Fogo Morto Adaptado

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  • 7/28/2019 Fogo Morto Adaptado

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    FOGO MORTO obra de Jos Lins do Rego

    Adaptao dos acadmicos de Direito da UNDB 2 Perodo Vespertino.

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    Breve aviso

    Caros colegas

    A pea ser desenvolvida da seguinte forma:

    1 A segunda parte do livro (O Engenho de Seu Lula) ficar sendo a

    primeira parte da pea. Assim, a histria ser contada na ordem

    cronolgica dos acontecimentos.

    2 Existe a necessidade de narrao dos fatos para que o pblico possa

    se ambientar. Contudo, a narrao ficaria muito engessada, sem

    dinamismo. Por isso recorremos a uma ttica que est descrita no item

    3.

    3 A histria ser contada do ponto de vista de dois amigos que

    conversam sobre a poca. Eles iro contar a histria. Enquanto isso, os

    atores representaro as cenas, sem necessidade de muitas falas. Os

    atores tero fala somente nas partes verdadeiramente importantes.

    4. O formato do texto a seguir, apresenta a CENA, entre parnteses esto nome dos personagens daquela cena. Entre colchetes est detalhes da

    cena, comportamento dos personagens.

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    CENA 1

    (Professor Carlos, Joo da Cacimba)

    [ O dilogo comea sem mostrar os dois personagens. Depois eles entram e passam

    conversando de um lado para o outro do cenrio conversando]

    PROFESSOR CARLOS

    J vi muita coisa aqui nesse serto Joo da Cacimba. Muita coisa mesmo.

    JOO DA CACIMBA

    Serto pra cabra macho mesmo cumpadi. Homem de fibra o nosso nordestino.

    PROFESSOR CARLOS

    Ah compadre, mas todos esto sujeitos a serem atingidos pela flecha certeira

    da desesperana e da desgraa na vida. Veja a historia do seleiro Jos Amaro

    como uma coisa triste de se contar.

    JOO DA CACIMBA

    No conheo no. Quando cheguei aqui ele no existia mais.

    PROFESSOR CARLOS

    O homem que virava lobisomem....

    JOO DA CACIMBA

    [Para, olha pro professor. surpreso e assustado]

    Como que ?! Ele virava bicho?

    PROFESSOR CARLOS

    Te acalma. Isso histria do povo meu compadre... histrias do povo. Eu

    conheci o tempo das vacas gordas nessa regio. Tempo dos engenhos, do Santa

    Rosa e principalmente do Santa F

    JOO DA CACIMBA

    [ apontando para um banco no canto do cenrio]

    Vamos sentar ali cumpadi e voc me conta um pouco enquanto chega a hora do

    jantar e no se esquea de falar do lobisomem.

    PROFESSOR CARLOS

    Pode ser compadre.....

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    CENA 2

    (Professor Carlos, Joo da Cacimba, Capito Toms, Lula,

    Jos Amaro e Capito Vitorino )

    PROFESSOR CARLOS

    [ Sentado no banco, conversando]

    Sabe compadre Joo, ns j tivemos muita pujana no nosso serto. Muitos

    engenhos eram verdadeiras potencias, mquinas de fazer dinheiro s custas da

    cana e dos negros escravos.

    JOO DA CACIMBA

    E aqueles trs que o senhor falou, eram todos coronis?

    PROFESSOR CARLOS

    [ enquanto fala, surgem passando pelo cenrio os personagens

    citados na fala]

    No. Capito Toms era muito rico. Mas nem todas as suas moedas de ouro

    compraram um final feliz para ele. Lula de Holanda era um aproveitador,

    preguioso, malvado que terminou por se redimir. Z Amaro era a imagem do homem

    livre de amarras, mas amargurado com a vida. E capito Vitorino, bem esse era

    um destemido sua maneira.

    JOO DA CACIMBA

    Cumpadi mas como comeou essa histria. O tal capito tomas sempre morou aquinessas bandas?

    PROFESSOR CARLOS

    Nada disso. Ele chegou um tempo a vindo l do Ing do Bacamarte.Tinha um

    dinheiro de famlia, tinha gado e escravos. Quando chegou comprou o terreno e

    se fixou.

    [mostrar o cap.tomas dando ordens a escravos no trabalho da plantao de cana.

    Os escravos com ferramentas. Outros com sacos na cabea carregando a produo]

    Era um homem muito trabalhador. Ele e a mulher, dona Mariquinha.

    Todos os seus dias, desde quando chegou na regio, eram dedicados ao seu

    engenho. Trabalhava duro mesmo. E Assim ele se manteve at ver o seu engenho

    produzindo e ele ganhando um bom dinheiro.

    JOO DA CACIMBA

    E a mulher dele era gente boa?

    PROFESSOR

    [ mostrar mariquinha em uma cozinha]

    Se era. Uma santa. Vivia para o trabalho. Ajudava capito Toms o quanto podia,

    na cozinha, cuidando dos negros escravos. Sempre dedicada ao trabalho. Assim

    como ele, so tinha sossego quando a noite caia.

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    CENA 3

    (Capito Toms, Mariquinha)

    [sentados mesa, ele conversa com dona Mariquinha.

    Conta moedas e faz anotaes]

    CAPITO TOMS

    Mariquinha. Nosso trabalho ta dando resultado mesmo. Acabei de chegar da

    cidade. O engenho j est produzindo e o dinheiro entrando.

    MARIQUINHA

    mas S a gente sabe como trabalhamos pesado todo esse tempo.

    CAPITO TOMS

    verdade. E voc sabia que o povo ainda ta maldando porque eu mesmo vounegociar minha produo? Acho que queriam que eu fosse como um lorde.

    MARIQUINHA

    Deixa o povo.

    CAPITO TOMS

    Deixo mesmo. Cada um com sua vida. Eu no vivo em festa. No dou festa. Tenho

    que guardar dinheiro pra educar nossas filhas.Educao em Recife custa caro e

    eu no quero filha como certas mulheres que eu vejo por a.

    MARIQUINHA

    Ouvi dizer que na redondeza o povo diz que a gente no d sossego pros escravos

    CAPITO TOMS

    Mas escravo no pro trabalho? Eu que no sou negro s vivo para a minha

    obrigao, para o meu trabalho, imagine....

    CENA 4

    (Joo Cacimba, Professor)

    Ah cumpadi, e era assim? Ento ele no era um homem mal no. Porque escravo era

    propriedade. Ele s usava a propriedade dele para o trabalho

    PROFESSOR CARLOS

    Ento Joo. Era um tempo difcil para o povo negro. Dentro do seu conceito, ele

    estava correto e alm do mais, ele evitava maltratar os negros, no era como

    certos donos de engenho que s viviam com os negros no tronco, debaixo de vara.

