, em todas as citagoes, indicando, apenas e, por isso mesmo, 0. C. I, II ou III e a respectiva pagina.Qualquer outra citacao sera devidamente referenciada. 1 O.C., II, 107-119 [1] 8

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Filosof ia-Ontologia e Metaf isica em Delfim Santos

«(...) Falando a estudantes, tenho uma recomenda- gdo a fazer-lhes: a iniciagdo filosofica exige humildade, serio esforgo de penetragdo no misterio que nos envolve. Ndo considerem nunca nenhuma filosofia como inimiga daquela a que vm dia chegaram. Em todas elas hd algo de verdadeiro em [correspondencia com a situagdo e o ponto de partida do filosofo. Ndo esquegam nunca que se alguma vez uma filosofia Ihes parecer adversa daquela que defendem e precisamente essa que convem estudar conn oarinho e amor, com o amor que os cris- tdos ndo negam aos seus inimigos. (...)

(...) Pela mmha patrte agradego-lhes muito cordial- mente e desejo-lhes que com toda a seriedade se devo- tem ao estudo da metafisica - a unica via capaz de configurar a cultura nacional, verdadeiramente combo- lida por pseudofilosofias sem prestimo nem valor». «...em comemoragdo do dia de S. Tomds» - Sao Tomds e o nosso tempo». Inedito, 7-3-51 J.

1. Filosofia: Objecto e Metodo

Quando, em 1939, Delfim Santos publicava o seu livro «Da filosofia», comegava por escrever: «As p£ginas deste livro ofe-

* Para elaboragao deste trabalho, partimos, em exclusive das obras e trabalhos de D. Santos, na perspectiva da sua mensagem como um todo. Por usarmos, para tanto, Obras Completes de Delfim Santos, I, II e HI, Ed. da Fundac.ao C. Gulbenkian, Lisboa, para aqui remetemos o leitor, em todas as citagoes, indicando, apenas e, por isso mesmo, 0. C. I, II ou III e a respectiva pagina. Qualquer outra citacao sera devidamente referenciada. 1 O.C., II, 107-119

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recem ao leitor uma tentativa de determinagao do que se deve entender por 'Filosofia'». Eis o propdsito e o problema. E, de imediato, como que intui o seu sentido, ao afirmar tambem: «O caminho seguido nao tern nada de sistematico; pretende, de preferencia, considerar algumas perplexidades do pensamento em frente da reaiidade. fi pois, uma posigao primitiva, mas talvez fecunda» 2. A nosso ver, circunscrita a questao, nao deixa de se apontar, com profundidade, para o seu conveniente tratamento, enquanto se deixa prever a reaiidade que a filosofia respeita e o modo de a atingir. Ou seja, j& aqui estamos perante a proble- m&tica do objecto e do metodo.

Comecemos pelo objecto. Para Delfim Santos, «nao M saber senao de 'alguma coisa',

que pode ser transcendente ou imanente Siquele que sabe, mas que sempre e relagao com 'alguma codsa\ E este 'alguma coisa', tao dificil de exprimir, e o seu objecto»3. O dificil, portanto em relagao a filosofia sera circunscrever esse «alguma coisa», que ser& o seu objecto.

Comparando a filosofia com outros sistemas de conheci- mento, como, concretamente, com a Antropoiogia e a Metafisica, conv&n que a filosofia diz respeito uma reaiidade adequada, mas com a diferenga de que «A Filosofia nao deixa determinar com a mesma precisao a regiao da reaiidade que lhe cabe como objecto». Mais ainda, «a expressao determinar o objecto de» e ja uma expressao denunciadora de caminho errado no sentido da filosofia». £ que o dominio que a fiiosofia diz respeito, nao pode sofrer redugoes. Dominios circunscritos, dirao respeito a ciencia, nao h filosofia.

Que, entretanto, 1a filosofia e urn saber, Delfim Santos nao duvida... Inclusivamente, «o grau de profundidade deste saber pretende ser maior» face a todos os restantes saberes4.

Apelando a Platao, para quern «a filosofia deveria ser o saber do nao-saber», pondera que ««este nao-saber ja se devia entender como alguma coisa», pelo que a filosofia nao deve ter, apenas, o sentido epistemoldgico, mas ontoldgico5.

2 O.C., I, 221 ^ » I, 221 * » I, 225 • » I, 225

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A profundidade de saber surge assim oonotada h realidade como totalidade. Se, por urn lado, «o destino da filosofia» consaste em «buscar novos e rigorosos fundamentos a todo o saber humano» enquanto os seus pr6prios «vao caindo invalidos», por outro lado e correlativamente, «interessa a filosofia», nao os principios como mediadores do real, mas a realidade mesma; assim lhe diz respeito «o contacto directo com as antinomias resultantes do inexplicavel encontro do homem com o Universo, ou noutra linguagem, do espirito com a materia» 6. Nao ha, pois, nem mn ponto de partida estabelecido, nem um ponto de chegada seguro. O saber filostffico reflecte-se «sempre para si mesmo» e e, assegurando-se de si prtf- prio, que se torna a garantia de todos os outros 7.

Passemos ao metodo. Para Delfim Santos, a dificuldade de determinagao do objecto

e do metodo £ uma constante na consideragao de qualquer tipo de conhecimento, «pois, cada metodo... pressupoe sempre uma plena adequagao com a realidade a estudar» e £ instranferfvel *. E se, assim, em qualquer saber, por maioria de razao o ser&, afinal, em Filosofia.

