Folclore Na Educação Básica-texto Prodocência-nov-2010
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Folclore na Educação Básica: Recriação a partir dos Folguedos e da Mítica Popular
Luciana Dilascio Neves1
Este texto resultou do trabalho desenvolvido por alunos do Programa de Iniciação à
Docência – PIBID – do curso de Licenciatura Belas Artes da UFRRJ, em participação em
uma das escolas da educação básica vinculada ao Programa, o CAIC. Tendo como temática o
Folclore e a Cultura Popular, o trabalho dividiu-se de dois modos básicos: Primeiro, a
pesquisa e o levantamento de fontes visuais, sonoras e audiovisuais dos eventos folclóricos e;
segundo, a reflexão sobre a transposição didática destes materiais para o efetivo
desenvolvimento do trabalho (realizado pelos licenciandos em questão) com alunos do 6º ao
8º ano do CAIC. No seu decorrer, ambas as etapas, pesquisa e ensino, passaram a ocorrer
concomitantemente.
No âmbito da licenciatura, o ponto de partida foi a pesquisa em eminentes estudiosos
do assunto, a exemplo de Câmara Cascudo, Renato Almeida, Mario de Andrade, Darcy
Ribeiro, entre outros. No que tange a estas pesquisas, a folclorista Cáscia Frade2 diz que,
segundo historiadores do período Medieval, o que existia nesta época era “uma cultura da
maioria, transmitida informalmente nos mercados, nas praças, nas feiras e nas igrejas [...]
também o clero adotava procedimento pouco ortodoxos, na celebração das Festas dos Santos,
usando máscaras, dançando, cantando [...]”. De modo geral, clero, palhaços, médicos,
curandeiros, contadores de histórias e poetas habitavam de igual modo as classes sociais.
Contudo, mesmo havendo uma cultura para todos, havia, para uma minoria, uma outra
tradição transmitida formalmente nos liceus e demais instituições, o que torna possível
identificar, desde esta época, uma tradição erudita e uma tradição popular. No entanto, ambas,
popular e erudita, sempre puderam coexistir como duas formas de manifestação do
conhecimento e da vivência humana, e sem que uma devesse desenvolver-se em prejuízo da
outra. Segundo nossas observações, o grande problema passaria a desenrolar-se, não entre o
erudito e o popular, mas sim, entre o popular e uma cultura legitimada, normatizada pelos
modelos da sociedade civil e religiosa, baseada em conceitos como verdade (conhecimento
verdadeiro x conhecimento falso), racionalidade (práticas aceitáveis e coerentes na sociedade
estabelecida) e convenção (código social determinado), fazendo com que a cultura popular
1 Professora do curso de Licenciatura em Belas Artes da UFRRJ, Mestre em Ciência da Arte pela UFF. Coordenadora do PIBID Belas Artes.
2 texto retirado da internet (s/data).
vivesse uma vida subsidiária e periférica. Ainda conforme Frade, Peter Burke em seu livro “A
Cultura Popular na Idade Média” (1989) afirmará que o despertar do interesse e importância
dada à cultura popular surge “no momento em que ele tendia a desaparecer sob o impacto da
Revolução Industrial em meados do século XIX”.
Assim, em fins do séc. XIX e início do XX ocorre a “descoberta” da cultura popular,
incidindo mais especificamente nas chamadas “Antiguidades populares”, recolhidas na
literatura oral como contos, lendas, narrativas mitológicas... A difusão do movimento se
realiza na medida da ampliação do interesse, merecendo pesquisas também as festas, as
práticas religiosas, a música vocal e instrumental, os usos e costumes... O termo “Folklore”,
criado pelo inglês Jonh Thoms (1846) surge no seio destas questões e se referia aos estudos
dos usos e costumes, cerimônias, crenças, romances, superstições, refrãos...
