Finep Livro 2009 -

download Finep Livro 2009 -

of 291

Transcript of Finep Livro 2009 -

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    1/291

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    2/291

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    3/291

    Antnio Carlos Miguel

    Artur Xexo

    Joo Mximo

    Luiz Antnio Giron

    ORGANIZAO E PREFCIO

    Ricardo Cravo Albin

    BPMA A L M A D O B R A S I L

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    4/291

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    5/291

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    6/291

    OS 40 ANOSESSENCIAIS

    DA MPB

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    7/291

    O livro MPB - A Alma do Brasil, editado pelo Instituto Cravo Albin

    uma publicao singular. Destaca a efervescncia cultural que precedeu

    as ltimas quatro dcadas da Msica Popular Brasileira, direcionando o

    olhar para a importncia das razes que consolidaram o movimento.

    A Financiadora de Estudos e Projetos FINEP, empresa vinculada ao Mi-nistrio da Cincia e Tecnologia, h mais de 40 anos dedica-se a apoiar

    estudos e promover a inovao no Pas em todos os segmentos. Preocu-

    pada tambm com a preservao e disseminao da cultura brasileira,

    apoia esta iniciativa como reconhecimento da importncia do patamar

    que a MPB conquistou no Brasil e no mundo.

    Luis Manuel Rebelo FernandesPresidente da FINEP

    (Financiadora de Estudos e Projetos)

    A publicao ressalta no apenas estes ltimos 40 anos, perodo que coincide com a prpria exis-

    tncia da FINEP, mas a ampla introduo de Ricardo Cravo Albin traa o nascimento dos gneros e

    compositores, desde as primeiras manifestaes de miscigenao, de transculturao, e de evoluo

    que fundamentaram nosso swing, numa caminhada potica pelas casas das tias, pela poca de ouro

    do rdio, marcada no apenas pelo choro como tambm pelo jongo.

    Os textos de Antnio Carlos Miguel, Artur Xexo, Joo Mximo e Luiz Antnio Giron contextualizam

    as quatro dcadas e iluminam a trajetria que levaria pujana da msica brasileira do sculo XX,

    marcado pelo desabrochar da Bossa Nova, movimento que acabou por conquistar o mundo.

    O livro no basta ser lido. Trata-se de um testemunho crucial para o entendimento da histria do

    Brasil contada em tons e semitons que marcaram a cultura brasileira. Por isso deve ser apreciado e

    preservado. Como um patrimnio. E no h patrimnio maior do que o sentido de identidade e per-

    tencimento que nos proporcionado pela cultura nacional.

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    8/291

    FENMENOCULTURAL

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    9/291

    Dos fenmenos culturais que marcaram a histria do Brasil no sculo

    XX, a msica e o futebol se integraram to intensamente formao docarter do brasileiro que hoje difcil conceber nossa identidade sem

    levar em conta esses dois produtos de enorme valor agregado: nos-

    sos craques e a MPB. Se estamos deixando de lado o velho complexo

    de vira-latas, diagnosticado por Nelson Rodrigues, parcialmente em

    virtude das conquistas esportivas futebolsticas e, sobretudo, pela cons-

    tituio desse imenso e riqussimo patrimnio de nossa cultura que amsica popular. A MPB se tornou, mesmo, um gnero musical que, em

    sua grande variedade de ritmos, vertentes e misturas, a marca registra-

    da do povo que a gerou, um povo que no resistiu a misturar gentica

    e, culturalmente, o velho e o novo mundo, tendo como resultado uma

    msica que no cessa de maravilhar o planeta. Dos EUA ao Japo, a MPB

    continua a ser sinnimo de boa msica: assim como somos finos na bola,

    Ruy Garcia MarquesDiretor Presidente da Faperj

    (Fundao Carlos Chagas Filho de Amparo

    Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro)

    somos craques em criao musical.

    Temos, assim, o dever no apenas de preservar a histria dessa msica, mas de investigar com maior

    afinco a sua complexa constituio ao longo das dcadas do sculo XX. Muitas histrias precisam

    ser contadas, fatos esclarecidos, para que possamos entender a profundidade de seu enraizamento

    na cultura. H bastante tempo, o pesquisador e musiclogo Ricardo Cravo Albin vem se dedicando a

    nos mostrar algumas das muitas pginas dessa histria. A presente edio prova disso: alm de ri-

    camente ilustrada, ela traz, nas preciosas contribuies de Antonio Carlos Miguel, Artur Xexo, Joo

    Mximo e Luiz Antnio Giron, um excelente panorama dos vrios movimentos da MPB.

    A FAPERJ, que tem entre suas metas o apoio investigao e divulgao de nossa cultura, se sente

    honrada em ter podido contribuir para mais esse belo produto do Instituto Cultural Cravo Albin. Es-

    peramos que, na esteira desse livro, muitos outros possam vir luz, ampliando o nosso conhecimento

    sobre aquilo que no apenas faz parte de nossa alma, mas que, principalmente, no deixa nunca de

    nos encantar.

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    10/291

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    11/291

    ...Porque o tempo,

    o tempo no pra...

    Cazuza

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    12/291

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    13/291

    BPMA A L M A D O B R A S I L

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    14/291

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    15/291

    AGRADECIMENTOS 271PARCEIROS DO ICCA 273

    O SOM DA MPB NESSES 40 ANOS

    Dos anos 60 a 70 277Dos anos 80 a 2000 281

    CD1 - Msicas, Intrpretes e Compositores 284CD2 - Msicas, Intrpretes e Compositores 286

    Verso em Ingls / English Version

    PREAMBLE FOR THE LAST 40 YEARSTHAT MADE MPB SHINE 210

    FROM FESTIVALS TO THE RETURNOF SAMBA 233

    STARS SHINE, ROCK COMES OUT 240

    MUSIC BEYOND (AND DESPITE)

    MARKETING 248

    THE TURNING OF THE IMPASSE 258

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    16/291

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    17/291

    PREMBULO PARA OS LTIMOS 40 ANOSQUE FIZERAM RELUZIR A MPB

    por Ricardo Cravo Albin

    uma longa e quase sempre bela histria a da msica popular do Brasil.

    Este livro perfila dcada a dcada os ltimos quarenta anos da nossa

    MPB nas vises pessoais de quatro crticos e jornalistas muito atentos,

    sensveis seduo que ela pode provocar ao longo de cada decnio.

    No toa, Joo Mximo, Artur Xexo, Antnio Carlos Miguel e Luiz Antnio Giron foram convidados

    a garimpar seus conhecimentos crtico-evocativos e agreg-los a essa tentativa de desfiar mais umavez a histria de uma paixo nacional.

    Quatro lustros situados entre 1967 e 2007 que acompanham a experincia bem sucedida dos 40

    anos da FINEP. Instituio de pesquisa que comeou a investir entre 1967-68 com uma originalidade:

    injetar recursos no primeiro grande sonho do disco independente neste pas, o do produtor Marcos

    Pereira. Meu amigo Marcos Pereira pensou grande, agiu grande, gravou grande.

    A este livro logo se somou como parceiro a FAPERJ, que vem acompanhando o Instituto desde o seu

    comeo e a quem o ICCA deve no apenas o incentivo acadmico como a solidariedade pontual no trata-

    mento de seus multiplos acervos. Finalmente e graas ao assentimento geral dos parceiros a Funda-

    o Alexandre de Gusmo (MRE) agregou-se a este livro, fazendo-o reluzir com os textos em ingls.

    Espero que possa ser de alguma utilidade a introduo aos quatro belos

    textos que o leitor ter a seguir. At porque como costumo repetir

    com persistncia nesses ltimos 45 anos de atuao na historiografia da

    MPB nenhuma histria nasce do nada. Tudo se intercomunica com os

    canais do tempo, fortificando as razes que permitem as sequncias.

    E consequncias.Banda de Pifanos de Caruar

    A Bandinha Vai Tocar1980 - Marcus Pereira

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    18/291

    A meu ver, a histria da msica popular brasileira nasce no exato momento

    em que, numa senzala negra qualquer, os ndios comeam a acompanhar

    as mesmas palmas dos negros cativos e os colonizadores brancos se dei-

    xam penetrar pela magia do cantarolar das negras de formas curvilneas.Esse amlgama, maturado sensual e lentamente por mais de quatro scu-

    los, daria uma resultante definida h mais de cem anos, quando criado,

    no Rio, o choro e quando surgem o maxixe, o frevo e o samba, alm do

    frevo no Recife.

    Da para c, esses ltimos cento e tantos anos, abertos tanto pela Abolioda Escravatura (1888) quanto pela Proclamao da Repblica (1889), assis-

    tiram consolidao de uma revoluo cultural que nos redimiu: a dram-

    Uma Msica Mulata

    UMA INTRODUO

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    19/291

    tica ascenso da civilizao mulata no Brasil. E com ela, a consolidao de

    sua filha primognita, a mais querida e a mais abrangente, a MPB.

    A extraordinria capacitao brasileira de incorporar, de deglutir, de ru-minar as mais vrias culturas - a meu ver, a contribuio mais original do

    Brasil para a histria das civilizaes - vai encontrar, justamente no nosso

    cancioneiro, seu espelho mais veemente, provocador e estimulante.

    Devo observar que as msicas populares de outros pases como Alema-

    nha, Frana, Portugal, Espanha, Rssia, Itlia, toda a Escandinvia e tantosoutros ( exceo dos Estados Unidos, onde o jazz se desenvolveu com

    vigor diferenciado) so muitssimo mais discretas e - a sim - avaliadas

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    20/291

    em modesto patamar cultural. Por qu? Porque a elas faltam as labaredas

    rejuvenescedoras tanto da miscigenao, quanto as de um pas jovem.

    No ser apenas por incorporar a palavra popular que a MPB pode exibir,

    com tamanho luxo, sua melhor e mais nobre configurao: a interface da

    solidariedade que ela prope. E - mais que isso - que ela vem realizando

    ao longo deste ltimo sculo.

    Mas, diro alguns, no haver exagero da parte de exegetas apaixonados

    em atribuir a um conjunto de canes e artistas do povo tal nvel de

    importncia scio-cultural ? Sim, at poderia haver, se a esse conjunto

    que hoje tem o simptico apelido de MPB faltasse um dado revitalizador

    chamado miscigenao.

    Pois sempre til lembrar-se que nossa msica popular fruto direto - e

    indissocivel - do encontro inter-racial que culminou no pas mulato que

    somos ns.

    Um dos maiores brasileiros que conheci, o folclorista Lus da Cmara

    Cascudo, me definiu com cortante exatido os riscos das smulas, oumesmo das abreviaes de uma longa histria: como uma fotografia

    de uma mulher bonita, sempre falta alguma coisa que deveria ser mos-

    trada com mais detalhes, abelhudagem e apetncias. O sbio de Natal

    (RN) estava coberto de razo. por isso que quero, desde logo, advertir

    o leitor de que este prembulo da msica popular brasileira necessa-

    riamente incompleto nos seus detalhes e nos seus atalhos. Nem poderiamesmo deixar de ser, considerando tanto a diversidade quanto a riqueza

    de seus personagens e at mesmo a veemncia orgnica com que ela

    chegou a ser o que hoje.

    Se os atalhos, contudo, so necessariamente incompletos, as vias princi-

    pais seguem a linha geral da convenincia e da coerncia de uma histriacontada por quatro jornalistas de primeira linha e que so ntimos da ma-

    tria especfica deste livro, a desenvolvida nessas quatro ltimas dcadas.