Diferindo a filosofia da ci&icia e das restantes formas de saber, em relagao ao objecto, assim difere, correlativamente, em relagao ao metodo. Primeiro, porque estes se nao deixam circuns- crever em filosofia como em ciencia. Segundo, porque tai signifi- caria a anulagao da especificidade da filosofia, no seu papel de fundamentagao ontoldgica e metafisica, respectivamente em fun- gao da ciencia (considerando esta, entre outras formas de saber), como de si prdpria. E, assim, em fungao da realidade e do pen- samento, entitativa e totalmente. E por duas rasoes:

Quer porque «o primeiro e principal interesse da filosofia e, pois, a constatagao das ircoptei (aporias), das perplexidades do pensamenfco em f rente da realidade ou em f rente de si mesmo»9, quer porque ihe compete tomar «contacto com a contradigao sem valorizagao unilateral dum dos termos numa atitude neutra se quisermos ou mais convicta de que o mais ialto valor se nao

« O.C., I, 226 ^ » I, 227 * » I, 227 » » I, 227

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encontra nem urn neon outro dos termos da contradigao, mas na relagao entre ambos»10.

E, na correlagao da perplexidade do objecto, a perplexidade do metodo. Tambem, no metodo, a filosofia nao pode imitar outros tipos de saber. Tera de atinar com o seu prdprio caminho. «Foi - com efeito - a imitagao doutros tipos de conhecimento que desviou os fiidsofos da filosofia» u. E se, para Delfim Santos, foi Hegel, na Idade Moderna, «talvez apenas uma excepgao cons- ciente», tal aconteceu porque nele se afirma «pela primeira vez, depois da Idade Media, o interesse de contacto directo com o pensamento sem a mediagao, e consequente limitagao, do metodo de qualquer ci§ncia...»12.

A forga de pensar cientificaanente, o homem tem-se tornado incapaz de pensar filosoficamente. Mas a filosofia impoe que sejamos capazes de pensar «nao-cientificamente». A ciencia iimita o seu objecto e a ele adequa, necessariamente, o metodo res- pectivo. Em tal consiste a sua exactidao. Em filosofia, porem, incircunscritivel a regiao do real, na detenminagao do objecto, inadequado sera qualquer metodo, em moldes cientificos, por- quanto est£ em questao «um saber sem premissas, sem pressu- posigoes, como pretende ser a filosofia» 13. Em tal consiste o seu rigor.

O saber fiiosofico e uim saber do espirito, perante a reali- dade entitativa e total, que tambem o inclui, mas a que ele, e so ele, podera dar sentido. E Delfim Santos apela a ligao de Hegel, ferozmente contraditiada, enquanto tida por «incom- preensivel» 14.

2. Filosofia: Pensamento, Realidade, Verdade Perspeetivagao metafisica

Capacidade de perplexidade ante a realidade em directo e de visao no/pelo pensamento, de imediato, a filosofia se revela, no seu mais profundo alcance, em dois sentidos: o entitativo e

io O.C., I, 242 n » I, 237 12 » I, 238 13 » I, 242 I* » I, 238

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o total. Assim se propoe «a tomada das coisas como elas sao, na sua totalidade integrativa» 15.

Entitativa e rigorosamente, a f ilosof ia caraceriza-se como perene e gratuita. E, como tal, nao podem convir-lhe duas categorias comuns a outros tipos de saber: o progresso e a utilidade.

Primeiro o progresso. Os problemas filosdficos sao problemas autenticos. Radi-

cando no «incondicionado», nao se reportam a «premissas refe- renciais». «A sua zona de existencia e a regiao da vida que nao tern supostos e a regiao do pensamento que nao tern premissas» 16.

O dominio da filosofia e, de facto, domlnio de aporias. E estas nao sao outra coisa senao o «desacordo entre Svxoc e o Aoy°C» cLue Heraclito peia primeira vez descobriu no pensa- mento acidenta!»17 - Desacordo en'tre o pensamento e a realidade, enquanto tais. E, sao diferentes realidade e representagao da realidade. Ora, a fiiosofia e fungao da realidade mesma, que, como tal, e sempre irredutivel. E... a filosofia e sempre perplexa!

Nao pode haver ilusoes. Um sistema filosofico representa, apenas, a descrigao de uma dada visao das contradigoes da expe- riencia e nunca a sua solugao.

Os problemas fiiosdficos nao sao problemas cientificos. A ciencia «condiciona, preliminarmente, as regioes particulares da experi&icia a que todo o saber se devera referir, univoca- mente»18. E, na limitagao do seu dominio, esta o seu progresso. A filosofia, tendo as suas raizes no incondicionado, na ilknitagao do seu dominio tern o seu sentido de perenidade. Sao saberes difirentes, mas, na perenidade do segundo esta o fundamento e o sentido do primeiro, enquanto «regiao indiferenciadora dos principios em busca dos fundamentos de garantia que o pro- gresso da ciencia sempre exige do pensamento» 19.

Progresso em ciencia, e, assim, regresso em Filosofia. No que respeita a utilidade, e estla, para DJS., «uma cate-

goria de valor para as coisas que dependem do homem ou que

is O.C., I, 242 ™ » I, 239 " » I, 243 is » I, 240 i» » I, 240

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o homem pode fazer depender de si. Mas nem tudo depende do homem, nem tudo e d<5cil a sua razao». Neste sentido, e, face ao homem como seu mediador, h& a distinguir «dois mundos hectero- g£neos - o de que ele depende e o que depende dele - que na his- tdria da filosofia aparecem em forma de contrarios: espirito-natu- reza, alma-corpo, ser-nao ser, pensamento-extensao, f inito-inf inito, etc.» 20.

