Fluzz capítulo 10

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1 Capítulo 10 | Mundos-bebês em gestação AUGUSTO DE FRANCO AUGUSTO DE FRANCO AUGUSTO DE FRANCO AUGUSTO DE FRANCO Vida humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio

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Capítulo 10 | Mundos-bebês em gestação

AUGUSTO DE FRANCOAUGUSTO DE FRANCOAUGUSTO DE FRANCOAUGUSTO DE FRANCO Vida humana e convivência social nos novos

mundos altamente conectados do terceiro milênio

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Mundos-bebês em gestação

– E o que vocês esperam que eu faça? – Você já sabe.

– Não, não sei. Por favor, ensine-me! – Você fez muitas coisas sem precisar que o ensinassem a fazê-las.

Será que lhe ensinamos a desobediência?

Diálogo entre um ghola Duncan Idaho e o bashar Miles Teg por Frank Herbert em Os hereges de Duna (1984)

O homem vive num filme, o homem vive num filme.

Mark Slade em The New Metamorphosis (1975), realçando comentário de Joseph Conrad em O coração das trevas (1902)

O terrível segredo, que ninguém parece ter a coragem de encarar, é que o mundo não pode ser salvo de uma só vez.

Não há como se varrer a miséria da existência em grandes e eficientes vassouradas...

Salvar o mundo é um serviço sujo que só você pode fazer, ao ritmo de um ínfimo passo de cada vez...

redimindo-se um momento de cada vez. Um remédio de cada vez. Uma refeição de cada vez. Uma conversa de cada vez. Um abraço de cada vez.

Uma caminhada de cada vez.

Paulo Brabo em Microsalvamentos: como salvar o mundo um instante de cada vez (2007)

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A despeito do fato, incontestável, de a dinâmica global da interação entre as velhas instâncias organizativas ter mudado, anunciando a emersão de uma verdadeira sociedade-rede, um novo padrão de organização distribuído não logrou se materializar no interior e no entorno das organizações empresariais, governamentais e sociais, que continuaram ainda se estruturando de modo centralizado ou hierárquico. Ou seja, o muro que caiu em 1989, caiu para o mundo construído pelo broadcasting como um único mundo, sob o efeito das poderosas forças da globalização (sobretudo da globalização das telecomunicações e da globalização dos mercados), mas não chegou a se localizar nas organizações realmente existentes em todos os setores. A mudança continuou acontecendo, mas os novos (e múltiplos) Highly Connected Worlds como que "cresceram escondidos" nesta época de mudança e não apareceram ainda à luz do dia, de sorte a consumar o que poderíamos chamar de uma mudança de época. Esses mundos-bebês estão agora em gestação. Os fenômenos acompanhantes do glocal swarming serão surpreendentes. Alguns já começaram a se manifestar: uma tendência acentuada à desobediência dentro das organizações hierárquicas, a incapacidade dessas organizações de inovar no ritmo exigido pelas mudanças contemporâneas (ou melhor, de se estruturar para inovar permanentemente) e - o que é mais drástico - as perdas irreversíveis de oportunidades e condições de sustentabilidade para as organizações fechadas que não forem capazes iniciar a transição do seu padrão piramidal para um padrão de rede.

Fluzz é a queda dos muros. Em 1989 houve uma queda: a do Muro de Berlim. O episódio, pleno de significado simbólico, assinalou o início de uma época de mudanças nos padrões de relação entre Estado e sociedade. Um processo até então oculto de mudança social tornou-se visível de repente. Embora fugaz, o momento abriu uma brecha pela qual se pode ver um novo tecido societário em gestação, uma nova topologia – mais distribuída – da

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rede social sendo tramada. Com efeito, nos anos seguintes, como se diz, "o mundo mudou": a Internet (com a World Wide Web) nos anos 90 expressou aspectos importantes dessa mudança profunda. Os anos 2000, contrariando uma série de profecias futuristas, não raro inspiradas por algum tipo de milenarismo, e frustrando as mais animadoras expectativas da New Age, não consumaram o que foi prefigurado. A primeira década do século 21 - marcada indelevelmente pela queda das torres gêmeas do World Trade Center - conquanto tal evento também seja riquíssimo de significado simbólico (místico, como revela a famosa Carta 16 do Tarot; e ideológico: o que ruiu foi um centro mundial de comércio, dando a alguns a impressão, não raro regressiva, de que a dinâmica reguladora do mercado estava com os dias contados e seria substituída pela normatização estatal), não foi o vestíbulo de entrada para aquele terceiro milênio imaginário desejado. No entanto, subterraneamente, prosseguiu a gestação de novos padrões societários. O mundo descobriu as redes. Entrou em franco desenvolvimento uma nova ciência das redes. E surgiram por toda parte novas plataformas tecnológicas interativas de articulação e animação de redes sociais. As ferramentas começaram a ficar disponíveis. Faltaram ao encontro apenas as pessoas, ainda arrebanhadas e cercadas, em grande parte, nos tradicionais currais organizativos. E tudo permanecerá assim nos mundos em que as pessoas não desobedecerem, não saírem do seu quadrado (as fortalezas organizativas que criaram para se proteger do “mundo exterior”), não inovarem e não iniciarem a transição para uma padrão de rede. Por isso não haverá mesmo uma (única) New Age. Enquanto as pessoas não desistirem da Old Age permanecerão em mundos murados contra fluzz; ou melhor: vice-versa. É claro que o vento continuará soprando, mas – dependendo da opacidade de seus muros – você pode nem notar. Assim como não notou a formidável orgia fúngica sob seus pés (uma espécie de sexo grupal que está acontecendo agora em Zion, i. e., nos subterrâneos, com hifas surgindo por toda parte). Assim como não notou o espalhamento dos esporos no ar que você respira. Assim como não está vendo as miríades de interfaces conectando miríades de mundos à sua volta e “explodindo como uma ramada de neurônios”... (1) Esse é o glocal swarming – que você só percebe se estiver nele. Para invocá-lo em seu mundo você precisa, antes de qualquer coisa, conceber e

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dar à luz ao seu mundo. Sim, agora chegou a hora de você mesmo fazer o seu mundo!

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Não global, glocal swarming

Um mundo mais-fluzz quer dizer muitos mundos-fluzz Não haverá aquela grande transformação capaz de lhe dar um novo mundo de presente. Se você está aguardando essa mudança global apocalíptica, escatológica, é melhor esperar sentado. Simplesmente não vai acontecer. É inútil apostar no parto de um novo mundo como um evento épico de magníficas proporções. No plano global não vem nada por aí – no curto prazo, vamos dizer assim, no próximo milhão de anos – capaz de gerar um novo mundo (2). É claro que podem acontecer catástrofes de dimensões planetárias, pode até irromper uma terceira guerra mundial (conquanto isso não seja muito provável). Mas apostar que uma tragédia de proporções planetárias possa criar condições para uma revolução internacional ou para uma batalha cósmica entre as forças do bem e as forças do mal capaz de produzir um mundo radicalmente novo em termos sociais é não entender o que se chama de sociedade humana ou ser humano. Como escreveu Paulo Brabo (2007), em Microsalvamentos: “o mundo não pode ser salvo de uma só vez. Não há como se varrer a miséria da existência em grandes e eficientes vassouradas... Salvar o mundo é um serviço sujo que só você pode fazer, ao ritmo de um ínfimo passo de cada vez... redimindo-se um momento de cada vez. Um remédio de cada vez. Uma refeição de cada vez. Uma conversa de cada vez. Um abraço de cada vez. Uma caminhada de cada vez” (3). Catástrofes não trarão nada de novo. Combates, batalhas, guerras e revoluções, só produzirão repetição de mundo velho. Só um sociopata pode acreditar que a violência é a parteira da história (e só alguém muito intoxicado das crenças do mundo único pode acreditar que exista uma história). O plano global é uma construção, uma abstração. Nenhuma mudança concreta pode acontecer nesse terreno abstrato. As mudanças nos padrões de relação societários ocorrem sempre em sociosferas. Por isso a queda dos muros não poderá ser uma (única) queda, de um (único) muro. Serão muitas quedas, provavelmente em cascata ou swarming, de muitos muros. Do ponto de vista dos movimentos invisíveis que se processam no espaço-tempo dos fluxos, 'muro' significa centralização, obstrução de fluxo. Onde

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quer que existam "muros" impedindo o livre curso de fluições, “muros” estes que caracterizam organizações mais centralizadas do que distribuídas, poderá haver uma "queda". Não será um global swarming, mas um glocal swarming. Cada mundo altamente conectado que emergirá será o mundo todo, como se fosse uma imagem holográfica de uma nova matriz de mundo mais distribuído. Não um mundo interligado – pois que isso já se materializou desde que a conexão global-local tornou-se uma possibilidade – e sim um mundo-gerador intermitente de novos, inéditos, mundos altamente tramados, para fora e para dentro, que emergirão a cada instante. Um mundo mais-fluzz, quer dizer, muitos mundos-fluzz. Esta será, propriamente falando, a primavera das redes. A livre interação de múltiplos mundos altamente conectados, estruturados com outras topologias e regidos por outras dinâmicas, vai substituir processualmente as remanescências deste mundo aprisionado, sob o influxo de velhas narrativas ideológicas totalizantes, em grandes ou pequenas estruturas hierárquicas unificadoras top down. Mundos-bebês começam a ser gerados na medida em que tais estruturas vão sendo desmontadas. E elas estão sendo desmontadas cada vez que você desobedece, inova, sai do seu quadrado e inicia a transição da organização hierárquica em que você vive e convive para uma organização em rede.