    JOAO CACIMBA

    E as filhas dele, viviam mesmo la pro Recife?

    PROFESSOR CARLOS

    Amlia e Olivia. Duas moas muito bonitas. Amlia a mais velha, foi so terminar

    os estudos voltou para o Engenho

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    CENA 5

    (capito Toms, Mariquinha, Amlia)

    MARIQUINHA

    No vejo a hora de Amlia chegar. Estou com muita saudade da minha filha. Eesse piano Toms, ser que Amlia sabe mesmo tocar?

    CAPITO TOMS

    Claro que sabe. Nossa filha prendada. No como essas moas que tem por a

    no. Vivem a fumar seus cachimbos e no sabem nem assinar o nome. Tem dinheiro

    mas no tem o conhecimento. Por isso mandei Amlia estudar em Recife. Fala

    francs,toca at piano.

    AMLIA

    [Amlia chega na porta e chama os pais. Entra e abraa os pais]

    Ai pai e me, senti tanta falta de vocs. No via a hora de chegar aqui no

    Engenho. Como ta diferente no ? O nosso engenho cresceu.

    [ ela se assusta ao ver o piano]

    Pai o que isso que eu estou vendo?

    CAPITO TOMS

    para voc minha filha. Quero que o povo veja que voc tem cultura.sei que

    eles me chamam de camumbembe, de matuto. Mas eu me preocupei com a educao das

    minhas filhas. Botei em colgio de freiras, no Recife.

    [Amlia agradece aos pais com um abrao e depois senta para tocar o piano]

    CENA 6

    (Capito Toms,Mariquinha, escravos, Amlia)

    JOO DA CACIMBA

    Rapaz esse coronel era invocado mesmo. At piano ele comprou pra filha?

    PROFESSOR CARLOS

    Era o nico instrumento em toda a redondeza. Foi preciso 20 escravos pra

    transportar na cabea. Enquanto 10 carregavam, outros 10 acompanhavam

    descansando.

    JOO DA CACIMBA

    Um homem desses tinha viso. Podia ter entrado pra poltica

    PROFESSOR CARLOS

    Olha compadre, voc tem noo da coisa. E no que ele foi poltico? Foi do

    Partido Liberal.Chefiou o Partido por estas bandas de c e foi presidente da

    Cmara de vereadores.

    [mostrar o capito de terno a caminho da cmara)

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    O povo passou a ter considerao por ele. No era mais visto como o matuto de

    antes. Mas continuava trabalhando de sol a sol. O nico dia em que capito

    Toms, dona mariquinha e seus escravos saiam da rotina era no domingo.

    Era o dia em que todos se ajuntavam na casa para ouvir Amlia tocar piano.

    Capito TOMS

    Amlia, toque um pouco para o seu pai. [depois ele deita]

    [aos poucos os negros comeam a chegar. Dona mariquinha chega tambm na sala

    para ouvir]

    CAPITO TOMS

    [depois da msica]

    Vamos gente. Cada um procurar o que fazer. Hoje domingo. Amanha tem muito

    trabalho.

    [os negros saem. Amlia se despede dos pais e os dois ficam a conversar]

    Capito Toms

    [com um caderno na mo e contando o dinheiro]

    Mariquinha esse negcio de emprestar dinheiro uma coisa boa. J emprestei

    pra muita gente. Todos me pagam e d tudo certo.

    Tudo que planejamos aqui saiu certinho. S uma coisa ainda no deu certo.

    MARIQUINHA

    O que Toms. O que que esta dando errado?

    CAPITO TOMS

    No se trata de dar errado. Apenas ainda no deu certo. arranjar um casamento

    pra nossa filha. Aqui no tem homem pra ela. Gastei muito dinheiro pra ela

    estudar, prendada. No posso entregar para qualquer um. Melhor ficar pra

    titia.

    J pensei nos filhos de Manuel Cesar do Taipu. Esses so doutores, mas tratam

    mulher como bicho.Amlia uma seda, uma flor de jardim.

    CENA 7

    (Joo da Cacimba, professor Carlos)

    JOO DA CACIMBA

    compadre se fosse eu tambm no entregaria minha filha nas mos de qualquer

    um no. Ainda mais sendo uma moa to prendada

    PROFESSOR CARLOS

    Mas isso relativo Joo. Como saber quem um bom partido?

    JOO DA CACIMBA

    complicado. Mas deve a gente v uma pessoa quando fina. Educada, calma.

    Sabe falar. Isso j ajuda muito.

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    PROFESSOR CARLOS

    Te acalma... isso pode no ser indicativo de uma boa pessoa.

    JOO DA CACIMBA

    Como no professor? O que no pode indicar uma boa pessoa quando o sujeito bruto.

    PROFESSOR CARLOS

    Pois vou agora te contar a historia da chegada de Lula de Holanda aqui na

    regio.

    CENA 8

    (Capito, Lula, Mariquinha, Amlia )

    [na casa do capito um homem chega com uma mala]

    LULA

    de casa, bom dia.

    CAPITO TOMS

    Bom dia. Pode falar, est procurando por quem?

    LULA

    Eu me chamo Luis Cesar, sou filho de Antonio Chacon

    CAPITAO

    Oh meu rapaz. Que surpresa. O filho do meu amigo em minha casa.

    [ pega a mala do rapaz e o puxa pra dentro]

    CAPITO TOMS

    Vamos entrar. [grita] Mariquinha, venha ver um parente meu que chegou.

    Olha Mariquinha. Esse filho de Antonio Chacon, que foi um bravo homem, meu

    parente. Ele vai passar uns dias com a gente.

    PROFESSOR CARLOS

    Luis era um sujeito cerimonioso. Boa aparncia, barba bem feita, fala mansa.

    Logo conquistou a todos.

    JOO DA CACIMBA

    Ento esse no era o mesmo Lula que as pessoas conheceram e falam mal por aqui.

    Esse tal lula mala.

    PROFESSOR CARLOS

    Te acalma....

    Luis Chacon passou um bom tempo na casa. Ele e Amelia se deram bem. Todas as

    tardes ele pedia pra ela tocar o piano e ficava ouvindo.

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    Dona mariquinha servia caf na sala. Servia ch, biscoitos e ficava admirando

    aquela situao.

    O velho capito gostava de ver aquilo e tinha a esperana de que ele pedisse a

    mo da sua filha.

    Logo passou a chama-lo carinhosamente de LULA.

    JOO DA CACIMBA

    Eita. Era o mesmo homem. Ento me contaram a historia errado. Porque me

    disseram que era o capeta em forma de gente.

