Floral de Phoenix

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E agora que só restam os retalhos,restam também meus poemas, dizendo do resto de mim.

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Índice

06 Prefácio07 Olhares08 Sou bicho-Deus10 Ipê amarelo11 Reação15 Desanoitecer16 Sol-s-tício17 Uma só vez18 Despedida19 Chuvarada20 Nada mais resta21 Selva-geria24 Simbiose25 Amigo27 Eterno partir28 Morfologia29 Mecanismos30 Momentos mágicos33 Reforma34 Albumina35 Vagabundo37 Apenas canto38 Insanidade39 Água do céu

42 Infinitas lembranças43 Singular44 Cio de amor45 Átomo46 Medidas de segurança47 Equações48 Viagem51 Peito ferido52 Semente-sementeira54 Acaso55 Terra de ninguém59 Veleiro-vadio60 Fome de amor61 Cárcere62 Vida circunscrita63 Aviso64 Deserto65 Gaiola68 Futurismo69 Caroneiro70 Telefone71 Disneylândia72 Natal

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Prefácio

Ácida. Carne crua. Provocante.Se fosse música, seria rock.Se fosse filme, seria suspense, aventura, tragédia.Se fosse autobiográfico, seria surpreendente...Assim é a poesia de Valeria Nobrega.Escrita ao longo de mais de trinta anos, somente agora é publicada e, pasmem, continua tão atual quando na época em que foi escrita tamanha a carga emocional embutida.Sejam nobres ou não, a poesia tem a capacidade de despertar sentimentos autênticos: amor, raiva, ternura, medo, euforia, desespero, paixão, solidão...É para isso que a poesia existe: para provocar (sentimentos).A coleção Fala Sim comemora com seu primeiro volume essa explosão de sentimentos em forma de poesia.Para dar fôlego ao texto exuberante: flores aqui e acolá.Flores coloridas, vibrantes e expostas. Flores de Kenia Ribeiro.Elas acrescentam ternura e leveza ao texto, ao dia, à vida.A combinação Floral de Phoenix é atraente aos olhos de quem busca uma inspiração, um ponto de vista, uma provocação.Impossível ler sem se emocionar. Impossível ver sem se emocionar.

Bia SimonassiBusiness Art Marchand

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Olhares...E quando chegares,Não sei se iremos nos apresentar,Comumente...Não sei se te sentarás,Simplesmente...Não sei se entenderás,Facilmente,Se eu disser a tiQue no meu olhar de solidão,Achei solidão no seu olhar também...

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Sou bicho-DeusNo plantio, nessa terra, fui golfinho e naveguei meses no lago de uma barriga...No dia em que a luz se fez, desesperado com o inesperado, aos gritos, senti frio, desproteção e as agressões das ferramentas que me separavam definitivamente daquela água-morna que me alimentou e me embalou.Respirei e o oxigênio fez dor em meus pulmões. Encolhido, entendi que golfinho deixei de ser...Enrolado em panos, descobri-me mamífero-filhote: um gato, bezerro, ou, quem sabe, onça-pintada. Às vezes, um chimpanzé imitando sons, mexendo as mãozinhas, arrastando-me em quatro patas.Fui crescendo!Ouvindo!Entendendo, percebendo!Quase nada compreendendo...O mundo foi tomando conta do meu ser e do golfinho já quase nada me lembrava.O tempo passou!De bicho-em-bicho, fui transmutado em bicho-gente.Quando o corpo-humano-adulto se moldou, minha alma se fez fera e – leoa – me perdi na selva-selvagem dos animais carnívoros!Vez ou outra, no cantinho de um riacho, voava:

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borboleta-livre e sonhadora. Noutras vezes - beija-flor - plantava amor em corações sangrados por mágoas perfurados.Leoa-mãe fiz nascerem outros golfinhos e neles identifiquei minhas próprias mutações. Quando a vida de mim fez caça, numa fera-fênix me auto-fecundei para parir na alma um bicho alado e forte...E descobri-me, finalmente, Semente-Eterna-Divina plantada novamente na cartola-mágica dessa terra-mãe para repartir o amor do Pai Celestial.Bicho-Deus em transmutação de anjo cósmico da grande morada ao lado do Criador, nosso Pai Eterno. Amém!