No Brasil, os ecos destes estudos europeus chegaram a partir da segunda metade do
século XIX, liderados por nomes tais como Celso de Magalhães (1844-1879), Sílvio Romero
(1860-1914), João Ribeiro (1860-1934) e, no séc. XX teve continuidade nas pesquisas de
Mario de Andrade (1893-1945), Renato Almeida (1895-1981), Câmara Cascudo (1898-1986),
Gilberto Freire (1900-1987), Edson Carneiro (1912-1972), Darcy Ribeiro (1922-1997), entre
outros. No séc. XX, Renato Almeida propõe o estudo sobre demais aspectos da vida social,
materiais e concretos, como artesanatos, indumentárias, instrumentos musicais e suas formas
de execução, as coreografias, os componentes rituais..., liderando grande movimento em todo
território nacional, com a criação, em 1946, da Comissão Nacional do Folclore. Em 1951, no I
Congresso Brasileiro de Folclore, elabora-se a Carta do Folclore Brasileiro, a partir de uma
posição consensual dos folcloristas brasileiros:
Constitui o fato folclórico a maneira de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular e pela imitação, e menos influenciada pelos círculos e instituições, que se dedicam ou à renovação e conservação do patrimônio científico e artístico humano ou à fixação de uma orientação religiosa e filosófica.
Rossini Tavares complementa tal definição dizendo que o fato folclórico caracteriza-se
“pela sua espontaneidade e pelo seu poder de motivação sobre os componentes da respectiva
coletividade. A espontaneidade indica que o fato folclórico é um modo de sentir, pensar e
agir, que os membros da coletividade exprimem ou identificam como seu [...]” (2003, p. 17).
Em decorrência das grandes transformações sociais e do avanço das ciências, estes conceitos,
muitas vezes, se tornaram polêmicos, sendo reavaliados e/ou relativizados.
O mais importante no aprendizado proposto sobre o folclore, tanto no que diz respeito
ao seu aprendizado no âmbito da licenciatura, como no ensino fundamental, era priorizar a
importância do folclore não como algo setorizado, pertencente a uma classe específica a qual
pouco temos contato, mas sim, como algo que faz parte de nossa formação. Como afirma
Câmara Cascudo:
A cultura popular é a criança que continua em nós, em nossa formação cultural e social. Tudo numa paralela: de um lado, as superstições, os mitos e as histórias que nossa mãe nos contou, de outro o que aprendemos na escola, no dia-a-dia das cidades, as viagens e as máquinas. A cultura primitiva prolonga-se na cultura geral e nunca desaparecerá (CASCUDO, O Folclore está vivo, 1972, p. 5).
Assim, para o trabalho com a educação fundamental, no CAIC, foi tomado como
proposta o desenvolvimento em torno de alguns folguedos brasileiros, intencionando uma
viagem pelo imaginário a eles relacionado. A questão que se tornou importante no âmbito da
licenciatura foi: como tornar compreensível para os graus escolares envolvidos o que é o
folclore, apresentando as origens, as significações e o imaginário que envolve um folguedo
popular? Os dezoito bolsistas do PIBID foram divididos em três grupos; cada grupo
trabalharia com uma escolaridade (6º, 7º ou 8º ano). Foram escolhidos dois folguedos: o
tradicional bumba-meu-boi e o auto da Nau Catarineta (ambos, recebendo outras
denominações de acordo com a região do Brasil em que acontecem). Cada grupo trabalharia
com um folguedo e o resultado deste “projeto” culminaria com uma encenação realizada pelos
alunos do CAIC, em um dia de evento pré-estabelecido pela escola, a Feira Cultural. O 6º ano
faria uma encenação do bumba-meu-boi. O 7º uma encenação com teatro de bonecos a partir
da Nau Catarineta. E o 8º ano faria um teatro de sombras utilizando recortes bidimensionais e,
a partir de uma adaptação de um trecho do livro “Martim-Cererê de Cassiano Ricardo, cuja
escolha deste motivo temático será explicada adiante.