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Desobedeça

Uma inspiração para o netweaving Tudo começa com a desobediência. Cada pequeno ato ou gesto de desobediência contribui para desestabilizar a dominação. É assim que a desobediência vai deixando fluzz passar. Desobedecer é sempre abrir um caminho. Mas cada ato ou gesto de desobediência abre um novo caminho. Manter-se no mesmo caminho, à revelia da direção do vento, acreditando que ele é o seu caminho para a vida toda ou o único caminho e tentar impingí-lo a outras pessoas... aí já é obedecer. Quando o biólogo chileno Humberto Maturana Romesin afirmou, no final dos anos 80, que relações hierárquicas, relações de subordinação, que exigem obediência, baseiam-se na negação do outro e que essas relações não podem ser consideradas relações propriamente sociais, alguns acadêmicos e bem-pensantes e, sobretudo, aqueles que se tinham por indivíduos muito “sérios” e “responsáveis”, ficaram meio escandalizados. Como assim? – perguntavam, indignados. Pois pensavam que, caso tais idéias heterodoxas (e perigosas) vicejassem, seria o caos! E a coisa piorou um pouco quando ele, Maturana (2009), duas décadas depois, ousou declarar que o liderazgo (a liderança), o xodó das teorias empresariais que floresceram nos anos 90, não era uma idéia nada boa, posto que “el liderazgo requiere que los liderados abandonen su propia autonomía reflexiva y se dejen guiar por otro confiando o sometiéndose a sus directrices o deseos...” (4). Mas o fato que até agora ainda não tivemos coragem de derivar todas as conseqüências dessas impactantes constatações de Maturana e desenvolvê-las no contexto da transição de uma sociedade hierárquica, que tende a fenecer, para uma florescente sociedade em rede, diante da emergência de múltiplos mundos altamente conectados de forma cada vez mais distribuída. Embora anunciador de uma visão pioneira sobre redes (que qualificou como “redes de conversações”), Maturana não reestruturou seu pensamento sob o influxo das visões contemporâneas inspiradas pela nova ciência das redes. Cabe a nós, que investigamos o assunto, dar continuidade aos seus insights geniais à luz da teoria e da prática de redes, quer dizer, do netweaving.

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Sim, netweaving. Se você quer mesmo aprender a “fazer” redes, então sua primeira “prova” é: desobedeça! Aprenda a desobedecer! Um netweaver é, por definição, um desobediente. Porque é alguém que, criativamente, caminha fora dos trilhos já estabelecidos por alguém. Mas a quem você deve desobedecer? Ora, a todos que querem obrigá-lo a obedecer. Em especial aos agentes do velho mundo hierárquico e autocrático cujos alicerces já estão apodrecendo, mas que continua, resilientemente, a nos assombrar. Dentre tais agentes, que são muitos, merecem ser destacados os que já foram tratados aqui: os ensinadores, os codificadores de doutrinas, os aprisionadores de corpos, os construtores de pirâmides, os fabricantes de guerras e os condutores de rebanhos. Desobedeça aos ensinadores. Aprenda o que você quiser, quando quiser e do jeito que você quiser. Aprenda com seus amigos. E compartilhe o que aprendeu com quem você quiser, gerando mais conhecimento. Guarde seus conhecimentos nos seus amigos, não na cabeça dos professores; nem nas instituições que sobrevivem trancando o conhecimento e estabelecendo caminhos obrigatórios, cheios de barreiras e permissões, para dificultar-lhe o acesso; ou, ainda, nos livros submetidos à normas odiosas de copyright. Conhecimento trancado apodrece. E não siga mestres de qualquer tipo: todos somos aprendentes. ‘Quando o “mestre” está preparado o discípulo desaparece’, quer dizer, ele não precisa mais da muleta chamada “discípulo”: pode se tornar, por si mesmo e em interação com outras pessoas, um aprendente, livre... e tão ignorante como todos nós. Mas enquanto eles estiverem pensando em conquistar discípulos, fuja dos “mestres”! Desobedeça aos codificadores de doutrinas. Não entre em suas armações, não replique seus discursos: pense com sua própria cabeça. Ria dos seus vaticínios e ameaças e ponha-se fora do alcance de suas patrulhas. Saia dos trilhos que eles assentaram, escape das valetas (os pré-cursos) que eles cavaram para fazer escorrer por elas as coisas que ainda virão. Recuse tudo isso: faça o seu próprio caminho. Desobedeça aos aprisionadores de corpos. Monte seu próprio empreendimento individual ou coletivo compartilhado, empresarial ou social. Corra atrás do seu próprio sonho ao invés de servir de instrumento para realizar o sonho alheio. Sim, você é capaz. A evolução investiu quatro bilhões de anos desenvolvendo seu hardware, que é igualzinho ao daquele

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cara esperto que quer capturá-lo e aprisioná-lo e que ainda por cima tem a desfaçatez de alegar que está fazendo um bem para a humanidade por lhe oferecer um emprego. Desobedeça aos construtores de pirâmides, em primeiro lugar, cortando o barato daquele “construtorzinho de pirâmide” que mora aí dentro de você: não faça patotas, não erija igrejinhas. Sim, é muito difícil resistir à tentação de juntar “os seus” e separá-los dos “dos outros”, mas – para quem quer fazer redes – é absolutamente necessário. E, sobretudo, abra mão de querer mandar nos outros. Em vez de arquitetar organizações tradicionais, a partir de organogramas centralizados, para realizar qualquer projeto ou trabalho, teça redes: quase tudo que se organizou até agora de forma hierárquica (com estrutura centralizada) pode ser organizado em forma de rede (com estrutura distribuída); menos, é claro, os sistemas de comando-e-controle. Em segundo lugar, nunca se enquadre docemente em sistemas de comando-e-controle. Se for obrigado a tanto para sobreviver, por um período (que não pode ser muito longo, do contrário você estará bloqueando seu desenvolvimento humano), faça-o resignadamente, mas sempre resistindo. Isso significa: não se curve a seu chefe, não lhe faça as vontades, vamos dizer assim, tão solicitamente. Não seja tão prestativo, subserviente, serviçal. Não caminhe um quilômetro a mais para agradá-lo. Não fique na penumbra, recuado, servindo de escada para ele subir ou se destacar. Não faça o jogo. Desobedeça aos fabricantes de guerras, esses hierarcas. Recuse-se a entrar em organizações militares ou para-militares de qualquer tipo. Recuse-se a entrar em qualquer organização política de combate, que pregue que o bem só será alcançado com a destruição do mal. Recuse-se a olhar o diferente como adversário em princípio: em princípio todo ser humano é um potencial parceiro de outro ser humano, não um inimigo. Recuse-se a construir inimigos. Recuse-se a entrar em organizações que elegem inimigos para ser eliminados: física, econômica, psicológica ou politicamente. A ética do netweaver é uma ética do simbionte, não do predador. Adote um comportamento pazeante para não cair na armadilha de travar uma guerra contra o mal, pois, assim procedendo, você mesmo estará gerando o mal ao construir inimigos em vez de fazer amigos, quer dizer, de fazer redes. Desobedeça aos condutores de rebanhos, esses líderes. Não os siga para parte alguma. Não se deixe conduzir, ser puxado pelo nariz ou guiado pelo