Dominio de aporias, e, a filosofia, dominio de contrdrios ou seja, de antinomias. E os contrarios exigem-se nao se excluem. Excluem-se os contraditdrios, mas no dominio da representagao, nao da realidade mesma21. Por isso, aqui a contradigao 6 sem- pre viva; aii, ultrapassavel.

Difere a filosofia da ciencia, quanto ao progresso, como difere quanto a utilidade. Enquanto a ciencia se propoe «conhecer penetrantemente, exaustivamente, um dos dados da contradigao» e, dai, a sua utilidade, pretende a filosofia o conhecimento pene- trante e exaustivo, mas da contradigao mesma. A ciencia e dominio de representagao. A filosofia pretende a realidade. Mas, na gra- tuidade da filosofia, se fundamenta a utilidade da ciencia.

O sentido entitativo da fiiosofia e, entao, fungao da sua tota- lidade integradora. Mas sao diferentes o «todo» e o «tudo». Enquanto este € fungao dos seus elementos, aquele e-lhes anterior. E, mais uma vez, a Filosofia difere da ciencia e fundamental- mente lhe ̂ suposta.

A elucidagao sempre parcial da ciencia, corresponde, afinai, o sentido de elucidagao sempre total da filosofia. Por isso mesmo, £ esta, adequadamente, um saber de descoberta e de elucidagao no pensamento, enquanto de constatagao ou de vivencia na reali- dade; ou seja, e um saber de atitude, quer de observagao (visao) quer de experi&icia (vivencia), em totalidade integradora.

Sendo assim, e a actividade filos6fica, essenciaimente, espi- ritual, enquanto independente de redugoes. E actividade perene. Estd hoje, frente h realidade e aos seus problelmas, como sempre esteve. Na imagem hegeliana, «a evolugao do pensamento e como que um movimento de circulos dentro de um circulo»2e e, por

20 O.C., I, 242 21 » I, 462 22 » I, 236

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isso, «O conteudo dos problemas e, hoje, o mesmo, que no tempo de Piatao». Pode diferir a sua forma de apresentagao, mas nao a sua intrinsecidade. Face a sua «contradigao viva», os pro- blemas filostfficos sao perenes. Descobri-los, que nao resolve-los, eis a questao. 15 que, enquanto manifestagoes da antinomia entre o espirito e a natureza, eles sao eternos»^3.

Aqui chegados, se a filosofia se distingue da ciencia, como ali&s de todos os saberes - Filosofia e filosofia, indepedentemente do que ela foi e do que ela sera - entao tambem se distingue, da sua propria historia.

A histtfria da filosofia e, ainda, dominio do conhecimento. Dan- do-nos conta de solugoes, do acordo com o «espirito objectivo» e «subjectivo» da epoca24 6 saber de representagao. E, entao, a filo- sofia nada tern a ver com a sua histtfria. Enquanto esta nos da conta de solugoes, em fungao dos problemas, aquela respeit^t aos problemas mesmos, indepedentemente de solugoes possiveis.

Dominio da Contradigao Viva, e, a filosofia, ao fim e ao cabo, dominio da Verdade Parene...

Finalmente o problema da verdade. Mantendo-nos perante a relagao filosofia-hist6ria da filosofia,

e sendo aquela dominio da contradigao mesma, enquanto dominio da reaHdade, e, esta, por^m, opgao por um das variaveis da contra- digao, enquanto dominio de representagao. Esta, pretende ser solu- cionante; aquela, e sempre apor^tica. E, aqui se poe, ajustadamente, o problema de verdade, que, contraditoriamente, se opoe ^ falsi- dade e nao ao erro.

Se^ em historia da filosofia, como em ciencia, «o erro nao 6 igualmente sensivel a razao em todas as Spocas e quando uma destas o julga ter evitado ele 1& esta nesta convicgao 25», pelo que verdade e erro nao sao exclusivos e podem caminhar e normal- mente caminham juntos, nao assim em filosofia. Nesta, a discre- pancia e irredutivel. E o que e exclusivo nao 6 a verdade ou o erro, mas a verdade ou a nao-verdade, ou seja, a verdade ou a falsidade.

Entao, podemos concluir: se a verdade de uma solugao nao

23 O.C., I. 236 ™ » I, 237; 239; II, 253 25 » I, 237

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corresponde, por si, a solugao da verdade, nunca a historia da filosofia pode corresponder, por si, a filosofia, enquanto tal. E se «O que pode interessar a historia da filosofia e a descoberta das causas do erro que sempre acompanham a convicgao de verdade 26» o que interessara a filosofia, sera, especificamente, a descoberta da verdade mesma.

Perante o erro, sao sempre possiveis solugoes varias; pe- rante a falsidade so a verdade e exclusiva. Mas, ali, estamos no dominio do conhecimento como representagao da realidade; aqui, encontramo-nos no dominio do pensamento, perante a realidade como tal, em contradigao insoluvel, porque eterna. Ali, adiantam as solugoes; aqui impoe-se apenas a evidenciagao da contradi- gao... Ali, e o dominio da coerencia; aqui, o da liberdade...

3. Filosofia: Unidade e Pluralidade do Pensamento- Totali- dade e Heterogeneidade da Realidade

Gonstituindo, a filosofia, dominio de antinomias, ela estara perante a realidade como sempre esteve. E «o solucionismo na filosofia, quase sempre nos aparece como tarnsposigao das solu- goes uteis noutras regioes do saber 27». Tal significa; a identidade da filosofia como saber, face a todos os outros.