    MPB | A ALMA DO BRASIL 18

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    21/291

    Quero deixar tambm claro nesta minha introduo que muitos no-

    mes de compositores, intrpretes e msicos - at da minha estima e res-peito pessoais - no foram citados neste texto, especialmente na opulenta

    dcada de ouro, os anos 30. Se fosse registrar todos os que queria, esta

    leitura seria a de um enfadonho listo de nomes, a no mais acabar. Por

    isso mesmo, ousei resumir todas as dcadas que antecedem a atualidade

    de quatro lustros em apenas alguns dos compositores fundamentais.

    Os compositores so citados preferencialmente porque a eles defiro

    uma importncia decisiva na histria da MPB. Considero-os como a mas-

    sa do bolo que a msica popular, ficando seus intrpretes (cantores e

    msicos) como o fermento e cobertura que lhe do a beleza e a tornam

    desejvel aos paladares. E a - que me perdoem os recalcitrantes - a esco-

    lha deles todos mesmo pessoal.

    MPB | A ALMA DO BRASIL 19

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    22/291

    O nascimento dos primeiros indcios da msica popular brasileira se deu

    h mais de duzentos anos, com artistas cujos nomes a histria esque-

    ceu. Um dos mais remotos registros individuais de canto popular do

    grande poeta satrico Gregrio de Matos Guerra, o Boca do lnferno, que

    conquistava, j velhote, escravas do Recncavo Baiano, cantando versos

    frascrios ao som de uma viola de arame. Cinquenta anos depois, pelo

    final do sculo XVIII, outro tocador de viola, o poeta carioca Domingos

    Caldas Barbosa, deixou o Rio e foi para Portugal, cantando na corte canti-

    gas de estrutura portuguesa, mas j perpassadas de uma ternura tal que

    se pressupe ser um sintoma de forma musical brasileira.

    Apenas na segunda metade do sculo XIX a histria da msica popular

    brasileira fixaria os primeiros grandes nomes daqueles que iriam formar

    as bases do que hoje considerada a msica popular brasileira. mui-

    to importante ressaltar, desde logo, que nossa msica popular constitui

    uma criao contempornea ao aparecimento das cidades. Deve-se deixar

    claro que msica popular s pode existir ou florescer quando h povo. E

    o que se ouviu no Brasil colonial? Nos trs primeiros sculos de coloni-

    zao houve tipos definidos de formas musicais, os cantos para as danas

    rituais dos ndios e os batuques dos escravos, a maioria dos quais tambm

    ritual. Ambos fundamentalmente base de percusso: tambores.

    atabaques, tantares. palmas, apitos. Paralelamente, existiam as cantigas

    Da Modinha e do Lundu ao Samba

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    23/291

    dos europeus colonizadores que tinham bero nos burgos medievais dos

    sculos XII a XIV. Fora desse tipo de msica, o hinrio religioso catlico

    dos padres. Ainda a registrar os toques e as fanfarras militares dos exr-

    citos portugueses aqui sediados.

    Para que se chegasse a uma msica reconhecvel como brasileira tornou-

    se necessrio que a mistura desses elementos todos configurasse uma

    resultante. E isso se deu a partir do comeo do sculo, quando as popu-

    laes dos burgos se somaram em cidades, das quais logo despontaram

    Salvador, Recife e Rio de Janeiro, todas com forte influncia negra. Essas

    populaes, unidas em cidades, demandavam novas formas de lazer, ou

    uma produo cultural. E essa produo se fez representar no campo da

    msica popular pelos gneros iniciais de lundu e de modinha. O lundu

    basicamente negro no seu ritmo cadenciado - ostentava a simplicidade

    do povo nos seus versos quando era cantado, comentando na maioria das

    vezes a vida cotidiana das ruas. J a modinha basicamente branca na sua

    forma de cano europeia exibia versos empolados para cantar o amor

    s musas marmreas, quase sempre inatingveis. Dentro desse quadro e

    poca comeam a aparecer os primeiros vultos a serem aqui registrados.

    Um dos primeirssimos pode ser considerado Xisto Bahia (Bahia, 1841

    - Caxambu, 1894), que retomou a tradio de Domingos Caldas Barbosa,

    Debret BatuquesColeo da revista Carioquice

    RugendasSerenadeviola dmore, 1835Acervo Museu da Imagem edo Som

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    24/291

    cujas modinhas irnicas, levadas corte portuguesa no sculo XVIII, se

    haviam transformado em rias pesadonas quando D. Joo VI aportou no

    Rio, h duzentos anos, em 1808, transferindo sua corte para o Brasil,

    a partir do terremoto poltico provocado por Napoleo Bonaparte na

    Europa. Mulato, filho de um oficial veterano das lutas da Independncia,Xisto apareceu numa poca em que os poetas romnticos comearam a

    escrever versos para serem musicados no apenas por msicos de escola,

    mas por simples tocadores de violo (um dos que mais escreveram foi o

    poeta Raymundo Rebello, cujas msicas logo ganharam os violes anni-

    mos das ruas). Xisto, violonista, compositor e ator, comeou sua carreira

    em Salvador atuando para a nascente classe mdia. No Rio, logo depois,chegou a ser coautor de Artur Azevedo e foi aplaudido pessoalmente pelo

    imperador. Com o fim do Imprio, Xisto entrou em desgraa e morreu

    Centro do Rio de Janeiro(dcadas de 10 e 20)

    Acervo Museu da Imagem e do Som

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    25/291

    pobre e abandonado. Tragdias, as da pobreza e do esquecimento, que

    cairiam como maldio sobre a grande maioria dos vultos da msica dopovo a partir da. Naquela segunda metade do sculo XIX, a msica

    ouvida pelas elites eram, em geral, as peras, as operetas e a msica

    leve de salo. Os negros ou os brancos amestiados das camadas baixas

    executavam e ouviam, via de regra, os estribilhos acompanhados por sons

    de palmas e violas. A tmida classe mdia - que comeou a se incorporar

    no Segundo Imprio apegava-se apenas aos gneros europeus, ou seja,msica leve dos sales das elites: a polca, chegada ao Brasil em 1844, a

    valsa e ainda a shottish, a quadrilha, a mazurca.

    Dentro desse cenrio eis que aparece um raio de luz e de inveno, o

    mulatoJoaquim da Silva Callado, criador do primeiro grupo instru-

    mental de carter carioca e popular no Brasil: o choro. A palavra inicial-mente indicava apenas uma reunio de msicos e s depois o nome do

    gnero musical. Era a msica do gnio e da criatividade brasileiros. O

    novo gnero, uma msica estimulante, solta e buliosa, era quase sem-

    pre executada base de modulaes e de melodias to trabalhadas que

    Regional* Carioca JacarpaguaFoto Augusto Malta - 1911

    Acervo Museu da Imageme do Som

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    26/291

    exigiam de seus executantes competncia e talento. A tal ponto que

    os editores nem quiseram mais editar Callado, que chegaria, contudo,a ser condecorado pelo imperador com a Ordem da Rosa (1879), mor-

    rendo logo depois vitimado por uma das muitas epidemias que gras-

    savam no Rio de cem anos atrs, insalubre e sem esgotos sanitrios.

    Mas lindo como nunca, segundo todos os testemunhos dos viajantes

    que nele aportavam. E sempre louvado pelos cronistas e poetas que

    aqui nasceram.

    A partir de Callado surge toda uma gerao de chores: Pedro Galdino,

    Paulino Sacramento, Pedro S Pereira e Candinho so alguns das dezenas

    de timos msicos que tocavam pelas ruas do Rio da belle poque. O

    teatro de revista cujo corao estava na praa Tiradentes, no Rio era o

    grande centro consumidor e tambm irradiador da msica popular desdeas ltimas dcadas do sculo XIX.

    Dentre todos os pioneiros, duas chamas individuais logo se destacam dos

    demais: Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth. Francisca Edwiges deLima Neves Gonzaga (Rio, 1847 - Rio, 1935), filha de famlia ilustre,

    sendo seu pai marechal do imperador, casou-se por promessa paterna

    com um oficial da marinha mercante. O marido obrigou-a a vender o

    piano e a viajar quase reclusa no camarote do seu navio. Conta-se que,

    no porto de Salvador, Chiquinha trouxe um violo para bordo. O marido-

    capito, com quem ela j vivia s turras, caiu na ingenuidade de dar aChiquinha um ultimato insensato: O violo ou eu! Entre o marido e o

    violo, ela optou sem pestanejar pelo segundo. Era a dcada de 1870 e, j

    no Rio, Chiquinha comeou a ensinar violo, a compor e a tornar-se

    maestrina. Sua primeira composio, a polca Atraente (1877), deu inicio

    a centenas de msicas em que todos os gneros foram experimentados.

    Em 1885 nossa altiva Francisca derrubou mais um preconceito: compsa primeira partitura para a opereta popular A corte na roa e se imps

    como maestrina. De 1877 at pouco antes de sua morte, a primeira grande

    AbreAlas,

    Queeuqueropassar(2X)

    EusoudaLira,

    Noposson

    egar(2X)...

    Chiquinha Gonzaga - Abre Alas

    Chiquinha Gonzaga, 1902Coleo Instituto Cravo Albin

    MPB | A ALMA DO BRASIL 25

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    27/291

    autora do Brasil comps 77 peas teatrais de onde saram joias como o

    tango Corta jaca e a modinha Lua branca.

    Pioneira em todos os sentidos, inclusive ao quebrar os costumes machis-

    tas de sua poca, a maestrina Chiquinha Gonzaga foi figura essencial

    MPB: escreveu quase duas mil composies e eletrizou o carnaval da vi-

    rada do sculo XX compondo Abre Alas, a primeira marcha de carnaval,

    a pedido do cordo carnavalesco Rosa de Ouro.

    Chiquinha ainda teve coragem e tempo para abraar as causas mais no-

    bres de sua poca, como o abolicionismo, saindo muitas vezes de porta

    em porta para recolher donativos. A revolucionria Francisca tambm

    deitou modas, desenhou seus prprios vestidos, fumou charutos, tornou-

    se notcia, caiu na maledicncia popular. Mas fez de sua vida um ato depioneirismo e ousadia at hoje insuperveis.

    Foi ainda a fundadora, em 1917, da Sociedade Brasileira de Autores Te-

    atrais (SBAT) e morreu no Rio com 89 anos, cercada por uma aura de

    mito, um cone tanto da transgresso social quanto da consolidao da

    msica popular.

    De to grande importncia quanto Chiquinha - e talvez at maior sob uma

    tica estritamente musical Ernesto Jlio Nazareth (Rio, 1863 - Rio,

    1934) era filho de modesta famlia da pequena classe mdia. Aluno apli-cado de piano, lanou o primeiro tango brasileiro, Brejeiro, que no fundo

    era quase o choro. E assim se iniciou uma carreira que o transformaria no

    compositor mais original do Brasil, no dizer de Mrio de Andrade: po-

    pular e erudito ao mesmo tempo. Nazareth, contudo, desprezava msica

    popular, mas era obrigado a toc-la em lugares plebeus, como antessalas de

    cinema - onde, alis, era ouvido por gente do porte de Darius Milhaud, quenele se inspirou para compor algumas de suas peas. Rui Barbosa, outro

    personagem famosssimo, sempre ia ouvi-lo no cinema Odeon.

    Elemelembratanto,tanto

    Deoutroencantodeumpassado

    Queera

    lindo,eratriste,erabom

    Igualzinhoaochorinhoch

    amadoOdeon...

    ErnestoNazareth-Odeon

    LetradeVinciusdeMoraes

    MPB | A ALMA DO BRASIL 25

    Ernesto NazarethColeo Instituto Cravo Albin

    MPB | A ALMA DO BRASIL 26

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    28/291

    O indiscutvel Mrio de Andrade teve razo em elevar Ernesto Naza-

    reth ao raro pdio de compositor erudito e popular ao mesmo tempo.Ele foi mesmo imbatvel na teimosia de nunca querer abastardar sua

    arte e seu piano.