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cabresto como se fosse uma cavalgadura. Não existem guias geniais dos povos. Nos sistemas representativos, as pessoas que você elegeu são seus empregados (mandatados pelos eleitores), não seus patrões. Arrebanhamentos e assembleísmos são o contrário da interação humanizante entre as pessoas: transformam gente em gado, em contingente moldável e manipulável. Pule para fora desse curral. Aparte-se desse rebanho. “Inclua-se fora” dessas listas de excluídos que ficam olhando para cima de boca aberta, esperando pelas benesses de um salvador (pois o simples fato de pertencer a elas já é um indicador de exclusão, quer dizer, de incapacidade de pensar por si mesmo e de andar com as próprias pernas). Toda pessoa, se estiver disposta a desobedecer, será um alguém (com nome reconhecido) fora da massa, não apenas um número em uma estatística. Toda pessoa que desobedece, em um mundo ainda infestado por organizações hierárquicas, é um ponto fora da curva: alguém único, singular, insubstituível como você. Isto posto, é tudo. Mas ainda resta tratar das objeções dos bem-pensantes e dos indivíduos que se levam muito a sério e que se acham responsáveis. Você deve desobedecer às leis? De uma maneira geral, você nunca deve obedecer a pessoas, sejam elas quais forem. Dizendo de uma forma ainda mais ampla: você nunca deve obedecer a nenhuma individualidade portadora de vontade, real ou imaginária, humana ou extra-humana, seja ela qual for. Freqüentemente surge uma objeção: mas se as pessoas não obedecerem às normas da vida civilizada será o caos. Por isso, todos devem respeitar as leis. Será mesmo? Depende. Você não deve, por certo, romper com os pactos livremente celebrados por uma sociedade e que foram transformados em leis em um processo democrático. Dizer que a democracia é o império da lei significa dizer que não ela não é o império de pessoas. Obedecer às leis significa, então, não-obedecer a pessoas. Mas isso depende do processo que fabricou as leis. Você não tem obrigação moral de obedecer às leis das ditaduras. Assim, leis de exceção podem ser desobedecidas. Por princípio, elas não têm qualquer legitimidade.

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A legitimidade é o resultado da confluência de vários critérios democráticos: a liberdade, a publicidade, a eletividade, a rotatividade (ou alternância), a legalidade e a institucionalidade. Sim, não basta alguém ter sido eleito para ter legitimidade. Tais critérios – ou alguns deles – são violados não somente pelas ditaduras clássicas, mas também por protoditaduras e, ainda, se bem que em menor escala, por democracias parasitadas por regimes populistas manipuladores. Você mesmo avaliará até onde vão as normas estabelecidas por processos que violam os critérios acima. Se achar que violam, desobedeça-as. E esteja preparado para arcar com as conseqüências, é claro. Um princípio geral da ética do simbionte poderia ser: o único objetivo realmente humano (e humanizante) das leis é assegurar a convivência pacífica das pessoas. Você deve desobedecer aos dirigentes das organizações políticas a que pertence? Eis aqui outra questão recorrente. Liminarmente, você não deve pertencer a organizações que não tomam a democracia como um valor. Ora, com exceção das leis democraticamente aprovadas, a democracia não pode aceitar que alguém faça alguma coisa que não quer ou deixe de fazer alguma coisa que quer em virtude de sanção ou ameaça de sanção proveniente de instância hierárquica. Portanto, respeitado o pacto de convivência, é legítima a desobediência política e ninguém é obrigado a acatar uma decisão com a qual não concorde ou mesmo concordando não queira acatar, por medo de sanção, ainda que tal decisão tenha sido tomada por maioria. Obediência nada tem a ver com colaboração, que pressupõe adesão voluntária, seja por concordância, seja por resultado de convencimento ou por livre assentimento. Assim, em coletivos políticos de adesão voluntária, nenhum tipo de disciplina deve ser imposto e nenhum tipo de obediência deve ser exigida dos participantes, além daquelas às regras a que voluntariamente aderiram. Nenhum tipo de sanção pode ser imposta aos participantes, nem mesmo em virtude do descumprimento das regras a que voluntariamente aderiram. Todos têm o direito de não acatar decisões. Ordem, hierarquia, disciplina e obediência, vigilância (ou patrulha) e punição; e fidelidade imposta top down, são virtudes de sistemas autocráticos. Nada disso tem a ver com a democracia. Quanto mais autocrática for uma organização, mais ela insistirá na exaltação de tais

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“virtudes”. As razões para isso são tão claras que dispensariam comentários. Todas as organizações não-estatais e não baseadas em contratos (de trabalho ou de prestação de serviços) são (ou deveriam ser) constituídas por adesão voluntária. Em organizações voluntárias, “obedece” (ou melhor, acata) quem concorda. Querer exigir disciplina e obediência em relações sociais (stricto sensu) é um absurdo. Impor sanções para quem não obedece é uma violência e, como tal, um comportamento antidemocrático. Organizações que visem chegar à (ou praticar a) democracia (no sentido “forte” do conceito), não podem se organizar autocraticamente para atingir seus fins. Não existe caminho para a democracia a não ser a democratização contínua das relações; ou, parafraseando Mohandas Ghandi, não existe caminho para a democracia: a democracia é o caminho... Você deve desobedecer aos seus patrões? Outra objeção freqüente diz respeito à obediência àquele que paga o seu salário: como você pode não-obedecer aos seus patrões se tem que sobreviver? Uma boa regra geral seria: nunca trabalhe para alguém e sim com alguém (em vez de dizer trabalhe com alguém seria melhor dizer: empreenda com alguém). Todas as coisas podem ser feitas em parceria. A obediência não é necessária. Mas é você quem decide. Quanto mais você trabalha para alguém, menos alguém você é. O espírito de liberdade é a fonte de toda criatividade! Para sentir esse sopro criador só há uma via: desobedeça! Você não concorda e querem que você faça assim mesmo? Desobedeça! Uma pessoa (qualquer pessoa, em especial, a sua pessoa) vale muito mais do que a bosta de um emprego. É preciso considerar que a organização piramidal trabalha para o cume. Ou, dizendo de outro modo, a organização centralizada trabalha para o centro, para o chefe, para o líder. E as pessoas que trabalham em geral não aparecem, pois seu papel precípuo é o de fazer o chefe aparecer (ou ficar com o crédito por todas as realizações, inclusive por aquelas alcançadas pelo seu esforço e pela sua inteligência). Aí o chefe fica contente e mantém tais pessoas nas suas funções (empregadas ou contratadas). Se o chefe ficar muito contente com o resultado, pode até retribuir com uma promoção do "colaborador" que lhe fez tão bem as vontades.

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Ocorre que quando um conjunto de pessoas aplica seus talentos para promover uma atividade, todas as pessoas devem aparecer. Para quê? Ora, para poder ser reconhecidas, para poder compartilhar, aumentar e desenvolver esses talentos. Essa é uma característica central daquele tipo de inteligência tipicamente humana de que falava Humberto Maturana: uma inteligência que cresce e se realiza com a troca, com o jogo ganha-ganha, com a colaboração. Uma inteligência colaborativa. Se as pessoas abrem mão de fazer isso em prol da projeção de outras pessoas que estão acima delas na estrutura hierárquica, elas estão renunciando, em alguma medida, a exercer suas qualidades propriamente humanas. O diabo é que os funcionários burocráticos e outros empregados ou prestadores de serviços em organizações hierárquicas já introjetaram tão fundo as idéias que sustentam tais práticas, que o hábito, já não se diria de servir, mas de ser serviçal, se instalou no andar de baixo da sua consciência (?) e emerge como uma pulsão. Freqüentemente eles se escondem para promover seus superiores, tendo medo, inclusive, de proferir uma opinião própria em uma reunião, escrever um artigo em um blog, dar uma entrevista ou gravar um vídeo para um meio de comunicação. Essas pessoas até se orgulham de habitar a penumbra e se vestir de cinza, adotando a servidão voluntária e, com isso, violando sua própria humanidade ou, no mínimo, deixando de explorá-la e desenvolvê-la como poderiam. Alguns fazem isso taticamente (e imaginam que estão agindo conscientemente), em troca do emprego ou da contratação. Argumentam que se não obedecerem e fizerem a vontade dos chefes, perderão a remuneração sem a qual não terão como viver. Mas dá no mesmo. Se, para sobreviver, uma pessoa precisa castrar suas potencialidades, então tal sobrevivência não poderá ser digna. Um trabalho que deixe de promover o desenvolvimento humano de quem trabalha não pode ser digno. Os chefes, por sua vez – como aquele senhor de escravo, escravo do escravo, a que se referia Hegel, em outros termos – também estão aprisionados neste círculo desumanizante. Estão intoxicados pelas ideologias do comando-e-controle e do liderancismo, segundo as quais se não for assim, as coisas não funcionam. De que alguém tem sempre que liderar – quer dizer: mandar nos outros – para que uma ação possa ser realizada a contento. Por isso não se adaptam à cultura e à prática de rede, onde não é possível mandar alguém fazer alguma coisa contra a sua vontade.