Distinguindo a filosofia, da arte, da ciencia, como da religiao, procura D. S. o fundamento da sua especialidade, como forma de pensamento. E da irredutibilidade dos varios saberes, conclui a irredutibilidade da pluralidade da realidade, por implicagao neces- saria. «A redugao das formas de pensamento a uma so implica a suposigao de que o real e identico e que a diversidade e aparente. Mas a propria distingao entre real e aparente que a filosofia da identidade costuma admitir e, ja, em si, afirmagao de hetero- geneidade 28.

Temos, assim, que a pluralidade do pensamento e fungao da heterogeneidade da realidade.

Por outro lado, distingue-se a filosofia como saber, face a todos os outros. mas enquanto os fundamenta, entitativamente,

2« O.C., I, 236-237 27 » L 228 28 » I, 229

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e lhes da sentido, globalmente. Actividade de fundamentagao, o saber da fiiosolia reverte sempre para si mesmo, como saoer ae autofundamentagao. E a pluralidaae aos saberes e, assim, fungao da unidade da filosofia. Dominio de sentido, interessa a filosoiia nao a uniiateraiiaaae mas a totalidade da realidade, perante a qual sempre esteve, como esta, em identidade.

Fundamento aa pluralidade ao conhecimento, em fungao da sua unidade, e, assim, a filsofia, sentido da heterogeneidade, da realidade, em fungao da sua totalidade.

Para Delfim Santos, o «conhecimenk) essencial e o conheci- mento do 'ser' das coisas; o conhecimento existencial e o do sendo»29. E uma distingao que, nem sempre respeitada ao iongo da historia, e patente na Idade Contemporanea, com Heidegger. Tal signifiaca que «ser» e «sendo», como irredutiveis, se impli- cam necessariamente, em antinomia perene.

E se a filosofia compete, entitativamen/tie, o ser das coisas, globalmente, diz-lhe respeito o dominio antinomico da realidade em si mesma.

Se, sob o ponto de vista do pensamento, a pluralidade do conhecimento e fungao da sua unidade, sob o ponta de vista da realidade, a sua heterogeneidade e fungao da sua totalidade.

Entendemos, finalmente, que se, dicotomicamente, «o prin- cipio de contradigao e rigorosamente valido da regiao do 'ser' e e absolutamente improprio na regiao do 'sendo'»30, ali numa logics de identidade, aqui de heterogeneidade, globalmente, cessa tal principio: aqui, a filosofia e dominio de antinomias. E se o seu saber de unidade e o sentido da pluralidade dos saberes, a sua adequagao face a realidade em totalidade, e o fundamento da heterogeneidade da mesma realidade, subjacente aos varios e respectivos saberes. E, em tal contexto, quer os varios tipos de saber, quer os varios dominios culturais sao fungao, por conse- guinte, e, em ultima andlise, da filosofia, como saber primeiro e radical, enquanto e esta, por essencia, dominio incondicionado, directo e unico, quer da realidade na sua totalidade quer do pen- samento na sua unidade-- metafisica! E se, como dominio perene mente entitativo e total, e, em fungao da realidade, dominio trans-

29 O.C., I, 229 80 » I, 229

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objectivo e, como tal, raiz-fundamento ontico dos v&rios sistemas de saber e/ou de saber-agir, enquanto dominios objectivos exis- tenciais, e, em fungao do pensamento, dominio transubjectivo e, como tal, intuigao-sentido noStico da respectiva ou atinente con- formagao categorial-cognitiva dos varios m'etodos a considerar32. E... so o saber cujo dominio cognitivo unico e a realidade em si mesma (na sua tot alidade) e o pensamento, enquanto tal, no sen- tido do espirito (na sua unidade) pode atribuir-se, entitativa e totalmente, o dominio absoluto/perene de saber primeiro e funda- mental... 83.

4. Filosofia: Pensamento, Realidade, Existencia - perspecti- vagao ontologica

Se, «sobre o que a 'realidade' seja, nao ha concordancia entre os homens», 34, «a analise substancial da realidade» e tambem ques- tao sobre a qual a dificuldade do acordo seria ainda maior e que, pos isso mesmo, D. S. poe de parte35.

Conotando, entretanto e necessariamente a realidade a exis- tencia, porquanto, de outro modo esta seria ontologicamente impen- sada3<*, afirma, concomitantemente, que <cNa pesquisa do que seja a realidade, h£ uma pressuposigao minima a fazer: a sua existen- cia», que, independentemente de um criterio de distingao do que a realidade seja ou nao seja, considera como o «minimo ontol6gico» a admitir37.

Contrariamente ao senso comum, para o qual «realidade € o que existe», pretende, D. S. que, filosoficamente, a afirmagao nao tern rigor e deve ser deposta; e que podemos mesmo atribuir exis- tencia ao que nao e real, como no caso concreto da cegueira. Por outro lado, «Ha diferentes formas de existencia e nem tudo quanto 6 real 'existe' no mesmo grau»38. Devemos considerar, inclusive,

al O.C, I, 229 32 » II, 304-305: II, 151 33 » I, 245; II, 144: II, 143: II, 8: I, 240 34 » I, 293 35 » I. 294 36 » I, 309 37 » I. 309-310 38 » I, 293

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nao s6 o real, mas tambem o ideal, integrando, um e outro, a realidade 39.

