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Resumo Este artigo relata uma experiência de campo que utilizou a observação partici- pativa com intuito de evidenciar alguns comportamentos relacionados ao uso de novas tecnologias de informação e comu- nicação (NTIC) por parte de estudantes de pós-graduação. Realizado em um labora- tório de informática utilizado por mestran- dos e doutorandos em educação, o estudo procurou verificar questões relacionadas à fluência no uso das NTIC e algumas trajetórias pessoais de aprendizagem tecnológi- ca entre usuários de alto ní- vel de escolaridade. Em meio a tais interesses, surgiram, no estudo, outras questões: o comportamento dos estu- dantes na relação com os pares, a relação tempo/novas tecnologias, os recursos não-formais de aprendizagem de uso das tecnologias digitais. A análise dos dados obtidos, longe de obter respos- tas definitivas e prescrições, abre outros questionamentos cuja investigação é fun- Fluência Tecnológica, Comportamento e Complexidades: um Laboratório de Informática, o Tempo, as Pessoas e Outras Coisas Gerson Pastre de Oliveira Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.48, p. 307-332, jul./set. 2005 Gerson Pastre de Oliveira Doutorando em Educação, USP. Professor do Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza – Fatec Jundiaí-SP [email protected] 1 AQUINO, J. G. Conhecimento e mestiçagem: o “efeito Macabéa”. In: ______. Do cotidiano escolar: ensaios sobre a ética e seus avessos. São Paulo: Summus, 2000. Não há, portanto, conhecimento sem alteridade, e, sem alteridade, não há potência de vida. JULIO GROPPA AQUINO 1 damental para a compreensão das novas formas de aprender na sociedade contem- porânea, bem como inquietações relacio- nadas ao tempo e à alteridade. Palavras-chave: Observação participa- tiva. Fluência tecnológica. Novas tecnolo- gias de informação e comunicação. Tem- po. Alteridade. Aprendizagem. Abstract Technological Fluency, Behavior and Complexities: a Computers Lab, the Time, the People and Other Things This article relates a field experience that used participative observation in order to underline evident some behaviors related to the use of new technologies of information and communication (NTIC) by postgraduating students. The research was accomplished in

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ResumoEste artigo relata uma experiência de

campo que utilizou a observação partici-pativa com intuito de evidenciar algunscomportamentos relacionados ao uso denovas tecnologias de informação e comu-nicação (NTIC) por parte de estudantes depós-graduação. Realizado em um labora-tório de informática utilizado por mestran-dos e doutorandos em educação, o estudoprocurou verificar questões relacionadas àfluência no uso das NTIC ealgumas trajetórias pessoaisde aprendizagem tecnológi-ca entre usuários de alto ní-vel de escolaridade. Em meioa tais interesses, surgiram, noestudo, outras questões: ocomportamento dos estu-dantes na relação com ospares, a relação tempo/novas tecnologias,os recursos não-formais de aprendizagemde uso das tecnologias digitais. A análisedos dados obtidos, longe de obter respos-tas definitivas e prescrições, abre outrosquestionamentos cuja investigação é fun-

Fluência Tecnológica, Comportamento

e Complexidades: um Laboratório de

Informática, o Tempo, as Pessoas e

Outras Coisas

Gerson Pastre de Oliveira

Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.13, n.48, p. 307-332, jul./set. 2005

Gerson Pastre de Oliveira

Doutorando em Educação, USP.Professor do Centro Estadual de

Educação Tecnológica Paula

Souza – Fatec Jundiaí[email protected]

1 AQUINO, J. G. Conhecimento e mestiçagem: o “efeito Macabéa”. In: ______. Do cotidiano escolar: ensaios sobre a ética e seusavessos. São Paulo: Summus, 2000.

Não há, portanto, conhecimento sem alteridade, e, sem alteridade, não há potência de vida.JULIO GROPPA AQUINO1

damental para a compreensão das novasformas de aprender na sociedade contem-porânea, bem como inquietações relacio-nadas ao tempo e à alteridade.Palavras-chave: Observação participa-tiva. Fluência tecnológica. Novas tecnolo-gias de informação e comunicação. Tem-po. Alteridade. Aprendizagem.

AbstractTechnological Fluency,

Behavior andComplexities: aComputersLab, the Time,the People andOther Things

This article relates a field experience thatused participative observation in order tounderline evident some behaviors related tothe use of new technologies of informationand communication (NTIC) by postgraduatingstudents. The research was accomplished in

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a computers laboratory which is used bymaster´s/doctoral´s degree students andtried to verify some questions related to fluencyin use of NTIC and some personal trajectoriesfulfilled by high-level users on theirtechnological learning. Other questionsappeared during this research: the studentsbehavior in respect to their colleagues, therelation time/new technologies, the non-formal resources of digital technologieslearning. The analisys of data obtained, farfrom to obtain definitive answers, it opensother questions whose investigation isfundamental in order to understanding newways of learning in contemporary society, aswell as preoccupations related to the timeand the alterity.Keywords: Participative observation.Technological fluency. New technologies ofinformation and communication. Time.Alterity. Learning.

ResumenFluidez Tecnológica,Comportamiento eComplejidades: unLaboratorio deInformática, el Tiempo,las Personas e OtrasCosas

Este artículo relata una experiencia queusa observación participativa con la intenciónde evidenciar algunos comportamientosrelacionados al uso de nuevas tecnologíasde la informacíon y de la comunicacíon(NTIC) por los estudiantes de postgrado.Realizado en un laboratorio de informáticautilizado por los estudiantes de maestría edoctorado en educacíon, el estudio procuró

verificar questiones relacionadas a la fluidezen el uso de las NTIC y algunas trajectóriaspersonales de aprendizaje tecnológica entrelos usuarios de alto nivel de escolaridad.Junto a tales intereses, surgirán, en el estudio,otras questiones: el comportamiento de losestudiantes en la relacíon con sus pares, larelacíon tiempo/nuevas tecnologías, losrecursos no formales de aprendizaje del usode las tecnologías digitales. El análisis de losdatos obtenidos, lejos de obtener respuestasdefinitivas y prescriciones, abre otrasquestiones cuya investigación es fundamentalpara la comprensión de las nuevas formasde aprender en la sociedad contemporánea,así como inquietaciones relacionadas altiempo y a la alteridad.Palabras clave: observación participativa,fluidez tecnológica, nuevas tecnologías dela informacíon y de la comunicacíon,tiempo, alteridad, aprendizaje.

IntroduçãoEste relato procura trazer os apontamen-

tos resultantes de um trabalho de observa-ção participativa, motivado por minhas lei-turas e estudos recentes. O resultado desemelhante iniciativa aparece em minhasimpressões e comentários, boa parte delesentremeados da perplexidade que algunsindícios deixaram em meu espírito. Desdeo início devo dizer que procurei deter-meem questões de conteúdo mais do que deprocedimento, conforme defende Erickson(1989) para pesquisas deste tipo.

A investigação que aqui descrevo foi

realizada num laboratório de informática,ligado a área de educação de uma uni-versidade pública. Ao longo de treze visi-tas, cada qual com cerca de duas horas,com início em 09 de abril e término em 30de junho de 2003, procurei apurar ques-

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tões relacionadas à fluência em ambien-tes virtuais mediados por instrumentos tec-nológicos e comunicacionais, aí inseridaa fluência nos próprios instrumentos, en-quanto meios de pesquisa e aprendizado.A pretensão inicial era de que a seleçãodos sujeitos fosse feita através de um ques-tionário, o qual procuraria identificar oshábitos dos usuários na utilização de fer-ramentas tecnológicas, além da relaçãodos mesmos com as tecnologias informa-cionais/comunicacionais, suas opiniões emtorno das questões trazidas a campo e de-talhes mais triviais, como dias e horárioshabituais de freqüência ao laboratório, oque fazem “diante do microcomputador”,sites visitados com mais freqüência, etc.Como descrevo mais adiante, a prática de-monstrou que semelhante tentativa redun-daria infrutífera. Posso dizer aqui – e tam-bém um pouco mais ao longo deste texto– que a seleção teve como critério quaseexclusivo a disposição apresentada por trêspós-graduandos em dispensar-me algu-ma atenção. Hesitei diante do número re-duzido e do critério, mas busquei apoioem Fonseca (1999), quando afirma queos informantes do estudo etnográfico sãoescolhidos de maneira diversa daquelaempregada em outros ramos das ciênciassociais, nos quais os mesmos sãos seleci-onados lançando mão de critérios prede-finidos, estatísticos. Aliás, o fato de taispessoas figurarem como informantes nãome impediu de anotar, ao longo deste bre-ve relato, impressões pontuais colhidas jun-to a outros usuários do laboratório. Fo-ram também meus informantes dois dostécnicos que ali trabalham.

As visitas foram realizadas, preferenci-almente, nas manhãs de quarta-feira, en-tre 10h00 e 12h00, aproximadamente.