Tal como foi dito, a primeira parte do trabalho ocorreu no âmbito da licenciatura com
a pesquisa e o recolhimento de exemplos dos fatos folclóricos, através de fotos, filmes
(DVDs) e músicas. Em seguida, a questão girou em torno da elaboração de propostas
didáticas que permitissem que este imaginário folclórico fosse da melhor maneira apreendido.
Com os alunos do CAIC, utilizaram-se as fotos, os filmes e músicas recolhidas em torno dos
folguedos, assim como a apresentação de inúmeras imagens de outras manifestações
populares que retratam e se inspiram nos folguedos, tal como acontece na xilogravura, na
cerâmica e demais esculturas populares, na literatura de cordel, entre outras – que, direta ou
indiretamente, se relacionava com o contexto das comunidades onde o folguedo é festejado –
apresentando vaqueiros, violeiros e demais tipos populares; santos de devoção, animais locais
e/ou seres sobrenaturais, ressaltando também o caráter do fabuloso. Imagens de artistas
eruditos que buscaram inspiração no folclore e na cultura do povo, também foram utilizadas,
aparecendo aí também, diversos elementos que contribuíram para a formação de nossa
cultura. A partir destas imagens visuais, sonoras e audiovisuais foram propostas atividades
com desenho e pintura. Todas estas imagens foram recolhidas por nós, na licenciatura, com o
objetivo de envolver os alunos do fundamental e tornar compreensíveis os conteúdos sobre o
folclore. Motivando sobre seu contexto, procurava-se fazer refletir sobre suas origens e as
contribuições vindas de culturas distintas através do estímulo sobre a observação de
elementos variados e das nuances na forma de expressão presentes nas imagens apresentadas.
Estas atividades práticas de desenho e pintura visavam ir agregando outros conteúdos,
aprofundando e contextualizando a temática dos folguedos que culminaria com a confecção
de alguns objetos, máscaras, cenários, os ensaios e o desfecho da dramatização. Sobretudo, no
âmbito da licenciatura interessava aprofundar sobre as raízes destes folguedos em terra
brasileira, assim como sua correlação com aspectos míticos da cultura universal e do
imaginário de outros tempos. Neste sentido, intencionava-se que as pesquisas dos
licenciandos caminhassem em paralelo com suas experiências didáticas, no intuito de fazer
refletir sobre maneiras como esta “profundidade” do folclore pode ser “pressentida” dentro do
nível de intelectualidade e maturidade próprias ao fundamental.
Segundo Câmara Cascudo, as Festas Populares do Brasil, que vieram, em grande
parte, por intermédio dos países ibéricos, vieram, na verdade, do mundo inteiro, porque o
folclore – a cultura popular – não é senão uma contemporaneidade do milênio. Segundo o
pesquisador, o folclore revela a permanência de uma “alma popular”, pelo qual “séculos
depois, um prato, um gesto, uma forma de representar, folgar, dançar” (in FRADE et at.,
1980, Prefácio, p.7), resgatam uma memória de outros tempos e de outros lugares do mundo,
numa colaboração anônima que vem de milênios. Tal como sugere Cascudo, o folclore
preservaria isto que pode ser chamado de “alma popular” por integrar uma memória coletiva
que, mesmo em suas especificidades locais, preserva traços de uma universalidade,
encontrando correspondências no imaginário dos povos de espaços e tempos diferenciados.
Pode-se dizer assim, que o elemento que motiva as manifestações espontâneas de qualquer
coletividade está relacionado ao mítico, ao imaginário, pelo qual um gesto, um sabor, um
modo de dançar, dramatizar, enfim, qualquer fazer ou manifestação pode tornar-se um ato
simbolizado capaz de despertar uma série de reminiscências relativas ao imaginário dos
povos, amálgama do conhecimento, da imaginação e das práticas que fortalecem e revelam os
laços que unem os mesmos.