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É por isso que organizar as coisas em rede distribuída é um desafio tremendo em um mundo ainda infestado, em grande parte, por organizações hierárquicas. Quando organizações hierárquicas se interessam por redes, quase sempre esse interesse é instrumental. Querem usar as redes para obter alguma coisa que fortaleça os seus objetivos e a manutenção das suas estruturas... hierárquicas! Seus chefes – e isso quando mais ilustrados – acham que usando as "tecnologias de rede" vão conseguir aumentar sua influência, seu poder ou, quem sabe, suas vendas (daí todo esse súbito interesse cretino pelo tal "marketing viral", de resto uma vigarice). As organizações hierárquicas – em termos do ser coletivo que se forma, diga-se: não, é claro, das pessoas que as integram – não vêem as redes como fim, como uma nova forma de interação propriamente humana ou humanizada pelo social, e sim como meio para alguma coisa não-humana. Sim, organizações hierárquicas de seres humanos geram seres não-humanos. A afirmação é forte, mas não há como dizer de outro modo se quisermos ir ao coração do problema. Entenda-se bem: as pessoas continuarão sendo humanas, mas o ser coletivo que se forma não será, posto que não será 'social' (naquele especialíssimo sentido que Maturana empresta ao termo). O principal é quebrar o círculo vicioso do poder. Em que medida você tem coragem de desobedecer e arcar com as conseqüências? Sua resposta a essa pergunta define o seu campo de liberdade e de possibilidade. Dependendo das circunstâncias, desobedecer pode acarretar demissão, reprovação, agressão, perseguição, condenação, prisão, tortura, mutilação e morte. Você não deve se suicidar. Quando não há condições objetivas para desobedecer (ou seja, quando isso colocar em risco a sua vida ou a vida de terceiros, a sua liberdade ou a liberdade de seus semelhantes) você deve avaliar cuidadosamente os riscos e as possibilidades. Mas nunca deve deixar de desobedecer interiormente. O que importa aqui é sua atitude, vamos dizer assim, espiritual, de desobediência. Não se curve, não se abaixe, não se deixe instrumentalizar, não se conforme em ser mandado, não colabore (voluntariamente) com o poder vertical. Desobedecer é, antes de qualquer coisa, resistir. Quando você resiste ao poder vertical, você estabelece uma sintonia com as grandes correntes de humanização do mundo, quer dizer, dos mundos-bebês que estão gestando o simbionte social. Quando você cede,

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sujeitando-se a alguém ou sujeitando outras pessoas a você (no fundo, dá no mesmo), contribui para desumanizar os mundos e a você mesmo. O mais importante é: não faça um pacto com a morte. Sim, toda vez que você vende sua alma, sujeitando-se a alguém ou toda vez que você sente um ímpeto de controlar alguém, é sinal de que uma pulsão de morte está irrompendo na sua vida. Se organizações hierárquicas de seres humanos geram seres não-humanos, ao obedecer voluntariamente aos chefes, enquadrando-se nas dinâmicas dessas organizações, você está, na verdade, subordinando-se a seres não-humanos. Ordem hierarquia disciplina obediência Eis é a seqüencia maligna, o círculo vicioso que deve ser quebrado pela saudável desobediência-fluzz (5).

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Inove permanentemente Colocar-se em processo de inovação permanente é viver em processo de Ítaca (ou em processo de fluzz) Nos Highly Connected Worlds estamos todos condenados a inovar permanentemente. Não se trata mais de buscar uma grande inovação para viver dela até o fim da vida: coroar uma bela carreira, inaugurar um grande empreendimento ou amealhar uma fabulosa fortuna. A inovação passa a ser o modo cotidiano de viver e conviver. A maior parte dos sistemas de inovação urdidos por organizações hierárquicas são, de fato, contra a inovação. Não querem a inovação, querem a inovação que eles querem. Ora, mas se eles já sabem qual é a inovação que deve acontecer, então não é inovação. Se fosse, não poderiam conhecê-la de antemão. Via de regra acabam constituindo escolas de inovação (que são túmulos para as novas idéias). Querem usar as novas idéias para justificar as velhas (porque suas escolas, lato sensu, nada mais são do que coagulações de velhas idéias). Em termos de idéias, a inovação acontece quando os muros epistemológicos são perfurados por hifas, viabilizando a polinização, a fertilização cruzada entre campos do conhecimento que foram separados (pelas escolas). Grande parte dos que falam em inovação não são inovadores. Inovador é quem inova, não quem fala como a inovação deve ser. Para inovar você deve fazer o contrário do que lhe dizem, do que querem ouvir de você, do que esperam que você faça. Simplesmente, faça diferente. Para tanto, você tem que ter liberdade. Como já foi dito, o espírito de liberdade é a fonte de toda criatividade. Você não pode inovar sob encomenda e vigilância de um sistema que quer que você inove, sim, ma non troppo. É como se lhe dissessem: inove, mas não exagere: não saia fora de nossa visão, não bagunce nossos processos, não desarrume nosso modelo de gestão. A mesma pulsão de morte que exige obediência para disciplinar a interação, quer também disciplinar a inovação. De modo geral, toda inovação é fluzz. Mas inovação-fluzz propriamente dita é aquela que aumenta a interatividade. Grandes inovações-fluzz serão, por exemplo, aquelas que favorecem a articulação de interworlds (por isso os inovadores-fluzz têm muito com que se ocupar na construção das novas internets distribuídas). Ou, dizendo de outro modo, na construção de

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“membranas sociais”. Ou, ainda, na remoção das separações: entre pessoas (inclusive entre pessoas que falam idiomas diferentes), entre quem busca e quem gera conhecimento, entre dispositivos tecnológicos e o corpo humano e entre pessoas e não-pessoas. Você quer inovar seguindo o curso (ou surfando na onda-fluzz)? Não seja por falta de pauta. Tudo que você inventar para remover a centralização das comunicações e para superar a descentralização da Internet (em direção a mais distribuição) será inovação-fluzz. Tudo que você inventar para oferecer alternativas às caixas-pretas onde alguém trancou um algorítmo, um programa, um conhecimento (para poder viver à custa de sua inovação aprisionada), será inovação-fluzz. Tudo que você inventar para derrubar a barreira da língua será inovação-fluzz. Tudo que você inventar para ensejar que cada busca crie novos significados, evitando que significados únicos sejam arquivados de modo centralizado, será inovação-fluzz. Tudo que você inventar para aproximar do corpo humano dipositivos tecnológicos nômades que intensifiquem a interação, será inovação-fluzz. Esses são apenas alguns exemplos, apresentados a título ilustrativo, para tentar tornar compreensível um sentido. A rigor, não há como fazer uma pauta concreta das inovações-fluzz porque uma verdadeira inovação-fluzz (como qualquer inovação) é aquela que sequer conseguimos imaginar antes que apareça. Isso não significa, entretanto, que não possamos afirmar que o sentido do curso é +interatividade. Além da desobediência aos que querem aprisioná-lo no mundo de baixa interatividade, para poder se colocar em processo de inovação permanente (ou em processo de Ítaca = em processo de fluzz) você precisa sair da prisão que você mesmo construiu para você ao se aquartelar no seu quadrado para enfrentar o “mundo exterior”.