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Ipê amareloFoi no teu amarelo-ouro,De tristeza e solidão murmurantes,Que eu descobri a vida,Em meio à mumificação dos jardins,No cerrado costurados.Foi no teu amarelo-ouro,Sustentado por galhos secos,Que eu vi a tua esperança em vida,O teu inconformismo na morte,O teu grito de amor aos estéreis esqueletos inertes,À pasmaceira do olhar que te descobre... E por esse quase-nadaDescobre-se o que ainda-é-tudo.Percebe-se que, apesar do cinza-mortalha,Nesta terra alguém está vivo, em amarelo solar de energia!...E por um quase-nada,Apenas um ser em flor,Solitário na grama cinza:É preciso ser valente,Fazer festa sobre as mortalhas,Explodir em vidaA seiva divina da procriação perpetuadora,Apesar...

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ReaçãoGrita!Senão o mundo massacra você,Como massacra a britadeira as pedras inertes.Fala!Vomita as úlceras e hérnias,Movimenta o corpo,Antes que seu próprio sangue deixe de circular,Antes que seus músculos parem,Entorpecidos, alheios à translação.Não pára!“Se ficar o bicho pega”,E correndo pode ser que escape.Anda!Levanta do macio ortopédico de cetim,Tira o pé do chinelo aveludado,Vai correr pelas calçadas,Chutando no gramado uma bola sem compromisso.Surfa na onda da vida,Vencendo seu próprio medo,E a inércia do cotidiano.Arregala os olhos para o mundoE vê o que ainda resta dele:Dos seus jardins-lixo,Das suas crianças-lixo,Das cinzas nas matas:

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Tudo carvão.Abra os braços e espreguiça,Arrota o comodismo hereditário,Que o tempo está passando!Enfrenta, fica gigante,Ainda que para isso seja precisoAgredir todos os contextos-monótonosDo seu status social com suas estruturas burguesas.Esqueça as programações tirânicas dos códigos mofados:Abandona o sistema castrador,Deixa seu cadastro-caduco,Deixa de ser acessório da engrenagem consumista.... E, por último, faça uso-capeão da sua ilha,Toma posse de você!

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Surfa na onda da vida,vencendo seu próprio medo.

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Desanoitecer...E agora que os fantasmas se vão,Carregados pela madrugada,Montados em copos e rótulos:Já não sangra mais a ferida aberta,Já não dói tanto a dor escondida.Agora que o sangue jorradoMisturou-se no riso,Agora que o soluço sentidoConfundiu-se no canto dos cantos da rua.Agora que os fantasmas se foram,Posso ir-me também,Só, com a minha solidão,Só, como em todas as voltas...[1976]

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Sol-s-tícioO sol está morrendoEm entretons de vermelho e laranja.O dia está no fimPara que a noite aconteçaEm luares de prata...Pardais apressados procuram seus ninhos.As árvores adormecidas, embaladas pela brisa que sopra suave,Sobre a terra morna.Ao longe, o piar de algum pássaro notívago,Que, como eu, não conseguirá dormir,Que, como eu, não achará seu ninho,Não sentirá a brisa,Não será embalado...Ficará só,Só,Observando os que estão em paz,Só,Ouvindo o ressonar tranqüiloDos que ainda são felizes...

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Uma só vezQuem verdadeiramente amou,Sabe que nunca mais de uma vez:Porque a dor do amorNascido,SentidoE inexplicavelmente desaparecidoÉ intensa, grande,E possessiva dos espaços e tempos.Quem, n’alguma vez amou,E deste amor naufragou:Encolheu-se,Escondendo-seNa solidão abraçada.

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DespedidaPior que ficarÉ ter que ir.Aqui um resto de mim em tudoLá, só o relógio preguiçosoQue não corre para a noite chegar.“Felicidade” não foi embora:Ficou em cada lembrança,Disfarçada em saudade...

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ChuvaradaA chuva ensopa a vidraça,Onde tanto sol já bateu.Curva as árvores,Molha os pássaros,Transborda os ninhos...Por todo lado lama escorrendo,Gente encolhida, sem vontade de nada...Alma dormente, mente-dormente, fogo ausente...É inverno!Inverno nos jardins,No céu e nas ruas.É inverno lá fora,É inverno em mim...