    Amargurado, surdo e tendo que tocar quase na rua para sobreviver,

    Nazareth acabou louco e morreu em Jacarepagu ao fugir de um hosp-

    cio. Muitas de suas msicas e choros se incorporaram ao cancioneiro doschores e lhe deram carter, como Apanhei-te, cavaquinho e Odeon,

    dois clssicos do repertrio chorstico.

    Outro pioneiro importante,Anacleto Augusto de Medeiros (Ilha dePaquet, Rio, 1866 - Rio, 1907) entraria para a histria da cultura popular

    como o mestre fundador da Banda do Corpo de Bombeiros. Florescendo

    numa poca em que a msica do povo comeava a ser arrumada, foi ele

    um msico inovador porque responsvel pela definio ou escola harm-

    nica da msica popular, at ento inexistente.

    Outro dos grandes personagens da histria dos pioneiros, o compositore flautista Patpio Silva (ltaocara, RJ, 1881 - Santa Catarina, 1907)

    assombraria a primeira dcada deste sculo. Ele veio a ser um fantstico

    Patapio Catullo

    MPB | A ALMA DO BRASIL 26

    MPB | A ALMA DO BRASIL 27

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    29/291

    virtuose da flauta. Alis, no s foi o primeiro msico brasileiro a trans-

    por para flauta peas escritas para outros instrumentos, mas tambm um

    dos primeiros solistas a gravar discos no Brasil. Patpio morreria no auge

    do sucesso, com apenas 28 anos de idade, em meio a uma excurso

    a Florianpolis.

    Dentro dessa linha dos primeiros compositores populares, vale registrar

    ainda um outro nome: Catullo da Paixo Cearense (So Luis, MA, 1866

    - Rio, l 946), que, j aos 1O anos, iria morar com sua famlia no interior

    do Cear, de onde possivelmente aferiria os elementos bsicos para sua

    futura obra sertaneja e tambm de onde acabaria por tirar o nome arts-

    tico. Catullo chegou ao Rio com 17 anos e, frequentando uma repblicade estudantes no ento longnquo bairro de Copacabana (um local ermo

    para se veranear, segundo Joo do Rio), vem a se interessar pela msica.

    Sua pea inicial, a modinha Ao luar (feita aos 18 anos), deu incio a

    |

    Copacabana

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    30/291

    uma das mais bem sucedidas carreiras da MPB, na qual se ressalta um

    fato muitssimo comum aos compositores do povo: ter sido sempre auto-

    didata. Seu prestgio se consolidaria nos primeiros anos do sculo, com o

    advento das gravaes mecnicas. Pelos velhos discos da Casa Edison, na

    voz do cantor Mrio, o prestgio de Catullo agora belamente biografado

    por Haroldo Costa em 2009 no pararia de crescer. Para que se tenha

    uma ideia da influncia do poeta, foi ele o primeiro a introduzir o violo

    - instrumento ento considerado maldito - no antigo Instituto Nacional

    de Msica, em audio (1908) corajosamente promovida pelo maestroAlberto Nepomuceno.

    A mais clebre composio de Catullo, Luar do serto (1910, gravada

    pelo Mrio para a Casa Edison), usualmente considerada um quase

    hino nacional dos coraes brasileiros. A pea trouxe a glria definitiva

    a seu autor e tambm um grave desgosto, como chegou a confiden-ciar ao pianista Mrio Cabral: a acirrada disputa (que terminou em

    rumorosa questo judicial) com o violonista Joo Pernambuco, que se

    Quincas Laranjeiras,Catullo da Paixo

    Cearense e Dr Parreiras,1919

    Vassouras - Rio de Janeiro

    No h, gente, oh no

    Luar como este do serto...

    Catullo - Luar do Serto

    MPB | A ALMA DO BRASIL 29

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    31/291

    considerou desde logo o autor da msica, fato veementemente con-

    testado por Catullo. Alis, Joo Pernambuco (Jatob, PE, 1883 - Rio,

    1947) foi no s extraordinrio msico, mas tambm autor de obras

    interessantssimas, entre as quais se destacava um clssico do choro, o

    Sons de carrilho.

    Enquanto Catullo era o grande sucesso na capital federal do pas, umRio ainda acanhado e que dava os primeiros passos para se modernizar

    como grande cidade (quando o Rio se limpava da morrinha imperial, no

    dizer de Carlos Drummond de Andrade), apareceu em 1912 um menino

    de calas curtas tocando flauta melhor que gente grande. Esse menino

    virtuoso viria a ser o herdeiro de toda a tradio musical inaugurada e

    cultivada por Nazareth, Chiquinha, Callado, Patpio e Catullo, e tam-bm seria pelo menos ao meu ver o estruturador e o patriarca de

    toda msica que viria depois dele:Alfredo da Rocha Viana Filho, o

    Pixinguinha (Rio, 23 de abril de 1897 - Rio, 17 de fevereiro de 1973).

    Crescendo num ambiente de msica e msicos da baixa classe mdia,

    o menino Alfredo era chamado pela av africana de Pizindin (menino

    bom). J aos 12 anos esgotaria os conhecimentos musicais que lhe mi-nistrara o maestro Csar Leito.

    Quanto sua carreira de compositor (quase mil composies, todas elas

    irretocveis, se bem que muitas inditas at hoje), vale registrar que

    as duas primeiras seriam gravadas pelo prprio (1917) para a casa Fau-

    lhaber: o choro Sofres porque queres e a valsa Rosa. Esta ltima seimortalizaria quando gravada por Orlando Silva (1937). Sucesso ainda

    maior obteve com o lado A do mesmo 78 RPM de Orlando: o choro-cano

    Carinhoso, escrito quase vinte anos antes com o nome de Carinhos.

    Acusado de ser jazzificado pelo crtico Cruz Cordeiro que me confiden-

    ciaria no Museu da Imagem e do Som (em 1967) o seu arrependimento

    sobre tal observao , Pixinguinha guardou-o at 1937, quando, a pedidoda atriz Heloisa Helena, Braguinha nele colocou a letra que o levaria para

    o pdio das dez canes mais estimadas no Brasil.

    Meucorao,noseiporque

    Batefelizquandotev

    Eosmeusolhosficamsorrindo

    Epelasruasvoteseguindo

    Masmesmoassim

    Fogesdemim... Pix

    inguinha

    -Carinhoso

    Pixinguinha

    MPB | A ALMA DO BRASIL 30

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    32/291

    Ele criou ainda inmeros conjuntos musicais, entre os quais se desta-

    cou o conjunto Os Oito Batutas, o primeiro a excursionar fora do Brasil

    (Paris, 1922), levando na bagagem o choro, o samba e o maxixe, todos

    eles temperados com o melhor da alma brasileira mulata e travessa. O

    maestro Alfredo Viana foi tambm o primeiro msico brasileiro, j consa-

    grado como flautista, compositor e chefe de orquestra, a fazer arrojados

    arranjos orquestrais para as marchinhas e sambas de carnaval em pleno

    comeo da poca de ouro da MPB (dcada de 1930).

    A partir dos ltimos anos do sculo XIX, as principais cidades brasileiras

    assistiram ao despertar da conscincia das populaes mais pobres na so-

    ciedade. At 1888 (Lei urea) os escravos eram inferiorizados e no po-

    diam manifestar sua veia musical, a no ser em grupos fechados. J como

    trabalhadores livres da era republicana, comearam a disputar lugar nasociedade, o que, no campo do lazer, se evidenciou por uma crescente

    participao nos festejos carnavalescos. Estes festejos eram at ento

    transformados pela classe mdia numa imitao do carnaval europeu,

    com os prstitos, as batalhas de flores e, anteriormente, as quase sempre

    brutais brincadeiras do entrudo.

    A populao mestia, j mais integrada na estrutura econmica da cidade,

    como os empregados das fbricas e os pequenos burocratas, organizaram-se em sociedades recreativas, inicialmente chamadas cordes carnavales-

    cos e, posteriormente, blocos carnavalescos. Em 1893 foram criados no

    Carnaval no RioFoto Augusto Malta, 1911

    Acervo Museu da Imagem e do Som

    Carnaval no RioFoto Guilherme Santos, 1911

    Acervo Museu da Imagem e do Som

    Carnaval no RioFoto Augusto Malta, 1932

    Acervo Museu da Imagem e do Som

    MPB | A ALMA DO BRASIL 31

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    33/291

    Rio de Janeiro os ranchos, que passaram a sair no carnaval produzindo

    um tipo de msica orquestral que geraria um dos gneros musicais mais

    amorveis da MPB: as marchas-ranchos. O fundador do primeiro rancho, o

    baiano Hilrio Jovino Ferreira, lhe deu o nome de Rancho Rei de Ouro.

    A populao carioca mais pobre, especialmente a que descendia dos gue-

    tos da escravido e que habitava os cortios negros pauprrimos da zona

    da Cidade Nova e da Central do Brasil a Praa Onze antiga era dela o

    corao, nas mesmas imediaes onde hoje est o Sambdromo Darcy

    Ribeiro continuava a exercitar-se nos batuques e nas rodas de pernada

    e de capoeira. Eram na maioria os baianos e seus descendentes, que

    vieram da Bahia com o fim da guerra de Canudos, direito que ganharam

    por lutarem nas tropas contrrias a Antnio Conselheiro. Alm dos ne-

    gros alforriados por lutarem na Guerra do Paraguai.

    Pois bem, essa parte da populao no saa no carnaval de forma organizada,

    mas em blocos desordenados, cujos desfiles terminavam quase sempre

    em grandes brigas de capoeira e em terrveis cenas de sangue, segundo

    o cronista Joo do Rio. Alis, atento s evolues urbansticas do Rio,

    o cronista fez um paralelo curioso entre a Praa Onze dos ex-escravos e a

    avenida Central (atual Rio Branco), inaugurada em 1902 e que ele consi-derava um trao de separao entre o Brasil passado e o novo: A avenida

    chique / Eu sou a Central / Da elegncia o tique / Dou Capital.

    Centro do RioColeo Instituto Cravo Albin

    MPB | A ALMA DO BRASIL 32

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    34/291

    Da msica base de percusso e de palmas, produzida por esses negros

    com o nome de batucada, iria nascer o gnero popular mais representativo

    da msica brasileira. O samba, palavra de origem africana (Angola e Con-

    go), provavelmente corruptela da palavra semba, pode ser sinnimo de

    umbigada, ou seja, o encontro lascivo dos umbigos do homem e da mulher

    na dana do batuque antigo. Ou tambm pode significar tristeza, melan-

    colia (quem sabe da terra africana natal, assim como o blues nos Estados

    Unidos). Alis, a palavra samba foi grafada pela primeira vez (3/2/1838)

    por frei Miguel do Sacramento Lopes Gama na revista pernambucana Ca-

    rapuzeiro: definia ento mais um tipo de dana negra, de senzala.

    Alm dessas rodas de capoeira e de batucada, quase sempre realizadas

    nas ruas e praas das imediaes, ficaram clebres os festejos nas casas

    das at hoje celebradas tias baianas (Tia Ciata, a mulata Hilria Batista

    de Almeida, foi dentre todas a mais festejada). Eram elas, em geral, se-

    nhoras gordas e grandes quituteiras, que davam festas para comemorar

    as datas importantes do calendrio do candombl. Os festejos duravam,

    duravam e duravam. Alguns s acabavam uma semana depois. Eram os

    pagodes, que ocorriam nas casas das tias, como eram carinhosamente

    apelidadas. E se realizavam em dois tempos, segundo me informaram no

    MIS no s Donga e Joo da Baiana, mas tambm Pixinguinha e Heitor

    dos Prazeres, todos frequentadores e exceo de Pixinga filhos

    de me-de-santo. No fundo da casa, a devoo aos orixs, com toda a

    preservao do ritual das datas do candombl. Acabadas as obrigaes,

    CandomblLan, 1990

    Tia Ciata(autor no identificado)

    Joo da Baiana(autor no identificado)

    MPB | A ALMA DO BRASIL 33

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    35/291

    a batucada tinha lugar, mas j em outros cmodos, geralmente nas salas

    da frente dos cortios decadentes ou dos sobrades abandonados pela

    burguesia, ento em busca de novos bairros da moda, como Botafogo,

    Laranjeiras e Humait.