Tomando como exemplo o mais tradicional dos folguedos brasileiros, o bumba-meu-
boi, podemos dizer que o boi é entidade que aparece largamente no folclore universal
associados a ritos e cultos. No Brasil, o imaginário ao redor do boi foi se constituindo no
complexo processo de colonização. Como diz Domingos Vieira Filho, animal de sabida
prestância econômica e material com vivência cotidiana expressas na prevalência do
pastoreio, nas aventuranças pelos cenários selvagens do Brasil, nos “engenhos da cana-de-
açúcar que por então começavam a pontilhar a paisagem de sensuais e ondulantes verdes a
picar os ares de perturbadores e agridoces cheiros” (in FRADE et al, 1980, p. 40). Segundo
este mesmo autor, a notícia das façanhas desses animais indomáveis, “que desafiavam a
coragem e a destreza dos vaqueiros em desusadas correrias nas solidões áspera dos campos,
impressionavam vivamente a imaginação dos colonos e povoadores e serviam de comentários
nas horas em que descansavam das rudes labutas campeiras” (ibid.). Assim, também a poesia
popular foi fixando a memória dos feitos dos bois “quase sobrenaturais”, como o boi Surubim
e tantos outros. As versões do boi Surubim mostram um animal miraculoso, forte, imbatível,
que nem vinte cavalos foram suficientes para pegá-lo. Em torno do boi é de se esperar que
fossem surgindo lendas, narrativas heróicas, folganças, cultos, enfim, integração no mundo
dos conquistadores da nova terra repartida com silvícolas, africanos e outros que para cá
vieram. Ainda conforme Vieira Filho, não foi difícil, desse modo, a passagem do boi para o
universo folclórico da gente que se amalgamava na terra brasileira, com a transposição para o
plano lendário da figura do animal, divinizado. O rústico aparato da vida das fazendas
coloniais, não dispensava, por certo, as brincadeiras e folganças de seus serviçais, escravos ou
não. O bumba-meu-boi é um auto teatralizado que indubitavelmente surgiu nos tempos
coloniais, atravessando o tempo, com variantes aqui e ali, ao sabor das influências locais.
Interessante de se notar é que esta divinização da figura do animal se dá em consonância com
o caráter mítico que vai sendo construído sobre a imagem do mesmo: no imaginário
brasileiro, a imagem do boi abrange os opostos; é o animal servil, domesticado, passivo, de
grande prestabilidade, por outro lado, apresenta outra face, é o espírito indomável,
indestrutível, avassalador. Esta imagem se condensa a outras relativas às próprias vivências da
gente da terra. O auto em si tem algo de síntese do real, e é toda a “atmosfera” brasileira com
seus “sensuais e ondulantes verdes” e “perturbadores e agridoces cheiros” que vêm compô-lo
numa convergência de movimentos, sons, cores, dramas, fantasias... congregando o próprio
auto no seu desenrolar, estados duais da experiência humana, de êxtase e tristeza, de
simplicidade e exuberância, de afetividade e de mordaz ironia, de morte e vida, do real e do
irreal. Conforme Domingos Vieira, o imaginário que motivou e constituiu o auto do boi
reflete o universo cultural do Brasil colonial, com as boiadas se espraiando sertão adentro, avassalando campos e brenhas, irmanadas ao próprio homem aventureiro e obstinado que palmilhava ousadamente as imensidões da terra brasileira para plantar a semente de vilas e povoados com um escasso aparato civilizatório e uma vida cercada de perigos e desconfortos, e marcados para sempre pela saudade de seus maiores, que expressava nas modinhas dolentes e nos aboios que ecoavam na solidão dos campos perdidos como notas de profunda confrangedora tristeza (ibid., p.41).