Outras visitas menores – que nem contabi-lizo entre as regulares, de duas horas – fo-ram feitas em outros dias e horários, com afinalidade de comprovar se alguns dos fe-nômenos observados não se restringiam aogrupo que freqüentava o laboratório espe-cificamente no dia e horário escolhidos paraobservação preferencial. Procurei observar,com algumas intervenções participativas, ocomportamento no laboratório, as questõesde postura e diálogos que indicavam posi-ções de fluência distintas entre os usuários,suas reações diante de dúvidas, pedidosde auxílio, abordagens informais e admi-nistração do tempo de permanência/dedi-cação às atividades que têm a tecnologiacomo mediadora.

Uma impressão geralJulguei que, em função de característi-

cas como o reduzido tempo de permanên-cia em campo, a familiaridade com o localda pesquisa, o prévio conhecimento de al-guns dos freqüentadores do ambiente noqual a investigação aconteceria e uma pre-tensa “similitude intelectual” em relação aospotenciais informantes, meu trabalho esta-ria sobremaneira facilitado. Variáveis co-mumente descritas como de difícil aferiçãoe controle estariam à disposição e se apre-sentariam prontas, sem os percalços des-critos pelos etnógrafos célebres. Afinal, euestaria em meu ambiente. Quem vê umlaboratório, vê todos, e eu já vira muitosao longo de anos. A realidade já deveriasurgir aos meus olhos sem os véus queembaraçavam a compreensão dos leigosou dos iniciantes. O esforço inicial do et-nógrafo por situar-se estaria dispensado.Além disso, os pós-graduandos, todos eles,freqüentadores do laboratório, colocar-se-iam a minha disposição para todas as ati-vidades da investigação.

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Evidentemente, não foi assim. Cada umdos usuários encontrava-se em nível dife-rente quanto à fluência tecnológica, com-portava-se de modo diverso diante das di-ficuldades encontradas na manipulaçãodos instrumentos interativos, traçava dife-rentes caminhos para seu aperfeiçoamentoe ia apropriando-se de novas competênci-as – ou melhorando as já existentes – porvias distintas das dos demais. E estas ocor-rências eram simultâneas! Cedo tive queme conformar com o fato de que não seriapossível observar tudo, mesmo que conse-guisse “escrever como um louco” (ERICKON,1989). Nisso, aliás, eu tinha uma vanta-gem em relação aos meus colegas, dedi-cados a outros contextos investigativos:podia me sentar confortavelmente no fun-do do laboratório, conectar-me normalmen-te e iniciar uma sessão de uso dos recursosdo sistema2. Registros digitalizados, eu osenviava para meu próprio endereço de cor-reio eletrônico e os tinha a disposição pararevisão, tão logo quanto possível. Umacópia em disquete e outra impressa eramminhas garantias contra eventuais falhasde comunicação. Entretanto, se a veloci-dade de digitação fosse menor, não have-ria vantagem alguma em todo este proces-so, já que perderia muitas ocorrências quede outra forma poderiam ser registradas.Encontrei uma maneira de minorar os pro-blemas causados pela questão da simulta-neidade dos eventos (talvez não a melhor)adotando uma estratégia de prioridades deobservação: quando meus informantes seencontravam no laboratório, dedicava aeles uma atenção mais apurada. Isso nãoimpedia que eu observasse outros usuári-os, mas alguns detalhes poderiam escapar– o risco estava, portanto, calculado e as-sumido. Mas a verdade é que mesmo as-

sim sentia a necessidade de rever minhasanotações com a maior urgência possível;nestas ocasiões, muitas observações pude-ram ser resgatadas. Além disso, alguns “có-digos” pessoais eram decifrados.

As entrevistas, principalmente, as ob-servações e intervenções eventuais, subsi-diariamente, permitiram captar um tantomais as diferentes e particulares estratégiasde aprendizado autônomo que o uso con-tinuado das ferramentas em foco proporci-onava. Foi preciso, de certa forma, pene-trar na relação que cada informante man-tinha com as tecnologias para deslindar emalguma medida a razão da trajetória quecada um efetuava ao buscar um site, lersuas mensagens eletrônicas, utilizar edito-res de texto, pesquisar ou, simplesmente,ao navegar pela Internet.

Em um laboratório como o que eu ob-servava, na maior parte do tempo, a “invi-sibilidade mútua” (GEERTZ, 1989) dos fre-qüentadores é algo impressionante. Comi-go não foi diferente. Em grande parte a di-ficuldade de encontrar os informantes de-veu-se, segundo creio, à impossibilidadede manter um diálogo de mais do que cin-co minutos com a maioria dos usuários. Amaior parte dos colegas escusava-se edu-cadamente e alegava tempo contado, ur-gência, compromissos agendados. Outrosconversavam comigo com os olhos fixos natela e respondiam de modo quase monos-silábico. Surpreendidos em dificuldades notrato com a tecnologia, os pós-graduan-dos mostravam-se evasivos, reticentes, mes-mo quando minha ajuda conseguia colo-cá-los no caminho da solução do proble-ma com o qual se deparavam (ou até solu-cioná-lo completamente). As treze visitas

2 Para tanto, foi necessário obter autorização pelas pertinentes vias institucionais.

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realizadas por mim nesta atividade não fo-ram suficientes para que os colegas assi-milassem minha presença, minha invasãode seus instantes contados, de seus mo-mentos preciosos, nos quais, entre as au-las e outros compromissos, exerciam seucontato, fluente para uns, cheio de dificul-dades para outros, com as tecnologias deinformação e comunicação presentes na-quele espaço institucional. A escolha dosinformantes foi ditada quase tão-somentepor critérios como menos indiferença e al-guma atenção. Inicialmente, julguei queseriam tantos os dispostos que minhas con-veniências e minhas disponibilidades esta-riam naturalmente respeitadas. Não só issonão aconteceu como também foi precisoalterar uma série de compromissos pararealizar as entrevistas e efetuar algumascomparações entre os depoimentos queconsegui colher.

Sobre o contextoda pesquisa

O laboratório no qual efetuei meu tra-balho de campo conta com quase duas de-zenas microcomputadores, acesso à Inter-net de boa qualidade, impressoras em redepara atender às requisições dos diversosusuários, digitalizadores de imagens (scan-ners), ar condicionado, entre outros equi-pamentos. Técnicos especializados perma-necem disponíveis, regularmente. Seus usu-ários são, preferencialmente, alunos de pós-graduação e, eventualmente, de graduação.

Segundo informações colhidas junto aostécnicos, o laboratório iniciou as ativida-des na segunda metade da década de 90,já com as características encontradas nes-

ta pesquisa, mas, na época, com algumasintervenções de professores ligados à edu-cação (projetos ligados ao uso de tecnolo-gia na educação). O laboratório era, àépoca deste estudo, eventualmente utiliza-do para aulas e, quando isso acontecia,os usuários são informados, através de car-tazes e mensagens nos computadores, deque o espaço ficará indisponível para ou-tra espécie de uso no período no qual aatividade programada ocorrerá.

Uma de minhas curiosidades no inícioda pesquisa relacionava-se aos, digamos,“diferentes estilos de acesso” que o labora-tório assumiu ao longo de um curto espaçode tempo e dos quais fui testemunha. Em2002, cheguei a colaborar com uma dasprofessoras da unidade em um curso porela ministrado. Apesar de minha condiçãode tutor, não possuía qualquer vínculo coma instituição, o que não me impedia de usaro laboratório normalmente. Havia uma es-pécie de usuário de domínio público cadas-trado pelo sistema através do qual, pratica-mente, qualquer pessoa podia conectar-seaos servidores3 e, conseqüentemente, utili-zar os serviços oferecidos pelo laboratório.Entretanto, meses depois, alguns avisos jáinformavam que o laboratório era de usoexclusivo dos alunos de pós-graduação dainstituição – qualquer outro usuário teria queser formalmente autorizado por um profes-sor. Através desta medida, a figura do “usu-ário geral” desapareceu – e a freqüência aolaboratório despencou, conforme pude ve-rificar durante a pesquisa.

Atualmente, os microcomputadores, deconfiguração variada, encontram-se dis-postos em filas, subdivididas por seções,

3 Um servidor é uma espécie de “computador central”, capaz de fornecer dados, aplicativos, conexões, entre outros serviços ao usuário.A ele são ligados, através de uma estrutura de rede, geralmente, os computadores chamados “clientes”, utilizados pelos usuários.

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cada uma com três máquinas. Alguns mi-crocomputadores possuem periféricos maissofisticados que os demais (gravador de CDe scanner). Há um aviso, raramente res-peitado pelos usuários, para que aquelasmáquinas sejam utilizadas somente quan-do todas as outras estiverem ocupadas. Aidéia, segundo pude entender, é disponibi-lizar os recursos adicionais para todos osusuários – ou seja, use-grave-imprima-de-socupe. Em uma experiência pessoal, pudeconstatar a ineficiência dos banners queprocuram disciplinar o uso de tais máqui-nas. Em um dia diverso daqueles dedica-dos ao trabalho de campo, precisei digita-lizar uma imagem para usar logo mais emuma de minhas aulas. O microcomputa-dor no qual o scanner estava conectadoestava sendo usado por uma aluna do pro-grama de pós-graduação, a qual, tranqüi-lamente, lia seus e-mails. É preciso que eudiga, por ser verdade, que aquelas máqui-nas têm gabinetes externos mais bonitos esão, provavelmente, mais atualizadas, comprocessadores mais velozes e um poucomais de memória. As outras máquinas,porém, apesar de esteticamente prejudica-das, não são menos eficientes. O fato éque, tendo pedido à colega que cedesse olugar, em virtude da exclusividade do equi-pamento, fui fulminado por uma expressãode indignação:

— Você vai ter que esperar. Estou lendomeus e-mails - apontando para o cartaz.