    A partir das casas das tias baianas se registram no s o nascimento do

    samba, mas tambm os primeiros nomes da sua histria. O mais velho

    deles foi o mestio Jos Luiz de Moraes (Rio, 1883 - Rio, 1961), apeli-

    dado de Caninha porque, quando molecote, vendia roletes de cana na Es-

    trada de Ferro Central do Brasil. Caninha aprendeu a msica dos negros,

    a batucada, nos redutos da Praa Onze, nas casas das tias e nas festas

    da Penha. Alis, muitos anos mais tarde, por volta de 1932, quando a

    populao que descendia dos escravos foi obrigada a morar em casebres

    no alto dos morros cariocas, Caninha comps um samba que atestava

    as origens da MPB: Samba de morro / No samba, batucada / L na

    cidade / A escola diferente. A propsito, os primeiros moradores dosmorros cariocas foram os descendentes dos baianos, vindos da guerra de

    Canudos e que deram comunidade o nome de favela, hoje substantivo

    abrangente, sinnimo das habitaes de comunidades carentes.

    Outro pioneiro que criou o samba a partir da batucada foiJoo da Baiana

    (Rio, 1887 - Rio, 1974). Filho da baiana Prisciliana dos Santos Amaro, a

    Tia Prisciliana, Joo o inesquecvel e doce tio Joo como ns o cham-

    MPB | A ALMA DO BRASIL 34

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    36/291

    vamos sobreviveu quase miseravelmente at morrer na dcada de

    1970. Joo Machado Guedes foi o responsvel pela introduo do pan-

    deiro no choro e do prato de cozinha como instrumento de percusso:

    um magnfico momento de criatividade do povo.

    Ainda nessa fase heroica de nascimento do samba, assinalo o nome de

    Heitor dos Prazeres. Nascido em plena Praa Onze (1898), onde tam-

    bm morreria (1966), Heitor comeou sua carreira de sambista como

    tocador de cavaquinho. Ritmista e compositor nos pagodes das tias Ciata

    e Prisciliana era conhecido pelo apelido de Mano Lino Heitor en-veredou pela poca de ouro da msica popular brasileira, a partir dos

    anos 30, com poucos mas estupendos sambas como Vou te abandonar;

    Mulher de malandro e a marcha Pierr apaixonado (1936, parceria com

    Noel Rosa). Alis, nesse mesmo ano se iniciaria como pintor primitivo,

    condio em que se consagraria nacional e internacionalmente. A ponto

    de certa vez seus quadros, mostrados em Londres, terem suscitado dajovem rainha Elizabeth II a pergunta consagradora: Quem e de onde

    Tela e foto de

    Heitor dos PrazeresColeo Instituto Cravo Albin

    ...Um Pierr apaixonadoQue vivia s cantando

    Por causa de uma Colombina,Acabou chorando, acabou chorando...

    Heitor dos Prazeres / Noel Rosa - Pierr Apaixonado

    Heitor dos Prazeres

    Heitor dos Prazeres e Sua Gente

    1957 - Sinter

    Coleo Instituto Cravo Albin

    MPB | A ALMA DO BRASIL 35

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    37/291

    vem este pintor extraordinrio? Heitor, que seria premiado na primeira

    Bienal de So Paulo, passou boa parte da vida como contnuo do antigo

    Ministrio da Educao e Cultura, emprego vitalcio que lhe fora conse-

    guido pelo poeta Carlos Drummond, seu confesso admirador.

    O compositor Heitor dos Prazeres foi tambm o reponsvel pelo apareci-

    mento da Escola de Samba da Portela, ao lado de Paulo Portela. Mas isso

    j ao comecinho dos anos 30.

    O samba s veio a ser registrado com esse nome quando o quarto

    desses pioneiros, Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga (Rio,

    1899 - Rio, 1974), filho de Tia Amlia mas tambm frequentador dos

    folguedos de Tia Ciata, gravou uma msica adaptada por ele e pelo

    cronista carnavalesco do Jornal do Brasil, Mauro de Almeida, o Peru

    dos Ps Frios, baseada em motivo popular que ambos intitularam Pelo

    telefone. Esse fato aparentemente banal teria a maior repercusso

    tanto para a histria do samba (apesar de Pelo telefone ser formalmente

    mais para maxixe do que para o samba) como para a definio do comeo

    da profissionalizao da MPB. E por qu? Porque isso se deu em janeiro

    de 1917, e a primeira providncia do Donga foi registrar msica e letrana Biblioteca Nacional.

    O que equivalia a tirar patente da msica.Trocando em midos: significava

    que uma msica popular estava atingindo o estgio importante de produto

    comercial capaz de ser vendido e de gerar lucros. Pelo Telefone, gravado

    em janeiro de 1917 pela Banda Odeon e logo depois pelo Baiano, da CasaEdison, deu a Donga as glrias da posteridade, como o primeiro samba

    gravado. Trouxe-lhe tambm um grande aborrecimento ao final da vida: a

    polmica mantida com Almirante, que insistia na tese de a msica ter sido

    uma criao coletiva. Como conheci muito bem ambos os contendores

    - quando no MIS - e deles ouvi detalhados relatos sobre o assunto, quero

    deixar registrada a minha impresso pessoal sobre esse fato histrico.Donga comprovou ao longo de uma vida de honradez pessoal e depois de

    ter realizado dezenas de composies que no carecia de qualquer mu-

    Donga

    Coleo Instituto Cravo Albin

    O chefe da folia

    Pelo telefonemanda me avisarQue com alegriaNo se questionepara se brincar...

    Donga / M. de AlmeidaPelo Telefone

    MPB | A ALMA DO BRASIL 36

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    38/291

    leta para ingressar na histria da MPB. Almirante no seu impiedoso rigor

    histrico, e concordo que o rigor histrico tem mesmo que ser impiedoso

    , no se deu conta de que a simples assinatura de Donga, correndo Bi-

    blioteca Nacional para registr-la, antes de uma fraude, s poderia ser uma

    declarao de posse da msica, ao menos do seu esprito, da sua metade

    (que seja), do seu arranjo final. E isso j era o bastante naqueles tempos

    de pioneirismo e de quase nenhum profissionalismo. tica, compostura

    e talento? A Donga jamais faltaram, tanto quanto o conheci. E se v l!

    ele tivesse se apropriado de alguns motes de inspirao coletiva na casa

    de Tia Ciata, teria feito muito bem. Afinal, as notas musicais so apenas

    sete, e o ouvido do compositor popular sempre foi e ser uma antena ligada

    a tudo o que o cerca, de vida e de emoo.

    A Consolidao do Samba

    Apesar de Donga ter corrido Biblioteca Nacional para registrar o samba

    inaugural, sinalizando com isso que o novo gnero musical poderia ser

    um produto capaz de dar lucro e prestgio ao seu autor, no seria ele

    quem capitalizaria o samba em torno de seu nome. Isso veio a aconte-cer no comeo da dcada de 1920 com um outro personagem muito

    MPB | A ALMA DO BRASIL 37

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    39/291

    interessante:Jos Barbosa da Silva, na histria do samba imortalizado

    como Sinh (Rio, 1888 - Rio, 1930). Nascido em pleno centro carioca

    (rua Riachuelo), desde adolescente Sinh frequentou as rodas de bomia

    da cidade. Prova disso so os seus primeiros colegas de farras nos anos

    iniciais do sculo XX, Joo da Baiana e Jos Luiz Moraes, o Caninha, com

    os quais viu nascer o samba nos pagodes das famosas tias, nas sesses de

    batucada na Praa Onze e na festa da Penha. Sinh conheceu o sucesso

    entre 1920 e 1930, ano em que morreu prematuramente - vitimado por

    uma hemoptise, a bordo da barca cantareira que vinha da ilha do Gover-

    nador para o Cais Pharoux, plena baa de Guanabara. Mas esses dez anos

    de carreira foram mais do que suficientes para que Sinh ingressasse na

    histria do cancioneiro popular como o primeiro sambista profissional.

    Ningum mais competente para divulgar suas prprias msicas que o

    espertssimo Sinh. Razo por que foi considerado o Rei do Samba nos

    anos 20. Tambm, por isso mesmo, o primeiro sambista carioca a elevar

    o recm-nascido gnero musical fama e ao prestgio intelectual.

    Alis, a popularidade do Sinh atingiu nveis to altos que a simples

    cognominao de Rei do Samba exibia, com opulncia, o enorme pres-

    tgio de que gozava. Esse prestgio era muito forado pelo compositor,

    vaidoso e pernstico, apesar de ingnuo. Sinh - com fama consolidada apartir de P de anjo, gravado por Francisco Alves, em 1919 comeou

    Vista da Ilha do Governador

    MPB | A ALMA DO BRASIL 38

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    40/291

    a compor para as revistas musicais dos muitos teatros da Praa Tiraden-tes, grande centro comunicador e divulgador da msica popular antes

    do advento da era do rdio, ao comeo dos 30.

    Nessa poca, o grande sucesso emergente em teatro era Vicente Celesti-

    no, no incio da carreira especializado em operetas. Registrem-se ainda os

    nomes de Cndido das Neves (o ndio, filho do palhao Eduardo das Nevese autor de joias como ltima estrofe, Lgrimas e Noite cheia de estre-

    las) e Zequinha de Abreu (paulista de Santa Rita de Passa Quatro), autor

    de pelo menos um clssico no mundo inteiro, o choro Tico-tico no fub).Sinh

    Foto Arte Magazine, 1929

    Coleo Almirante

    Museu da Imagem e do Som

    Aracy Cortes, 1930Coleo CEDOC/Funarte

    O Tico-Tico tT outra vez aquiO Tico-Tico t comendo meu fubO Tico-Tico tem, tem que se alimentarQue v comer umas minhocas no pomar...

    Zequinha de Abreu - Tico-Tico no Fub

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    41/291

    Voltando a Sinh: no auge do sucesso (a partir de 1925), ele comeou afrequentar casas de intelectuais como lvaro Moreyra, transformando-se

    no primeiro sambista publicamente reverenciado por figuras proeminentes

    como Jos do Patrocnio, filho. Vaidoso das ilustres admiraes, fez sambas

    dedicados a inmeras personalidades, como Eugnia Moreira e o ento jovem

    jornalista Roberto Marinho. Apesar de ter sempre contra si a pecha de pla-

    giador de sambas alheios. Alis, o maior escndalo da carreira de Sinh foi oGosto que me enrosco, reivindicado por Heitor dos Prazeres, logo depois,

    inclusive, de ter o mesmo Heitor questionado a autoria do Ora vejam s.

    O fato gerou uma das mais acesas polmicas da MPB. Data da, ou seja,

    do momento em que Heitor dos Prazeres procurou Sinh para cobrar seus

    direitos de autor, uma das mais famosas frases da histria da MPB, atesta-

    do singular da ingenuidade, malcia e at malandragem dos compositoresdo povo: Samba como passarinho que voa, de quem pegar primeiro.

    Ao que Heitor retrucou no s chamando o desafeto de Sinh dos meus

    sambas, mas tambm compondo duas peas contra Sinh, cujos ttulos so

    realmente conclusivos: Olha ele, cuidado e Rei dos meus sambas.