A motivação que realiza a manifestação folclórica propriamente dita não provém
apenas de um reflexo do real, mas sim, de uma sublimação desta realidade, numa fusão
mito/realidade que é uma de suas principais características. A realidade local é sempre
importante, é ela que dá o material para a imaginação, porém, é o caráter mítico que cria esta
relação com o universal. O bumba-meu-boi aparece em inúmeras regiões do Brasil,
encerrando muito mais do que a referência a uma realidade do Brasil já distanciada, pois
agregam inúmeros sentidos e valores, se adaptando habilmente às circunstâncias de tempo e
espaço, sem perder, no entanto, sua fabulação básica, sua fonte primitiva; a sublimação do
animal ligado à realidade mais concreta, econômica, material, e por vezes, brutal, ao plano
espiritual, legendário. O bumba-meu-boi já não é o boi do trabalho e sim, o boi que brinca; ser
onírico que já não pertence ao real. No entanto, no auto, o boi é morto e sua carne partilhada
como no plano do real (com os melhores pedaços, em geral, indo para as pessoas mais
afortunadas), ocorrendo então, a sublimação desta realidade, com o boi ressuscitando. O que
ressuscita não é o elemento material, mas o espiritual, numa afirmação desta realidade mítica
e imaginária do homem para além da sua condição temporal. O historiador das religiões
Mircea Eliade afirma que “toda essa porção essencial e imprescritível do homem – que se
chama imaginação – está imerso em pleno simbolismo e continua a viver dos mitos e das
teologias arcaicas” (1996, p. 15). É justamente a sublimação da realidade que insere o fato
folclórico numa dimensão já desvinculada do fator tempo (passado ou presente). Na fusão dos
diversos e complexos elementos que compõem o imaginário de um povo, nos aprofundamos,
tal como diz Eliade, nesta porção essencial da imaginação – as “Imagens” – reproduzindo-as
e reatualizando-as infinitamente.
Com relação ao outro folguedo escolhido, a Nau Catarineta é tema encontrado no
folclore brasileiro, inspirado nas viagens marítimas portuguesas e retratando seus episódios.
Também recebe outros nomes, dependendo da região: Cheganças, Fandango, Barca,
Marujada. O tema da Nau à deriva no mar, narrando uma trágica travessia oceânica está
presente na literatura oral de vários povos de tradição navegadora e, de certo, o fato de nossos
colonizadores possuírem esta tradição, favoreceu, com certeza, o aparecimento deste tema no
imaginário brasileiro. Forma teatral de enredo popular, convergências de cantigas brasileiras e
xácaras portuguesas, a Nau Catarineta é composta por 21 jornadas com diversas coreografias
e cantos narrando os acontecimentos da longa travessia. A mais conhecida destas jornadas é o
“Romance da Nau Catarineta” que após tantas desventuras narra a última provação: a tentação
diabólica e, então a intervenção divina, levando a nau finalmente à terra firme. Para Mario de
Andrade (1982, p. 337) o motivo não deriva de fato histórico, sendo simplesmente uma
tradição universal convertida pelos portugueses na sua grande criação popular. Acreditamos
derivar de um velho romance de fundo mítico (a jornada de uma travessia, o
“despatriamento”; a viagem ao desconhecido e o mito do retorno ao seu local de origem,
fechando um ciclo) completando-se com o tempo, na assimilação de situações dramáticas
distintas. Neste trecho, Mario de Andrade aponta identidade com a Antiguidade clássica no
tema do “reconhecimento”, tema universal eternizado no episódio de Penélope; da mulher que
reconhece o marido no retorno de sua viagem, ainda que transfigurado. “Reconhecimento”
como afirmação de um elo que não se rompe, de uma natureza que mesmo transformada
mantém suas raízes imutáveis (de origem). Mario de Andrade sugere que este tema do
“reconhecimento” frequenta bastante o romanceiro ibérico e afirma esta sugestão simbólica na
situação em que o Capitão, mesmo sem ver, reconhece suas três filhas, nas meninas da praia,
que o Gajeiro-diabo, ao tentar o Capitão, diz avistar (Gajeiro: Enxergo mais três
donzelas/debaixo de um laranjal/Uma sentada a coser/Outra na roca a fiar/A mais mocinha de
todas/está no meio a chorar/Capitão: Todas três são minhas filhas/Ah, quem me dera as
beijar).