— Mas há outras máquinas livres...— Não vai demorar, é só uma foto...— Bem, as outras máquinas estão li-

vres para você também.— É que o scanner está aí. Acho que

não dá para usar de outro lugar...— Assim mesmo, espere um pouco. Eu

guardo meus arquivos aqui e prefiro estecomputador.

Não valeram minhas argumentaçõessobre o fato de que seus arquivos, casoestivessem gravados no servidor, seriamacessíveis de qualquer outro microcompu-tador do laboratório e que as outras má-quinas eram tão boas quanto aquela, adiferença era justamente o scanner, que elanão estava usando. Por fim, resolvi espe-rar, sem pedir a intervenção do técnico.Cerca de trinta minutos depois pude, final-mente, usar o equipamento.

Boa parte das vezes o cartaz que pedepara que os usuários não desliguem oscomputadores foi solenemente ignorado. Oaviso trazia instruções detalhadas sobre omodo pelo qual os usuários deviam deixaros equipamentos após utilizá-los. A finali-dade era a de encerrar uma sessão de usono servidor, desconectando um usuário dosistema. Seus dados e arquivos ficariampreservados, o microcomputador permane-ceria ligado, evitando largo tempo de rei-nicialização, o que permitiria ao próximousuário começar sua tarefa quase imedia-tamente. Interrogando alguns usuários a esterespeito, pude constatar que boa parte da-queles que desligavam o equipamento nãohaviam percebido a existência do cartaz.Alguns admitiram que não saberiam colo-car tais instruções em prática; outros, ain-da, argumentaram que desligar o compu-tador seria mais seguro, pois seus dadosnão ficariam disponíveis (para semelhantefim, o outro procedimento tem a mesmacapacidade). Em compensação, o avisoque solicita que os usuários não comamou bebam no laboratório é bastante res-peitado (jamais surpreendi qualquer usuá-rio em tais situações). Aqui, minha inquie-tação foi despertada pelos depoimentos dosusuários que confessaram não ter idéia decomo operacionalizar as instruções de des-

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conexão. Seria tarefa da instituição o ofe-recimento de compatibilização tecnológicaaos usuários de seus recursos informacio-nais? Ou os próprios sujeitos, na condiçãode pós-graduandos, deveriam, autonoma-mente, desenvolver capacidades/habilida-des relacionadas aos recursos de comuni-cação/informação de que sejam utilizado-res? Essas questões se impõem com urgên-cia na visão de autores como Loing (1998)e Demo (1998), e precisam ser considera-das, à medida que representam, em suamaterialização tecnológica, aspectos poten-cialmente importantes como novas vias deaprendizagem (LÉVY, 1993, p. 101), con-tando com estilos de apropriação que su-peram, no sentido e na forma, o percursolinear (KENSKI, 2003, p. 39-45). Mas esteaprofundamento fica adiado para um mo-mento oportuno. É preciso que se diga,entretanto, que, por inúmeras vezes, pudeouvir os técnicos dando instruções indivi-duais aos usuários a respeito da maneiracorreta de deixar o micro após o uso.

No fundo da sala na qual o laboratórioestá instalado fica a seção destinada aopessoal técnico, na qual estão instaladosdiversos equipamentos centrais, do pontode vista da importância e da topologia. Oacesso a esta sala é, via de regra, faculta-do aos usuários, que ali procuram esclare-cer suas dúvidas relacionadas ao uso dosequipamentos e dos programas, principal-mente. Até a parte final do trabalho de cam-po, os resultados impressos produzidos pe-los usuários eram apanhados neste local.Ao longo desta investigação, pude ter comoinformantes dois dos técnicos, Arnaldo eFrancisco4. O primeiro, que me pareceu teratribuições de chefia, demonstrava maiorfluência no trato com as questões tecnoló-

gicas – foi, também, com quem eu maisconversei. Providenciou o único documen-to de que dispunha, relacionado ao usodo laboratório. Ao contrário de Francisco,dispunha-se melhor à entrevista e me dis-pensava atenção total, enquanto seu cole-ga costumeiramente dividia sua atençãoentre a tela do computador e minhas per-guntas. Percebi que Arnaldo procuravasempre responder às questões de forma am-pla, relacionando os acontecimentos, ci-tando, sempre que possível, nomes e da-tas. Quando se interpunha algum questio-namento sobre as condições de utilizaçãodo laboratório, por exemplo, rapidamentesurgiam os esclarecimentos sobre as provi-dências em curso e sobre o planejamentoque estava sendo implementado. Creio queposso descrever um tanto mais amplamen-te a participação destas personagens, dadaa importância que atribuo aos esclareci-mentos através deles obtidos.

Inicialmente, quando perguntava algumacoisa a Arnaldo, o mesmo procurava respon-der com detalhes, esmerando-se na explica-ção do significado dos termos técnicos. Per-cebi que ele me via como um usuário do la-boratório que estava em atividade de pesqui-sa e que tinha o nível de conhecimento queconsiderava “comum” entre os alunos daunidade. Esta visão evidenciava um julga-mento, talvez baseado em sua experiência, arespeito da fluência – ou, antes, da falta dela– que ele julgava comum entre os alunos delicenciatura em pedagogia e de pós-gradua-ção em educação. Alguns termos e concei-tos, que julgava de domínio comum (e-mail,navegação na Internet, editor de texto, entreoutros) eram utilizados amplamente, sem mai-ores explicações. Quando as descrições pe-diam a intervenção de termos técnicos que

4 Nomes fictícios.

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julgava fora de minha realidade, as descri-ções eram amplas, acompanhadas de ges-tos e demonstrações no computador. Interes-sado em perceber que visão predominavaentre os técnicos a respeito dos usuários dolaboratório, limitava-me, na maioria das ve-zes, a balançar a cabeça, anotando algu-mas coisas de sua fala, sem evidenciar mi-nha formação anterior em ciência da com-putação, a qual, não obstante, veio à tonagraças à lembrança de Francisco sobre umevento comum do qual havíamos participa-do (e do qual eu não me lembrava). Nãopercebi, de qualquer modo, qualquer mu-dança significativa no tratamento que eles medispensavam após esta ocorrência.

Não havia qualquer estatística sobre otipo de uso feito pelos usuários, em termospercentuais, dos recursos de software dis-poníveis. Também não existiam registros daspáginas visitadas na Internet. Todos osapontamentos que faço aqui resultaram dasentrevistas e das observações. Quanto aospedidos de suporte técnico ou de esclareci-mentos feitos pelos usuários, meus infor-mantes discordavam. Conversei sobre issocom eles em separado. Para Francisco, amaioria dos usuários conseguia utilizar osrecursos que o laboratório disponibilizavasem ajuda. As intervenções solicitadas eramraras, ligadas à configuração de equipa-mentos, tarefa considerada por ele comocomplexa para o nível de conhecimento queos usuários possuíam. Não pude obter, daparte dele, qualquer esclarecimento maisamplo. Quando solicitado a responder, porexemplo, se os usuários perguntavam comoenviar e-mails, ou como acessar um sitena Internet, Francisco respondia vagamen-

te: “- Ah, alguém já perguntou algumacoisa sobre isso, mas faz tempo, agora opessoal sabe, ninguém mais pergunta”.

As intervenções de Arnaldo foram denatureza completamente diversa. Para ele,os usuários tinham muitas dúvidas, masreceavam perguntar. “- Acho que eles nãosabem direito como perguntar, ou ficam comvergonha. Mas, mesmo assim, muita gentepergunta”. Dificuldades ocorriam na na-vegação pela web, no uso de e-mail, nosrecursos do processador de textos. Nem todomundo sabia, segundo o técnico, refinaruma busca, tornando os resultados maisaproximados da intenção que motivou aperquirição. Anexar arquivos em mensagensde e-mail era outra dificuldade recorrente.Algumas solicitações de esclarecimentoeram feitas, também, sobre os recursos deformatação de textos que o Word possui.

As diferentes visões dos informantes téc-nicos despertaram meu interesse. Nas obser-vações, percebi que as pessoas entravam naseção técnica quase sempre à procura de Ar-naldo. Francisco estava, constantemente,ocupado diante dos equipamentos que aju-dava a controlar e Arnaldo, não obstanteestivesse também freqüentemente utilizandoalgum computador, sempre se voltava paraatender a quem entrasse. Assim, menos abor-dado, parece que Francisco permanecia emum contato muito menor com os percalçosdos usuários. Ao que parece, sua visão mui-to menos crítica sobre a fluência dos freqüen-tadores do laboratório em comparação comaquela apresentada pelo companheiro de tra-balho pode ser largamente creditada ao seumenor contato com as perguntas e pedidosde suporte feitos pelos utilizadores.