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Nada mais restaAs lágrimas disparam carreira no meu rosto,Onde o peito fez gigantescas crateras.Tanto passado me alucina,Tanta solidão me enlouquece.Em minha rua deserta,Nenhuma janela aberta,Ninguém a me esperar...Como ocultarA dor em mim suspensa?Como ocultarUm coração intranqüilo,Que morre de fome e sedeDe lembranças inexistentes,Agora que nada mais resta da paisagemDe grandes ilusões frustradas,Agora que só resta o vazioE a ânsia das palavrasMurmuradas ao vento...

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Selva-geriaMora em mimUma tristeza forte,Constante e imutável.Mora em mimUma fera devoradora,Implacável e assassina.Um bicho-grandeQue me amedronta,Um bicho-mauQue me apavora.Mora em mim uma tristeza-feraA me arranhar com as garras,A me morder com as presas,A me queimar com seu fogo.Mora em mimUm fantasma,Uma força bruta,Que me rouba o risoE me carrega ao inferno:A lágrima louca;O grito roucoDa solidão indomável.

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Alma dormente, mente-dormente,fogo ausente... é inverno!

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SimbioseEsta solidão, tão minha,Eu a penetroE por ela sou devorada.Dentro de mim nós nos perpetuamos:Ela me fecunda e eu a geroComo o sol gerou a chuvaComo a chuva gerou o mar.Coexistimos em proximidadeNos infinitos opostos,Que sem se tocaremSe unem no além:No inexplicável espaçoEntre o sol e o mar...

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AmigoEm um lugar qualquer;Em sendo qual for a hora;Vestido em cor preta ou branca;Mesmo não sabendo usar pincéis;Nem solfejar notas musicais;Mesmo não dizendo poemas...Em um lugar qualquerPoderás fazer um amigo.E a ele não interessarão os teus mestrados,Nem a tua cultura e quinquilharias...Porque não precisas de nenhuma técnicaPara conseguires amigos.Terás apenas que saber ouvir,Quando ele precisar falar,E terás que falar no momento exatoEm que ele precisar ouvir-te.Não precisarás ser puro, nem de todo impuro,Mas não poderás ser vulgar.Terás que ter ressonâncias humanas e siderais,Quando todas as respostas dele forem cibernéticas.E não precisarás saber do Picasso,Dos noturnos e das “polonaises”;Mas terás que senti-los,Como sentes as gotas de chuva e de orvalho;Como sentes o anoitecer,

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O riso e o pranto.Terás de ser adulto,Quando ele disser “coisas infantis”;E terás que ser criança para fazê-lo sorrir,Quando ele estiver envelhecendo em preocupações.Terá que ser tudo isto, e além de tudo,Terás que lembrar-te de que não és máquina-programada,E que por essa razão poderás errar um pouco,Para talvez no momento da tua falhaDescobri-lo teu amigo também...

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Eterno partirSou como a estrela parada e sem luz,Num oceano de melancolia.E tudo em mim busca amorE não há amor em lugar algum...Vivo um eterno partir,Na minha vontade louca de ficar...Se olho o céu, me sinto tontaCom a quantidade de estrelas,Fico cega, com tanta luz;Acostumada que estouCom o negrume cá debaixo.E ao descobrir estrelas que se movem,Descubro também que a vida continua,Que o tempo não parou,E que só em mim existe morte...

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MorfologiaNão sendo capelo ou gaivota,Não sendo soldado guerreiro,Nem o Vietnã conhecendo,Não sabendo dos horizontes distantes,Não sendo muito tubarão,Nem tão pouco piabinha;Perco-me nas entrelinhas,Sem definição dos espaços,Sem tempo marcado,Nas marcas de amor...Históricas crateras,De extintos vulcões em geografia distintaNa mutilação morfológica...

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MecanismosPenso, logo existo!Mas não existo só porque penso.Máquinas não pensam e existem!Condicionadas pela precisão mecânica:Eu condicionada pelos condicionamentosMecânicos-psicológicos.Alimento as máquinasE elas mesmas me alimentam.O corpo da máquina é como meu corpo:Que se alimenta, se cansa e um diaDeixa de funcionar.A meu favorApenas a opção da autodestruição.Do querer desligar porque tenho frio, calor ou sono.Do poder deixar a máquina,E fazer o cérebro viajar,E transpor em tempo e espaçoAs correntes aprisionadoras:Capazes de conter máquinas,Porém nunca a mente livre.

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Momentos mágicosExistem momentos mágicosEternos...Existem momentos cristalizadosEm tão pequenas lembranças...Existem momentos viajantes do tempoE do espaçoMomentos posseiros dos nossos pensaresCravados nos ponteiros deste relógio neurológico,Marcando este tempo de solidão...Eu tenho estes momentos,E deles sou escravaQuerendo escravizar você!