Por fim, o grupo de licenciandos que estiveram com o 8º ano, trabalhou e ensaiou com
os alunos do CAIC uma apresentação feita com recursos do teatro de sombras, a partir de um
trecho do livro “Martim Cererê” do poeta modernista, Cassiano Ricardo, e que não é, por
certo, fonte retirada do folclore. Martim Cererê (1928) é uma espécie de narrativa em versos,
inspirada nas lendas do folclore brasileiro, narrando uma espécie de mito da formação do
Brasil (uma construção mítica do povo do Brasil, em forma de versos): Na história, Uiara e
Aimberê, o marinheiro português e o africano são componentes da narrativa, remetendo às
três raças que foram essenciais para a formação do Brasil e do povo. No modernismo, houve
grande intenção em resgatar nossas raízes culturais; muitos modernistas a exemplo de Mario
de Andrade e Renato Almeida foram dedicados pesquisadores da cultura do povo. Muitos
artistas consagrados produziram suas obras inspirando-se e bebendo desta fonte que é o
folclore e a cultura popular. Portanto, nosso objetivo foi utilizar tal adaptação no sentido de
valorizar a estima sobre o folclore, sendo o mesmo, fonte de inspiração para muitos artistas
consagrados. Como afirma Lélia Coelho Frota (2005, p. 27),
a geração modernista partirá para a “descoberta do Brasil” sem discriminar sobre o popular e o culto, fator que contribuirá fortemente para a abordagem da vida e do saber das camadas populares. Aumentava a consciência da circularidade, do vaivém permanente de dados culturais entre as diversas classes, do permanente movimento de ‘subida’ e ‘descida’ de elementos entre os níveis da cultura alta e do povo comum, tão enfatizados mais tarde pelos estudos de história das mentalidades.
Nosso objetivo na educação fundamental não era a intelectualização de questões que
possuem certa complexidade, mas sim, fazer vivenciar esta realidade, apresentando o
imaginário a ela associado através do contato com diversos tipos de formas e imagens. Já com
relação à licenciatura, nosso objetivo era o aprofundamento destas questões, de maneira que,
salvaguardando sua importância, pudessem ser refletidas maneiras didáticas que abordem
complexo e profundo tema sobre a imaginação e vivência humana, que é o folclore,
respeitando um nível de aprendizado apropriado.
As referências para a reconstrução dos dois autos foram, em maioria, retiradas dos
trechos dramáticos que aparecem no livro “Danças Dramáticas do Brasil”, que se trata do
recolhimento de registros feito por Mario de Andrade nas suas andanças pelo país. Parte das
músicas foi retirada de um CD intitulado “Mario de Andrade”, incluídas também nesta
gravação as canções relativas a este trabalho de recolhimento do poeta, com foco nos cantos
que envolvem a Nau e o Bumba. Outra referência musical utilizada foi o CD “Na Pancada do
Ganzá”, de Antônio Nóbrega, cujo título do CD, mais uma vez, está em consonância com o
nome que o poeta modernista havia dado ao conjunto dos registros feitos durante uma viagem
ao Norte e Nordeste. Outras interpretações de músicas de domínio público foram utilizadas.
Dois filmes, um sobre o Bumba-meu-boi e outro sobre a Nau foram gentilmente cedidos pelo
Centro Nacional do Folclore e Cultura Popular para utilização neste trabalho.