5 O sistema operacional é um programa (software), com funções de interface homem-máquina, gerenciamento de recursos(memória, dispositivos, arquivos) e controle de operações. Em uma configuração com usuários em rede, o sistema operacional éresponsável, também, pelo acesso, controle de restrições, direitos e outras propriedades comuns.

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Conforme mencionei anteriormente, nãopude obter quase nenhum documento queme ajudasse no mapeamento dos hábitosde acesso e utilização dos recursos tecno-lógicos oferecidos pelo laboratório aos alu-nos de pós-graduação. O único levanta-mento disponível – ainda assim somenteaté o ano de 2000 – dá conta do númerode freqüentadores por dia da semana. Nãopude saber como tal levantamento foi feito,mas o mesmo é perfeitamente possível atra-vés de estatísticas típicas de um sistemaoperacional de rede5. Achei interessante tra-zê-lo aqui, uma vez que confirma algumasde minhas observações sobre o número deusuários e subutilização da estrutura ofere-cida pelo laboratório.

Jamais observei mais do que oito usuá-rios simultaneamente no local, mesmo quan-do visitava o espaço em horário diversodaquele no qual efetuava as observaçõesregularmente. Na maior parte do tempo,eram cinco ou seis, com uma rotatividadegrande e acelerada. Em um período de duas

horas, semelhante característica oportuniza-va a entrada-e-uso de cerca de doze atédezoito usuários, conforme o horário. Sobreisso, cabe anotar que raros deles apresenta-vam uma rotina de uso definida, com dias ehorários fixos. Nos comentários que façosobre o ambiente, exploro semelhantes cons-tatações um tanto mais.

As tabelas seguintes, referentes aos anosde 1998 e 1999, mostram médias de fre-qüência bastante diferentes, mas a compa-ração não é possível nestes termos, devidoà diferença considerável de períodos cober-tos pelos levantamentos. Alguns horários em1998 registram freqüência média de 35 pes-soas, o que é quase inimaginável em umlaboratório nas condições descritas, a nãoser excepcionalmente (em um curso, porexemplo). Podem ter existido cursos tambémem 1999, mas sua representatividade se di-luiria ao longo do período coberto. Assim,creio que a Tabela 3, que indica o mesmolevantamento no ano de 2000, pode repre-sentar uma comparação mais justa.

Tabela 1 – Número de usuários do laboratório em novembro/dezembro 1998*

* Valores médios. A fonte foi omitida para preservar o anonimato. Dados dos meses de novembro e dezembro.

Segunda Terça Quarta Quinta Sexta

08:00 1 6 2 1 1

10:00 6 10 3 3 6

12:00 4 1 3 2 7

14:00 5 4 4 4 4

16:00 6 6 6 19 1

18:00 8 9 6 11 0

20:00 4 6 27 14 0

22:00 2 5 35 11 0

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Segunda Terça Quarta Quinta Sexta

08:00 1 1 1 1 1

10:00 3 2 3 3 3

12:00 3 3 3 3 2

14:00 3 4 4 4 2

16:00 3 6 6 5 2

18:00 4 7 6 5 1

20:00 3 6 5 5 1

22:00 3 5 4 3 1

Tabela 2 – Número de usuários do laboratório em em 1999*

* Valores médios. Dados dos meses de fevereiro a dezembro.

Tabela 3 – Número de usuários por dia da semana e horário (1999 e 2000)

Horário 08h00 10h00 12h00 14h00 16h00 18h00 20h00 22h00

Dia 99 2000 99 2000 99 2000 99 2000 99 2000 99 2000 99 2000 99 2000

Segunda 1 1 3 2 3 3 3 3 3 5 4 4 3 3 3 1

Terça 1 1 2 3 3 2 4 4 6 6 7 6 6 5 5 2

Quarta 1 1 3 3 3 3 4 5 6 4 6 6 5 5 4 2

Quinta 1 1 3 3 3 2 4 3 5 6 5 5 5 4 3 1

Sexta 1 1 3 1 2 3 2 0 2 0 1 3 1 3 1 1

Totais 5 5 14 12 14 13 17 15 22 21 23 24 20 20 16 7

Apesar de alguns números indicaremlotação em alguns horários, isso de fatonão ocorre. Cada usuário utiliza o compu-tador, segundo minhas observações, porcerca de meia hora, em média.

Característicasrelacionadas ao ambiente

Desde logo percebi, no âmbito dolaboratório, a necessidade de adesão a

uma regra não escrita: a maior partedos usuários raramente conversam, equando o fazem, mantêm o tom de vozo mais baixo possível. Tarefas conjun-tas também não são comuns, pelo con-trário: observei duplas trabalhando nolocal apenas três vezes – e jamais viqualquer atividade realizada em gruposde três ou mais pessoas. O silêncio pa-rece estabelecido por um código co-mum, recíproco e implícito. Qualquer

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conversa é imediatamente acompanha-da por olhares muito pouco dispostos aqualquer liberalidade. As pessoas nãodeixam de ser cordiais, todavia – ou ofazem muito raramente, como a colegaque não queria que eu usasse o “seu”computador. Alguns fragmentos de meudiário de campo dão conta deste esta-do de coisas, principalmente em duasocorrências emblemáticas: a “leitora depiadas” e o “usuário de celular”. Trans-crevo, a seguir, minhas anotações revi-sadas, já que qualquer outra descriçãoresultaria pobre.

De todos os usuários que estão aquiagora – apenas cinco, seis comigo –uma colega sentada à minha frentechama a atenção de todos. Ao che-gar, parou um pouco e escolheu ummicro da primeira fileira à esquerda.Não deveria, pelas regras do labo-ratório, já que aquelas máquinas têmrecursos especiais e ela só está uti-lizando o micro para navegar pelaInternet. Ela ri. Ri bastante e alto. Poralguns instantes, os outros usuáriosdeixam seus afazeres e prestam aten-ção na moça, bastante jovem. Sur-gem expressões de desaprovação emquase todos os rostos. A cada risa-da um pouco mais alta, todos repe-tem os gestos e os olhares. Para usaruma expressão comum, percebo quea moça ‘não está nem aí’, continualendo e rindo. De onde estou nãoestá sendo possível ver o que a fazrir tanto. Há outro usuário na frente,e toda vez que tento ir um pouco delado para olhar para frente causosensível incômodo. Bem, nunca viisso e vou arriscar. Levanto, vou atéa colega e me apresento. Explico so-bre meu trabalho e peço para fazeralgumas perguntas. Ela fica um pou-

co constrangida, mas concorda. Des-cubro que está começando seu mes-trado e que vem de outro estado.Mora com outras colegas, todas namesma situação. Está fazendo um es-forço enorme para ser gentil, masestá visivelmente contrariada. Olhapara a tela, para o relógio. Perguntoquais sites ela visita regularmente,ela menciona alguns sites de pesqui-sa, sites de universidades e de seuprovedor de acesso. Chego ondequero, cerca de cinco minutos de-pois: pergunto que site ela está visi-tando naquele momento. “ – Ah, ésó uma página para descontrair, sabe[...] Para desanuviar [...]”. É um sitede piadas. Ela explica muito rapida-mente, tenta justificar-se. Comentoque acho que a diversão está natu-ralmente prevista quando se usaaquele tipo de tecnologia. Terminoa entrevista improvisada. Ela se vol-ta para o micro e continua lendo. Mi-nutos depois, enquanto escrevo fre-neticamente para não perder o con-teúdo da conversa – e tentando nãoperder muita coisa em volta, também– ela volta a rir. As pessoas estãoincomodadas. Uma usuária do meulado sai, após fechar sua sessão deuso. Está irritada. Saio também.Como a conheço, aceno, ela respon-de. Depois de algumas amenidades,comenta: “ – Puxa, aquela menina láda frente estava me deixando louca!Será que não percebe?”.

Não me ocorreu, no momento do úl-timo comentário descrito, tentar apuraro que é que ela achava que a outranão percebia. Mas julguei que fosse anecessidade de ficar em silêncio. Maistarde, inclusive, ela deu a entender isso,quando recordou o ocorrido e comen-

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tou algo como “[...] o silêncio que agente precisa, na biblioteca ou lá nolaboratório”.

No momento, além de mim mesmo,apenas mais dois usuários. Um falaao celular, olhando seus e-mails semmaior atenção. A outra faz diversosgestos impacientes, mostrando queestá muito incomodada com o cole-ga. Olha para ele com visível irrita-ção. Faz um gesto impaciente em mi-nha direção, como quem diz “– Que-ro silêncio!”. Sorrio educadamente,ela também, muda de máquina, pro-curando sentar mais longe do usuá-rio de celular. Aliás, já o vi aqui ou-tras vezes e também nestas outrasocasiões ele falava ao celular. Ges-ticula largamente, discute. Dá instru-ções, responde perguntas, provavel-mente. Fala muito alto. Não tem,neste momento, qualquer interessepelo que está na tela do computa-dor. A outra usuária tenta acessar umlink na Internet que é repetidamenterecusado. Volta a olhar o colega quefala em seu aparelho e sua expres-são continua irritada. [...] A moça saie o “falante” desliga o celular, co-meça a digitar. Cinco minutos depoiso celular toca de novo. Outra longaconversa acontece. Os dois novosusuários olham em sua direção ime-diatamente. Ouço da parte deles um“– Assim não dá”. Até 12h50minmais quatro ligações são recebidas– e tratadas longamente, em voz alta.Outra pessoa entra e repara imedi-atamente no “falante”. Senta atrásde mim. Fica difícil observar. Por isso,dou uma “saidinha” para re-elabo-rar a estratégia e encontro com amoça que tinha saído antes. Ela falacomigo, imediatamente, passandosuas impressões sobre o “falante”.