    Dois anos antes de sua morte surgiria o maior de todos os sucessos deSinh, o Jura, gravado simultaneamente por Aracy Cortes, a maior estrela

    Mrio Reis e Francisco AlvesAses do Samba1993 - Revivendo

    Coleo Instituto Cravo Albin

    MPB | A ALMA DO BRASIL 40

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    42/291

    Ismael Silva1973

    Coleo Instituto Cravo Albin

    Francisco AlvesRei da voz em todas as pocas

    Revivendo

    Coleo Instituto Cravo Albin

    do teatro musicado dos anos 20 e 30, e por um jovem cantor da alta

    sociedade carioca, Mrio Reis, lanado na msica por Sinh, de quem

    era aluno de violo. Pertencendo mais exclusiva sociedade carioca da

    poca, Mrio faria histria na msica popular como o mais original cantor

    do comeo da poca de ouro, os anos 30.

    A sedutora mulata Aracy Cortes seria a grande sensao da MPB nos anos

    20, despertando paixes nas plateias dos teatros de revista da Praa Tira-

    dentes (Rio) ao cantar Jura (Sinh) e Ai, ioi (H. Vogeler, L. Peixoto),

    com graa insupervel, falsetes geniais e olhos maliciosos que, ao pisca-

    rem no palco, incendiavam as plateias.

    Se Sinh foi o primeiro compositor a profissionalizar o samba, ele s viria

    a ser definitivamente estruturado em sua forma como hoje conhecido

    por um grupo que habitava o Estcio de S, bairro de baixa classe m-

    dia carioca na segunda metade da dcada de 1920. Esse grupo de compo-

    sitores, bomios e malandros, que hibernavam de dia e floresciam noite

    nos botequins Caf Apoio e Do Compadre, tinha por lder o compositor

    lsmael Silva. O grupo do Estcio entraria para a histria da MPB como

    consolidador do ritmo e da malcia do samba urbano carioca, at ento

    muito influenciado pelo maxixe em sua estrutura formal, do que nos do

    testemunho clarssimo Pelo telefone e quase todas as obras de Sinh.

    lsmael Silva (Niteri, RJ, 1905 - Rio, 1978) aos cinco anos de idade j

    era morador do sop do morro de So Carlos, no Estcio de S. Ali de-

    senvolveria a sua extraordinria musicalidade em rodas de sambistas emalandros locais, dentre os quais Alcebades Barcelos e Armando Maral

    (autores de Agora Cinza), Rubem Barcelos (irmo de Bide), Baiaco,

    Brancura, Mano Edgar do Estcio e o primeiro grande parceiro de lsmael,

    Nilton Bastos, morto prematuramente logo depois (1931).

    O compositor lsmael desabrochou para o sucesso quando Francisco Alves

    ento j considerado a grande sensao do disco e do rdio que ento

    nascia procurou-o e lhe props gravar com exclusividade todos os sambas.

    MPB | A ALMA DO BRASIL 41

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    43/291

    CartolaCaricatura - Lan, 1975

    CartolaVerde que Te Quero Rosa1977 - RCA-Victor

    Coleo Instituto Cravo Albin

    Com uma condio: a de que seu nome tambm entrasse na parceria.

    lsmael aceitou, no sem antes exigir do Chico Viola a incluso do seu

    parceiro de verdade, Nilton Bastos. Desse trio torto nasceram pginas

    antolgicas, a principal das quais seria o primeiro e maior sucesso de

    lsmael Silva, Se voc jurar, gravado pela dupla Mrio Reis e Chico

    Alves, arrebatadora em graa e originalidade.

    lsmael Silva, a quem deve ser atribuda a responsabilidade histrica de

    ter sido um dos estruturadores do samba urbano carioca tal como viria a

    ser conhecido e apreciado nos anos subsequentes, tem ainda o crdito

    de ter sido o fundador da primeira escola de samba, a Deixa Falar (1928),

    que ele organizou junto com Rubem Barcelos, Bide, Baiaco, Brancura,

    Mano Edgar e Nilton Bastos, introdutor do surdo dentro da escola. A

    escola que sairia apenas nos carnavais de 1929, 1930 e 1931 tinha

    tanto na forma quanto na timidez de seu nmero de desfilantes a estru-

    tura dos blocos carnavalescos.

    A importncia do compositor Ismael Silva precisa ser melhor reavaliada.

    Ismael , pois, sambista de fundamentos, porque, insisto, foi o consolida-

    dor do ritmo do samba, bem como o fundador da Deixa Falar, a primeira

    escola de samba (1928).

    As escolas de samba, na verdade, s se expandiriam para valer com a

    criao das duas outras que se seguiram Deixa Falar: a Mangueira, de

    Cartola e a Portela, de Paulo da Portela e de Heitor dos Prazeres, quando

    vieram a tomar a forma definitiva e quando passaram a aglutinar sambistasrelevantes ao seu redor.

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    44/291

    MPB | A ALMA DO BRASIL 43

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    45/291

    Esse elenco dos cantores do rdio todo um captulo de pura seduo:

    o seresteiro Slvio Caldas; o meterico mas genial sambista Lus Barbosa;

    o ex-alfaiate Carlos Galhardo, que se consagraria como cantor romntico

    apesar de iniciar-se com Boas festas, de Assis Valente (1933); o hoje

    esquecido Patrcio Teixeira, grande sucesso de poca (citado at comopersonagem da MPB em Quatro estaes, de Lamartine Babo, 1933);

    o iluminado Orlando Silva, que a partir de 1936 acendeu a mais forte luz

    que a MPB j ter conhecido at hoje, pelo menos na poca de apogeu

    do seu canto (1936 - 1945); as cantoras Marlia Batista e Aracy de Almei-

    da, sempre disputando a preferncia de Noel; o casal 20 que foi Odete

    Amaral e Ciro Monteiro (dois estilistas notveis a partir do final dos anos30, mas de discreto prestgio junto ao grande pblico); e ainda as irms

    Batista (Linda e Dircinha, ambas tambm muito queridas, especialmente

    no final dos anos 30 e nas duas dcadas seguintes). E tantos e tantos

    outros que acabaram injustamente esquecidos.

    Exatamente no ano zero da poca de ouro, 1930, apareceu o primeiro

    sucesso de um jovem mineiro de Ub que viria a ser o compositor mais

    famoso do Brasil durante pelo menos trs dcadas: Ary Evangelista

    Barroso (Ub, MG 1903 - Rio, 1964). Ary chegou ao Rio (1921) e foi

    logo ser pianista, profisso que exercia por amor e por sobrevivncia.

    Contratado para musicar pea de teatro na Praa Tiradentes, iniciou-se

    Ary BarrosoAry Barroso com Silvio Caldas1953 - Long Play Rdio

    Coleo Instituto Cravo Albin

    Locutor Celso Guimares(Arquivo Rdio Nacional)

    Elenco do Rdio-Teatro)(Arquivo Rdio Nacional)

    Carmem MirandaAcervo Museu da Imagem e do Som

    MPB | A ALMA DO BRASIL 44

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    46/291

    como compositor quando escreveu toda a partitura para a pea Brasil do

    amor (1929), onde estrearia Slvio Caldas, cantando o samba Faceira.

    O samba, por sinal, s foi gravado em 1931, registro que marca a estreia

    do grande cantor carioca em gravaes, assinalando o incio de uma das

    mais bem-sucedidas carreiras do Brasil, no s porque Caldas soube

    escolher e definir repertrio como poucos, mas igualmente pela conteno

    e natural elegncia em interpretar qualquer gnero musical.

    O compositor mineiro Ary Barroso foi tambm pianista, locutor e ferre-

    nho defensor da integridade dos ritmos brasileiros. autor de Aquarela

    do Brasil, a mais gravada msica brasileira no mundo. E que teria como

    concorrente posterior apenas a Garota de Ipanema.

    Com Aquarela Ary iniciaria uma nova fase, a do samba-exaltao, que

    servia como luva s intenes nacionalistas do Estado Novo de Get-

    lio, ento namoriscando os pases do Eixo. Ary, alis, chegou a trabalhar

    nos Estados Unidos e a ser apontado para um Oscar da Academia de

    Hollywood. Ao voltar dos estdios da Disney faria de tudo no Brasil:desde radialista famoso (de programas de futebol e de calouros) at ve-

    reador municipal (foi seu o projeto para construir-se o Maracan). Ainda

    pianista, chefe de orquestra, bomio inveterado nos anos 50 e defensor

    intransigente da autenticidade da MPB, Mestre Ary lutou contra os ritmos

    estrangeiros e sua crescente influncia. Morreu dormindo no carnaval

    de 1964, mas sua fama sobrevive atravs das mais de mil gravaes exis-

    tentes da Aquarela do Brasil em todo o mundo.

    Carmen MirandaEm Suas Inesquecveis Criaes

    1955 - RCA-Victor

    Coleo Instituto Cravo Albin

    Carlos Galhardo1972 - Selo Imperial

    Coleo Instituto Cravo Albin

    Aracy de AlmeidaSucessos de Aracy de Almeida

    1956 - Continental

    Coleo Instituto Cravo Albin

    MPB | A ALMA DO BRASIL 45

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    47/291

    O segundo dos grandes compositores da poca de ouro foi Noel Rosa.

    Como Ary, Noel vinha da classe mdia. Isso pode demonstrar que o rdio

    e a gravao eltrica eram os veculos cada vez mais promissores de

    profissionalizao, de prestgio e de reconhecimento populares. Noel

    de Medeiros Rosa (Rio, 1910 - Rio, 1937) veio ao mundo no corao de

    Vila Isabel. Alis, o dia em que nasceu o marcou, a ferro e fogo, com um

    trauma que o estigmatizaria: o defeito fsico no queixo, ocasionado pelo

    afundamento do maxilar inferior no momento do parto.

    No comeo de 1929, o ainda adolescente Noel formou com os colegas da

    rua Teodoro da Silva, na Vila, o Bando dos Tangars, de que participaram

    Braguinha (outro compositor que faria longa e bela histria), alm do

    cantor Almirante. Sua primeira composio, a embolada Minha viola

    (1929) feita na esteira da influncia do fluxo de msica nordestina

    trazida por Catullo e depois pelos Turunas da Mauriceia, de Augusto

    Calheiros e Luperce Miranda passaria em brancas nuvens. O que no

    ocorreu com o samba Com que roupa (1931), que, gravado pelo prprio

    Noel, refletia uma pgina da vida do compositor. Como, de resto, quase

    todas as suas composies, que remetem sempre aos amores e fugaz

    experincia existencial do poeta.

    A partir do primeiro sucesso no carnaval de 1931, Noel faria nesse mes-

    mo ano para mais de vinte msicas, algumas delas clssicos como Trs

    apitos, Cordiais saudaes e Gago apaixonado. J ento seu estilo

    estava cristalizado: Noel cantava o simples das coisas e dos fatos cotidianos.

    Ele foi o poeta dos versos escorreitos e despojados de preciosismo, o cro-

    nista de poca mais preciso e enxuto, que traria para o comeo dos anos30 a simplicidade e o bom gosto to revolucionrios para a poca como

    a Semana de Arte Moderna em 1922. Alis, se analisarmos bem, Noel

    trouxe para suas letras muita coisa dos cnones modernistas de 22,

    especialmente ao comentar o cotidiano e na liberdade dos versos. No

    ano seguinte (1932) fez msicas com dois parceiros importantes: dez

    sambas com lsmael Silva e pelo menos outros tantos com o musicista

    paulista Oswaldo Gogliano, o Vadico, com quem comps obra-primas

    Noel RosaNoel Rosa

    1951 - ContinentalCapa Di CavalcantiColeo Instituto Cravo Albin

    AlmiranteAlmirante1968 - Fontana

    Coleo Instituto Cravo Albin

    MPB | A ALMA DO BRASIL 46

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    48/291

    como Feitio de corao, Conversa de botequim, Dama de cabar

    e, especialmente, o Feitio da Vila. Um hino do bairro onde nasceu e

    morreu. Que, alis, acabou inserido na clebre polmica musical mantida

    com o sambista Wilson Baptista.