E, se, realidade e existencia nao s6 se distinguem 40, como a «Realidade 6 mais vasta do que a extensao do conceito de existen- cia»41, a existencia supoe, pois, necessariafriente, a realidade, en- quanto, fundantemente a implica, e, esta, s6 existencialmente se nos pode revelar, enquanto, na sua pluralidade, «cada sector da realidade possui para si e, exclusivamente, um certo, tipo de exis- tencia, que se nao deixa generalizar ou estender»42.

Se a realidade, como tal, e transobjectiva, pelo que, objecti- vamente, nunca a poderemos determinar, em identidade, g-nos pos- sivel, entao, segnifica-la existencialmente, no sentido onto-l<5gico: quer por forga da sua inteligibilidade, quer pelo poder do espirito, em aproximagao-adequagao.

Primeiro, por forga da sua inteligibilidade.

Se afirmativamente, nada podemos referir, em absoluto, so- bre o que a realidade seja, podemos, negativamercte, garantir que, enquanto tal, a realidade nao 6, em absoluto, contraditdria. Se- gundo D. S., «No real nada h& contraditdrio entrei si: contraditd- rias podem ser as imagens ou as representagoes da realidade entre si» 43. Pode ser, a realidade, irracional, em fungao do conhecimento, que, pelos principios e metodos usados, dela se dissociou, mas nunca em fungao de si mesma. «A realidade 'em si' nem e racional nem irracional» 44. Enquanto tal, nao esta dependente dos artif icios do pensamento. Este e que, em qualquer circunstancia, 6 sempre fungao da realidade, mesmo em relagao a si prdprio ...

Segundo, pelo poder do espirito.

Para D. S., «realidade e pensamento sao dois estranhos que se pretendem conhecer sem para isso possuirem qualquer padrao

^ O.C., I, 314 *° » I, 313 « » I, 314 « » I, 311: I, 264 43 » I, 243 " » I, 317

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comum que ines possa servir de criterio comparativo» 45. Dai e, a par do caracter transobejcuvo aa reaiidade, o caracter iransuD- jectivo ou nopotetico do pensamento 4(i. Assim na ciencia, assian na filosotia. Naquela, na perspectiva hipotetico-dedutiva ou hipotetico- -construtiva; nesta, no piano rigorosamenie especulaitivo ou espi- riiuai - Nesta, racucanao o iunaamento daqueia47. E, assim, ja a partir do ensinamemto de Socrates, para quern, o «sber-do-nao- -saber», significava o «saber das relagoes entre o objectivo e o transobjectivo» 48, como passagem do nao-saber para o saber, «o que so e possivel pelo antecipado «saber-do-nao-saber» ou saber hipotefaco 49, radical. E se o pensamento e sempre fungao da reaiidade, como, inclusive, em relagao a si proprio, constituipdo, a experiencia, fundamento do seu sentido hipotetico, tal acontece enquanto, por forga do espirito, que a experiencia supoe e de que recebe sentido, seja qual for a modalidade 50.

Fungao do pensamento e da reaiidade, o conhecimento so e possivel na/pela mediagao da existencia. £ que, se a reaiidade como tal nunca nos e dada, tambem, nao registamos, passiva- mente, o que se nos apresenta. E se tal nao afecta a estrutura da reaiidade, pois, indiferente ao pensamento, e identica a si mesma, afectara, em contrapartida, a sua compreensao, em fungao das for- mas de apreensao, adequadas ou nao, por parte do sujeito 51.

Considerando a reaiidade ou o pensamento, a mediagao do conhecimento, danse, sempre, pela existencia.

Comecemos pela reaiidade

Sobre o que a reaiidade seja, na sua essencia, julga D. S. nunca poder o homem pronunciar-se 52. Que, entretamto, a reaiidade e identica a si mesma, independentemente dos nossos criterios e poten- cialidades de representagao e/ou de significagao, e questao funda-

45 O.C., I, 145 *6 » I, 320 47 » II, 314; II, 325 *« » I, 345 « » I, 321 so » I, 154-155 " » I, 296 52 » I, 293-294

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mental e aporetica, que, enquanto rejeitada, mais se supoe e garante... Tao indecifrdvel como aporetica, a realidade estar£ perante o

homem como sempre esteve, ao mesmo tempo que o inclui e lhe d& sentido. Idenitica na suai essencia e metafisicamente perene... Este o seu sentido essencial ou 6ntico, que D. S. considera rigo- roaamente pre-omtoldgico ou transobjectivo. 15 a realidade na sua essdncia. fi a realidade como «ser» 58.

Enquanto tal, ou seja, essencialmente, nunca a realidade pode ser objecto de conhecimento, ou, simplesmente, objectiva. Pace a realidade, na sua essencia, nao vale a relagao de conhecimenfo. Esta g sempre relagao sujeito-objecto; supoe a realidade, mas nao nos d& conta dela. O conhecimente 6 fungao dai objectivagao da realidade, mas nao da realidade mesma. Em fungao da realidade, a oposigao nao serd, entao, sujeito-objecto, mas pensamento-reali- dade w. E o que D. S. pretende significar com a relagao de opo- sigao transobjectividade-transubjectividade. E se, essencialmente, a realidade 4 imut£vel e face &. realidade, o pensamento e perene, existencialmente. o domfnio da realidade 6 o da manifestagao, e o dominio do pensalmento 6 o da conformagao-significagao. E se, metafisicamente, e, sempre a filosofia, dominio de indeterminagao na realidade, como de inconformagao no pensamento, ontologica- mente, sempre constitui domfnio de determinagao na realidade, como de conformagao no pensamento, pela aproximagao-adequagao dos princfpios e formas de «compreensao» no pensamento (rela- gao trans-subjectividade-subjectividade) aos principios e formas de «aparecimento» na realidade (relacao trans-objectividade-objectivi- dade) w. E aqui estd o fundamento metaffsico da Filosofia como Ontologia Pudamental, tal significando o encontro ou mediagao- -fundante, por fecundia, do pensamento e da realidade - Sentido da filosofia como Ontologia Fundamental, ou, se quisermos, como Metafisica existencial.