Entendo que ela espera encontrar nolaboratório um ambiente que favo-reça a concentração. Ela quer “si-lêncio e um pouco de respeito”, jáque “não interessa o que os outrosestão fazendo”.

‘Um ambiente que favoreça a con-centração’ foi uma expressão comum,com algumas variações, entre os usuá-rios que responderam sobre sua prefe-rência pelo silêncio no laboratório. Jun-to com tal argumentação, alguns comen-taram que tinham dificuldades e preci-savam de uma atenção sem desviospara, como mencionado em uma entre-vista, “não perder o fio da meada, opasso certo do roteiro através do qualeu faço as coisas diante do computa-dor”.

Não posso deixar de mencionar,também, que, por força da necessida-de de observar a utilização dos recur-sos tecnológicos por parte dos usuári-os, várias vezes fui surpreendido olhan-do para seus monitores de vídeo. Esteolhar foi visto incomodamente por vá-rias vezes. Sempre que possível, eubuscava explicar sobre a pesquisa esua característica observacional. Cla-ro que jamais li um e-mail de quem querque fosse (e nem a distância habitualde minha posição permitiria). Chegueia receber um “– Pois não?” glacial deum colega, o qual, depois de minha ex-plicação, sem uma mudança significa-tiva no tom de voz em relação à afir-mação anterior, emendou: “– Bem, estácerto, mas é bem parecido com ler ojornal por cima do ombro de alguém”.Não pude solucionar este problemacompletamente. Sempre que possível,

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depois de algum tempo de observação,colhia as impressões do usuário, expli-cando minhas intenções. Mas devo con-fessar que isso era às vezes impossível,e mesmo inconveniente quando a pes-soa não permanecia no local por maisdo que poucos minutos.

Algumas impressõescolhidas em entrevistas

Além daqueles dados por três colegasde maneira regular, colhi uma série de de-poimentos eventuais da parte de pessoas quefreqüentavam o laboratório esporadicamen-te. Apareciam, segundo eles próprios, quan-do surgia alguma necessidade relacionadaà informática ou quando “sobrava um tem-pinho”, para ler e-mails e navegar na Inter-net. Pude acompanhar diversos usuários queliam jornais e revistas, acessavam sites quetraziam a programação cultural da sema-na, visitavam páginas de livrarias, envia-vam e-mails aos amigos e parentes, dandoou pedindo notícias. Multimídia, o sistemacomputacional revelava, ali, um aspecto dafluência merecedor de maiores aprofunda-mentos: o multiuso, o uso descomprometi-do de resultados e pressões.

De maneira completamente diversa,outro grupo considerável de usuários –muito maior do que os “relaxados” – eraconstituída por uma série de indivíduosapressados, os quais demoravam no la-boratório apenas o tempo estritamente ne-cessário (ou disponível) para executaruma ou outra tarefa, quase sempre ur-gente. Entravam, sentavam diante de ummicrocomputador e, com maior ou me-nor dificuldade, escreviam seus textos,realizavam suas buscas, imprimiam suasanotações digitais, navegavam, enviavam

e liam sua correspondência eletrônica,para depois saírem rapidamente. Quan-do eu conseguia me aproximar de umdeles, as respostas eram breves na maiorparte das vezes. Consegui apurar que amaioria “não tinha tempo”, segundo afir-mavam. Tinham alguma tarefa que con-sideravam urgente e dispunham, relati-vamente, de pouco tempo para executá-la. Os equipamentos ali disponíveis ace-leravam o processo. As opiniões dos usu-ários assim descritos eram bastante hete-rogêneas. O mesmo pode ser dito quan-to à reação dos mesmos diante das difi-culdades inerentes à apropriação de co-nhecimentos diretamente ligados aos re-cursos tecnológicos.

Cheguei um pouco mais cedo para istomesmo, tenho que imprimir este traba-lho. Mas não consigo, porque pareceque tem que configurar a impressora[...] A da minha casa já veio configura-da, eu acho. Lá, o micro nunca pediuisso [...] (ofereço ajuda, após explicarsobre a pesquisa; o usuário fica evi-dentemente constrangido) Não, nãoprecisa, acho que posso fazer sozinho[...] O técnico saiu? (levanta vai até asala do técnico de laboratório; ficadecepcionado quando descobre que éhora do almoço dos funcionários, olhapara o relógio, volta-se para mim). Poisé, eles não estão, logo agora [...] Bem,você me ensina então?

Nesta ocasião, após mostrar como seconfigurava a impressora para uso na rede,perguntei se ele havia ficado constrangidocom minha intervenção. Ele pensou umpouco e respondeu um “sim, de certa for-ma”, mas não conseguiu explicar o moti-vo. Saiu em seguida, apressado. Voltou logodepois, quando percebeu que não haviaapanhado suas páginas na sala ao lado.

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Em outra oportunidade, eu observavaespecificamente o comportamento dos usu-ários cuja trajetória ao longo de uma ativi-dade qualquer no laboratório apresentavadificuldades. Centrei minha atenção sobreuma colega, a qual, literalmente, lutavacontra o computador (com visível desvan-tagem para o último, já que ela, vez poroutra, aplicava-lhe alguns safanões). Aome aproximar, notei que a colega tentavaformatar alguns parágrafos que escreveraem um editor de textos. Apresentei-me e ten-tei convencê-la a colaborar, mencionandoalgumas características que pretendia ob-servar para a investigação em curso. Men-cionei suas visíveis dificuldades. Ela ale-gou que não tinha tempo para colaborar eque não tinha assim tantas dificuldades: porcerto, aquele computador era o problema.Achei que não devia insistir. Nem depoisde algum tempo, após diversas tentativasfrustradas, pude auxiliá-la de qualquer for-ma: ela “já estava resolvendo o problema”e eu “não precisava ficar incomodado”.Arnaldo, um dos técnicos com o qual euconversava freqüentemente, teve sucessoquase imediato: não só teve sua ajudaamplamente aceita assim que chegou comotambém não levou mais do que cinco mi-nutos para acertar toda a formatação de-sejada pela usuária.

Situações como as descritas acima nãoforam incomuns. Por isso, fico inclinado asupor que minha abordagem, procedimentode entrevista e outras atividades correlatasassumiam ares de avaliação, pelo menosentre alguns dos usuários, notoriamente os“apressados”, em parte, ao que parece, pelofato de serem surpreendidos em dificulda-des ou questionados a respeito de opiniõessobre o uso da tecnologia, sobre a qualnão fizeram, de acordo com a maior parte

dos depoimentos recolhidos, maiores refle-xões. Ainda que não tenha sido minha in-tenção, uma situação de avaliação exercepotencialmente uma pressão pelo êxito e aproficiência, mesmo entre pessoas prova-velmente cientes disso. Para Perrenoud(1999), a prática tradicional da avaliação,em qualquer âmbito, dificilmente favorecea criação de uma relação cooperativa en-tre avaliador e avaliado – ainda que o ava-liador não o seja, absolutamente, pelomenos não de maneira intencional. Aoidentificar-me como pós-graduando, incorriem outro risco, inerente, também, a situa-ções avaliativas: o da competição. Perre-noud (1999, p. 70) comenta que tais situa-ções, eminentemente certificativas, situam-se “no registro da competição e do conflitoe, conseqüentemente, do fingimento e daestratégia”. Há também o medo, a descon-fiança. Competências alegadas e notoria-mente não possuídas, declarações dúbias,evidenciando menor fluência do que a pre-tendida sobre um dado assunto, respostasmonossilábicas e evasivas, entre outras ati-tudes, parecem apontar nessa direção. Umtempo maior de permanência em campo,outras observações, questionários e entre-vistas seriam necessários, certamente, nointuito de ampliar esta frente teórica.

Um número menor de usuários mostra-va disposição diametralmente diversa. Re-ceptivos, falando longamente, dispondo-sea entrevistas, sugerindo perguntas e propon-do respostas, dividiram o espaço observaci-onal com os usuários menos receptivos. Entreesses, a maioria revelava fluência acentua-da no uso de recursos informacionais e/oucomunicacionais. Entre esses, o aprendiza-do revelava-se autônomo, intenso e relati-vamente livre de percalços – ou melhor, asdificuldades revelavam-se mais elaboradas.

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Quase todos dentre esses já haviam lidosobre a inserção das “novas” tecnologiasna escola. Suas opiniões surgiram esponta-neamente, revelando diversos níveis de re-flexão e aprofundamento teórico. Alguns tre-chos de meu diário de campo contém im-pressões que considero, neste particular, ex-tremamente valiosas.