    PROFESSOR CARLOS

    Te acalma Joo...

    CENA 9

    (Mariquinha, Negra.....)

    MARIQUINHA

    Sabe fulana, esse rapaz homem srio. o ideal pra casar com Amlia. O

    capito faz gosto nisso. Ta esperando que ele pea a mo dela. desse tipo de

    marido que ela precisa pra ser feliz e no ser como eu que trabalho dia e

    noite.

    LULA

    [ chega com a mala]

    Gente, como eu j disse estou indo pro Recife. [se despedem] Preciso ir.

    CENA 10

    (Joo da Cacimba, Professor Carlos, Capito Toms,Leopoldo, Domingos, me de

    Domingos, Amlia, Mariquinha )

    JOO DA CACIMBA

    Professor, at agora voc no falou nada da outra filha do capito. J emendou

    a histria desse Lula e no falou da moa. Que fim levou?

    PROFESSOR CARLOS

    Ah Joo. A historia triste. Ela ficou muito doente no Recife. Ficou doente da

    cabea e passou muito tempo l. O pai quando descobriu chegou a ir l e nem

    pode traz-la pra c. Ele entrou em depresso. No tinha mais animo para nada.

    Passou muito tempo assim.

    S levantou da doena no dia que fugiu o negro Domingos. Ele resolveu sair

    atrs e rodou at encontrar o fujo e mandar Leopoldo amarrar o negrinho no

    tronco. A surra foi grande, ficou falada porque ele no tinha o hbito de bater

    nos negros, mas nesse foi diferente.

    [ negro domingos, gritando no tronco enquanto apanha]

    AMLIA

    Meu pai, tire Domingos do tronco. J est bom de surrar o pobre negro.

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    CAPITO TOMS

    Deixa menina. Ele me fez desfeita. Fez eu rodar meio mundo atrs dele e ainda

    tive que pedir favores pra um e pra outro pra trazer ele de volta. Nunca mais

    ele fugir do seu senhor.

    ME DE DOMINGOS

    Meu senhor, tenha piedade do Domingos. Meu filho no vai mais fugir. Eu peo

    perdo por ele.

    CAPITO TOMS

    [ de olhar fixo no horizonte]

    Amlia [fala em tom mais alto] toca aquela msica triste que eu gosto tanto

    [amlia comea a tocar]

    CAPITO TOMS

    [de repente se levanta e grita]

    Para Leopoldo.

    [a me de domingos chora aos ps da dona mariquinha na cozinha.

    Amlia sorri satisfeita]

    CAPITO TOMS

    [se afasta, como se estivesse pensando]

    Ah meu Deus. E minha filha Olivia continua doente naquele recife. Longe da

    gente. Tenho que ir busca-la para perto da sua famlia.

    CENA 11

    (capito Toms, Mariquinha)

    [o capito recebe uma cart. Lendo a carta ele chama a mulher]

    CAPITAO TOMS

    Olha Mariquinha. carta de Lula. Aconteceu o que a gente esperava.

    [ a mulher chega apressada]

    MARIQUINHA

    O que houve tomas. O que foi que aconteceu com Lula?

    CAPITO TOMS

    No aconteceu com ele. Aconteceu que ele mandou uma carta pedindo a mo de

    amlia em casamento.

    MARIQUINHA

    Olha que maravilha. Ela vai ficar feliz.

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    CENA 12

    (Joo da cacimba, Professor Carlos, Capito, Mariquinha, Lula, Amlia, Olvia)

    JOO DA CACIMBA

    E eles casaram, professor? J sei. Ela foi morar em Recife

    PROFESSOR CARLOS

    Te acalma..... A coisa foi diferente. Passado algum tempo, o capito trouxe a

    filha Olivia para casa. Ela passava o dia falando bobagens sozinha. Quanto

    tinha crises, falava alto. Conversava com pessoas imaginrias.

    Quanto ao casal, Lula passou a morar no engenho depois do casamento. Foi um

    pedido do capito e de dona mariquinha que queria a filha por perto.

    Mas em pouco tempo Lula passou a desagradar o sogro. A mansido dele era na

    verdade uma preguia para o trabalho. O capito reclamava para todos aqueles

    com quem conversava que Lula queria passar as tardes ouvindo amlia tocar

    piano. Quando no estava ouvindo o piano, passava todo o tempo lendo jornais.

    O capito chegou a insinuar que Lula deveria ajud-lo. Mas o homem no se

    tocava. O negcio dele era ouvir a mulher tocar piano.

    JOO DA CACIMBA

    O cabra era um leseira ento?

    PROFESSOR CARLOS

    E era esse mesmo termo que o capito usava para falar de lula. Certo dia chegoua dizer que todos o estavam chamando de banana e exigiu que ele se apresentasse

    para o trabalho.

    Dia aps dia era a mesma rotina. Isso no podia agradar a um homem como o

    capito Tomas. Quando ele tentou falar com ele, o homem ainda se mostrou

    ofendido.

    Quando recebeu a notcia da gravidez de Amlia o capito pensou que fosse a

    oportunidade de Lula se preocupar em trabalhar. A criana nasceu mas nem assim

    Luls quis nada com a vida. Continuou vivendo a vidinha dele.

    JOO DA CACIMBA

    Esse cabra era carudo heim? Chega, agarra a filha alheia e no d um prego

    numa barra de sabo? At eu queria um casamento desses.

    PROFESSOR CARLOS

    Pra voc ver Joo. Era isso mesmo. Mas um dia a coisa mudou. Foi quando o

    escravo Domingos resolveu fugir novamente. Nessa segunda fuga ele levou uns

    cavalos do capito.

    JOO CACIMBA

    Esse Domingos no era gente.

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    PROFESSOR CARLOS

    Ele era meio arisco mesmo Joo. O fato que depois da fuga de Domingos, o

    capito foi junto com Lula atrs do escravo e foi muito desconsiderado por onde

    passou. Ele chegou a ir at numa fazenda em que guardavam cavalos roubados e

    no resolveu nada.

    O choque foi to grande pra ele, que ele entrou novamente em depresso. E desse

    vez no teve mais melhora. Todas as pessoas que iam visit-lo saiam tristes.

    Era um ambiente de tristeza aquele engenho. O capito prostrado pra um lado e a

    filha Olivia doente pra outro. Sempre delirando.

    JOO DA CACIMBA

    No entendo o motivo dessa prostrao

    PROFESSOR CARLOS

    Ora Joo, para certas pessoas importa muito o orgulho. O Capito se sentiuhumilhado por no conseguir trazer uma propriedade sua de volta, o escravo era

    sua propriedade. Domingos voltou amarrado pelo capito do mato, mas nem isso

    melhorou o estado do Capitao. Se sentia derrotado, humilhado, sem honra.