Com relação à encenação inspirada no Martim-Cererê foram utilizadas músicas do
Quinteto Armorial, cujos integrantes fizeram parte do Movimento Armorial, iniciado
oficialmente em 1970, sob a liderança do escritor e grande defensor da cultura nordestina,
Ariano Suassuna; o Movimento destacou-se na música erudita de raízes populares, inspirada
nos cantares dos nossos Romanceiros, dos toques de pífano, das violas e rabecas dos
cantadores populares. A intenção na utilização destas músicas era apontar exemplos que
buscam resgatar nossas origens culturais, numa união entre o erudito e o popular. Além
destas, outra referência musical utilizada foi um trecho do músico brasileiro Heitor Villa-
Lobos. Compositor do século XX, vinculado aos ideais modernistas, Villa-Lobos é outro
exemplo de quem bebeu amplamente dos temas populares e folclóricos, das cirandas e
cantigas anônimas. Todas estas referências foram apresentadas aos alunos do fundamental, na
medida em que iam sendo contextualizadas.
Tal como Mario de Andrade que, em 1920, saiu como turista aprendiz, procurando o
mundo mágico das cheganças, dos bumbas-meu-boi, dos pastoris, dos maracatus, dos
caboclinhos, muitos artistas e dedicados pesquisadores mergulharam fundo na fantasia do
nosso povo. Devemos a estes, muito do que, hoje, conscientizamos de nossa personalidade
cultural. É neste sentido que, no âmbito da licenciatura, quisemos afirmar a valorização
permanente da pesquisa sobre tão precioso e complexo tema, o contato com as fontes
primárias, o recolhimento dos diversos exemplos que se originam ou se alimentam desta
fonte. Acreditamos que, este estímulo sobre a pesquisa e o contato aprofundado com tais
fontes, podem contribuir para reflexões e soluções que venham fazer com que este tema,
humano e artístico, possa ser melhor vivenciado e repercutido entre os alunos da educação
básica, não como algo inerte, um exemplo estereotipado e ultrapassado de algo que não mais
nos pertence, mas como algo que pode ser “sentida” como nossa, encontro com secretas
fantasias, pensamentos e imaginações que, de certo modo, também são nossas.
Das encenações ocorridas no CAIC, resultaram três filmes; material editado a partir da
filmagem das três apresentações. As imagens e referências que foram recolhidas e as que
foram produzidas pelos alunos são muitas e, por isso, apresentamos aqui um pequeno
exemplo com fotografias do teatro de sombras.
Bibliografia:
ANDRADE, Mario de. Danças Dramáticas do Brasil. 1º e 3º tomo. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1982
ARAÚJO, Alceu Maynard. Folclore nacional I. Festas, bailados, mitos e lendas. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
CASCUDO, Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1954.
FRADE, Cascia et al. BRASIL: Festa Popular. Prefácio de Câmara Cascudo. Rio de Janeiro: Livroarte, 1980.
FROTA, Lélia Coelho. Pequeno Dicionário da Arte do Povo Brasileiro. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005.
LIMA, Rossini Tavares. Abecê do Folclore. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MIRCEA, Eliade. Imagens e Símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
RICARDO, Cassiano. Martim-Cererê (O Brasil dos meninos, dos poetas e dos heróis). Rio de
Janeiro: José Olimpio, 2001.
Referências Audiovisuais utilizadas:
GURGEL, Deífilo. Nau Catarineta: Auto e dança da Marujada. Rio de Janeiro: Funarte, 1988.
DVD vídeo (18 min). Projeto de Documentação da Dança Brasileira nº 2. Centro Nacional de
Folclore e Cultura Popular.
SANS, Sergio. Eh! Boi. Bumba meu boi do Maranhão. Rio de Janeiro: Fundacen; Funarte,
INF, 1998. DVD vídeo (25 min). Projeto de Documentação da Dança Brasileira n º 4. Centro
Nacional de Folclore e Cultura Popular.
O Povo Brasileiro (inspirado na obra de Darcy Ribeiro)- DVD
Referência da Internet:
http://w.w.w.unicamp.br/folclore/material/extra_aspectos.pdf