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Saia já do seu quadrado “Cada um no seu quadrado, cada um no seu quadrado (4x) / Eu disse: Ado a-ado cada um no seu quadrado/ Ado a-ado cada um no seu quadrado” (6) Em geral, quando ouvem falar dos temas tratados neste livro, as pessoas dizem: “ - Legal esse papo de rede! Aqui na minha organização, acho que é meio cedo. Ainda estamos aprendendo. Gostaria de ver como funciona na prática. Você tem algum exemplo concreto?” Mas isso não é bom o suficiente. Se você não sair já do seu quadrado, nada pode ser feito. Entretanto, compreender e aceitar a possibilidade da organização em rede distribuída é um processo de aprendizagem mais árduo do que pensam aqueles que agora estão aderindo à moda meio ligeiramente. É um processo que exige uma varrição no subsolo onde estão fundeados os nossos pré-conceitos. Isso quer dizer que as principais resistências às redes não estão propriamente no terreno das idéias que comparecem nos debates, senão naquelas que em geral não se explicitam e a partir das quais formamos nossas concepções. A resistência está nos pressupostos não-declarados. Em qualquer lista tentativa desses pressupostos, comparecerão, pelo menos os quatro seguintes:

� O ser humano é inerentemente (ou por natureza) competitivo (totalmente ou parcialmente).

� As pessoas sempre fazem escolhas tentando maximizar a satisfação

de seus próprios interesses materiais (egotistas).

� Nada pode funcionar sem um mínimo de hierarquia.

� Sem líderes destacados não é possível mobilizar e organizar a ação coletiva.

Nossa “wikipedia memética” está lotada de significadores-replicadores como esses, que privilegiam e propagam determinadas interpretações baseadas na inevitabilidade da centralização. E o problema é que essa “wikipedia” não está arquivada somente nos nossos cérebros e sim na rede social que foi

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vítima de seguidas centralizações, em razão, justamente, da replicação de memes verticalizadores. O resultado prático dessa impregnação ideológica é que desconfiamos da colaboração. Intoxicados por esses pressupostos antropológicos – falsamente legitimados como científicos – até conseguimos aceitar a colaboração, mas em função da competição com quem está em outro quadrado. Ou – pelo inverso e de maneira aparentemente paradoxal – aceitamos a cooperação com alguns outros quadrados dentro de um campo (não raro para competir com quadrados que estão em outro campo), mas não nos organizamos de forma cooperativa dentro do nosso próprio quadrado. A contradição é apenas aparente: tudo, no fundo, é a mesma coisa. A observação cuidadosa revela que quando não aceitamos a cooperação com os “de fora”, também não conseguimos nos organizar de uma forma que facilite a cooperação entre os “de dentro”. E vice-versa. Nossa capacidade de aceitar o padrão de rede é função da forma como nos organizamos. Um ambiente organizacional favorável à cooperação é aquele cuja topologia é mais distribuída do que centralizada. Quanto mais distribuída for uma rede social, mais fácil é ensejar o fenômeno da cooperação. Ou, dizendo de maneira inversa, quanto mais centralizada for uma estrutura organizacional, mais ela gerará e emulará a competição e seus bad feelings acompanhantes, como a desconfiança. Ao contrário do que sugere o senso comum, a cooperação não é uma característica intrínseca do indivíduo, inata ou adquirida pela sua formação. Não decorre de nenhum gene nem da sua boa índole ou da sua alma generosa. Tal fenômeno se manifesta em função dos graus de distribuição e de conectividade da rede social em que uma pessoa está inserida. Quanto mais distribuídas e densas forem as redes sociais, mais elas terão capacidade de converter competição em cooperação, como resultado de sua dinâmica. Elas não convertem pessoas competitivas, beligerantes e possuidoras de forte ânimo adversarial em pessoas cooperativas, pacíficas e amigáveis. Ao favorecer a interação e permitir a polinização mútua de muitos padrões de comportamento, o resultado do “funcionamento” de uma rede social (distribuída) é produzir mais cooperação, como já descobriram (ou estão descobrindo) os que trabalham com o conceito de capital social. As pessoas podem continuar querendo competir umas com as outras, porém, quando conectadas em uma rede (distribuída), esse esforço não prevalece como resultado geral visto que, na rede, elas não podem impedir

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que outras pessoas façam o que desejam fazer, nem podem obrigá-las a fazer o que não querem. Sim, essa é a essência dos processos de comando-e-controle: mandar nos outros. Essa constatação pode até parecer meio óbvia, mas está longe disso. A prova é a nossa imensa dificuldade de aceitar o padrão de rede dentro de nossas próprias organizações. Nossa dificuldade de aceitar o padrão de rede é função da forma como nos organizamos e não da nossa falta de capacidade de entendimento do assunto. Hoje, como o tema virou moda, as pessoas gostam de falar em redes, no mínimo, para não parecerem ultrapassadas. Mas quando falam em redes, em geral, elas falam da conexão em rede de estruturas centralizadas. Os nodos não são redes. No seu próprio nodo não querem saber dessa conversa. E, para falar a verdade, nem se importam muito com a maneira como os outros nodos se organizam internamente, desde que... fique lá cada um no seu quadrado. É isso então: “Ado, a-ado, cada um no seu quadrado”. Meu “quadrado” é o meu bunkerzinho. É dali que eu enfrento o mundo em vez de me relacionar com ele com abertura. Pode-se argumentar que essa visão é característica do mercado (que tem uma dinâmica competitiva), mas o fato é que ela também comparece em outras formas de agenciamento, como a sociedade civil (cuja racionalidade é cooperativa). Nas empresas e em outras organizações de mercado, entretanto, é mais do que uma visão: é uma disposição emocional. Para além de uma racionalidade, é uma emocionalidade que induz a replicação de comportamentos. Por isso é tão difícil para a cultura empresarial aceitar de fato as redes sociais. A cultura empresarial foi contaminada por uma ideologia construída sobre o mercado. É claro que, mesmo do ponto de vista puramente racional, há um problema com a visão que foi construída sobre o mercado, quer dizer, com a visão que parte dos pressupostos assumidos pelos que propagam o liberalismo de mercado. É uma visão que valoriza e emula o chamado “instinto animal” do empreendedor, imaginando que o resultado variacional da confluência das ações de miríades de agentes animados desse espírito belicoso do conquistador, será, ao fim e ao cabo, o do incremento produto. Essa visão, por sua vez, é legitimada pela crença de que o ser humano é por natureza assim mesmo e que cada indivíduo gera suas preferências a

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partir de uma perspectiva egocêntrica. A interação desses múltiplos inputs seria então capaz de estabelecer uma autoregulação no plano em que se estabelece (quer dizer, no do próprio mercado). Mas como tal esquema não garante coesão social, é preciso escorá-lo com uma concepção política segundo a qual caberia a uma estrutura de poder, supostamente acima das partes, resolver os dilemas da ação coletiva estabelecendo top down a regulação, emitindo normas a partir do Estado ou de outra instância centralizada capaz de cumprir esse papel. Nesse esquema, como se pode ver, não há lugar para a autoregulação societária. E é por isso que, para o liberalismo econômico e sua ‘ciência do crescimento’ – a chamada Economics – a sociedade civil não é uma forma de agenciamento capaz de subsistir por si mesma. Sim, aqui ainda estamos em Hobbes. Padrão variacional de mudança no mercado combinado com lógica normativa do Estado e... nada mais (como provocava Margaret Thatcher no final dos anos 80: “And, you know, there is no such thing as society”) (7). Eis a concepção de mundo que foi produzida. No limite, o mercadocentrismo (não o mercado, mas a ideologia que foi construída sobre o mercado), como qualquer ideologia de raiz hobbesiana, é sempre hierarquizante e autocratizante e, assim, está longe de ser um liberalismo em termos sócio-políticos. Tudo isso contaminou a cultura empresarial, sobretudo das grandes empresas (invariavelmente mancomunadas com o Estado para gerar isso que chamamos de capitalismo), na medida em que essa ideologia foi disseminada pelos novos sacerdotes da modernidade – os economistas – que, ademais, adquiriram status científico e trabalham sempre no complexo Estado-Empresa, legitimados pela Universidade. Das grandes empresas, essas crenças extravasaram para as médias e pequenas, cujo sonho não é serem-bem o que são, mas se tornarem grandes. De sorte que uma cultura mais cooperativa só consegue penetrar em certas brechas abertas pela assimetria da competição mercantil: por exemplo, pequenas empresas de um setor aceitam estabelecer laços cooperativos entre si – formando sistemas sócio-produtivos (como os arranjos produtivos locais) – não para compartilhar e inovar a partir da polinização mútua ou da fertilização cruzada de diferentes visões de gestão, processo e produto, mas para concorrer com as grandes e médias empresas ou com outros clusters de pequenas empresas. A cooperação é então compreendida, aceita e justificada pela necessidade de adquirir condições mais competitivas.