    JOO DA CACIMBA

    E o tal Lula, nem assim tomou tendncia na vida?

    PROFESSOR CARLOS

    Lula saiu daquele marasmo e tomou a frente nos negcios. Mas no tinha jeito

    pra coisa. S andava de gravata. E no sabia ser um bom gerente do engenho.

    Caiu na boca do povo da regio. Principalmente porque ele no gostava dos

    escravos e deu pra maltratar os negro. Mas s at o dia em que dona Mariquinha

    soube. Ela chamou Lula pra conversar e tirou ele da frente do engenho

    MARIQUINHA

    Meu genro eu soube que os negros andam apanhando muito e isso eu no concordo.

    Meu marido um homem duro, mas humano. E voc, todo cheio de mesuras, mas

    tem se mostrado um homem impiedoso. No passa um dia sem um escravo no tronco,

    apanhando. De que adianta voc ir todo domingo na missa se no tem corao?

    LULA

    Negro no para se poupar. por isso que aquele negro Domingos aprontou com

    ele. Essa desgraa se abateu sobre ele por causa da tolerncia com essa raa

    MARIQUINHA

    Domingos j foi vendido. Vendi para evitar problemas. Meu marido um homem de

    bom corao. Eu penso muito no futuro da minha filha ao seu lado. Todo manso,

    mas por qualquer coisa d ordens para surrar os negros. Isso no posso admitir.

    CENA 13

    (professor Carlos, Joo da Cacimba, Mariquinha, escravos)

    PROFESSOR CARLOS

    Foi a que dona Mariquinha passou a comandar o engenho. Se mostrou to

    eficiente quanto o capito.

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    Ela cuidava da casa e do engenho. Dava ordens pros escravos e era considerada

    por toda a regio.

    JOO DA CACIMBA

    Rapaz esse Lula era mala mesmo. O povo aumenta mas no inventa. Como que pode

    o cabra ser malvado assim.

    PROFESSOR CARLOS

    Ah Joo naquele tempo os homens que tinham poder eram muito rudes. Difcil se

    encontrar pessoas que davam tratamento bom para os negros.Muitos deles davam

    escravos para as filhas, so para judiarem dos pobres. Tinha uma filha de um

    dono de engenho que brincava com uma negrinha. Tinha uma negrinha so pra ela

    beliscar e judiar da menina.

    [ mostrar a cena]

    JOO DA CACIMBA

    Ainda bem que no alcancei esse tempo. Se uma peste dessas me beliscasse eu

    mandava uma mordida nela. Nem que eu fosse pro tronco. Mas ia com honra....

    Professor, e o capito. Nunca mais se recuperou?

    PROFESSOR CARLOS

    No Joo. Nunca mais. Um dia amanheceu morto. E a tristeza se abateu ainda mais

    sobre o Santa F. Tristeza e confuso.

    JOO DA CACIMBA

    J sei. O mala do Lula assumiu tudo e botou a sogra pra correr...

    CENA 14

    (Juiz, Lula, Mariquinha)

    [sentados na sala de audincia do juiz]

    LULA

    Seu juiz. Eu sou o homem da casa. Por isso estou reivindicando o direito de dar

    as ordens.

    MARIQUINHA

    Com que autoridade? Esse engenho foi construdo por mim e pelo meu marido.

    das nossas filhas. No seu.

    JUIZ

    Nada disso seu Lula. J ouvi o depoimento de toda a famlia. J ouvi pessoas da

    comunidade l prximo do Engenho Santa F. Todos sabem da competncia da

    senhora Mariquinha para tocar o empreendimento. No h porque transferir essa

    responsabilidade para o senhor. Ela a proprietria e a ela caber decidir

    sobre todas as coisas do engenho. Esta a deciso.

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    CENA 15

    (Mariquinha, Amlia, escrava, Lula)

    JOO DA CACIMBA

    Ah agora entendi. A justia acerta quando quer no professor?

    PROFESSOR CARLOS

    Era o direito dela Joo. A propriedade era dela.

    JOO DA CACIMBA

    E da? A gente v tanta injustia nessas decises. MAS Nessa o juiz acertou.

    Ento agora to entendendo. Foi a velha que botou ele pra correr de casa.

    PROFESSOR CARLOS

    Te acalma. Quem disse isso? Eles continuaram vivendo na mesma casa. Sem falarum com outro. Ele perdeu a moral na regio. Onde andava era apontado como o

    homem que quis tomar o engenho da sogra. E o pior ele ainda fez. Ele penalizou

    a sogra aps o nascimento da filhinha. Ela no podia se aproximar da neta.

    Quando chegava perto era s escondidas para no provocar a ira de Lula.

    JOO DA CACIMBA

    Rapaz, que homem medonho

    PROFESSOR CARLOS

    Ento. E o resultado dessa histria triste que dona Mariquinha foi ficando

    cada vez mais triste. As negras que eram escravas contam que ela chorava muito

    na cozinha. Se lastimava do genro ser um homem to duro. Juntava esse desprezo

    e a doena de Olivia e fez dela uma mulher doente. Amlia sentia mas no ficava

    do lado da me.

    LULA

    Eu j disse que no quero essa mulher perto da minha filha.

    MARIQUINHA

    Voc no uma criatura humana. um monstro.

    [ Amlia tenta intervir]

    AMLIA

    Calma mame... Lula no assim...

    MARIQUINHA

    Que histria de no assim. desse jeito. Do jeito que estou dizendo. Um

    homem desalmado que so pensa em si. Tenho pena de voc minha filha.

    LULA

    Cala a boca velha doida

    MARIQUINHA

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    Ponha-se para fora desta casa.

    LULA

    Aqui mando eu tambm. Aqui mando eu tambm [repetiu]

    [Mariquinha sai chorando]

    JOO DA CACIMBA

    E ele no foi embora mesmo no professor?

    CENA 16

    (professor Carlos, Joo da Cacimba, Mariquinha, escravos, Lula, Amlia )

    PROFESSOR CARLOS

    Que nada. Contam as negras do engenho que essa foi a ultima discusso dos dois.

    Segundo elas, depois desse dia, dona Mariquinha no saiu mais do quarto at quepoucos dias depois morreu e Lula passou a ser o senhor do engenho.

    JOO DA CACIMBA

    J sei e os negros se ferraram? Deve ter matado todos eles no tronco.

