FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim...

20
FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA MEMÓRIA E DA REPRESENTAÇÃO ARQUITETÔNICA E URBANA CORRÊA, BRUNO.C.(1); FALUBA, LEANDRO.A.(2); MARCOLINO, RÔMULO.N(3); MASCARENHAS- PEREIRA, ANDRÉ(4); SILVA, REGINA.H.A(5); URVOY, PHILIPPE(6) 1- Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de História. Email: [email protected] 2- Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de História. Email: [email protected] 3- Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de História. Email: [email protected] 4- Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de História. Email: [email protected] 5- Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de História. Email: [email protected] 6- Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de História. Email: [email protected] Resumo A presente proposta de trabalho pretende estabelecer uma reflexão, a partir de alguns estudos de caso, sobre as fontes e os documentos que possam permitir um trabalho historiográfico sobre a memória e a representação urbana. Partimos da constatação da filósofa francesa Anne Cauquelin em que tempo e memória não são meros elementos decorativos dentro das cidades, mas constitutivos do espaço urbano. A memória urbana, dessa forma, não seria uma matéria inerte e abstrata, mas um elemento arquitetural em si, tão concreto como as paredes dos edifícios. No fim dos anos 1980, Cauquelin constatava a dificuldade dos urbanistas em lidar com a temporalidade do urbano. Alguns anos depois, o historiador francês Antoine Prost observava a dificuldade dos historiadores em abordar o tema da cidade contemporânea, preferindo analisar as formas urbanas mais antigas. Essas duas observações, que dialogam entre si, evidenciam a existência de uma fratura entre a teoria contemporânea do urbano e a teoria histórica e, de forma geral, entre a cidade e suas temporalidades. Pensamos ser possível uma história do urbanismo e da arquitetura que privilegie não somente o olhar dos profissionais e/ou planificadores - o que Michel de Certeau chamou de « modos coletivos de gestão da cidade » - mas que leve em conta a perspectiva dos usuários da cidade que, percorrendo diariamente suas ruas e praças, também participam da escrita de sua história. Palavras-Chave: história; arquitetura; fontes históricas

Transcript of FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim...

Page 1: FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com

FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA MEMÓRIA E DA REPRESENTAÇÃO ARQUITETÔNICA E URBANA

CORRÊA, BRUNO.C.(1); FALUBA, LEANDRO.A.(2); MARCOLINO, RÔMULO.N(3); MASCARENHAS-

PEREIRA, ANDRÉ(4); SILVA, REGINA.H.A(5); URVOY, PHILIPPE(6)

1- Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de História. Email:

[email protected]

2- Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de História. Email: [email protected]

3- Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de História. Email:

[email protected]

4- Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de História. Email:

[email protected]

5- Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de História. Email: [email protected]

6- Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de História. Email: [email protected]

Resumo A presente proposta de trabalho pretende estabelecer uma reflexão, a partir de alguns estudos de caso, sobre as fontes e os documentos que possam permitir um trabalho historiográfico sobre a memória e a representação urbana. Partimos da constatação da filósofa francesa Anne Cauquelin em que tempo e memória não são meros elementos decorativos dentro das cidades, mas constitutivos do espaço urbano. A memória urbana, dessa forma, não seria uma matéria inerte e abstrata, mas um elemento arquitetural em si, tão concreto como as paredes dos edifícios. No fim dos anos 1980, Cauquelin constatava a dificuldade dos urbanistas em lidar com a temporalidade do urbano. Alguns anos depois, o historiador francês Antoine Prost observava a dificuldade dos historiadores em abordar o tema da cidade contemporânea, preferindo analisar as formas urbanas mais antigas. Essas duas observações, que dialogam entre si, evidenciam a existência de uma fratura entre a teoria contemporânea do urbano e a teoria histórica e, de forma geral, entre a cidade e suas temporalidades. Pensamos ser possível uma história do urbanismo e da arquitetura que privilegie não somente o olhar dos profissionais e/ou planificadores - o que Michel de Certeau chamou de « modos coletivos de gestão da cidade » - mas que leve em conta a perspectiva dos usuários da cidade que, percorrendo diariamente suas ruas e praças, também participam da escrita de sua história. Palavras-Chave: história; arquitetura; fontes históricas

Page 2: FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

Introdução

A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a

dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com a temporalidade do espaço urbano

(CAUQUELIN, 1982, p.10). Alguns anos depois, o historiador Antoine Prost observava a

dificuldade dos historiadores em abordar o tema da cidade contemporânea, preferindo refletir

sobre formas urbanas mais antigas (PROST, 1999, p.121). Essas duas observações que

dialogam uma com a outra evidenciam um fato: a existência de uma fratura entre a teoria

contemporânea do urbano e a teoria histórica, e mais geralmente entre a cidade e sua

temporalidade.