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Não se pode aprender muito sobre redes em organizações hierárquicas. Só muito recentemente, algumas empresas começaram a se dar conta de que um padrão de organização mais favorável à cooperação – tanto internamente, quanto no âmbito dos seus stakeholders – pode ter alguma coisa a ver com sua capacidade de se adaptar tempestivamente às mudanças do meio em que estão inseridas. Colocou-se então, para além da questão da competitividade (e da qualidade e da produtividade como atributos conexos), a questão da sustentabilidade. Mas tal não foi suficiente para alterar os, digamos, drives dos agentes empresariais. Mesmo os mais avançados, que já foram capazes de perceber que tudo que é sustentável tem o padrão de rede e, assim, conseguiram entender a necessidade da transição de sua forma de organização hierárquico-vertical ou centralizada para formas mais horizontais ou distribuídas, mesmo estes, não conseguem mudar seu “código-fonte”. E não conseguem fazê-lo simplesmente porque continuam se organizando de forma hierárquica. Eis o ponto! Até as empresas de consultoria estratégica que atuam na perspectiva dessa transição (e mesmo as que declaram trabalhar com redes sociais) permanecem se organizando de forma mais centralizada do que distribuída. E as teorias e metodologias que aplicam em seus clientes empresariais continuam reforçando visões e práticas hierarquizantes. Um bom exemplo disso são as crenças liderancistas que proliferaram nas últimas décadas, segundo as quais haveria pessoas, por alguma razão, predestinadas a captar pioneiramente as mudanças, que deveriam se destacar das demais, caminhando à sua frente a fim de conduzi-las para o futuro que anteviram. A ideologia do liderancismo fornece um bom exemplo da dificuldade de entender as redes sociais. Pois quando falam em líderes os adeptos do liderancismo empresarial estão, na verdade, falando de monoliderança. Não querem muitos líderes e sim apenas alguns (aqueles que se destacam): se muitos puderem liderar, desconstitui-se o papel do líder, pelo menos dentro de cada fortaleza organizativa. Ou melhor, eles até querem líderes, no plural, sim, mas... cada um no seu quadrado. Mais uma vez é isso: “Ado, a-ado, cada um no seu quadrado”. Ora, as redes (distribuídas) constituem ambientes favoráveis à emersão da multiliderança. Mas a observação acrítica de que sempre tem alguém que lidera, que puxa, do contrário a coisa não anda, reforça as tão ingênuas quanto interesseiras crenças liderancistas.

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Bastaria experimentar uma organização em rede distribuída para ver surgir o “misterioso” fenômeno (o da multiliderança). Ah! Mas esse passo eles não querem dar, porque têm medo de... perder a liderança! Trata-se aqui, como parece óbvio, do monopólio da liderança, que, na sua raiz, está inegavelmente associado não propriamente à propriedade, mas ao uso que dela se possa fazer (diretamente, no caso dos donos; ou por delegação, no caso dos CEOs ou altos dirigentes) para ocupar uma posição de comando-e-controle; quer dizer: para mandar nos outros. A interpretação do líder que se destaca e que seria capaz de ver o que os outros não são capazes e que seria, portanto, capaz de comandar e controlar seus “colaboradores” em prol do bem-comum agrada a todos, vendedores e compradores. Os dirigentes hierárquicos têm seu ego fortalecido e obtêm mais um argumento de peso para justificar seus processos discricionários de tomada de decisões. E ficam motivados para comprar serviços e metodologias baseados nessa metafísica. Mas caminha em direção contrária aos ventos da mudança da sociedade hierárquica para a sociedade em rede. E constitui um obstáculo à necessária transição do padrão de organização das empresas e de outras instituições. É claro – e ninguém pode negar – que existem pessoas visionárias, mais antenadas para captar as tendências e capazes de ver à frente dos seus contemporâneos. O problema é que não se pode atribuir essa “capacidade” a uma condição intrínseca do sujeito, independentemente das funções exercidas por ele nas redes sociais em que está inserido. E, fundamentalmente, não se pode associar essa capacidade às posições ocupadas por ele em organizações hierárquicas, fazendo um raciocínio primário do tipo: se o cara está ali naquela posição é porque demonstrou que é um líder destacado, logo... ele tem (ou tem mais chances de ter) as condições (genéticas ou culturais) de captar as mudanças e tem também não apenas o dever mas o direito de conduzir as outras pessoas. Mas posições em estruturas verticais de comando-e-controle são diferentes de funções exercidas em estruturas horizontais de relacionamento. O que confere capacidades extraordinárias a alguns indivíduos, além, é claro, do seu esforço, são as funções assumidas por eles na dinâmica coletiva das fluições que os atravessam e não as posições ocupadas nos degraus da escadinha do poder de mandar nas outras pessoas. Em outras palavras, líderes são expressões do capital social (são produzidos, por assim dizer, em grande parte, pela fenomenologia da rede) e não o resultado de uma competição entre diferentes unidades de capital humano para ver quem chega primeiro. O recente estudo de Malcolm Gladwell (2008) – Outliers – é bastante ilustrativo a esse respeito (8).

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Tudo é aceitável, menos mexer no meu quadrado, disse o reizinho. O problema com as organizações hierárquicas é que elas são capazes de aceitar qualquer nova moda, qualquer linguagem vanguardista e qualquer metodologia revolucionária justificada pela metafísica mais influente da hora, suposta ou realmente sintonizada com o Zeitgeist, mas – dos pontos de vista dos padrões de organização e dos modos de regulação – querem continuar sendo como são! Ou como acham que são. Ou como querem ser (9). Isso é mais freqüente nas empresas. Dirigentes empresariais mostram-se predispostos a comprar qualquer coisa inusitada, mesmo aquelas que vêm justificadas por esquemas míticos de interpretação do mundo, da natureza e do ser humano (basta ver o incalculável número de consultorias que proliferou na esteira da New Age) ou aderem, pressurosos, às novas “religiões laicas” que surgem (sobretudo após a falência das grandes narrativas ideológicas utópicas do século 20, como as que hoje pretendem “salvar o planeta” do aquecimento global) desde que: a) não questionem e propriedade; e b) não questionem as formas de organização baseadas no acesso diferencial à propriedade para estabelecer mecanismos de comando-e-controle (mas é aí que está o problema). Tudo é aceitável, menos mexer no meu quadrado, que delimita o perímetro do meu reino. Sim, pode-se dizer o que se quiser, mas não se pode, honestamente, deixar de encarar o fato de que as empresas – assim como a maior parte das organizações – ainda são monárquicas em um mundo que, pelo menos no que tange às sociedades consideradas mais desenvolvidas, já superou as monarquias (absolutistas) há bem mais de um século. O reizinho não se preocupava muito com a maneira como os outros povos (estrangeiros) se organizavam. Mas lá no seu reino, êpa! Aqui mando eu. Era isso: “Ado, a-ado, cada um no seu quadrado”. Se você não está disposto a sair do seu quadrado, abandonando o seu reino, não vai conseguir entrar em outros mundos. Para você, essa conversa de mundos-bebês em gestação não passará de uma divagação abstrata, de uma metáfora sem sentido, de uma especulação ociosa e sem aplicação prática. É justo. Um rei deve ter mesmo a responsabilidade de manter o mundo em que reina (o que significa que ele é o primeiro-escravo do seu reino). Sair do seu quadrado não é bombardear, incinerar, demolir a sua organização, seja ela qual for, tenha ou não fins lucrativos. É iniciar a

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transição do padrão hierárquico dessa organização para um padrão de rede (10).