    PROFESSOR CARLOS

    S no matou por causa da Abolio. Logo que assumiu o comando, Lula reuniu os

    escravos. Queria todo mundo rezando a ave-maria todas as tardes. Para ele as

    rezas para So Cosme e So Damio era coisa de feitiaria. O homem no

    respeitava nem os negros, quanto mais a cultura deles.

    Amlia substituiu a me na cozinha. Passaram a viver unicamente no Engenho. No

    tinham amigos. So quem ainda visitava o casal era o padre, o cnego Frederico.

    E Lula conhecido por ser sovino, ia logo alertando para o padre no fazer

    nenhum pedido.

    O feitor Deodato continuava com muito servio. Todo dia tinha um ou dois negros

    para dar uma surra.

    JOO DA CACIMBA

    Coitada da Amlia no professor? Criada com tanto carinho e cuidado. E agora

    servindo de escrava para um marido como esse.

    PROFESSOR CARLOS

    O pior era o remorso dela por no ter ficado do lado da me nas discusses com

    o marido. Agora via o que a me passou todos os anos em que viveu trabalhando

    duro na cozinha. Ela ficou grvida novamente, mas a criana nasceu morta.

    Amlia no tocava mais o piano. No tinha mais alegria.

    Depois da abolio. Ficaram cada vez mais sozinhos.

    CENA 17

    (escravos, Lula, Nenem)

    [festejam. So livres. Vo todos embora. A critrio dos atores]

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    PROFESSOR CARLOS

    Em muitos engenhos os escravos permaneceram depois da abolio. Eram amigos dos

    patres. No Santa F no. Todos os negros foram embora correndo, fazendo festa.

    Queriam era distncia do Lula carrasco.

    Nas ruas o povo no o considerava. Todos o chamavam de malvado. Quando ia missa, parecendo um beato, todos consideravam aquilo uma hipocrisia.

    JOO DA CACIMBA

    E ele faliu professor? Gente pra trabalhar ele no tinha mais

    PROFESSOR CARLOS

    A verdade, meu caro. que o engenho a cada ano caia um pouco. Lula envelheceu

    rpido, principalmente depois da doena.

    JOO DA CACIMBA

    Que doena?! S se for maldade. Mas maldade no doena.

    PROFESSOR CARLOS

    Ele tinha ataques Joo. Mais de uma vez caia babando. A pobre da dona Amlia

    no sabia o que fazer. Dpois dos ataques o homem ficava de olho esbugalhado,

    sem nimo para nada. Uma vez teve at um ataque na igreja.

    Mas eles continuavam a vida deles. A filha voltou do Recife. Se repetia a

    histria da sua me Amlia. Todos os dias Lula pedia que a filha tocasse piano

    para ele. Era o seu momento de esquecer-se de tudo. Esquecer at da terrvel

    doena de que era portador.

    ------------------------

    PEA TEATRAL: FOGO MORTO

    Sentado no seu tamborete, o velho Jos Amaro parou de falar. Ali estavam os

    seus instrumentos de trabalho. Pegou no pedao de sola e foi alisando,

    dobrando-a, com os dedos grossos. A cantoria dos pssaros aumentara com osilncio. Os olhos do velho, amarelos, como que se enevoaram de lgrima que no

    chegara a rolar. Havia uma mgoa profunda nele. Pegou do martelo, e com fora

    de raiva malhou a sola molhada. O batuque espantou as rolinhas que beiravam o

    terreiro da tenda.

    Laurentino: Bom dia, mestre Z foi dizendo o pintor Laurentino a um velho, de

    aparncia doentia, de olhos amarelos, de barba crescida.

    Jos Amaro: Est de passagem, seu Laurentino?

    Laurentino: Vou a Santa Rosa. O coronel mandou me chamar para um servio de

    pintura na casa-grande. Vai casar filha.

    Jos Amaro: Vai trabalhar para o velho Jos Paulino? bom homem, mas eu lhe

    digo: estas mos que o senhor v nunca cortaram sola para ele. Tem sua riqueza,

    e fique com ela. No sou criado de ningum. Gritou comigo, no vai.

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    Laurentino: Grita, mas bom homem, mestre Z.

    Jos Amaro: Eu sei. A bondade dele no me enche a barriga. Trabalho para homem

    que me respeite. No sou um traste qualquer. Conheo estes senhores de engenho

    da Ribeira como a palma da minha mo. Esta a, seu lvaro custa a pagar. duro

    de roer, mas gosto daquele homem. No tem este negcio de grito, fala manso.

    homem de trato. Isto de no pagar no est na vontade dele. Tambm aqueleAurora no ajuda a ningum.

    Laurentino: Muito trabalho, mestre Z?

    Jos Amaro: Est vasqueiro. Estou perdendo o gosto pelo ofcio. J se foi o

    tempo em que dava gosto trabalhar numa sela. Hoje esto comprando tudo feito. E

    que porcarias se vendem por a! No para me gabar. No troco uma pea minha

    por muita preciosidade que vejo. Se eu fosse pedir o que pagam na cidade, me

    chamavam de ladro. mestre Jos Amaro sabe trabalhar, no rouba ningum, no

    faz coisa de carregao. Ls no querem mais os trabalhos dele. Que se danem.

    Aqui nesta tenda s fao o que quero.

    L de dentro da casa ouviu-se uma voz:

    Marta (filha de Jos Amaro): Pai o almoo est na mesa.

    Jos Amaro: Espera que j vou gritou o velho. No estou mouco. Seu

    Laurentino, no faa cerimnia. A casa sua. Fique para comer com a gente. Tem

    pouca coisa, mas d.

    O pintor Laurentino aceitou o convite. O velho Jos Amaro foi j dizendo para

    dentro de casa:

    Jos Amaro: Sinh tem gente para o almoo.

    Enquanto se ouviu rumor de vozes no interior da casa o mestre foi falando

    Jos Amaro: Estou velho, estou acabado, no tive filho para ensinar o ofcio,

    pouco me importa que no me procurem mais. Que se danem. O mestre Jos Amaro

    no respeita lio de ningum.

    Dentro de casa o cheiro de sola fresca recendia mais forte que selas

    arrebentadas, e pelo cho, pedaos de sola enrolados. Uma mulher mais velha do

    que o mestre, apareceu.

    Dona Sinh (mulher de Jos Amaro): Bom dia, seu Laurentino. O senhor vai

    desculpar. O Zeca tem cada uma! almoo de pobre.

    Laurentino: Nada dona Sinh, s fiquei porque no sou homem de cerimnia. Pobre

    no repara.