Uma possível pista para entender estra fratura poderia nos ser dada por Michel De

Certeau, que considera a cidade contemporânea como fruto de um discurso utópico que impõe

um “não tempo”, uma ilusão de sincronia que substitui “a resistência das tradições e dos tempos

individuais”. Em seu trabalho, De Certeau opõe à visão da cidade totalizadora produzida por

este discurso utópico, visão “panóptica e teórica” dos planificadores urbanos, uma outra

perspectiva, uma “cidade transumante, ou metafórica”, “não-planejada” (DE CERTEAU, 199,

p.142), feita dos “fragmentos” que o próprio usuário “preleva” e “atualiza” discretamente, no seu

cotidiano, para reusar as palavras do Roland Barthes (BARTHES, 1985, p. 268).

Estas duas perspectivas nos parecem produzir dois tipos de narrativas sobre o urbano,

fruto de temporalidades distintas. Por um lado, podemos identificar um discurso oficial e

totalizador – ele mesmo constituído por uma pluralidade de vozes que geralmente se articulam

em rede uma com as outras: discurso urbanístico, técnico, policial, discurso dos representantes

do poder municipal etc. Por outro lado, seguindo a ideia do De Certeau, os gestos e falas dos

moradores produzem outra escrita do espaço urbano, historicamente esquecida ou silenciada, o

que Anne Cauquelin chama de “discurso obliquo” sobre a cidade. Se ambas narrativas

participam, cada uma à sua maneira, da construção da cidade, podemos dizer que através de

uma “luta de representação” (CHARTIER, 1990, p.17), decorrente dos conflitos sociais que

permeiam o espaço urbano, a primeira se impôs historicamente como “discurso de verdade”

(FOUCAULT, 1971, p.21) sobre a cidade, objeto de perpétua disputa.

O presente trabalho pretende pensar como essas lutas de representações sobre o

urbano se traduzem dentro das fontes que se oferecem ao historiador da cidade. De qual forma

a escrita historiográfica pode articular entre si essas distintas narrativas e temporalidades sem

reproduzir o discurso “oficial” – as vezes onipresente nas fontes – ou ainda produzir um novo

Page 3: FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

“discurso de verdade”, igualmente totalizador, que apagaria as temporalidades obliquas diante

do tempo único e linear do discurso historiográfico?

Para refletir sobre a articulação entre essas narrativas dentro das fontes, o presente

trabalho pretende expor alguns estudos de caso tirados das pesquisas realizadas pelo NECH –

Núcleo de Estudo Cidade e História – baseado na UFMG. Cabe ressaltar que não pretendemos

aqui, de forma alguma, postular uma dicotomia absoluta dos discursos sobre a cidade, ou

afirmar que existiriam duas superestruturas discursivas sobre o urbano, totalmente coesas e

homogêneas – uma que viria “de cima” e outra “de baixo”. Inclusive, nos parece que estas duas

narrativas podem se encontrar entrelaçadas dentro de uma mesma fonte ou de um mesmo

discurso. Pensamos, no entanto, que fazer uma distinção entre elas pode ser uma ferramenta

para pensar os silêncios que permeiam as fontes existentes sobre o espaço urbano assim como

pensar em novos suportes que permitiriam ao historiador acessar as diversas temporalidades

que se cruzam dentro da cidade.

A ideia do trabalho aqui proposto gira em torno da proposta de realizar a discussão

sobre diferentes formas de ver e investigar a cidade enquanto objeto de estudo. Tentaremos

perceber como Belo Horizonte se construiu como uma cidade que se divide entre o discurso

oficial, o censo comum do mito de origem, e a cidade real que vivenciamos no cotidiano, com

seus conflitos e dicotomias. Uma cidade que vive desde o princípio sob a batalha entre

modernidade e tradição.

Soma-se a nossa proposta, a pesquisa feita sobre as reforma urbana do Rio de Janeiro

em 1903. Verificam-se que tais empreendimentos não se deram apenas na reformulação de

ruas, edifícios e avenidas, mas na tentativa de espacializar os preceitos de civilização e

progresso. Por um lado vemos a missão de técnicos e políticos de conferirem sentido a tais

reformas e por outro criticas de intelectuais que julgavam a reforma muito aquém dos grandes

centros civilizados além de acusarem que as reformas não passavam de um processo de

demolições que transtornava a cidade e seus moradores.

Tentando explorar as diferentes maneiras de se olhar para as fontes que auxiliam no

estudo dos espaços urbanos, buscaremos também compreender as diferentes batalhas de

memória que estão envolvidas na criação de marcos cronológicos e na produção de discursos

oficiais no município de Campanha, no sul de Minas. A dualidade entre a visão de decadência

que é adoptada pela elite local, em contraponto à capacidade dos mesmos de serem os

responsáveis pelo reerguimento da cidade.

Page 4: FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

Finalizando o presente exercício sobre discursos proferidos na cidade, nos dirigimos a

cidade de Belo Horizonte no ano de 1964, marcado pelo golpe militar no Brasil. Este ano

também demarcou na capital mineira uma intensificação de movimentos sem teto na busca pela

moradia e pela politica de remoção destas pessoas, praticada pelo DOPS. De um lado depara-

se a memória destes moradores que foram removidos, que se entrecruzam com sentimentos e

experiências que buscavam espaços para habitar. No outro oposto um discurso técnico, feito

pelos relatórios do DOPS que justificavam a remoção destas pessoas, muitas vezes os

identificavam como pessoas que transgrediam a ordem e de condutas politicas contrarias ao

regime ditatorial.