Entra outro usuário; já o conheçode outras atividades. Primeira vezque o vejo no laboratório. Come-çamos a conversar, pergunta se es-tou fazendo trabalho de campo, res-pondo que sim. Faz parte de váriaslistas de discussão (coordena três,está em outras). Acha bom, mas sen-te-se sobrecarregado. Recebe cer-ca de cem e-mails por dia (bastante“porcaria”, também). Achou um tex-to que poderia ser “desconhecido”,em inglês, mas que já estava tradu-zido e era de uso corrente na uni-dade. Mas o fato é que ele não oconhecia e o localizou na Internet.Teve algumas dúvidas no Word, es-clareci, coisas relativamente sim-ples. Digita um texto. A fluência de-monstrada foi adquirida, segundoele, muito pouco sistematicamante.Na época do sistema operacionalDOS6 (que ele utilizava junto comum micro 286)7 chegou a construirum pequeno manual, baseado emsuas anotações, que continha asprincipais instruções para usar com-putadores. Depois, passou a apren-der observando e tentando. Mas

sente-se habilitado a prestar assis-tência para pessoas menos fluen-tes. Comentamos sobre pessoasavessas a ajudas de todo tipo. Con-to alguns casos do trabalho de cam-po, ouço um semelhante, num ban-co, ocorrido com seu tio. Pessoasresistem a certos tipos de “gentile-zas”, “socorros”, e isto parece quese estendeu para as tecnologias.Medos, resistências estão presen-tes. Não encontrava seu arquivosalvo em uma pasta especial do sis-tema operacional. Ajudei-o. Sua for-mação é em filosofia, faz mestrado.Vejo uma outra pessoa conhecida,entrou no laboratório há pouco. Ex-plico a finalidade da pesquisa, elaresponde que já conhecia, pois ha-viam comentado com ela. Ela utili-za microcomputadores desde a dé-cada de 1980. Acha que as pessoasque tiveram contato com sistemasmenos intuit ivos, como o DOS,aprendem e usam tecnologias commais facilidade. Ela garante encon-trar muito material de consulta parasua pesquisa na Internet (formaçãode professores universitários). Éusuária freqüente e “dependente” dolaboratório. Mora e trabalha no To-cantins. Tem graves problemas nofim de semana porque o laborató-rio não abre. Observou que o la-boratório é mais freqüentado poriniciantes na pós-graduação – ou,talvez, por pessoas que ainda fazem

6 Disk Operational System, sistema operacional da Microsoft, muito popular nas décadas de 1980 e começo de 1990, usava umainterface com o usuário baseada em comandos muito pouco intuitivos. As interfaces gráficas do tipo Windows acabaram porsubstituí-lo na maior parte dos microcomputadores. Atualmente, programadores experientes utilizam interfaces de linha decomando para funções avançadas, notoriamente em sistemas operacionais como o Linux.7 Código de uma linha de processadores da Intel, fabricante do Pentium. Surgido na década de 1980, o Intel 80286 traziaprocessadores de 12 megahertz e até cerca de 4 megabytes de memória principal (RAM). Em termos de comparação, osprocessadores mais recentes têm 200 vezes a capacidade do 286.

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cursos. Usa Internet e editores detexto com bastante freqüência. Es-tava digitando o programa da disci-plina de uma professora da pós.Sabe usar informática intuitivamen-te, aprendeu fazendo, fez apenas umcurso ligado à informática (lingua-gens de programação). Formaçãoem pedagogia. Entre os importan-tes ‘achados’ em mecanismos debusca na Internet, várias resenhasdo texto que precisa estudar paraas aulas da semana. Participa defóruns e de listas de discussões. Vique usa e-mails. Não a vi enfren-tando qualquer dificuldade até ago-ra. É fluente, pelo que tenho visto,uma das mais.

Não pude colher, a não ser neste gru-po de usuários mais fluentes, depoimentossobre a inserção das TIC8 na educação.Procuro transcrever, a seguir, os mais sig-nificativos:

Os estudantes a que vou me referirsão graduandos de cursos de licen-ciatura – alguns exercem magisté-rio – particularizados por um con-texto de universidade pública na re-gião norte do país. No Tocantins,há fortes limitações de acesso edomínio da ciência da informação.As discussões sobre a inserção dasnovas tecnologias no cotidiano e asimplicações para a formação huma-na são ainda iniciais e trazem mui-to espanto aos graduandos. Diantedisso, àqueles estudantes, o com-putador ainda é mito e não ferra-

menta de trabalho, o que exige umaproblematização temática que tor-ne as novas tecnologias instrumen-tos de conscientização e humaniza-ção, e não de alienação.Como toda tecnologia, deve ser uti-lizada com consciência, reflexivida-de e senso crítico. A questão é tertais tecnologias como recurso e nãocomo fim em si mesmo; ou, ainda,não achar inquestionáveis as infor-mações obtidas por esses meios.Isso não é algo que vem natural-mente e aí é que entra o papel fun-damental dos educadores que pre-cisam realizar todo um trabalhovoltado para o uso dessas novastecnologias.Considero [as tecnologias] ótimosinstrumentos, que abrem muitasperspectivas novas de busca e pro-cessamento de informações. Paracitar um exemplo meu, estou ela-borando um questionário sobre‘memórias escolares´ junto a ho-mossexuais com intuito de detectarquestões relevantes para o traba-lho de campo etnográfico com ado-lescentes estudantes.

Entre observações e questionários9,pude elaborar alguns quadros comdados sobre a relação dos pós-gra-duandos com a tecnologia. Algunsdeles corroboram informações expos-tas ao longo deste trabalho; outros,ainda, pediriam análise muito maiscuidadosa, sem lugar neste trabalhode escopo reduzido.

8 Tecnologias de informação e comunicação9 Apesar de um questionário inicial não ter sido possível, conforme relatado anteriormente, pude elaborar e aplicar um mais tarde,nas últimas semanas de pesquisa. Obtive quarenta e dois retornos entre os cerca de sessenta pós-graduandos convidados arespondê-lo; destes, vinte e seis eram usuários do laboratório, sobre os quais se referem todos os gráficos desta parte do trabalho.

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Conforme sugerido por uma de minhasinformantes, a grande maioria dos usuári-os do laboratório é composta por pós-gra-duandos que ainda cumprem seus crédi-

tos. Preciso dizer que sem sua sugestão, eujamais pensaria em fazer tal pergunta. Osusuários eventuais predominam: são qua-se 60% dos freqüentadores.

Tabela 4 – Alunos que cursam disciplinas atualmente na pós-graduação

Sim 24

Não 02

Tabela 5 – Freqüência de utilização do laboratório de informática

Menos de uma vez por semana 15

Uma vez por semana 03

Duas ou três vezes por semana 15

Diariamente 03

Tabela 6 – Recursos de informática e grau de fluência

RecursoNível de conhecimento

Nenhum Básico Razoável Avançado

Escrever e formatar textos 0% 6% 25% 69%usando um editor

Utilizar planilhas eletrônicas 18% 25% 44% 13%

Construir e editar desenhos, 31% 31% 25% 13%fotografias e similares.

Configurações (instalarperiféricos, mudar“papel de 0% 18% 64% 18%parede”, proteção de tela, etc).

Organizar arquivos através 0% 6% 31% 63%da criação de pastas e atalhos.

Enviar e receber e-mail,encaminhar e-mails recebidos, 0% 0% 37% 63%anexar arquivos para envio por e-mail.

Conectar-se a Internet enavegar por diferentes páginas. 0% 6% 25% 69%

Efetuar buscas na Internet,utilizando mecanismos de pesquisa 0% 6% 25% 69%

Participar e/ou criarlistas/grupos de discussão 38% 31% 13% 18%

Criar uma página na Internet. 81% 0% 13% 6%

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O quadro 6 confirma algumas de minhasobservações: de fato, as habilidades relacio-nadas à comunicação e à Internet são pos-suídas em alto grau pela maioria dos res-pondentes. No laboratório, pude observar queo menor número de dificuldades relaciona-va-se a assuntos desta natureza. Usar edito-res de texto, de acordo, também, com o cons-tatado no laboratório não constitui grandedificuldade (mas, surpreendentemente, pare-ce indicar algo que eu havia percebido atra-vés da observação participante: há maiorescompetências desenvolvidas, e de forma maisautônoma, relacionadas à Internet do que nouso de editores, ferramentas consideradas maissimples pelos especialistas).

O próximo gráfico, sobre os locais ondeos participantes utilizam recursos de infor-mática e Internet, revelou o amplo acessodos mesmos às redes de informações e àtecnologia computacional: apenas dois dosrespondentes não possuíam computador emcasa e todos, sem exceção, utilizam taisrecursos em mais do que um local (eviden-temente, contando o próprio laboratório dainstituição). Mesmo entre os que não utili-zam o laboratório da instituição, apenasdois declararam que utilizam ferramentascomputacionais e/ou Internet de forma es-porádica – um deles declarou que nemmesmo se considerava usuário, já que usa-va tais recursos “o menos possível”.