    O mestre Jos Amaro, arrastando a perna torta, foi se chegando para a mesa

    posta, uma pobre mesa de pinho sem toalha. E comeram o feijo com a carne-de-

    cear e toucinho torrado. Para o canto estava a filha Marta, de olhos para o

    cho, com medo. No deu nenhuma palavra, s falava o mestre:

    Jos Amaro: Sou pobre, seu Laurentino, mas no fao vergonha aos pobres. Esta

    a minha mulher para dizer. Aqui nesta minha porta tem parado gente rica, gente

    lorde, para me convidar para isto e aquilo. No quero nada. Vivo de cheirar

    sola nasci nisto e morro nisto. Tenho esta filha que no um aleijo.

    Dona Sinh: Zeca tem cada uma... Deixa a menina.

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    Jos Amaro: O que que estou dizendo demais? Tenho esta filha, e no vivo

    oferecendo a ningum.

    A moa baixou mais a cabea. Era plida, com os seus trinta anos, de pele

    escura, com os cabelos arregaados para trs. O mestre Jos Amaro olhou firme

    para ela e continuou:

    Jos Amaro: No se casa porque no quer. de calibre, como a me.

    Dona Sinh: Cala a boca Zeca! A gente no est aqui para ouvir besteira.

    Jos Amaro: Eu no digo besteira, mulher. Se no quiser me ouvir que se retire.

    Estou falando a verdade. s isto que me acontece, ouvir mulher fazer m-

    criao.

    A o mestre Jos Amaro levantou a voz.

    Jos Amaro: Nesta casa mando eu. Quem bate sola o dia inteiro, quem est

    amarelo de cheirar sola, de amansar couro cru? Falo o que quero, seuLaurentino. Isto aqui no casa de Vitorino Papa-Rabo. Isto casa de homem.

    As mulheres foram se levantando da mesa. E o mestre saiu de sala. Havia um p

    de bogari cheirando na biqueira. A sombra da pitombeira crescia mais ainda

    sobre a casa. O mestre Jos Amaro olhou para estrada, para os fins da vrzea

    muito verde.

    Jos Amaro: o que lhe digo, seu Laurentino. Voc mora na vila. Soube

    valorizar o seu ofcio. A minha desgraa foi esta histria de bagaceira.

    verdade que senhor de engenho nunca me botou canga. Vivo nesta casa como fosse

    dono. Ningum manda no mestre Jos Amaro. Aqui moro para mais de trinta anos.

    Vim para aqui com meu pai que chegou corrido de Goiana. Coisa de um crime queele nunca me contou. O velho no contava nada. Foi coisa de morte, esteve no

    jri. Era mestre de verdade. S queria que o senhor visse como aquele homem

    trabalhava na sola. Uma pea dele foi dada pelo baro de Goiana ao imperador.

    Foi pra trs. Veio cair nesta desgraa. a vida, seu Laurentino. O mestre Jos

    Amaro no homem para se queixar. Estou somente contando. Aguento no duro.

    Laurentino: Mestre Z, me desculpe, mas tenho que ir andando.

    Jos Amaro: cedo, homem, deixa o sol quebrar.

    O pintor Laurentino foi saindo...

    Parou na sua porta um negro a cavalo.

    Negro Leandro: Boas tardes, mestre.

    Jos Amaro: Boa tarde, Leandro. Est de viagem?

    Negro Leandro: Nada no, mestre Z. Vou levando um recado para o delegado do

    Pilar que o seu Augusto do Oiteiro mandou.

    Jos Amaro: Houve crime por l?

    Negro Leandro: Duas mortes. O negcio que havia uma dana na casa de Chico de

    Naninha, e apareceu um sujeito da Lapa, l das bandas de Goiana, e fechou otempo. Mataram o homem e um companheiro dele. Vou dar notcia ao major Ambrsio

    do assucedido.

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    Jos Amaro: Este Ambrsio um banana. Queria ser delegado nesta terra, um dia

    s. Mostrava como se metia gente na cadeia. Senhor de engenho, na minha unha,

    no falava de cima para baixo.

    Negro Leandro: Seu Augusto no homem para isto, mestre Z.

    Jos Amaro: Homem, no estou falando de seu Augusto. Estou falando da laiatoda. No est vendo que, comigo delegado, a coisa no corria assim? Aonde j

    se viu autoridade ser como criado, recebendo ordem dos ricos? Estou aqui no meu

    canto mas estou vendo tudo. Nesta terra s quem no tem razo pobre.

    TERCEIRA PARTE - CAPITO VITORINO

    Numa noite de escuro, Antnio Silvino atacou o Pilar. A guarda da cadeia

    correra aos primeiros tiros, e aos poucos soldados do destacamento ganharam omato s primeiras notcias do assalto. Os cangaceiros soltaram os presos,

    cortaram os fios do telgrafo da estrada de ferro e foram casa do prefeito

    Napoleo para arras-lo. O comendador no estava no Pilar. Mas D. Ins, a sua

    mulher, recebeu-os com uma coragem de espantar. O capito Antnio Silvino pediu

    as chaves do cofre e ela, com o maior sangue frio, foi-lhe dizendo tudo que era

    de chaves de responsabilidade estava com o marido. O cangaceiro ameaou de

    botar fogo no estabelecimento e D. Ins no se mostrara atemorizada. E ficou na

    sala de visitas, tranquila, muda, enquanto os homens mexiam nos quartos,

    furavam colches, atrs do dinheiro do velho Napoleo. Havia dois caixes

    cheios de nqueis, de moedas de cruzados, de tostes. O cofre, num canto da

    casa, enraivecia o capito Antnio Silvino. O povo estava na porta da loja,

    esperando os acontecimentos. Depois o capito Antnio Silvino baixou para acasa de comrcio, abriu as portas largas, e mandou que todos entrassem. Ia dar

    tudo que era do comendador aos pobres. Foi uma festa. Peas de fazenda,

    carretis de linha, chapus, mantas de carne, sacos de farinha, latas de

    querosene, fogos no ar, candeeiros, tudo distribudo como por encanto. Mais

    para a tarde, o capito chegou a varanda do sobrado e gritou:

    CAPITO ANTONIO SILVINO Podem encher a barriga. Esse ladro que fugiu, me

    mandou denunciar no governo. Agora estou dando um ensino neste cachorro.

    E em seguida mandou sacudir os dois caixes de nqueis no meio da rua. O povo

    caiu em cima das moedas como galinha em milho de terreiro. D. Ins l dentro,

    sentada num grande sof, parecia que no era senhora de todos aqueles bens que

    se consumiam toa. O cangaceiro saiu na madrugada e a velha comeou a chorar.