Pelo exposto, se a realidade tern principios prdprios, pelo que a sua estrutura e autdnoma, o pensalmento tern as suas formas e principios especificos, que o definem, face e em alternativa k rea- lidade. E da intencionalidade e categorias do pensamento, ante as

53 O.C., I, 229; I, 245; II, 211 5* » I, 145 55 » I, 345; 321; 281; 296

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formas e principios da realidade, depende e torna-se possivel a compreensao desta «a partir de niicleos de identidade, ou pontos de contacto entre os principios do ser e principios do conhecimento, ou por intermedio de categorias» 56. E assim nos e possivel enten- der como «o conhecimento exige, sempre e previamente, a deter- minagao das categorias que correspondem ao sector da realidade para a qual se dirigem»57.

Identicos na sua essencia prdpria, realidade e pensamento nos surgem, entao, plurais na sua existencia e assim, em fungao dos respectivos modos existenciais. E, quer pela realidade, quer pelo pensamento, o problema ontoldgico fundamental nao 6 do dominio demonstrative mas mostrativo, enquanto desocultanfte manifestativo da/na realidade e intencional-intuitivo do/no pensa- mento58. O conhecimento como compreensao da realidade, tern aqui o seu fundamento essencial, como implicada e concomitante- mente, o seu sentido existencial. £ que, se, essencialmente, a rea- lidade 6 id§ntica a si mesma, existencialmente ela mostira-se como plural; de outro modo nao se entenderia o problema do irracional. Com efeito, se face ao pensamento algo lhe resiste sempre, pelo que a adequagao 6 sempre inacabada, e porque os principios res- pectivos sao distintos. Por isso, o conhecimento e sempre fungao de diversos59 ... E, inclusivamente, se na realidade, admite D. S. haver «principios de comportamento (...) sem representantes inter- pretativos no pensamento», tambem neste, «h£ principios (...) para os quais, na realidade nada correspondente foi encontrado»60.

Revela-se a realidade, na/pela mediagao das categorias cogni- tivas; evidenciam-se, estas, na/pela potencialidade exercida da deter- minagao da realidade, e/ou na/pela sua signif icagao oategorial ... no primeiro caso em fungao da realidade, no segundo em fungao do pensatoento; mas assim, sempre, existencialmente, em fungao do instante, no piano temporal determinado e em fungao da intuigao, no piano do pensamento exercido, na/pela mediagao do sujeito- -pensante, concreto e existente, em totalidade *.

m O.C., I, 324 57 » I, 324 58 » I, 342 « » I, 316 a 319 so » I, 319 « » I, 230; I, 245; I, 246

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Passemos ao ipensamento.

Se, essencialmente, o pensamento e identico a si mesmo em alternativa h realidade, a sua revelagao categorial, em fungao da realidade, ou seja, a sua intencionalidade e significagao ontol6gicas, patenteia-no-lo como diverso nas suas formas. E assim, tambem, na/pela mediagao do sujeito pensante, enquanto existente62. De outro modo, nao se cdmpreenderia, como na identidade da realidade e do pensamento, e tantas vezes diferente e at£ oposta a nossa com- preensao e interpretagao do real e da realidade*3. E se assim, nao em fungao da realidade e do pensamento, enquanto tais, ou seja, essencial ou dnticamente, assim, entao, em fungao da existencia e, concreta ou situacionalmente, do existente e, rigorosamente, do existente-humano, como totalidade essencial-existencial, dada a sua estruturagao ontol6gica, sempre exercida em singularidade pessoal, diferenciada e sempre em alternativa unica - ^o dominio especf- fico da personalidade ...64. E par isso compreendemos que o con- siderado irracional para muitos, possa surgir como inteligivel para uns tantos ou vice-versa...

... Segredo da realidade, mis/t3rio do espirito, em revelagao, cuja chave sempre escapa ao homem na sua explicagao mas a que ele nao escapa, pelo poder de compreensao que dela recebe e que, ineditamente, exerce, com surpresa para todos, se nao e inclusive, para si pr6prio ... w.