Gráfico 1 – Locais de utilização de computador e Internet pelos participantes

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Apesar de uma parcela considerável dosparticipantes – a metade – ter buscado apoioem cursos e leituras especializadas, as mo-dalidades preferenciais de aprendizado ligam-se a um estilo bastante autônomo. Afirmo issoporque a natureza das consultas a especia-listas ou amigos, segundo disseram os parti-cipantes, é informal, e constituída, na maio-ria das vezes, por perguntas pontuais e espe-cíficas, esclarecidas rapidamente. Entre osmeios pelos quais semelhantes ajudas sãodisponibilizadas freqüentemente contam o e-mail, as listas de discussão e os fóruns es-pecíficos – ou seja, na ‘ajuda on-line’ predo-minam os meios assíncronos. Alguns partici-pantes mencionaram, com menor entusias-mo, as salas de bate-papo (chats), mas fize-ram questão de assinalar que, quase sem-pre, esse é apenas um ‘ponto de contato’entre eles e os amigos e/ou especialistas, quetendem a analisar as questões e responderdepois por e-mail. Apesar do auxílio, a maiorparcela da tarefa fica sempre por conta dequem pergunta, que deve saber operaciona-lizar as sugestões, agregando conhecimentoprévio. Chama atenção, também, a grandeparcela de usuários que admite aprender semqualquer ajuda formal ou leitura especializa-

da em algumas ocasiões (74% dos partici-pantes) e a outra, não tão menor, de usuári-os que utilizam mecanismos de busca paratais finalidades (62%).

Algumas conclusõesEm grande parte, os subsídios recolhi-

dos no trabalho de campo que realizei pa-recem indicar que considerável parcela daspessoas com boa formação educacional emuma área diversa das ciências tecnológi-cas também possuem certa facilidade paraaquisição de conhecimentos ligados à flu-ência no manejo com instrumentos tecno-lógicos e/ou comunicacionais. Estas apro-priações não ocorrem somente – pelo me-nos, no caso dos pós-graduandos – atra-vés de cursos formais, quaisquer que se-jam os modos pelos quais os mesmos se-jam ministrados. Geralmente, as aquisiçõesde competências realmente significativasforam-se constituindo, preferencialmente, naexperiência de uso, na busca por recursos,em eventuais perguntas feitas, preferenci-almente, a pessoas notoriamente especia-listas. Alguns fatores parecem associadosa esta aparente facilidade: grande domínio

Tabela 7 – Meios de apropriação de conhecimentos no trato com TIC

Questão % sim

Já fez pelo menos um curso relacionado à informática. 50%

Já comprou pelo menos um livro para aprender a utilizaralgum recurso computacional 50%

Aprende a utilizar recursos computacionais – inclusive Internet– através de consultas a amigos e/ou especialistas 88%

Aprende a utilizar recursos computacionais – inclusive Internet– sem qualquer ajuda 74%

Algumas dúvidas são resolvidas através de consultasutilizando mecanismos de busca. 62%

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de leitura no próprio idioma e em outros(especialmente, em inglês), disponibilida-de de tempo para explorar recursos em mi-crocomputadores e nos programas nelesinstalados, contato freqüente com equipa-mentos de informática e comunicação emoutros contextos (trabalho, residência, etc).Seja navegando por diferentes sites na In-ternet ou explorando os recursos de um pro-grama, a fluência na leitura parece deter-minar, em grande medida, a fluência nosinstrumentos tecnológicos.

Por outro lado, não descarto, eviden-temente, que o encaixe da grande maioriados sujeitos deste trabalho em classes so-ciais não-oprimidas produz um viés limi-tante da validade destes apontamentos. Épreciso não esquecer que este estudo tevecomo sujeitos, preferencialmente, indivídu-os ‘privilegiados’ em relação ao restanteda população – mestrandos e doutoran-dos, os quais, depois de formados, somar-se-ão a um contingente que era de ape-nas 304 mil pessoas em 2000, ou 0,4%da população, em um país que contava,à mesma época, com cerca de 5,8 mi-lhões de graduados, que representam 6,4%da população (ESCÓSSIA, 2003). Alémdisso, de acordo com as respostas dadasao questionário, o acesso dos pós-gradu-andos às TIC é amplo. Trata-se, segundopenso, de uma questão com profundasraízes, que penetram nas várias exclusões10

que se acham presentes na sociedade, di-ficultando, em um patamar muito menossofisticado, não a fluência, mas a mera

‘alfabetização digital’. Não estou afirman-do que somente os pós-graduandos estãohabilitados para a aquisição e manuten-ção de fluência no domínio dos meios tec-nológicos. Mas é notório que os mesmostêm uma trajetória escolar maior, ela mes-ma facilitadora do processo de fluência11.Na opinião de Lévy (2002), por exemplo,“o principal obstáculo à participação nãoé a falta de computador, mas sim o anal-fabetismo e a falta de recursos culturais. Épor isso que o esforço para a educação, ainovação pedagógica, a formação inte-lectual e o ‘capital social’ são os fatoreschave do desenvolvimento da inteligênciacoletiva”. Morin (2002, p. 101) posicionaa questão sob o foco da “hiperespeciali-zação, do parcelamento e da fragmenta-ção do saber”:

De maneira mais profunda, o fosso quecresce entre a tecnociência esotérica,hiperespecializada, e os cidadãos criaa dualidade entre os que conhecem –cujo conhecimento é de resto parcela-do, incapaz de textualizar e globalizar– e os ignorantes, isto é, o conjunto decidadãos. Desse modo, cria-se novafratura social entre uma ‘nova classe’ eos cidadãos. O mesmo processo estáem andamento no acesso às novas tec-nologias de comunicação entre os pa-íses ricos e os países pobres. Os cida-dãos são expulsos do campo político,que é cada vez mais dominado pelos‘expertos’, e o domínio da ‘nova clas-se’ impede de fato a democratizaçãodo conhecimento.

10 Para falar apenas de uma parte da chamada ‘exclusão digital’, em 2001 o Brasil possuía apenas 7,5 milhões de internautas(FREITAS, 2003). Segundo os dados do Mapa da Exclusão Digital (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2003), apenas 12,46% dosbrasileiros têm acesso aos computadores. O número dos conectados a Internet é ainda menor: 8,31%.11 Segundo Almeida (2003) “[...] há necessidade de trabalhar o desenvolvimento de competências relacionadas com a alfabetizaçãoe inclusão digital quando as pessoas se propõem a participar de cursos à distância”. Creio que tal necessidade se estendanaturalmente para qualquer outro processo educacional mediado por TIC – e os que possuem altos níveis de escolaridadedispensam, evidentemente, a alfabetização ‘tradicional’ e têm a ‘alfabetização digital’ bastante facilitada.

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Para Pretto (2001, p. 39) precisamosarticular aquilo que se está chaman-do de alfabetização tecnológica (oudigital) com as demais alfabetizações.É fundamental entender que a prepa-ração para esse mundo tecnológiconão pode estar desvinculada da for-mação básica, ou seja, não podemosfalar em ‘alfabetização digital’ se nãofalarmos, simultaneamente, em alfa-betização das letras, alfabetizaçãodos números, da consciência corpo-ral, da cultura, da ciência.

Ainda assim, não é correto acreditar,mesmo agora, quando me debruço maisdetidamente sobre os dados, que a flu-ência e o aprendizado autônomo dos pós-graduandos se deu sem dificuldades oueventuais traumas, ou que todos o tenhamfeito com a mesma desenvoltura. A ade-são tardia ao uso de TIC, ainda que pormestrandos e doutorandos, apresenta per-calços consideráveis. Certa ocasião, umacolega doutoranda relatava suas dificul-dades no contato com as tecnologias emum grupo de estudo do qual fazíamosparte. Diante da velocidade das trajetóri-as nos ambientes virtuais nos quais nosinseríamos, ela dizia, emblematicamen-te: “– Sou de outra época. Eu vou nave-gando devagar, mesmo, ‘engolindoágua’...”. Neste trabalho de campo, en-contrei a pós-graduanda, também de ‘ou-tra época’, arredia, avessa à aproxima-ção que ofereci para tentar responder àssuas dúvidas pontuais. Nos depoimentosdessas pessoas – e de outras, com difi-culdades meramente eventuais – surgemduas figuras: o receio de ser avaliado(PERRENOUD, 1999, p. 70) e o medo desubsti tuição pela ‘máquina deensinar’(OLIVEIRA, 2003b, p.133). É fato

que, nesta investigação, tais receios apa-receram muitas vezes, notoriamente entreos que apresentavam maiores dificulda-des no trato com as TIC. Outra alega-ção, menos freqüente agora do que háalgum tempo, é a de que as tecnologiassão apenas “aparatos pirotécnicos”, comoalegou uma colega, e que deslocam ofoco da estratégia e do conhecimento paraa instrumentalização, que termina por serum fim em si. A grande maioria dos pós-graduandos, porém, preferiu indicar queo uso crítico das TIC, com o devido en-caixe na estratégia pedagógica e sem aexclusão de outros meios, revela-se ex-tremamente útil e oportuno (KENSKI,2001; OLIVEIRA, 2003a).