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Inicie agora a transição

Nos já descobrimos a “fórmula”: é a rede distribuída Para iniciar a transição do padrão hierárquico de organização para um padrão de rede, você precisa ser um netweaver. A transição da organização hierárquica para a organização em rede (mais distribuída do que centralizada) é o grande desafio glocal, não de nosso tempo (posto que tal não existe mais como um mesmo tempo para todos) e sim de todos os tempos. Como fazer isso? Pode parecer incrível, mas nós já temos a resposta. Embora, a rigor, não haja nenhuma fórmula, nós já descobrimos a "fórmula" da transição do padrão hierárquico para o padrão rede. Essa "fórmula" é a rede (distribuída). Dito assim, causa surpresa. Mas é, exatamente, isso mesmo. Estamos, já faz tempo, dando voltas na questão para não ir ao centro da questão: articular e animar redes distribuídas. Quase sempre é difícil ver o óbvio. E o óbvio, aqui, é o seguinte: se queremos efetuar a transição de uma sociedade ou organização hierárquica (centralizada ou multicentralizada) para uma sociedade ou organização em rede (distribuída), nada mais nos cabe fazer senão netweaving. O nosso problema não está no desconhecimento da "receita" e sim na nossa incapacidade de mostrar que ela é eficaz. Na verdade, o que nos falta são os argumentos suficientes para convencer os hierarcas e seus prepostos das organizações (governamentais e não-governamentais) de que é possível, sim, re-organizar as coisas em um padrão distribuído. Não é o caminho (a direção e o sentido do movimento a ser feito) que nos falta e sim o discurso convincente, os exemplos e as tecnologias (e metodologias) para promover e conduzir tal transição. Como não conseguimos "vender" a idéia, achamos que não temos a "fórmula". Mas nós já temos a "fórmula". Achamos que não temos porque, na maior parte dos casos, não queremos nos organizar – nós mesmos – segundo um padrão de rede distribuída. Então montamos uma empresa de consultoria ou uma ONG hierárquica e queremos sair por aí "vendendo o nosso peixe" para outros hierarcas. É claro que o sujeito (potencial cliente de nossos

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serviços ou tecnologia) desconfia da nossa conversa. Logo de cara pergunta onde tal coisa foi aplicada com sucesso. Quer conhecer as best practices, porque não quer entrar em uma aventura, seguir um maluco qualquer que anda pregando algo que pode colocar em risco seu negócio ou seu projeto. Uma organização hierárquica copia a outra. É por isso que todas as organizações do mesmo setor ou ramo de negócio ou atividade são tão parecidas. Não somente seus projetos, produtos e serviços são similares, mas também seus processos de produção, seus modelos de gestão e seus sistemas de governança. Se você chega lá falando uma coisa diferente, sua proposta é de pronto considerada out of topic. E há uma associação, tácita e involuntária na maior parte dos casos (e em alguns casos voluntária: quando existe corrupção), entre compradores e vendedores de tecnologias e metodologias. Por quê? Ora, porque organizações hierárquicas competem entre si (e quando colaboram é para competir com outras organizações hierárquicas). A competição nivela e, mais do que isso, torna os competidores semelhantes. Em qualquer disputa você, mais cedo ou mais tarde, adquire as características do seu adversário. É aquela história: para lutar com o urso você adquire garras de urso. Então o comprador quer comprar o que seus concorrentes compram para não ficar para trás. Mas, ao fazer isso, perde completamente a originalidade e reduz sua capacidade de inovar. E, ainda que não desconfie disso, perde também capacidade de “viver” (ou reduz suas chances de alcançar sustentabilidade). Bem, mas aí você chega lá falando da transição do padrão de organização e o seu interlocutor quer ver suas credenciais, seu portfólio, seus cases. E você não tem nada disso para apresentar. Tem apenas as suas idéias... Idéias de que uma organização em rede é mais produtiva, mais inovadora e mais sustentável do que uma organização hierárquica. Mas suas idéias não valem muito. E os que olham para você com desconfiança, têm certa razão. Porque não é o seu conhecimento que vai conseguir transformar aquela organização hierárquica em uma organização em rede e sim a maneira como as pessoas vão passar a se relacionar dentro da organização. Seu papel – ao contrário do que muitos acreditam – não é fazer a cabeça dos decisores da organização. Em geral eles são pessoas inteligentes o suficiente para entender suas idéias. Mas isso não adianta porque a organização hierárquica, a despeito do que acreditam seus dirigentes, continuará funcionando na dinâmica do comando-e-controle.

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Seu papel – se você é, por exemplo, um consultor estratégico voltado à inovação e à sustentabilidade – é desencadear uma mudança nos padrões de convivência entre as pessoas da organização. Mas não são as idéias que mudam os comportamentos. São novos comportamentos que podem gerar novos comportamentos. Ninguém muda se não muda o seu viver. Nenhuma organização muda se não muda o seu conviver. Os chamados modelos mentais são sociais. As mentes não são cérebros individualmente parasitados por idéias e sim nuvens de computação da rede social onde rodam determinados programas meméticos. Esses velhos programas não param de rodar enquanto os graus de distribuição e de conectividade dessa rede social não mudam. E enquanto você, que quer ser um agente da mudança, não muda o seu viver e o seu conviver, também não pode desencadear qualquer mudança. Se, por exemplo, você vier com esse papo de rede, mas trabalhar a partir de uma organização hierárquica, não terá condições de introduzir mudanças. Seu padrão de relacionamento (da sua organização) com a organização que você quer transformar será conservador e não inovador. Não se trata de coerência. É bom não misturar os canais. Não estamos aqui no terreno do discurso ético. Trata-se da capacidade de introduzir estímulos que podem se replicar em um sistema alterando o comportamento dos agentes do sistema. Isso exige outro padrão de consultoria que não aquele do técnico que vai lá vender o seu conhecimento para quem quiser pagar o preço. Só é possível realizar essa consultoria se você for parte do processo, como um dos nodos da rede dos stakeholders da organização. Não é uma aplicação tecnológica ou metodológica que possa ser feita por um agente desinteressado, neutro, imparcial. Você também é transformado na interação. Se não for, não haverá mudança alguma. Os caras vão fazer de conta que acreditam no seu discurso, vão experimentar suas tecnologias e metodologias e, no final, você vai sair mais ou menos como entrou e a organização vai ficar mais ou menos como você a pegou. Vai passar a ter um novo discurso – materializado formalmente em novas declarações sobre visão, missão, valores – mas o conviver que expressa os seus fluxos cotidianos permanecerá (quase) inalterado. Hierarquia (ordem top down, disciplina, obediência, monoliderança), desconfiança e inimizade, competição, comando-e-controle são características de programas verticalizadores que rodam na rede social da organização. Não são os indivíduos – ou as idéias que estão dentro das cabeças deles – os responsáveis pela reprodução dessas disposições e sim a

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configuração e a dinâmica dos arranjos em que as pessoas foram colocadas para viver e conviver. Esses programas verticalizadores (ou softwares centralizadores) já estão rodando há tanto tempo que modificaram o hardware. Não é possível desinstalá-los a partir do discurso ou fazendo a cabeça das pessoas. É necessário mudar o hardware. Como? Ah! Basta aplicar a "fórmula" que – não é demais repetir – nós já descobrimos. Basta alterar a topologia e a conectividade da rede social composta pelos stakeholders da organização. Se fizermos isso, vão emergir conexões em rede (ordem bottom up, liberdade, autonomia, multiliderança), confiança e amizade, colaboração e auto-regulação como características de programas horizontalizadores (ou softwares distribuidores) que poderão (então) rodar nos novos arranjos em que as pessoas vão passar a viver e conviver. Não é necessário mudar os indivíduos. É necessário mudar o padrão de relacionamento entre eles (quer dizer, mudar as pessoas). Mas por onde começar para obter tal resultado? Articulando uma rede distribuída dentro da organização (uma espécie de embrião da rede na qual a organização vai se tornar). Essas pessoas conectadas em rede terão a liberdade de propor mudanças e construir "espelhos" (em rede) dos mecanismos e processos de governança, gestão e produção que estão organizados hierarquicamente. Por exemplo, vão reconfigurar os departamentos, seções ou áreas administrativas da organização, superpondo, às caixinhas do velho organograma, novos clusters onde as pessoas vão se aglomerar por afinidade (segundo a máxima: "a melhor pessoa para realizar um trabalho é aquela que deseja fazê-lo"). Vão criar redundâncias mesmo, em todos os lugares em que isso for possível. Na verdade, vão criar uma outra (nova) organização dentro da velha. Mas isso não vai dar uma confusão danada? É claro que vai. Criar uma espécie de Zona Autônoma Temporária (11) dentro da organização, não é uma coisa trivial. Há o risco de bagunçar os atuais processos que, bem ou mal, estão permitindo que a organização sobreviva e muitas vezes se destaque na competição com suas congêneres. Por outro lado, o que se pode ganhar com isso, caso a transição consiga se realizar, é muito mais do que se pode ganhar com qualquer suposta inovação – em geral cosmética – lançada pelas consultorias estratégicas organizacionais da moda, cujo principal resultado é fazer você ficar igualzinho a seus concorrentes. Os

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indicadores de produtividade, inovação e, sobretudo, de sustentabilidade que uma organização em rede pode alcançar não são comparáveis aqueles que podem ser atingidos por uma organização hierárquica. Não há comparação porque o que muda aqui é a própria natureza da organização. A organização em rede deixará de ser uma unidade administrativo-produtiva isolada e passará a ser uma coligação móvel de stakeholders. Isso significa que ela não contará apenas com os capitais econômicos e extra-econômicos, sempre limitados, que seus investidores ou constituidores são capazes de aportar. Para dar um exemplo, em termos de capital humano, ela não terá à sua disposição apenas algumas dezenas ou centenas (ou, em alguns casos, poucos milhares) de cérebros que contratou e é capaz de pagar e sim dezenas e centenas de milhares. Assim, não terá as dificuldades inerentes – e os custos correspondentes – do aprisionamento de corpos (que sustentam os cérebros alugados) que foi capaz de realizar e funcionará, em grande parte, lançando mão do peer production e do crowdsourcing. A organização em rede importará a custo zero (ou por baixo preço) capital social (que é um recurso caríssimo) do meio onde está situada. Se as populações locais começarem a fazer parte da rede de stakeholders da organização, elas também farão parte da comunidade de negócios ou de projeto em que ela se transformará. Isso reduzirá drasticamente os famosos custos de transação, além de trazer outras vantagens inimagináveis atualmente.