    A pesquisadores mais argutos como Joo Mximo e Alusio Didier, seus

    bigrafos no poderia mesmo passar despercebido que a vida de Noel

    foi quase toda registrada em seus sambas. Difcil encontrar-se uma m-

    sica que no tenha uma histria especfica. E suas inmeras msicas que

    falam de amor comprovam que Noel foi apaixonado por muitas mulheres.

    A mais famosa delas Noel conheceu numa noite de So Joo, no Cabar

    Apoio, antiga Lapa, a bailarina Ceci, uma campista de 16 anos que o poeta

    amou at morrer. Para Ceci, Noel fez Pra que mentir, O maior castigo

    que te dou, Dama de cabar, Silncio de um minuto, Ilustre visita.

    Ou ainda o pstumo As pastorinhas.

    Ningum mais sedutor do que o carioca Noel Rosa tanto pela qualidade

    potica de sua obra quanto pelo fato de ter vivido intensamente como poeta.

    De que sua morte por tuberculose aos 27 anos eloquente testemunho.

    Noel Rosa, 1934Acervo Museu da Imagem e do Som

    Lamartine Babo, 1961Coleo Revista Carioquice

    O i t i t bli d N l t i i i

    MPB | A ALMA DO BRASIL 47

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    49/291

    O ano seguinte ao aparecimento pblico de Noel traria os primeiros su-

    cessos de um outro compositor extraordinrio: Lamartine de Azeredo

    Babo (Rio, 1904 - Rio, 1963), o adorvel Lal, como era chamado pela

    gerao do Caf Nice.

    O Caf Nice, o mais famoso da histria da MPB, ficava na antiga Galeria

    Cruzeiro onde hoje est o Edifcio Regina Feigl, ponto central da Ave-

    nida Rio Branco. Ali os bomios, compositores, msicos e intrpretes ti-

    nham o seu ponto de encontro preferido no Rio. Por incrvel que parea,

    tomavam-se um ou dois cafezinhos durante horas. Bebidas alcolicas, to

    a gosto da turma da msica, quase no se serviam por l. Uma estratgia

    tambm de esperteza: Lamartine e Alberto Ribeiro me disseram que era

    por isso mesmo que o pessoal ia, ou seja, porque todos podiam conversar

    de cara limpssima: armavam-se parcerias, escolhiam-se intrpretes e se

    negociavam msicas antes da bebedeira infalvel, que viria logo depois.

    Mas em outros bares...

    Criador das melhores marchinhas dos carnavais dos anos 30, Lamartine

    Babo, o adorvel Lal, foi compositor e tambm autor de valsas e canes.

    Lamartine a meu ver talvez tenha sido o mais completo e o mais

    visceralmente carioca dos compositores populares que desabrocharam

    na poca de ouro. O fato que Lal dedicou-se, desde adolescente, a

    cultivar e observar o canto do povo e da cidade. Resultado: veio a trans-

    formar-se no maior compositor do canto coletivo, que exatamente o

    entoado no carnaval. Lamartine por paradoxal que parea comeoua vida artstica fazendo hinos religiosos e ouvindo operetas europeias.

    Redescobriria e recriaria a alma das ruas, produzindo o mais sensacional

    dentre todos os repertrios carnavalescos, ao longo de suas quatro dca-

    das de apogeu.

    O primeiro sucesso foi com O teu cabelo no nega (carnaval de 1932).Que tambm gerou uma polmica com os irmos Valena, autores

    Oteucabe

    lononegamulata

    Porquesmulatanacor...

    Mascomoacornopegam

    ulata

    Mulataeu

    querooteuamor

    Lamar

    tineBaboeIrmosValena-O

    TeuC

    abeloNoNega

    Caf Nice (Atual Edifcio Central

    - Av. Rio Branco) -

    onde o bonde fazia a volta.

    Acervo Museu da Imagem e do Som

    pernambucanos de frevos que reivindicaram em juzo e ganharam o

    MPB | A ALMA DO BRASIL 48

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    50/291

    pernambucanos de frevos que reivindicaram em juzo, e ganharam, o

    direito de assinar a msica. At porque a primeira parte toda deles.

    Dentre os tantos xitos carnavalescos do Lal podem-se citar maravilhas

    como: Aeiou, Linda morena, Marchinha do grande galo, A tua vida

    um segredo, Moleque indigesto ou Ride palhao.

    Alis, Lamartine inovou todo o arcabouo literrio da MPB com um sen-

    timento de non-sense insupervel, autor do surreal e do absurdo, o que

    talvez seja a sua contribuio esttica mais importante para a cultura

    musical do pas. Na marchinha Histria do Brasil, ele se sai com essas

    prolas, um verdadeiro painel surrealista premonitoriamente tropicalis-

    ta: Quem foi que inventou o Brasil / Foi seu Cabral / No dia 22 de abril

    / Dois meses depois do carnaval. Lamartine conclui essa obra-prima da

    poesia popular do absurdo assim: Depois Ceci amou Peri / Peri beijou

    Ceci / Ao som do Guarani / Do Guarani ao guaran I Surgiu a feijoada e

    depois o parati. Mais lonesco ou Dali, impossvel.

    Lamartine, radialista famoso que integrou o Trio do Osso no famosssimo

    programa radiofnico Trem da Alegria, foi um compositor completo. Mes-

    mo com o maravilhoso repertrio carnavalesco, comps para o chamado

    perodo de meio de ano um grande nmero de msicas em que quase todos

    os gneros musicais foram experimentados. Valsas como Eu sonhei que

    Joo Roberto KellyRio d Samba

    1976 - Coronado/EMI-Odeon

    Coleo Instituto Cravo Albin

    Tristeza,porfa

    vorvaiembora

    Minhaalmaquechora

    Estvendoom

    eufim...

    Niltinh

    oTristeza/HaroldoLobo-Triste

    za

    tu estavas to linda S ns dois no salo e uma valsa e Alma dos

    MPB | A ALMA DO BRASIL 49

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    51/291

    tu estavas to linda , S ns dois no salo e uma valsa e Alma dos

    violinos, alm de canes, como No rancho fundo e Serra da Boa Es-

    perana, esto sempre guardadas nos coraes brasileiros e na garganta

    de qualquer seresteiro que se preze.

    Lamartine teria seguidores nas dcadas subsequentes, como Haroldo

    Lobo (Al-la-, parceria com outra grandssima figura de letrista, o cari-

    caturista Antnio Nssara, Emilia, O passarinho do relgio, Pra seu

    governo e o pstumo Tristeza, com Miltinho) ou Joo Roberto Kelly,

    autor de peas conhecidssimas no perodo final das marchinhas carnava-

    lescas (anos 60 e 70) como Cabeleira do Zez, Mulata Bossa-Nova,

    Rancho da Praa Onze, antes do advento do sucesso pblico da msica

    das escolas de samba.

    Tambm herdeiros do talento de reis do carnaval como Lal ou Braguinha

    (Carlos Alberto Braga), o Joo de Barro, autor fundamental de mais de 500

    composies entre as quais Touradas em Madri, Gato na tuba, Yes,ns temos bananas, Balanc, Chiquita Bacana, Vai com jeito, alm

    de Carinhoso e Copacabana), figuras expressivas a serem aqui relem-

    bradas sero sempre Jota Jnior, parceiro de Braguinha em 20 composi-

    es e autor de xitos como Confeti e Favela amarela, ou Lus Antnio,

    compositor de talento quase sempre voltado para os problemas sociais,

    autor de Lata dgua e Sapato de pobre (ambas com J. Jnior), ouBarraco, dignas de qualquer antologia do melhor samba carnavalesco.

    Olha a cabeleira do ZezSer que ele | Ser que ele Ser que ele bossa nova | Ser que ele Maom

    Parece que transviado | Mas isso eu no sei se ele ... Joo Roberto Kelly e Roberto Faissal - Cabeleira do Zez

    MPB | A ALMA DO BRASIL 50

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    52/291

    O ano de 1933 traz para a cena artstica o primeiro sucesso do quarto dos

    cinco compositores que iluminaram a poca de ouro com cinco grandes

    bagagens musicais, quer qualitativa, quer quantitativamente.Ataulfo Alvesde Souza (Mirai, Zona da Mata, MG, 1909 - Rio, 1968) era filho de la-

    vradores muito pobres, que mal tiveram condies de lhe dar a educao

    primria. Por isso, o rapazola chegou ao Rio para tentar a vida (1927) e

    foi morar no Estcio dos malandros sambistas. Ali Ataulfo exerceria as

    mais modestas profisses, desde office-boy at prtico de farmcia. Mas

    a msica popular era ainda mais forte que os mltiplos trabalhos em quese metia. Logo, logo, Ataulfo comeou a participar das noites de samba e

    de bomia do j afamado grupo de sambistas do Estcio. Assim comeou

    como compositor, consolidando seu prestgio nas trs dcadas seguintes

    como autor de uma das grandes obras solitrias da msica popular brasi-

    leira. Por que solitria? Porque toda ela guarda uma impecvel e elegante

    unidade estrutural, no apenas na chancela meldica (qualquer observa-dor mais atento capaz de reconhecer uma melodia ataulfiana), mas tam-

    bm, o que um fato igualmente singular, na parte potico-literria. Ou

    seja, Ataulfo Alves colocou melodias usualmente tristes a servio de le-

    tras no mais das vezes melanclicas, saudosas, romanticamente dodas.

    Eu diria que a ancestralidade negra de Ataulfo lhe conferiu todo o banzo,o semba de suas melodias. O prprio temperamento retrado e minei-

    Altaulfo AlvesAtaulfo Alves e suas Pastoras

    1959 - Sinter

    Coleo Instituto Cravo Albin

    Helena de LimaAtaukpho por Helena de Lima

    e Adelton Alves - 1969Acervo Museu da Imagem e do Som

    ro, a pobreza dos pais e de sua infncia e ainda, talvez, suas primeiras

    MPB | A ALMA DO BRASIL 51

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    53/291

    , p p , , p

    decepes amorosas como ele certa vez me confidenciou lhe tero

    dado a tristeza das letras, em que no mais das vezes existem preciososachados poticos. Se bem que tivesse aparecido com Tempo perdido

    em 1933, registrado por Carmen Miranda, o ano de 1940 foi mesmo

    o marco decisivo na vida e carreira do mestre Ataulfo. Isso porque ele

    estreia tambm como cantor condio em que atuaria at sua morte

    com um samba Leva meu samba, mais tarde transformado num

    dos clssicos do compositor: Leva meu samba / Meu mensageiro, este

    recado / Para o meu amor primeiro.

    Logo depois de registrar sua voz em disco, Ataulfo comporia a obra-prima

    Ai que saudades da Amlia, em parceria com o poeta e letrista Mrio

    Lago, outra grande figura, misto de poeta, ator e autor de teatro e rdio.

    Os versos foram inspirados a Mrio por uma empregada de Aracy de

    Almeida chamada Amlia. Mas, segundo Ataulfo me testemunhou em

    depoimento para o Museu da Imagem e do Som, acabaria por cortar

    muita coisa dos versos do parceiro. O que originou uma briga entre am-

    bos, logo tornada sem efeito, at pelo sucesso que fez o samba. Alis, h

    outro fato curioso sobre Amlia: ele mostrou a msica a vrios cantores

    da poca, que se recusaram a grav-la. Todos a consideraram um samba

    desinteressante e menor. Foi por isso que ele se arriscou mais uma

    vez como cantor, registrando Amlia em disco, acompanhado por sua

    Academia de Samba, mais tarde o conhecidssimo grupo Ataulfo Alves e

    suas Pastoras.