Questões referentes ao tempo surgi-ram, também, constantemente. Pessoasentravam no laboratório apressadas,olhando no relógio, algumas não queri-am conversar comigo – nem com nin-guém. Na reelaboração deste texto, en-contrei algumas notas de campo que nãojulguei importantes nas primeiras revi-sões. Um fragmento, em especial, meparece, agora, bastante significativo:

Com inúmeros papéis espalhados so-bre a área em que está seu computa-dor – e um pouco além – a usuáriapega diversos deles, sem se deter emnenhum. Digita alguma coisa, volta aolhar os papéis, abre uma pasta, di-gita mais. Resolvo me aproximar efaço as perguntas de sempre, justifi-cando a finalidade. [...] Ela me diz queo tempo é estranho. No tempo emque costumava datilografar suas ta-refas, os prazos eram maiores, as de-mandas eram menores. “- Parece queo conhecimento era diferente, menosamplo e mais concentrado... Agora,

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é preciso pegar tantas coisas de tan-tos lugares! [...] Tenho dois projetose um cronograma para entregar ain-da hoje... Mas sabe como é – diz ela,ironicamente – tem que dar tempo,porque, afinal, vai tudo por e-mail! –e, até meia-noite, ainda é hoje!”. Di-zendo isso, voltou-se mais uma vezpara a tela de seu micro, expressãodesanimada. Entendi que essa era mi-nha deixa para sair. Olhar para a telae me ignorar. Acabei entendendo queisso significava que o tempo que meera concedido havia acabado.

Destes discursos, e de outros tantosnesta linha, cada vez mais comuns, per-cebo que, com a demanda contempo-rânea da sociedade por conhecimento,sua forma desterritorializada (o “saberem fluxo” mencionado por Lévy), suaconstante re-configuração e suas de-mandas por velocidade, colocamo-nosdiante de novas requisições no âmbitodaquilo que consideramos ‘nosso tem-po’, o qual pode ser forjado pelas tec-nologias (VIRILIO, 1993). RetomandoLévy (1993, p. 115):

A noção de tempo real, inventada pe-los informatas, resume bem a caracte-rística principal, o espírito da informá-tica: a condensação do presente, naoperação em andamento. O conheci-mento de tipo operacional fornecidopela informática está em tempo real.Ele estaria oposto, quanto a isso, aosestilos hermenêuticos e teóricos. Poranalogia com o tempo circular da ora-lidade primária e o tempo linear dassociedades históricas, poderíamos fa-lar de uma espécie de implosão cro-nológica, de um tempo pontual instau-rado pelas redes de informática. [...] O

tempo pontual não anunciaria o fim daaventura humana, mas sim sua entradaem um ritmo novo que não seria maiso da história. [...] O devir da oralidadeparecia ser imóvel, o da informática dei-xa crer que vai muito depressa, aindaque não queira saber de onde vem epara onde vai. Ele é a velocidade.

Longe de nos acomodar em uma tran-qüilidade self service quanto ao conheci-mento, as novas demandas nos solicitamcom urgência, nos subtraem. No lugar daliberdade, e dos pretensos benefícios daflexibilidade, diferentes formas de controlee vigilância. Esta angústia observada nolaboratório, solitária na maior parte dasvezes, parece falar de um tempo que é con-dicionado através das tecnologias, decomo disponibilizam informações e decomo alteram a relação das pessoas comsuas atividades. É uma inquietação pre-sente na argumentação de vários autores,como Richard Sennett (2001, p. 68) que,ao tecer comentários sobre o conceito deflexibilidade no trabalho, ligada à reestru-turação do tempo, assevera:

Os trabalhadores, assim, trocam umaforma de submissão ao poder – cara acara – por outra, eletrônica [...] Na re-volta contra a rotina, a aparência de novaliberdade é enganosa. O tempo nas ins-tituições e para os indivíduos não foilibertado da jaula de ferro do passado,mas sujeito a novos controles do altopara baixo. O tempo da flexibilidade éo tempo de um novo poder. Flexibilida-de gera desordem, mas não livra daslimitações.

Para Foucault (1989), os variados me-canismos de submissão do corpo configu-ram-se como uma tecnologia. Sennett re-

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contextualiza e estende a história política docorpo evidenciada por Foucault, o qual pro-curou demonstrar que o mesmo permaneceexposto a usos de caráter econômico, o quedemanda, necessariamente, um controlesobre suas forças. Os novos controles, emgrande parte já assumidos com força deverdade por aqueles que a eles se subme-tem, tendem também a reestruturar o tempoem larga escala, como pude observar nesteestudo. Nesta lógica, como já afirmava De-leuze12, as TIC surgem como outros – e no-vos – mecanismos de controle, um controle“contínuo e ilimitado”. A adesão é voluntá-ria, não mais como no modelo do Panópti-co, anunciado por Foucault (1989 apudBAUMAN, 1999, p. 60), que “forçava aspessoas à posição em que podiam ser vigi-adas”, mas em um modelo Sinóptico, o qual“não precisa de coerção – ele seduz as pes-soas à vigilância”. É o “tempo real”, do qual,segundo Baudrillard (1997, p. 73), “não hámais prova de nada”.

Finalmente, resta a questão do incômo-do de boa parte dos usuários por quais-quer manifestações no âmbito do labora-tório (conversar, falar ao telefone, sentar aolado, perguntar). Ninguém arriscou respon-der às perguntas que formulei a respeitodessa inquietação que me acometeu. Porque a alguém incomoda a fala do outro –e, mais ainda, sua presença? O argumen-to da concentração (para realizar algumtrabalho) me pareceu muito pouco convin-cente, pois até mesmo nas atividades maisdescontraídas surgia o mal-estar. Lembrei,então, de um texto com o qual me depareirecentemente13 e que me colocou na pistadessas últimas conclusões. Enzensberger(1993) relata a hostilidade de dois passa-

geiros na cabine de um trem, que não seconhecem, em relação a outros viajantesque entram no mesmo ambiente. O autormenciona “uma nítida relutância” dos quechegaram antes em ceder o espaço devidoaos recém-chegados, vistos como intrusos.Para o autor (ENZENSBERGER, 1993, p.91-92), “o próprio vagão do trem é umdomicílio transitório, um lugar que serveapenas para mudar de lugar. O passagei-ro é a negação da pessoa sedentária. Tro-cou um território real por um virtual. Ape-sar disso, ele defende sua moradia tempo-rária com um carrancudo ressentimento”.Tal como os passageiros do trem de En-zensberger, os usuários do laboratório de-fendem seu lugar contra os ‘invasores’, quetrarão suas conveniências e necessidade deuso de ferramentas tecnológicas para aqueleespaço, que deveria ser público, mas queé assumido como um lugar próprio, indivi-dual, privado. A união entre os que estãohá mais tempo contra os intrusos – e noto-riamente contra os que incomodam – é ain-da mais fugaz: dura o tempo contado deum olhar mútuo carregado de censura. Nãogera vínculos de amizade, nem mesmo desimpatia: oportuniza, no máximo, uma con-versa indignada no corredor.

A idéia de permanência ou de antigui-dade em um determinado lugar como ele-mento justificador de posturas discrimina-tórias é relatado por Elias e Scotson (2000),que descreveram as relações de poder emuma pequena cidade inglesa, na qual osmoradores de um bairro menos antigo eramsistematicamente estigmatizados. Entretan-to, enquanto que em Winston Parva osmoradores dos bairros ‘tradicionais’ cerra-vam fileiras em torno de uma bandeira co-

12 DELEUZE, 1992, p. 223-224, passim.13 Agradeço a Júlio Groppa Aquino, professor e autor notável, que teve a generosidade de me enviar o texto.

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mum, identificável, evidente, até, no tremou no laboratório não há luta comum, nãoexiste ideal coletivo. Cada qual defende seudireito ao espaço privado que julga lhepertencer, ainda que transitoriamente. Even-tualmente, dois ou três usuários encontramalguém que foge ao padrão estabelecido,que exacerba o direito à liberdade – e nãoestou falando de descumprimento de nor-mas institucionais, mas de, simplesmente,rir, ocupar espaços com os pertences pes-soais, falar ao celular, perguntar algo aooutro. Ao que exerce uma liberdade dife-rente daquela de ser o que está estabeleci-do sinopticamente, toda a indignação e atéo desprezo. Em alguma medida, são, ali,também consumidores. De tecnologia e deseus subprodutos – e de informações(KENSKI, 2001). E, como tal, querem po-der levar adiante a consecução do que pre-cisam, do que desejam, sem maiores con-siderações de caráter coletivo. Ali, no la-

boratório, posso identificar, em maquete,alguns aspectos da sociedade pós-moder-na descritos por Bauman (1998).

As conclusões surgem aqui apenas emcaráter inicial. Cada uma de suas vertentesparece pedir por mais amplas investigações.Entendo ser este um elemento importanteda pesquisa de caráter etnográfico: o desuscitar outros questionamentos. Interpre-tar, sim, e buscar as generalizações possí-veis, além de, reconhecendo que o conhe-cimento científico não é redutível, sinalizarpara novas perspectivas e servir de basepara o confronto de dados advindos deoutras propostas. De qualquer forma, pudeentender que, em uma pesquisa que con-temple um trabalho de campo observacio-nal, o propósito não pode ser o de “elimi-nar diferenças, em si mesmo impossível, massim o de favorecer trocas e compartilharconhecimentos” (BUENO, 1998, p. 13).

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Recebido em: 09/07/2005Aceito para publicação em: 01/09/2005