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E ao descobrir estrelas que se movem,descubro também que a vida continua.

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ReformaDa tua estrada faço minha viela,Se do meu atalho fizeres estrada... E planto margaridas e violetas,Onde fizestes existir asfalto e concreto... E rabisco poemas em cima dos teus extratos bancários.... E troco teu DVDPor um dedilhar de viola,Teus projetos racionais,Por um bilhete de amor.... E destruo as marcações da pista pavimentadaPara dar-te a liberdadeDas tuas próprias limitações,Que também são minhas,Em contextos opostos...

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AlbuminaPreciso que ressurjas em mim, agoraComo a fé nos desesperados surge.Para que eu possaLevar uma gota de orvalhoDesta terra amaldiçoada,Onde só em tiMe encontreiQuando sem ti já nada mais importava.

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VagabundoLouco vagabundo da noite,Rouco Romeu – trovadorSua boca eu apenas escutoPois embora seja vacinadaSua mordida não me morderá!Poeta dos substantivosFemininos plurais,Não faça mais versos aos nomesPois são apenas os rótulos,Dos conteúdosQue você não percebe.Ah, jovem narcisoQuanto vazio por traz desse espelho,Quanta solidão debaixo daquela cama,Quanto automatismo no abater das lebres.A sua disritmia,Que a tanta mulher enlouqueceÉ a mesma da qual queria você isentado.Acorda esta cabeça,Faz descansar seu sexo-viciadoFaz acordar seu sentimento!Pára de criar fantasias,De sonhar utopias,De fazer alegorias.Deixa de ser o rei momo

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Para na veste de um pierrôSer apenas um figuranteDa sinfonia global.Louco homem, eu, mulher louca também,Velha guerreira das dores,Por uma questão estratégicaVou aumentar nosso espaçoE me fazer disparar no vento...Adeus!

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Apenas cantoCanto uma esperança desatinada,Canto uma paz que não tenho...Canto como louca,Enquanto meu peito chora num soluço, a dor da solidão.Ah! Se soubessem o que vai em minha alma,Ah! Se soubessem de mim,Na certa zombariam,Na certa se afastariam:Por isso canto:Para que não saibam do choro fantasiado de canto...

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InsanidadeNas noites insones do meu cansaço vadio;Na solidão do silêncio irritante, estático e profundo;Agredida pelo luar que estupra as cortinas exigindo passagem;Pairando nos espaços de tempos antigos, em monólogos estéreis;Na magia macabra das dores guardadas;Ressoa no ar um grito esganiçado,Erguendo da camaO corpo trêmulo da mente confusa:Porque as paredes se movem e o teto, num bailado convulsivo,Flutua em espaços abertos de horizontes purpúreos.Porque os livros enfileirados na prateleira poeirentaEntoam canções natalinas para os duendes risonhos que pululam nas jarras,Porque tudo enlouquece numa mutação incompreensível...E quem foi já não é mais,Quem quis ficar teve que ir,Quem era mudo, falou,E quem objetos usava, virou objeto agora.Para ser usado também...

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Água do céuComo aquela árvoreOu como aquela flor,Há dias que te esperava.E chegastes na luz dos raios, no barulho dos trovõesVoltastes a mim,E me encontrastes como na última vez:Só, na vidraça embaçada a esperar.Me sinto em paz,Sem angústia,Sem solidão,Agora que tuas gotas molham as árvores e o vidro...Por que demorastes a vir?Eu aqui esperando para uma conversa,Para não me sentir tão sozinha, valsando em espera.Ficarás por um momento,E conversaremos:De poesia, madrugadas e estrelas...Entrarás pela janela aberta inundando meu corpo,Molhando os meus cabelos.Entre, chuva,Vem fazer cachoeira em mim...[18 de outubro de 1973]

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E planto margaridas e violetas,onde fizestes existir asfalto e concreto.