5. Filosofia: Ontologia e Metaffsica

Se, sob o ponto de vista da determinagao e significagao catego- rial das varias e radicals regioes da realidade, a filosofia se deve entender, portanto, como Ontologia Fundamental, face aos restantes tipos de saber que a partir dela se constituem como Ontologias regionais*6, sob o ponto de vista da realidade e do pensamento, na sua relagao total, prSvia e radical, ha-de entender-se, adequada e rigorosamente, como Metafisica, enquanto Filosofia Primeira ou

*2 O.C., II, 144 es » II, 248-249 e* » I, 253; I, 361 65 » I. 248; II. 97; II, 26; I, 267 es » II, 210,217

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Fundamental 67. Paralelamente, se, em fungao da realidade, a Onto- logia se d£ na mediagao da existencia e concretamente do existente, em fungao da realidade e do pensamento, como estratos radicals68, em inter-relagao mutual fundante e sintetica, enquanto despole- tadora de totalidade e de sentido, a Ontologia se devera entender como Metafisica e assim na perspectiva da correlagao essencial- -existencial da realidade face ao homem e deste face aquela como mediadar unico do Espirito e da Natureza, enquanto termos da contradigao total e perene em que se cifra, para D. S., o Universo e o Homem como seu «centro»69. Mas enquanto a Ontologia £ dominio de determinagao, a Metafiscica e dominio de indetermi- nagao. Ao mesmo tempo, se, essencialmente, a compreensao da Ontologia passa pela Metafisica, existencialmente, a compreensao da Metafisca passa pela Ontologia. E D. S- chega, inlcusive, a iden- tificar a Metafisica quer com a Pilosofia (Priimedxa, quer com a Ontologia Fundamental70. Mas impoe-se, portanto, distinguir: a Ontologia como filosofia existsencial e a Metafisica como filosofia essencial ou fundamental. Comecemos, exactamente, por esta.

A Metafisica como Filosofia essencial

Ao perguntarmo-nos pela Metafisica, enquanto tal, estamos a perguntar-nos pela sua essencia, independentemente das deter- minagoes contingentes a que ela estd sujeita, ou seja, pelo seu «esquema 6ntico» 71. Neste sentido, comegamos por colocar a ques- tao do objecto da metafisica e, concomitantemente, a questao do mStodo.

O objecto da Metafisica

Como escreve, em 1949, sobre F. Suarez, a questao do objecto, 6, em Metafisica, como nos restantes saberes, a questao funda- mental. E se todo o saber e fungao da realidade, a questao adequada consiste, afinal, em determinar «que realidade tern o objecto que

™ O.C., I. 255; II, 211 ft« » I, 266 ™ » I. 29: I. 266: II. 39 70 » II, 210-212 71 » I, 229

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ela pretende conhecer» 72. E aqui se nos depara a relagao necessa- ria a estabelecer entre Ontologia e Metafisica.

Em Ontologia, como em Metafisica, h& duas inst&ncias im- prescindiveis e perenes: a realidade e o pensamento. E, assim, em fungao miitua. Mas, o que se impoe evitar e a «confusao possivel entre o que e a realidade e aquilo que apenas serve para tornar patentes certos aspectos da realidade que convem desocultar» 73. Neste sentido se estabelece a distingao entre Ontologia e Metafi- sica. fi que, se «O fisico, como o vital, como o psiquico, como o espiritual, sao determinagoes especificas da realidade, sao - por si mesmas - abstracgoes parcelares de um todo que 6 muito mais concreto do que qualquer deles» 74.

Dominio de totalidade e, fundamentalmente, a metafisica, do- minio indeferenciado, o que significa que, de acordo com a an£- lise de F. Suarez, tamb&n para D. S. o objecto da metafisica, sendo dntico £ pr£ontol(5gico, isto £, ainda nao categorialmente deter- minado™. O seu grau de realidade 6 tao vasto quanto profundo e a respectiva indeferenciagao; na medida em que implica a sua nao determinagao ontoldgica, assitn a faculta e a fundamenta. Este, o seu sentido, 6ntica e radicalmente ambiguo, face h reali- dade e ao ipensamento, no seu alcanoe entitativo e total™.

O M6todo da Metafisica

Essencialmente indeterminado em fungao da realidade, o objecto da metafisica 6 necessariamente transcendental, em fungao do pensamento. Conotado, historicamene, k «complexa e obscura nogao de 'ser'», ̂ , fundamentalmente, sentido de todos os sendos, e, assim, na mediagao do pensamento intuitivo, intencional e signi- ficante. E, entao, se sob o ponto de vista do objecto, a metafisica se deve entender como transobjctiva, sob o ponto de vista do mStodo, devemos interpret&la como transubjectiva. Por isso e, sendo assim, se em fungao do objecto se nos impoe a sua relagao ao domfnlo 6ntico. radical, - a realidade como «estofo»7T - no

72 o.C, II, 30 73 » ii, 211 74 » II, 30 ™ » II, 33 w » II, 31; I, 242

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que respeita ao metodo e imprescindivel a sua relagao ao dominio «espiritual» como tal e, nao numa perspectiva dicotonica, mas de tensao diatectica-sintetica, em ambiguidade radical e perene. Por isso, se, sob a tentativa da determinagao existencial da reali- dade, a filosofia se deve entender como Odtologia Fundamental 78, no que respeita a realidade mesma, como possibilidade da sua determinagao essencial, e, seu dominio, o da indeterminagao e da perplexidade, fundamento e sentido de toda a Ontologia, pelo que em tal consiste, entao e perenemente, a Metafisica, dominio de Klosofia Fundamental - E, assim, explicita como sinteticamente, «especulagao do ser enquanto ser, na formulagao de Arist6teles, que interpretamos como tentaitiva de fundamentagao radical antes da possfvel determinagao do existente» 79.