    D. Ins era senhora de muito orgulho. Chegara uma tropa para castigar o povo

    que ficara com as mercadorias do comendador. O delegado Jos Medeiros estava

    prendendo gente sem parar. O mestre Jos Amaro, desde aquela tarde em que

    estivera no Santa F, que no podia pregar os olhos. No tinha sono. A dor que

    lhe partira o corao com sada da filha para a tamarineira fizera-o chorar,

    chorar como aquele conde da cantoria de Jos Passarinho. Depois que passarinho

    saiu para a vazante bateu gente na sua porta, e quase que caiu para trs quando

    viu o cego Torquato com o guia. Mandou que eles entrassem. E foi fechar a porta

    da frente.

    CEGO TORQUATO Mestre Jos, sofri o diabo. Eu tinha sado da feira de Guarita,

    e ia na demanda do Magoeiro, quando a tropa do tenente me pegou, com este

    menino.

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    JOS AMARO E como se livrou, seu Torquato?

    TORQUATO Eu lhe conto tudo, mestre. Me levaram para a cadeia. Quando chegou o

    tenente dizendo: Traga este safado do cego que eu quero fazer uma pergunta.

    Eu s sei que me empurraram no cho, como cachorro. Deixe ele comigo,

    sargento, disse o tenente, ele na minha mo vai tocar a rabeca direitinho. E

    me vieram com perguntas sobre o capito. Queriam saber do lugar onde seacoitavam na catinga, do pessoal que espia para o capito. Eu disse que no

    sabia de nada, muito sofre um homem sem a luz dos olhos, muito sofre um cristo

    que no v a luz do dia, mas aquele safados me deram, mestre. Fiquei com medo

    era o bichinho falasse, mas Deus ajudou e ele ficou amedrontado, chorando.

    JOS AMARO E como se livrou, seu Torquato?

    TORQUATO Eu lhe conto: foi o coronel N Borges. Ele soube da coisa e chegou

    na cadeia para falar com o tenente. Foi um bate boca danado. O coronel homem

    de opinio. Fui solto no outro dia, e estive na casa do homem uma semana, me

    tratanto. Agora eu lhe digo, mestre: esse tenente vai ter um fim que ele

    merece. O mestre soube do caso do Pilar? Passei por l, no faz uma hora. E o

    povo est num rebolio desadorado. O capito pegou no comrcio de Quinca

    Napoleo e deu topo ao povo. E chegou uma fora da cidade e est fazendo o

    diabo. E, mestre, como vai a sade?

    JOS AMARO Assim, assim, seu Torquato! Para lhe ser fraco, eu at nem tenho

    pensado em doena. Tanta coisa me tem acontecido que doena o menos.

    TORQUATO mestre, eu soube da sua filha. Quando passei na casa do capito

    Vitorino falei com a dona Sinh. Ela est muito enjoada com a coisa. Tambm no

    pra menos. Mas me falaram da briga do senhor com o senhor do engenho.

    JOS AMARO Me botou para fora.

    TORQUATO Mar por qu, mestre?

    JOS AMARO Ora por qu, seu Torquato, porque dono, e manda do jeito que

    quer.

    TORQUATO o diabo, mestre. Leva um homem a vida inteira numa propriedade,

    cria raiz na terra, e chega uma ordem para botar pra fora. por isso que eu

    digo todo dia: homem para endireitar este mundo s mesmo um capito Antnio

    Silvino.

    Foi quando apareceu Jos Passarinho. O cego sentiu a presena estranhou eparou.

    JOS PASSARINHO Bom dia, seu Torquato.

    TORQUATO Bom dia, com quem tenho a honra de falar?

    JOS AMARO Jos Passarinho. Est aqui em casa me fazendo companhia.

    TORQUATO Pois seu mestre, eu lhe digo uma coisa, se que um pobre cego pode

    falar: no saia da terra. O capito d um jeito. O senhor j falou com Alpio?

    JOS AMARO J, e ele me disse a mesma coisa.

    TORQUATO Pois o que penso.

    JOS AMARO Mas, seu Torquato, o homem o dono da terra.

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    TORQUATO Eu sei, mestre, mas h outro dono maior. O Senhor vai ver. Deus tem

    protegido este homem com todos os seus poderes. Ele protege o povo, mestre.

    Bem, eu vou indo.

    JOS AMARO Seu Torquato fique para o almoo.

    TORQUATO No posso mais, mestre, tenho que chegar a santa Rita amanh. tenho gente esperando por mim. Eu nem sei se o meu povo soube da minha priso.

    Por isto estou com presa.

    JOS AMARO Ento no insisto.

    E saiu o cego Torquato cheio de f no capito Antnio Silvino. O mestre Jos

    Amaro foi at a pitombeira e sentia a terra como uma coisa que lhe pertencia. E

    quando ele estava na contemplao destas coisas, que eram mais do que suas,

    ouviu passos de um cavalo na estrada. Era o negro Floripes que picou o cavalo

    quando o viu, ali em p. Negro miservel. Dele viera toda a intriga. Uma raiva

    de morte se apossou do mestre. Teria que matar aquele negro. Aquele negro teria

    que morre em suas mos. Lobisomem. E estacou no pensamento, horrorizado. Matar,derramar sangue. O povo dizia que ele bebia sangue. Entrou para o seu quarto. E

    a voz magoada de Passarinho lhe chegava como um alento:

    PASSARINHO Me diga, minha menina,

    Minha menina real,

    se no tem outros amores,

    que dom carro de Monteval?

    Boca que dom carro beijou

    No para outro beijar

    Juro por Jesus do cu

    E os santos do altar,

    Como no tive outros amores

    Que dom Carro de Monteval

    O mestre escutava o negro e se consolava na tristeza da histria. O dio a

    Floripes se abrandava. Ouvia o canrio da biqueira, estalando, todos ospassarinhos da pitombeira fazendo horas ao dia muito bonito. Levantou-se omestre e foi procurar aquele espelho que ele tinha guardado na mala. Mirou-se,e a cara gorda, inchada, os olhos amarelos, a barba branca, deram-lhe asensao de pena em si mesmo. Estava no fim, a morte esperava por ele. E comaquela ideia de morte prxima, o dio ao negro dobrou de intensidade. Teria quematar aquele negro. S assim se vingaria de tudo. Estava pra morrer. Olhou-seoutra vez no espelho, e ouviu a voz de Passarinho, na porta do quarto.

    PASSARINHO Est se mirando, mestre?

    JOS AMARO Nada, Jos, estou vendo o diabo duma espinha que est me saindo norosto.

    PASSARINHO Cuidado, mestre, esta histria de espinha pode arruinar. O almooest na mesa.