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Infinitas lembrançasNão se esqueça...Não se esqueça dos meus rios,Minhas matasMinhas grutasNão se esqueça...Dos gemidos,Dos voares em céu abertoNão se esqueça de nada.Não deixe a saudade acordar.Não programe nada.Não defina.Não equacione.E, principalmente:Não multiplique, não some,Nem divida.Apenas não se perca no espaço,Apenas não se esqueça de mimApenas,Nos deixe existir...[19 de julho de 1979]

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SingularEu,SolidãoBicho-feraIlha:Em espaço – isoladaEu,PedaçoDe dimensão-programadaEm infinito deserto.Eu,Noite de invernoVazia – calada!Eu,Primeira pessoaDo singular nósEu,Monossílabo!

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Cio de amorÉ neste cio de amorQue te procuroMadrugada morrendoMorrendo de solidão:Louca vontadeRouca de beijosRolando no tempo,Morrendo na insôniaAcampada nos lençóis...Na mesma cama de ontem...

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ÁtomoUm ponto branco,Branca areia contra o marO sol me tocaE eu nada mais sou que um serPossuído pela grandeza cósmica...Quando a escuma me beija,E em bolhas lambe os meus pés,Eu me entrego com indolência e passividade...E na lentidão compassada dos seres cósmicosImensos, eu aprendo a possuir,Sem me apossar,Sem deixar de serNada mais que um ponto:Só, na areia fria!

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Medidas de segurançaMantenha a porta fechada:Não deixa entrarNenhum amor por descuido:Não deixa acampar.Cerca suas terrasCom cercas de arame,Tranca as janelas,Não deves se arriscar.Mantenha a porta fechadaEsquece da vida:Não vale tentar.Percorra as noites, os dias: sozinha.Engole o sorriso, o pranto,E mesmo sem encantoFique no seu canto.Até a dor se acalmar....(1979)

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EquaçõesPara que placas, leiloandoAlardeando publicamente, vendedores.Para que prados, pradarias, formalizadosPara que praias, lamentando pranto:Quartzo prateado.Para que prateleiras, fragilmente presas:Predestinadas.Para que prece, proferida, irrefletida:Determinada.Por que prazo,Calculado?Possível antecipação:Precipício,Matrix!

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Viagem... E porque Não moras no marTerei que esperar pela chuva,Para na enxurrada da rua,Chegar à tua calçada.Pra quem sabeFazer-te estrada,EmboraPrefiras vielas...

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E porque não moras no mar,terei que esperar pela chuva.

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Peito feridoE te amoNuma loucura tão insana,Tanto insano se fez o coraçãoTe amoTe queroE preciso de tudoQue me mostras agoraPara depoisEsconder nalgum poçoTodo o medoDesta loucuraE preciso esquecerQue me fiz máquinaPra sendo tuaPerder o medo,E te amar longe das delimitadas-limitações...

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Semente-sementeiraAcho que foi o vento,Ou talvez a maréQue trouxe um diaA plantinha nova:Semente,Pra junto da velha planta:Sementeira... Sei lá, se foi a surpresa do encontroSei lá, se foi o chegar sem licençaNaquelas terras tão próprias.Quis a sementeSer sementeira,Sementeira- semente.Nesse querer de mutualidadeSemente – sementeouSementeira – semeouSementeEnsinando sonhoSementeiraSem sonho ensinouE juntas pensaram queBom seriaSe o vento fosse dormirE a maré aquietasse...

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Que bom seriaTivesse a sementeSer sementeira sempreNão tivesse a sementeiraSemear-estéril...

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AcasoOlha, moçoSabemos que foi sem querer,Ou talvez,Por querermos demaisSabemos um montão de coisasE ao mesmo tempo,Sabemos um montão de nadaE sei tambémQue você não sabe,Que na minha embriaguezDe desamorVocê fez acontecerUma vontade doida de amar,Uma sede enorme de você...

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Terra de ninguémÉs a gaia,Da crosta fingidamente estéril.És a cabeça-viking,Desse coração italiano,Dessas manias piratasÉs o soloA se satisfazer com os ciganosQue em ti acampam, pra uma noite de festaÉs a terra,Que frutificou em vão,Sem da colheita receber a sombraÉs o canteiro,Que recusa a sementePra dela não ser privado.Que recusa o posseiro,Pra nele não se subjugar.És terra de ninguémSem ninguém para te cultivar... E quando os ciganos se forem,Deles só restando cinzas e ecos de gargalhadaTalvez, de tuas entranhas não possa mais brotarAo menos, a semente última.Talvez, o olhar as fogueiras que um diaTe fizeram arder, te faça chorar num repentePelas sementes que te negastes a receber

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... E descobrirás, então, que por algumasColheitas perdidas, perdestes também a tuaPrópria razão de existir.E te descobrirás verdadeiramente mumificado:A terra em todas as camadas, estéril!(1978)

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Acorda esta cabeça, faz descansar seu sexo-viciado,faz acordar seu sentimento!