    A partir de ento a carreira de Ataulfo manteve-se acesa, exibindo-se

    sempre com suas pastoras em shows, rdios, boates e teatros e compondo

    maravilhas como Atire a primeira pedra, Fim de comdia, Errei, sim,

    Vai na paz de Deus, Entre ns tudo acabado, Pois (revitalizando

    o samba em 1954, poca de crise em que samba no tinha vez), Mulata

    assanhada (um raio de sol em sua tristeza que lanava o cantor Miltinho

    Mario LagoLetrista de escol, parceiro

    de Ataufo e Custdio (entre tantos),

    tambm radialista e ator.

    Coleo Instituto Cravo Albin

    em 1960) e Na cadncia do samba, quando profeticamente Ataulfo dizia:

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    54/291

    Quero morrer / Numa batucada de bamba / Na cadncia bonita do samba

    / O meu nome / Ningum vai jogar na lama / Diz o dito popular / Morre ohomem / E fica a fama. E ficou mesmo a fama, apesar de hoje injustamente

    esmaecida, quando mestre Ataulfo morreu sem ningum esperar, vitimado

    por uma lcera de duodeno que ele considerava de estimao.

    Apenas no penltimo ano da dcada de ouro chega para o cancioneiro do

    povo o quinto daqueles que eu costumo considerar, embora temeraria-mente, reconheo, como os cinco grandes compositores dos opulentos

    anos 30: Dorival Caymmi. Caymmi nasceu em Salvador (1914) e aos 24

    anos decidiu tentar a sorte no Rio. A bordo de um Ita do Norte, chegou

    ao Rio em abril de 1938. Apadrinhado por Assis Valente o primeiro

    compositor baiano de sucesso no Rio e por Lamartine Babo, o jovem

    violonista e cantor estreou como free-lancer na Rdio Nacional, de ondesairia contratado pela Rdio Tupi. A cantaria uma msica que depois

    daria muito o que falar: um samba brejeiro, inspirado estilstica e litera-

    riamente em peas anteriores de Ary Barroso, chamado O que que a

    baiana tem.

    O sucesso de Caymmi se esboou quando o cineasta Wallace Downeyapostou nele para substituir, de um dia para o outro, o quadro em que

    Carmen Miranda filmaria cantando Na baixa do sapateiro, de Ary, que

    havia se desentendido com Downey e retirara sua msica do filme. Dessa

    maneira, O que que a baiana tem entrou em Banana-da-terra (1939),

    mais um dos famosos abacaxis feitos para serem exibidos antes do car-

    naval. Alis, os musicais dos anos 30 e 40 eram chamados de abacaxis como, nos anos 50, de chanchadas porque tinham no tnue enredo

    apenas o pretexto para exibir um grande nmero de quadros musicais

    com os intrpretes mais famosos do carnaval de cada ano. Desse modo,

    dois coelhos eram acertados com uma s cajadada: divulgavam-se as m-

    sicas e se exibiam os donos das vozes para todo o pas. Da tela para o

    registro fonogrfico foi um pulo: em fevereiro de 1939, Caymmi gravariaa msica e estrearia pela Odeon, tocando violo e cantando em dupla

    Dorival Caymmi, 1956Coleo Instituto Cravo Albin

    com Carmen Miranda, a rainha absoluta da poca de ouro. O Senhor do

    MPB | A ALMA DO BRASIL 53

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    55/291

    Bonfim o protegia...

    Ningum mais baiano na arte da vida do que Dorival Caymmi. No

    toa sua obra excepcional elaborada lentamente, gota a gota, palavra

    a palavra.

    curioso notar-se na obra de Caymmi uma fidelidade s suas razes,

    isto , ao povo da Bahia e magia de sua cidade natal. Caymmi talvezseja o maior menestrel que uma cidade brasileira jamais teve. Pode-se

    afirmar que os mistrios e belezas da Bahia se popularizaram pelo canto

    de Caymmi. Foram dezenas de peas que divulgaram sempre e sempre

    sua cidade: Samba da minha terra torna clssica a expresso: Quem

    no gosta de samba / Bom sujeito no / ruim da cabea / Ou doente

    do p. Em 365 Igrejas, ele cita um aspecto urbanstico importante deSalvador, as slidas igrejas coloniais, um dos tesouros mais valiosos da

    arte brasileira. Em Dois de Fevereiro e Meu Senhor dos Navegantes

    refere-se a um outro ponto alto de sedimentao cultural da Bahia: os

    festejos populares em que o sincretismo religioso de origem africano-

    portuguesa uma constante. Em Coqueiros de ltapo e Lagoa do Abaet

    insiste nos conjuntos paisagsticos da cidade de Salvador, partindo delespara cantar as lendas do povo da Bahia, to frtil de imaginao.

    Desses retratos da Bahia, em que Caymmi recria diversos ngulos desua cidade - no poderia faltar a culinria. Ele mesmo, cozinheiro curioso e

    conhecedor da arte e dos segredos da comida tpica baiana, fez o samba

    Vatap, nico na histria da msica popular a descrever com originali-

    dade e bom gosto como se deve proceder para o preparo de um vatap,

    o principal dos pratos tpicos da culinria afro-baiana. Esse amor to de-

    votado sua terra, contudo, revitaliza-se com exatido no samba Vocj foi Bahia, que a meu ver valeu mais para a Bahia do que todas as

    Quem no gosta de samba | Bom sujeito no ruim da cabea |Ou doente do p... Dorival Caymmi

    Dorival CaymmiCanes Praieiras1954 - Odeon

    Coleo Instituto Cravo Albin

    Dorival CaymmiEu Vou pra Maracangalha1957 - Odeon

    Coleo Instituto Cravo Albin

    MPB | A ALMA DO BRASIL 54

    campanhas publicitrias sofisticadas e carssimas. Que, alis, lhe pagou

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    56/291

    Polmica Musical: Definies Estticas

    com a praa Dorival Caymmi e uma casa. Convenhamos: muito pouco.

    Esse Caymmi to arraigado Bahia atingiria o melhor de sua obra nas

    chamadas canes praieiras. Baseadas na paisagem humana e fsica das

    praias da Bahia, so muitssimo inspiradas nas cantigas do povo, cantigas

    folclricas transmitidas oralmente de gerao a gerao. Caymmi nelas se

    embebeu para juntar uma das mais belas colees de canes sobre o mar

    de que este pas, ou qualquer outro, tem notcia. Canes como Noitede temporal, doce morrer no mar, A jangada voltou s, Quem

    vem pra beira do mar, O vento, O canoeiro e especialmente O

    mar (a primeira delas, 1938) constituem um conjunto capaz de engran-

    decer e honrar qualquer msica. De qualquer pas do mundo.

    No gostaria de encerrar a breve citao poca de ouro sem me referir

    a uma clebre polmica musical talvez a mais famosa dentro de todas

    as mantidas dentro da MPB. E certamente uma sntese preciosa de defini-

    o scio-cultural da ambincia de msica ao comeo da poca de ouro.Um tratado sociolgico, feito por puro acaso, em forma de samba. E com

    ela eu me detenho num compositor chamado Wilson Baptista. O outro

    MPB | A ALMA DO BRASIL 55

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    57/291

    participante da polmica foi Noel Rosa, aqui j homenageado.

    Wilson comeou a vida muito cedo na baixa bomia do Rio, onde aos 18

    anos j aparecia como sambista nos cabars da Lapa antiga e nas zonas

    de meretrcio. Ele retomaria no s estilstica mas tambm socialmente

    a obra de lsmael Silva. Devo reconhecer que ao comeo dos anos 30 os

    compositores de classe mdia tomaram quase que de assalto o ambiente

    artstico, relegando os sambistas analfabetos de condio scio-culturalmais baixa a um plano inferior. Por isso mesmo no estarei longe da

    verdade se afirmar que Wilson influenciou sambistas do seu nvel social

    como Geraldo Pereira, Paulo da Portela, Gordurinha, Z da Zilda, Raul

    Marques, Bucy Moreira, Rubem Soares e at mesmo compositores como

    Roberto Martins, Marino Pinto, Pedro Caetano e Claudionor Cruz, estes

    j um pouco mais sofisticados na ambincia social.

    O sestroso compositor fluminense (natural de Campos)Wilson Baptistafreqentou as rodas mais quentes da bomia da poca, do morro da

    Mangueira ao Mangue (prostituio carioca), da Lapa ao Estcio.

    Semianalfabeto e vindo das camadas mais pobres da sociedade de ento,

    comeou a pontificar nos lugares onde lsmael, Nilton Bastos, Baiaco,

    Bide, Brancura ou Alvaiade eram os reis: a bomia e a malandragem doEstcio de S e da Lapa antiga, tanto uma quanto outra seu habitat e sua

    Arcos da Lapa (em primeiro plano)Rio Antigo - 1905

    Coleo Instituto Cravo Albin

    Noel Rosa x Wilson BatistaPolmica

    MPB | A ALMA DO BRASIL 56

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    58/291

    escola de vida e samba. Ele mesmo me contou no ano em que morreu

    que bem no comecinho da carreira s vivia da msica e da devoo das

    empregadas domsticas do bairro, que o sustentavam com almoos e

    jantares subtrados das casas dos patres.

    Por isso tudo bem fcil entender que o primeiro sucesso de Wilson

    Baptista como compositor faria a apologia da malandragem no melhor

    estilo de lsmael e do seu O que ser de mim (Se eu precisar um dia /

    De ir pro batente / No sei o que ser / Pois vivo na malandragem / E vida

    melhor na h...), Pois bem, a msica de Wilson chamou-se Leno no

    pescoo, cujos versos traavam um exato retrato do malandro carioca dadcada de 1930. Teve tanto sucesso na gravao de Slvio Caldas (1933)

    1956 - Odeon

    Coleo Instituto Cravo Albin

    que Noel Rosa, ento j muito respeitado e com inmeros sambas gravados,

    resolveu contestar essa exaltao malandragem

    MPB | A ALMA DO BRASIL 57

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    59/291

    resolveu contestar essa exaltao malandragem.

    O samba do Wilson traava o seguinte perfil dele mesmo: Meu chapu

    de lado / Tamanco arrastando / Leno no pescoo / Navalha no bolso / Eu

    passo gingando/ Provoco desafio / Eu tenho orgulho de ser vadio. A que

    Noel retrucou com Rapaz folgado: Deixa de arrastar o teu tamanco /

    Pois tamanco nunca foi sandlia / Tira do pescoo o leno branco / Bota

    sapato e gravata l Joga fora esta navalha que te atrapalha... A saborosae muito definidora polmica Wilson e Noel se manteria acesa. Wilson

    saiu-se com a rplica Mocinho da Vila, em que confirmava a apologia

    do malandro e atacava Noel diretamente: Voc, que mocinho da Vila

    / Fala muito em violo, barraco e outros fricotes mais / E se no quiser

    perder o nome / Cuide do seu microfone / E deixa quem malandro em

    paz / Injusto o seu comentrio / Fala de malandro quem otrio.

    Para responder a Wilson, Noel lanou uma trplica imorredoura para

    a MPB, Palpite infeliz, em que afirmava conclusivamente: Quem

    voc que no sabe o que diz / Meu Deus do cu que palpite infeliz.

    Wlson Batista, naquela poca pouco mais que um malandro frajola de

    vinte anos, voltou carga com um samba custico e muito deseleganteintitulado Frankstein da Vila. Nele atacava Noel com grosseria: Boa

    impresso nunca se tem / Quando se encontra um certo algum / Que

    at parece um Frankstein / Mas como diz o refro / Por uma cara feia /

    Perde-se um bom corao.