    Pela tarde apareceu o capito Vitorino. Vinha numa burra velha, de chapu depalha muito alvo, com a tia verde amarela na lapela do palet. O mestre Jos

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    Amaro estava sentado na tenda, sem trabalhar. E quando viu o compadre alegrou-se. Agora as visitas de Vitorino faziam-lhe bem.

    VITORINO Meu compadre, uma mulher como a dona Ins para ser respeitada.

    JOS AMARO E o capito desrespeitou a velha, compadre?

    VITORINO Eu no estava l. Mas me disseram que botou um rifle em cima dela,para fazer medo, para ver se dona Ins lhe dava a chave do cofre. Ela no deu.Agora ele anda com o fogo da fora da polcia fazendo o diabo com o povo.

    Ouviu-se a voz de Passarinho cantando na cozinha.

    VITORINO Este negro est aqui?

    JOS AMARO , est me fazendo companhia.

    VITORINO Como que se tem um negro deste dentro de casa, meu compadre? mesmo que morar com o porco.

    JOS AMARO O pobre tem me ajudado muito. Sinh me abandonou aqui sozinho, ese no fosse ele, nem sei como me aguentava.

    VITORINO Compadre, eu no lhe quero dizer uma coisa nenhuma. Mas mulher sanda mesmo no chicote. Isto de tratar mulher vela de libra, no comigo. Aminha me adivinha os pensamentos.

    JOS AMARO preciso pacincia, preciso ter calma.

    VITORINO Que calma. Comigo no duro.

    Apareceu Jos Passarinho, que vendo o capito Vitorino se chegou todo cheio demesuras.

    JOS PASSARINHO Bom Dia, capito.

    Vitorino rosnou um bom dia de favor. E o negro sem dar pela coisa se dirigiu aovelho.

    JOS PASSARINHO Capito, tem a um cigarro para o negro?

    VITORINO No tenho cigarro para vagabundo.

    JOS PASSARINHO Um cigarrinho, capito.

    Ento Vitorino metendo a mo no bolso.

    VITORINO Toma l. Isto me deu um filho de Ansio Borges que chegou dos

    estudos, fumo da Bahia, muito fraco.

    E passou para Passarinho um mao quase cheio de cigarros.

    JOS PASSARINHO Este capito veio do cu

    E saiu cantando baixo:

    Encontrei com santo Antnio

    Na ladeira do Pilar

    Gritando para todo o mundo

    Este copo de virar.

    Foi dizendo Vitorino

    VITORINO Negro sem vergonha, a vida que ele quer.

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    JOS AMARO Tem bom corao. E prestativo que s ele.

    Pela estrada ia passando um comboio de aguardente. Surgiu Alpio para falar como mestre:

    ALPIO Estamos de volta. L embaixo, na estrada do Mara, tem uma tocaia dofiscal Jos Marinho, com duas praas. O mestre pode me dar uma palavra?

    VITORINO Se querem falar segredo, eu me retiro.

    ALPIO No, capito, s duas palavras.

    VITORINO No posso ver gente com luxo. Esto pensando que sou bucho de piaba?

    Saram os dois para o canto. Alpio tinha sabido do ataque do Pilar. O cegoTorquato se encontrara com ele na vrzea do Oiteiro e lhe contara tudo. Tiveranotcia que Tiago no tinha sido preso.

    ALPIO O mestre me espere, que eu passo aqui amanh, com notcia. No saia daterra. Amanh eu trago a ordem do homem.

    Quando voltaram, Vitorino se preparava para sair.

    VITORINO No quero ser demais.

    ALPIO O senhor no demais em parte alguma.

    VITORINO J a segunda vez que me sucede isto nesta casa.

    JOS AMARO Compadre, me desculpe, mas a razo no est com o senhor. No vejocomo se possa tomar como uma desconsiderao uma pessoa chamar a outra para umparticular.

    Vitorino calou-se. O camboio sumiu-se na estrada. O trem da Paraba apirou.

    VITORINO Bem, compadre Jos Amaro, vou saindo. O sol est cambando e eu tenhomuito que conversar com o Lula de Holanda. Ah, ia me esquecendo: o que foi quehouve do Lula com o campadre?

    JOS AMARO Botou-me para fora do engenho.

    VITORINO No possvel

    JOS AMARO Pois , compadre.

    VITORINO E o que fez o senhor para isto?

    JOS AMARO Que eu saiba nada. Mas penso que deve ser histria deste negro

    Floripes. Ah, mas este cachorro me paga.

    Os dentes do mestre trincaram-se, todos as suas feies se fecharam. A cara detransformou:

    JOS AMARO Compadre, este negro me paga. Eu pego este negro.

    VITORINO Calma compadre. Tudo isto pode se arranjar. O Lula anda lesando. Eufalo com ele, e isto no ficar assim.

    E no passo lerdo, de chapu novo espelhando o sol, desapareceu por trs dascabreiras.

    Um grito muito distante chegou-lhe aos ouvidos:

    MOLEQUE Papa-Rabo, Papa-Rabo.

    VITORINO a me, a me.

    Jos Passarinho chegou-se para perto da tenta e parou aos ps do mestre.

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    JOS PASSARINHO Mestre, eu estava ouvindo a conversa do capito. Eu sou umtrate, mas precisando de mim para dar um ensino no negro.

    JOS AMARO Vai cuidar da tua obrigao, Passarinho. Deixa, que quando chegaro dia, o mestre Jos Amaro sabe o que faz.

    PASSARINHO Com pouco mais este negro Floripes vem para c com lorota.

    AMARO Deixa comigo. Deixa comigo.

    E levantando a voz, com a fria relampejando nos olhos amarelos.

    AMARO Deixa que eu coso este negro de faca como pedao de solo.

    Passarinho deu um passo atrs, com medo da raiva do mestre.

    Parou na porta o caador Manuel de rsula.

    MANUEL DE RSULA O que que h, mestre, est zangado?

    AMARO Nada no, seu Manuel, nada no.

    MANUEL Encontrei l embaixo o capito Vitorino que ia nos azeites. Pegou ummenino de Chico Preto apareceu quase lhe parte a cabea. Nunca vi o capito tobrabo. Eu cheguei e fui aquietando tudo. Tambm estes moleques fazem o diabocom o velho.

    AMARO o diabo, seu Manuel, mas o compadre devia fazer assim desde o comeo.Se tivesse pegado um safado deste na faca no teria que andar por a como umpalhao.

    MANUEL mesmo. Me disse que o senhor o tomou para advogado neste caso com osenhor de engenho. Ia de rota batida tratar com o coronel Lula. Vou indo seuAmaro.

    Manuel se despediu. E a noite vinha chegando. Um trovo estrondou quase em cimada casa.