Se, em fungao da realidade, o objecto da metafisica £ sem- pre indeterminado, em fungao do pensamento, o seu metodo 3, necessariamente, transcendental. O objecto e indeterminado na medida em que a realidade enquanto tal e transobjectiva80; o metodo e transcendental, no sentido de que se «o real antes de ser objecto 3 sempre transobjectivo para o sujeito», «sobre o transobjectivo tern, o sujeito, um 'pre-saber', vago e indetermi- nado», como saber hipot£tico, ou «saber-do-nao-saber», no sen- tido da f6rmula «credo ut intelligam» de S. Anselmo81. Sendo assim, enquanto em relagao & realidade o saber filos6fico e, essencialmente, «objecgao do transobjectivo» 82 face ao pensa- mento, - cuja ess§ncia e intencionalidade, pois «pensamento e sempre pensamento de algo»88 - a fiiosofia 6, correlativamente, transubjectiva, o que significa que parte da «subjectividade nao empirica (...) mas transcendental, no sentido de Schelling...»84, o mesmo e dizer, do pensamento puro, intencional, ou do eu puro, intuitivo, como eu transcendental, em contraste com o eu empirico, conforme a distingao cartesiana e no sentido da fenomenologia, a partir de Edmundo Husserl85.

77 o.C, I. 321 78 » II, 144 79 » II, 211 80 » I, 322 si » I, 320-321 82 » II, 30 83 » I. 309-310 84 » II, 212 85 » II, 99

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Transobjectiva em relagao h realidade, transubjectiva no que respeita ao pensamento, a Metafisica estabelece-se, essencial- mente, em fungao de duas instancias, cuja definigao ontologica 6 suposta e radicalmentei ontica-espiritual, quer como «objecgao» da realidade (seu «objecto») quer como «interrogagao» do pensa- mento (seu «m£todo»). Mas assim, na sua forma previa e radi- cal: «objecgao» como tnansobjectividade, «intenrogagao» como transubjectividade 86, ou seja, fundamento do fundamento, interrogagao da interrogagao. E, entao, nao sendo a metafisica saber de resposta, mas, «saber-de-nao-saber», £ saber «sem fun- damento e isto bem interpretado, significard que, mais do que a admissao critica ou incritica de certos axiomas de que tudo dedu- tivamente se poderd derivar, interessa h filosofia o contacto directo com as autonomias resultantes do inexplic&vel encontro do homem com o Universo, ou, noutra linguagem, do espirito com a materia»87. Essencial ou onticamente, e, portanto, a Meta- fisica, dualidade radical, em fungao de contrarios, dominio de antinomias na realidade e de aporias no pensamento88. IS, em suma, dominio dntico - espiritual...

A (Ontologia cckmo Wilosofia existential

Para D. S., se, essencialmente, a filosofia e dominio meta- fisico, existencialmente e dominio ontoldgico. E se, essencial- mente, a metafisica € filosofia fundamental, existencialmente, filo- sofia fundamental e a Ontologia.

Ontica >- espiritualmente essencial, e, a filosofia, ontologica- mente, existencial, pelo que, se metafisicamente a dualidade previa e radical se cifra em pensamento - realidade89, ontologicamente, a dualidade a estabelecer sera: pensamento - existencia 90. Sendo assim, se na/pela mediagao da existencia e concretamente do exis- tente, a filosofia se consititui como Ontologia, sd na/pela mediagao da existencia enquanto huimana e em concreto, se podera com- preender e significar91. E assim, enquanto face aos restantes tipos de saber que a partir dela se constituem como ontologias regio-

86 O.C., II, 64 87 » I, 224 ss » I, 243 89 » I, 145 so » I, 295; 293 9i » I, 246 a 249

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nais92, como tal e, para tanto, se constitui e se deve enitender como Ontologia Fundamental98.

Em qualquer circunstancia e, aqui chegados, podemos concluir.

Se s<5 filosofa quern se admira e § capaz de perplexidade, pois somente, esse, encontrara «diferengas», no universo94 - assim se indentificando, inclusive, para D. S., Antropologia e Ontologia fundamental95 - 6 tao verdade, essencialmente, nao haver Ontologia sem Metafisica, como, existencialmente, nao haver Metafisica sem Ontologia. Mas, peio expresso, £ aquela, afinal, necess£ria e coerentemente, Filosofia primeira e/ou fundamental ... no ambito e/ou em fungiio, em ultima an&lise, da «compreensao do real e do espirito... amor de saber o que se ignora... anseio de busca... e nao o resultado da pesquisa»96.

REFLEXAO FINAL

Na Introdugao da sua dissertagao doutoral «Conhecimento e Reaiidade», escrevia D. Santos: «Este estudo e claramente de inspiragao alema e fruto do conitacto directo de alguns anos com as correntes filostfficas representadas por Nicolau Hartmann e Martin Heidegger. Mas nem sempre o autor deste trabalho se sente solidario com as teses apresentadas e defendidas pelos dois ilustres representantes do pensamento alemao contemporaneo» 97.

No texto e contexto da mensagem expressa de D. Santos e face a um possivel confronto entre o pensador lusitano e M. Heidegger, em torno da filosofia-ontologia e da metafisica, aqui fica um simples, como talvez arriscado esbogo de proposta de an&lise, para n6s, entretanto, deveras compensador.

Em reiagao a N. Hartmann, a questao levar-nos-ia a uma reflexao andloga e, tamb&n, quanto a n6s, nao menos aliciante, mas, entao, e, para tanto, determinada - adequadamente, em torno da filosofia - fenomenologia e da metafisica. Outra vez ser& •• MANUEL GUEDES DA SILVA MIRANDA

92 O.C., II, 210-217 a* » II, 144 »* » I, 248 95 » II, 144 96 «Filosofia e Filosofos», em Diciondrio de Histdria de Portugal,

vol. II, pags. 243-244, dirigido por J. Serrao, Iniciativas Editorials. 97 O.C. H, 227

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