    Quando a polmica atingiu o ponto em que Wilson ridicularizava a feiurade Noel, o compositor da Vila no quis mais prosseguir. Respondeu indi-

    retamente com um samba lrico, a obra-prima Feitio da Vila: Quem

    nasce l na Vila / nem sequer vacila / ao abraar o samba... Wilson Batis-

    ta voltou, contudo, carga com mais uma msica em que falava mal de

    Vila Isabel e das vantagens cantadas em Feitio da Vila. Em Conversa

    fiada, a ironia era direta: conversa fiada / Dizer que na Vila tem feitio/ Eu fui ver pra crer / E no vi nada disso. Noel calou-se de vez, mas

    Quemnasce

    lnaVila/nemsequervacila/aoabraar

    osamba...

    NoelRo

    saeVadico-FeitiodaVila

    Wilson ainda insistiria com Terra de cego: Perca essa mania de bamba

    / Todos sabem qual / O teu diploma de samba / s o abafa da Vila bem

    MPB | A ALMA DO BRASIL 58

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    60/291

    / Todos sabem qual / O teu diploma de samba / s o abafa da Vila, bem

    sei / Mas em terra de cego / Quem tem um olho rei.

    Apesar de tentar resumir os compositores da poca de ouro em cinco

    vultos, no poderia deixar de registrar outros nomes que so igualmente

    muito importantes. O primeiro deles o de Herivelto Martins, que es-treou a partir de 1935 com as atividades mltiplas de compositor, cantor

    e arregimentador de conjuntos, o mais famoso dos quais foi o Trio de

    Ouro. Neste conjunto lanou Dalva de Oliveira, sua mulher at 1949,

    quando o casamento acabou rumorosamente, gerando uma polmica p-

    blica e tambm musical. Herivelto autor de algumas obras-primas do

    nosso cancioneiro, especialmente Ave Maria no morro e Caminhemos,ambas de repercusso internacional, alm de Praa Onze, Que rei sou

    eu, Isaura, A Lapa e Minueto, clssicos de carnaval.

    O compositor fluminense Herivelto Martins foi at produtor executivo

    de Orson Welles c no Rio em 1942, quando o astro americano rodou o

    fime nunca acabado Its all true.

    Outro compositor relevante nos anos 30, praticamente esquecido hoje,foi Joubert de Carvalho, autor de obra modesta em tamanho, mas de

    Trio de OuroTrio de Ouro e Seus Sucessos

    1959 - RCA-Victor

    Coleo Instituto Cravo Albin

    Herivelto Martins

    Um Compositor em doistempos - Jubileu de Prata deHerivelto Martins

    1957 - Copacabana

    Coleo Instituto Cravo Albin

    Dalva de OliveiraRancho da Praa Onze

    1965 - Odeon

    Coleo Instituto Cravo Albin

    enorme repercusso no canto dos anos 30 e 40, a comear pela marcha

    Ta (que lanou Carmen Miranda para o sucesso em 1930) ou pela

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    61/291

    Ta (que lanou Carmen Miranda para o sucesso em 1930) ou pela

    cano Maring (que daria nome a uma cidade no Paran) e a terminarpela srie de valsas e canes registradas por todos os melhores intrpretes

    dos anos 30-40, como Orlando, Slvio, Galhardo e Chico Alves.

    Cumpre ainda traar breve perfil de Jos deAssis Valente, um cronista

    carioca de mo-cheia apesar de ter nascido na Bahia e que foi autor de reper-

    cusso dentro e fora da poca de ouro. Suas msicas so gravadas at hoje:Brasil pandeiro (1943), Boneca de pano (1953), Boas festas (1933,

    seu sucesso inicial). Alm dos maravilhosos sambas-crnicas, a maioria dos

    quais imortalizada entre 1936 e 1940 por sua grande intrprete, Carmen

    Miranda: Uva de caminho, Recenseamento, E o mundo no se aca-

    bou, Camisa listrada. Ou mesmo a joia rara Fez bobagem, que Aracy de

    Almeida gravou num dos registros mais inspirados (1943) de sua excepcio-nal carreira de intrprete. Assis se suicidou num banco da Praa Paris (Rio),

    j pobre e esquecido, quando s se falava da Bossa Nova naquele final dos

    anos 50. Apesar de baiano por nascimento, ningum foi mais carioca do que

    Assis Valente no esprito para fazer de suas msicas crnicas do Rio.

    Outro perfil indispensvel na poca de ouro atendia pelo nome de

    Custdio Mesquita. O sedutor pianista e maestro Custdio Mesquita

    Pinheiro foi autor de obra pequena mas sofisticada, que teve grandes

    intrpretes como as irms Carmen e Aurora Miranda, Orlando Silva e

    Silvio Cadas. Se a lua contasse marca a estreia de Aurora, enquanto

    canes como Os rios correm pro mar, Mulher, Me Maria ou Algodo

    assinalam um dos pontos mais altos do intrprete Slvio Caldas em disco.

    E o clssico Saia do caminho (em parceria com Evaldo Rui, seu letrista

    na maioria das outras canes) j recebeu dezenas de regravaes, a partir

    do disco original de Aracy de Almeida.

    No h como no se aceitar o fato de que o Rio, na condio de capitalfederal, foi o epicentro da poca de ouro. Mas outros compositores, se

    Vestiuuma

    camisalistrada

    esaiupora|

    Emvezdetom

    archcom

    torradaeleb

    ebeuparati|Levavaumcanivetenocintoeumpandeiro

    namo|E

    sorriaquandoopovodizia:so

    ssegaleo,sossegaleo...

    AssisValente-CamisaListrada

    bem que tivessem obtido repercusso nacional atravs do Rio, nunca

    deixaram de morar em seus estados de origem. Trs deles resumem toda

    MPB | A ALMA DO BRASIL 60

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    62/291

    deixaram de morar em seus estados de origem. Trs deles resumem toda

    essa gente da MPB que sempre manteve o p isto , a residncia emsuas cidades natais: Capiba no Recife, Lupicnio Rodrigues em Porto Ale-

    gre e Waldemar Henrique em Belm do Par. Capiba (Loureno da Fon-

    seca Barbosa) autor de dezenas de frevos e canes que no chegaram

    a sair dos carnavais de Recfe-Olinda. Mas h peas que, via Rio, se imor-

    talizaram no cancioneiro popular (Maria Bethania, Valsa verde, Cais

    do porto). Como seu conterrneo Nelson Ferreira nos frevos de rua,Capiba o compositor oficial dos mais belos frevos-canes e de muitos

    maracatus, os trs gneros musicais mais conhecidos de Pernambuco,

    dotados de grande dinamismo, beleza e arrebatadora energia.

    Compositor singularssimo de sambas-canes que mergulham fundo no

    bas-fond e nos cabars, o gacho Lupicnio Rodrigues o poeta dabomia e das prostitutas. Lupe construiria uma obra solitria, cuja per-

    sonalidade de chancela autoral me faz lembrar Ataulfo Alves. Lupicnio

    estreou para o reconhecimento pblico do pas com o samba Se acaso

    voc chegasse (1938, com Felisberto Martins), responsvel pelo lana-

    mento do sambista Ciro Monteiro (1938), um dos melhores sambistas

    de todos os tempos (na minha opinio pessoal, o melhor), e tambm

    Elza Soares em 1959. Logo depois, contudo, sua obra tomaria a marca

    CapibaCarnaval Capiba III.

    Frevo alegria da gente

    1974 - Passarela LPColeo Instituto Cravo Albin

    Lupicnio RodriguesMestres da MPB

    1994 - Continental

    Coleo Instituto Cravo Albin

    registrada que a consagrou: sambas-canes narrando a vida dos cabars

    e de suas trgicas mulheres, embrulhadas numa tnica potica de versos

    MPB | A ALMA DO BRASIL 61

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    63/291

    g , p

    originalssimos (Maria Rosa, Cadeira vazia, Nervos de ao, Vinganae tantos mais).

    Waldemar Henrique (Belm, 1905 - Belm, 1996) foi o mais retrado e

    sofisticado dos trs. Msico, pianista e maestro, o tmido Waldemar cons-

    truiria o melhor de sua obra com canes semicamersticas sobre as lendas

    dos ndios da Amaznia (Tambataj, Curupira, Boi-bumb, Foi boto,sinh). Embora o que pelo menos curioso tivesse comeado no

    Rio com o samba-exaltao Meu Brasil (gravao de Chico Alves), em

    plena dcada de 1930. Mais tarde, em 1958, seria o primeiro compositor

    a musicar (uma msica-tema) o clebre poema Morte e Vida Severina, de

    Joo Cabral de Melo Neto, depois todo retrabalhado por Chico Buarque de

    Holanda. Raro e belo exemplo de potencialidade musical e do povo amaz-nico nos anos 30, Waldemar Henrique foi maestro, pianista e poeta.

    MPB | A ALMA DO BRASIL 62

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    64/291

    A partir do comecinho dos anos 1940, o Brasil e a msica do povo so-

    freriam os reflexos da guerra mundial, que fazia mergulhar a Europa no

    inferno. Como no poderia deixar de ser, a msica popular se ressentiu

    em qualidade e em quantidade. As emissoras de rdio estavam mais ocu-

    padas em transmitir todos os lances do desenvolvimento da guerra do

    que em apresentar novas msicas ou intrpretes. E os compositores noencontravam, no clima de consternao em que vivia o povo, os elemen-

    tos de alegria e descontrao para faz-lo cantar.

    Exatamente em 1945, como que a saudar o fim do conflito, surge uma

    figura de rara importncia dentro do cancioneiro. Ele sustentaria o rit-

    mo e as origens brasileiras pelos anos de crise para a MPB que o fim daguerra indiretamente traria: a avalanche de msicas norte-americanas

    ou as importadas pelos Estados Unidos e despejadas em todo o mundo,

    sobretudo no Brasil.

    O fenmeno, alis, de compreenso muito clara: os Estados Unidos

    saram da Segunda Grande Guerra como pas vitorioso e em fase de ex-panso mundial, propulsionada pela exportao internacional em massa

    O Ps-guerra: A Solaridade do Baioe a Lunaridade do Samba-Cano

    MPB | A ALMA DO BRASIL 63

  • 8/14/2019 Finep Livro 2009 -

    65/291

    de seu poderoso parque industrializado, atrs do qual vinha a indstria

    da diverso. A indstria do lazer representava a consolidao cultural

    norte-americana no mundo: os filmes, os discos e a msica popular,

    com todos os seus modismos, ainda mais sedutores pelas engenhosas

    campanhas de marketing com que eram promovidos, remetendo-os

    quase sempre juventude.

    A figura excepcional a que me refiro, e que teve decisiva partici-

    pao dentro da afirmao de uma cultura nacional mais ligada s fontes

    do Brasil, foi Luiz Gonzaga. Em 1945, j no Rio e iniciando-se na vidaartstica, tornou-se amigo do jovem advogado e poeta cearense Humberto

    Teixeira. Ambos chegariam a uma concluso importantssima a respeito de

    um ritmo nordestino praticamente desconhecido, o baio, que j havia

    sido experimentado pelo cearense Lauro Maia, mas sem maiores reper-

    cusses. Os dois concordaram em lan-lo nacionalmente, j que, segun-

    do Gonzaga, o baio era o mais urbanizvel dentre todos os ritmos donordeste. O Brasil, ento, foi surpreendido por algo novo, cheirando ao

    perfume da raiz e do cho brasileiros.

    Graas fora telrica e veemncia vocal de Luiz Gonzaga, o

    baio no somente se manteria nos anos 50