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Veleiro-vadioEra um mar imenso:- fechadoRodeado por montanhas:- fechadasE barco nenhum era permitidoE pássaro nenhum sobrevoava...Mas o veleiro chegou:- abertoNo espanto da fera só,As ondasQuedaram-se:- quietas...Dias e noites, veleiro e mar naquelaDança medrosa, de ritmo lento,Se conhecendo, se devassando,Parados no tempo, se prometendo...Hoje, velas abertas,O veleiro se vai...No mar, as ondas se escumam numBeijo finalNas montanhas, as matas-molhadas soluçam,Pedindo que os ventos se calem,Que façam o veleiro ficar...[1979]

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Fome de amorSe eu me tivesse,Eu não me deixaria ser assim consumida,Não teria essa alegria sumidaNão seria este ser sem jeito.Se eu me tivesse,Não teria este útero bêbado,Embriagado de desamor.Não teria esta garganta seca,Em grito, morta-esquartejada;Este peito mudo, surdo e incompetenteEsta fome doida,Incontida.Esta fome velha,Imutável.Esta fome de você,De amor, murmúrios e risos.Esta fome me devora:Suga meu sonoCome minha fomeDorme comigo,Quando acordamos,Um cigarro nos lábiosNos faz sentir beijando você.Se eu me tivesse,Na certa teria você...[28 de julho de 1980]

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CárcereQuem és tu, pesadelo humano;Destruidor mutilante de ideais filosóficos;Carcereiro do espírito,Semeador de ervas malfazejas?Quem és tu, fantasma umbilical;Carniceiro noturno dos pensamentos fugidios?Não vês, por acaso, que já destruístes bastante;Não percebes que agora só restam os restos;Que nada mais encontrarás para teus banquetes alienados?Quem és tu, pesadelo humano?

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Vida circunscritaPensando,Matutando,Ensimesmando...O olhar parado, perdido em algum horizonte;Os braços caídos, inertes ao longo do corpo;Os pés descalços, pendurados na amurada;Os cabelos esvoaçando ao vento dos pensamentos distantes...Tanto tempo, caminhos e gente;Tanto acontecer;Tanto andar...E agora a idéia da estrada em círculosImutáveis sufocantes.No círculo de círculos infindáveis, os mesmos medos,As mesmas angústias, o mesmo posicionamento contrário.Pensando,Matutando,Ensimesmado,Sufocando-se em perguntas,Angustiando-se nas respostas.O corpo parado, inerte e estático.A mente agitada e confusaDebatendo-seNas paredes do crânio...

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AvisoNão se aproxime:Se seus olhos não forem horizonte,Se sua boca não salivar amor,Seu peito não rufar sonhos.Não precisa chegar, nem passar, nem olhar:Se o sêmen não ejaculado semear esperançaDe plantios, colheitas,Gosto de favo e de mel.Dispenso seu esqueleto-ôco,Sua íris mortiça,Seu peito calado,Sua boca seca.Dispenso seu pedaço,Porque preciso do inteiro...

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DesertoAgora, nesta rede calada,As folhas paradas:Não resta ninguém...A lua dormente passeia no manto,Procura meu canto,Encontra meu pranto:Não resta ninguém...Chega o sol atrevidoInvadindo o silêncio,Lambendo a dormência.Remexe em tudo,E tudo é um nada:Não resta ninguém...O mar beija a areia fazendo escorrer as pegadas,Roubando as marcasDa trilha de volta do meu pescadorNa rede inerte, enxarcada de solidãoUma mulher se esvaiEm hemorragiaDe pranto final,Solitária:Não resta ninguém!

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GaiolaNa noite escura, parada e deserta,Paira no ar um grito incontido,Abortado num choro de mágoas envelhecidas,Estraçalhado em desejos rompidos,Embrutecido nas dores revividas...Na noite cansada, muda e inerte,Como pássaro noturno, engaiolada:De asas partidas, peito ferido, bico quebrado,Esvoaçando prisioneira na gaiola de prata,Com cadeado na porta...Nas angústias de ontem,No desespero de hoje,Na incerteza do amanhã;As neuroses adquiridas, decoradas e repetidas,As manias insolentes, inoportunas e chatas,As carências aumentadas e multiplicadas...Na noite escura, parada e deserta,O pássaro doente se acomoda no ninho vazio.Cansado da vida,Cansado do seu cansaço imutável,Cansado dos contextos impostos,Sem horizontes,Sem abertura...