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Afinal, redes são apenas (múltiplos) caminhos

“Ah, sim, isso é evidentemente óbvio” De que transição se trata? Da transição da organização hierárquica para a organização em rede (entendendo-se por isso, a rigor, o aumento dos graus de distribuição-conectividade). Transição evoca caminho. Mas não existe um caminho, em primeiro lugar, porque os caminhos são múltiplos (aliás, rede é, por definição, múltiplos caminhos). Mas também não existe caminho para se chegar a um padrão de rede, em segundo lugar, porque a maneira de ter +rede é tendo +distribuição. Em outras palavras: a rede é o caminho! Não é possível chegar às redes a não ser pelas redes. Mohandas Ghandi disse certa vez que "não existe caminho para a paz: a paz é o caminho". John Dewey, antes de Ghandi – e Amartya Sen, muito depois – já haviam sugerido que não existe caminho para a democracia a não ser a própria democracia. Com as redes é a mesma coisa: 'não existe caminho para as redes: as redes são o caminho'. A paráfrase não é apenas literária. Há uma relação intrínseca entre essas realidades processuais – paz, democracia e redes: na verdade não há paz, senão +pazeamento; e não há democracia, senão +democratização; e não há redes, senão +enredamento ou +reticulação ou, ainda, +distribuição. Entendida assim, processualmente, a problemática da transição deixa-se ver sob nova luz. Trata-se de aumentar os graus de distribuição-conectividade na rede social conformada pelas pessoas afetadas, de algum modo, pela vida orgânica: não só os empregados e os gestores, mas também os donos ou acionistas, os fornecedores, os clientes, usuários ou consumidores e todas as outras pessoas concernidas na atividade da organização (os chamados stakeholders, lato sensu). Qual é a novidade aqui? A novidade é a seguinte: isso tem que ser feito agora, não depois. Não pode haver uma transição para uma organização em rede mantendo-se intocado o padrão centralizado atual (+centralizado do que distribuído, entenda-se) em nome de um futuro padrão de rede (+distribuído do que centralizado). Essa é a desculpa para não mexer nos

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graus de centralização e é por isso que uma transição assim não costuma dar certo. Na transição não existe o futuro a não ser na medida em que o antecipamos. Se não anteciparmos padrões de rede, nunca teremos um futuro de rede. Se queremos chegar às redes, temos que começar, aqui-e-agora, a fazer redes; quer dizer: netweaving. A rede é o caminho! Mas como fazer redes? Não há um guia, um verdadeiro how-to. Por isso, fuja dos receituários. Todos esses receituários contemporâneos que pretendem ensinar a fazer redes, em geral não servem porque confundem redes sociais com midias sociais. Então elencam 5 passos, recomendam 10 medidas, sugerem 15 procedimentos, dão 20 dicas para você usar melhor (?) o seu blog ou alguma plataforma interativa da moda como o Twitter e o Facebook. Mas não falam nada sobre seus encontros com seus amigos na sua casa, nos restaurantes, nas festas, nos seus locais de estudo e trabalho. Ou seja, não falam das redes sociais propriamente ditas. Para aprender, você tem que começar a fazer. Começar conversando, no mínimo, com outras duas pessoas (que não podem estar acima nem abaixo de você em qualquer sentido). Depois você vai ver o que acontece. O essencial é que você não mande em ninguém, nem obedeça a alguém. Só redes podem gerar redes. Os que querem assumir o papel de agentes, indutores, facilitadores, promotores da mudança, não poderão fazer nada se eles mesmos não se organizarem em rede (ou seja, de modo +distribuído do que centralizado). Esta é uma daquelas argumentações evidentes por si mesmas, das quais falava Wittgenstein (1931) em conversa com Friedrich Waismann – e narrada por este último em Ludwig Wittgenstein and the Vienna Circle (1979) – que seriam capazes de provocar no interlocutor uma reação do tipo: "Ah, sim, isso é evidentemente óbvio" (12).

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Mundos-bebês em gestação | 10 (1) Referência a um artigo de Pierre Lèvy: Op. cit. (2) No final de 2010 as pessoas fingiam que não viam, mas a situação do mundo único – baseado no equilíbrio competitivo internacional, uma estrutura descentralizada de menos de duas centenas de Estados – já estava ficando muito complicada: expansão do capitalismo autoritário na China e em outros continentes, inclusive com uma espécie de neocolonização econômica da África, domínio crescente do fundamentalismo islâmico em todos os países árabes e no Oriente Médio, perpetuação de governos de assassinos da KGB (FSB) na Rússia, avanço do parasitismo democrático via neopopulismo na América Latina, democracia nos Estados-nações claramente em recuo, restando apenas 26 países (menos de 13% da população mundial) em que o regime democrático representativo vigorava em plenitude. (3) BRABO, Paulo (2007): Op. cit. (4) MATURANA, Humberto et all. (2009): “Ethical matrix of human habitat” (texto enviado pelos autores para uma lista restrita de discussão). (5) Esta seção intitulada “Desobedeça” é a terceira versão do texto de FRANCO, Augusto (2010). Desobedeça: uma inspiração para o netweaving (2ª Versão). Slideshare [5.168 views em 30/01/2011] <http://www.slideshare.net/augustodefranco/desobedea> (6) Refrão da “Dança do Quadrado”, música de origem desconhecida utilizada por Sharon Aciole com o objetivo de animar o pessoal nas praias de Porto Seguro no verão de 2007 e que acabou virando um hit no Brasil em 2008. Ouça aqui antes de ler: <http://migre.me/knQS> (7) "I think we've been through a period where too many people have been given to understand that if they have a problem, it's the government's job to cope with it. 'I have a problem, I'll get a grant.' 'I'm homeless, the government must house me.' They're casting their problem on society. And, you know, there is no such thing as society. There are individual men and women, and there are families. And no government can do anything except through people, and people must look to themselves first. It's our duty to look after ourselves and then, also to look after our neighbour. People have got the entitlements too much in mind, without the obligations. There's no such thing as entitlement, unless someone has first met an obligation”. Prime minister Margaret Thatcher, talking to Women's Own magazine, October 31 1987. (8) GLADWELL, Malcolm (2008): Op. cit.

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(9) Como disse certa vez um mestre sufi da Turquia a um grupo de visitantes (citado recentemente por uma pesquisadora conectada à Escola-de-Redes), “as pessoas no ocidente são engraçadas; elas dizem: ‘eu sinto muito, mas eu sou assim’, quando, na verdade, elas nem sentem muito e nem são assim”. Cf. Bia Machado em <http://escoladeredes.ning.com> (10) Esta seção intitulada “Cada um no seu quadrado” é a segunda versão do texto de FRANCO, Augusto (2009). Cada um no seu quadrado: algumas notas sobre o difícil aprendizado das redes sociais nas organizações hierárquicas. Slideshare [1.088 views em 30/11/2011] <http://www.slideshare.net/augustodefranco/cada-um-no-seu-quadrado-3215261> (11) Referência ao texto seminal BEY, Hakim (1984). TAZ – Zona Autônoma Temporária: Op. cit. Disponível para download em: <http://www.4shared.com/get/88283715/b2c341c8/TAZ_-_Hakim_Bey.html> (12) WAISMANN, Friedrich (1979). Ludwig Wittgenstein and the Vienna Circle. New York: Routledge, 2003.