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Não se aproxime se seus olhos não forem horizonte, se sua boca não salivar amor, seu peito não rufar sonhos.

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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega

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FuturismoChoro lágrimas sobre o cadáver ainda morno,Desse passado adolescente.E no meu ser todas as agitações se anulam,Como as vozes nos campos moribundos.Nesta rua, agora deserta, a minha alma passeia,Desolada;Porém vagueia serena.Tão serena quanto só pode ser quem se sente só,Como os veleiros nos portos silenciosos.Preciso que surjas em mim,Como a fé nos desesperados surgePara que eu possa levar uma gota de orvalho,Deste oceano de água e sal.Preciso de ti agora,Que só ficou o vento frio a soprar nas minhas facesE a terra inerte a escorrer nas minhas mãos.Preciso que surjas agora,Quando tudo é estranho e silencioso, como um gemido,Quando estou acorrentada por mim mesma,À terra que sou eu mesma...Quero me abandonar a ti,Como a onda se abandona ao mar:Silenciosa, com lassidão...Pra fazer do passado uma lembrança envelhecida...

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Floral de Phoenix | Valéria Nóbrega

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CaroneiroSurgiste na vida, repentinamente,Sem acontecimentos diferentes,Sem velas, sem vinho, sem guitarra...Surgiste em mim,E eu pensei que serias passageiro,Que acabarias logo.Que serias só por instantes,Que nos separaríamos depois,E nunca mais nos encontrássemos.Mas saiu tudo diferente.Foste ficando,Me ensinando a gostar,Me ensinando a te querer mais,Por um pouco mais...A culpa foi tua que mentiste.Também minha, porque acreditei.Sorte tua que me ganhaste.Azar o meu que te perdi,Depois de acreditarQue serias pra sempre...Azar o meu...

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TelefoneNa nebulosa incômoda do teu rosto escondido,Na estranha distância de tanta proximidade,No querer conhecer a matéria dessa energia sonora.Na hipótese de um muro,Erguido ao acaso dos condicionamentos sociais,Impostos, aceitos e desfrutados;A minha inquietude se faz presenteNos raciocínios balanceados,Nas neuroses escondidas dos sonhos massacrados...Na nebulosa incômoda das verdades escondidas,Uma possibilidade de fuga,No extravasamento dos desejos contidos,No fundo do poço escondidos...

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DisneylândiaSe eu fosse a Mônica,O Cebolinha ou o Mickey,Você viria mais cedoPra ficar comigo.Mas por não ser nenhum delesFico aqui jogada num canto,Mais parecendo o Pateta.

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NatalNas árvores enfeitadas,No movimento das ruas,Nas mesas fartas:Está escrito Natal!Só não o vejo em mim, em você,Nem nas pessoas agitadas que passam correndo.Não vejo nenhuma ajuda ao cego que atravessa a rua de crianças e velhos vestidos de fome, frio e abandono....O que vejo bem são os doentes dos hospitaisA esperarem em vão um abraço apertado, a dor apartada..O que sei é que nos asilos e orfanatos,Nos casebres e abrigosesperam um Papai Noel que não virá: nunca passou, nem ficou...Ah, Natal!Você me disse que hoje se comemora o nascimento de Cristo...Como descobri-lo nas pessoas apressadas que me empurram ao passar,Como descobrir o Natal em você que se fez dono da festa de aniversárioPara afogar-se feliz, no vinho, nas castanhas e nos presentes.Como achar Natal em mim,Se desconheço o perdão,Se vejo erros e não faço acertos,Não conserto nada,Nem mesmo, eu mesma.Nas árvores enfeitadas para o Natal,A minha oração aos que nos brancos quartos de hospital,

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O sangue injetado de drogas,Rezam pela graça de sua cura,Por um sonho infindo só de esperanças acalentado...

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Livro composto nos tiposNuSwift e Pristina.

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Nossa missão é ajudar pessoas [físicas e jurídicas] a transformarem idéias em projetos e projetos em real ação [ou realização].

Nosso negócio é lidar com idéias.

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