Belo Horizonte: o surgimento de uma cidade dividida entre o oficial e real

Com o fim do império no Brasil em 1889, tentam-se criar novas formas de representação

que produzam um novo imaginário político ligado à República recém-nascida. De acordo com

José Murilo de Carvalho, novos signos são criados para criar laços entre o novo sistema político

e a população brasileira. Para o autor,

(...) embora em escala menor do que no caso francês, também houve entre nós uma batalha de símbolos e alegorias, parte integrante das batalhas ideológica e política. Tratava-se de uma batalha em torno da imagem do novo regime, cuja finalidade era atingir o imaginário popular para recriá-lo dentro dos valores republicanos. (CARVALHO,2011, p.10)

Em Minas Gerais, o novo governo inicia um projeto de transformação econômica do

estado, baseado em três empreendimentos principais: incentivo a empresas privadas para a

expansão das linhas férreas e das rotas de navegação fluvial, melhorando a comunicação entre

as diversas regiões do estado e possibilitando melhor escoamento da produção agropecuária;

criação de colônias agrícolas, organizadas e tuteladas pelo governo de Minas e criadas com o

objetivo de atrair imigrantes europeus para as terras mineiras, fornecendo mão de obra para a

cafeicultura e possibilitando a evolução técnica da produção através do contato com técnicas de

cultivo diferentes das praticadas no Brasil; e por último a construção da Nova Capital de Minas

Gerais, que deveria servir como exemplo do processo de modernização urbana pelo qual o

estado deveria passar, de forma a se adequar ao novo mundo que surgia (AGUIAR,2006, p.

32).

Page 5: FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

A futura Cidade de Minas seria o ponto de rompimento com a antiga capital provinciana,

Ouro Preto, rompendo desta forma com o passado Imperial e com os símbolos do sistema

político que se queria superar.

Tendo em vista esse projeto de modernização econômica, o governo estadual pôs em

prática o plano de construção de uma nova capital que substituiria a antiga Ouro Preto, capital

do estado ligada a tradição imperial brasileira. Com a nova capital, buscava-se centralizar um

modelo de modernização da economia e da sociedade de Minas Gerais, de forma a alavancar o

desenvolvimento de todas as regiões do estado.

Atendendo ao interesse de vários grupos políticos divergentes, a nova capital seria o

modelo de modernização para todo o estado, servindo como ponto central da nova rede de

transportes que se pretendia criar, além de apresentar-se como modelo do sistema de colônias

agrícolas, exercendo o papel de centro criador de novas práticas na agricultura (AGUIAR,2006,

p.32).

A construção da nova capital, à época batizada como Cidade de Minas, foi tocada pela

Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC), chefiada pelo engenheiro Aarão Reis,

claramente influenciado pela ideologia positivista, a qual foi serviu de inspiração na construção

da capital. Reis foi o engenheiro responsável pela elaboração do projeto da nova capital,

inspirada pelo modelo de cidade adotado em Washington, nos Estados Unidos. A cidade a ser

construída deveria contar com amplas avenidas e traçado geométrico, ordenada dentro dos

preceitos mais modernos da higiene e saúde pública. Seria uma cidade asseada, planejada

para ser um exemplo da modernidade e da capacidade de organização do povo mineiro.

O processo de construção da Cidade de Minas se deu à custa da destruição do Curral

del Rey, vilarejo que ocupava a região destinada à nova capital. Os antigos barracos foram

derrubados e deram lugar a prédios e avenidas que compuseram o cenário da cidade,

destinada a ser uma grande metrópole.

Page 6: FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

Imagem 1 - Capela do Rosário 1895 - Arquivo CCNC - APCBH

Imagem 2 – Inauguração de Belo Horizonte – Arquivo CCNC - APCBH

A cidade planejada para a modernidade, entretanto, apresentava uma característica que

seria fundamental para sua história: os primeiros moradores da cidade deveriam ser os

funcionários públicos e a elite econômica mineira, grupo sociais que trouxeram junto consigo as

antigas tradições e costumes de Ouro Preto e de outras cidades do interior do estado.

Criou-se, desta forma, uma dicotomia entre a cidade planejada e moderna e os

moradores ligados às tradições da elite econômica de Minas Gerais. A cidade era ao mesmo

tempo moderna, pela vocação, arquitetura e construções e tradicional pelo povo, que veio

Page 7: FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

majoritariamente do interior de minas. Essa diferença esteve presente na história da cidade e se

tornou uma das principais características de Belo Horizonte.

Como afirma Berenice Guimarães, a nova capital mineira convive com uma cidade

‘oficial’, em oposição à cidade ‘real’ (GUIMARÃES, 1991. p.03). A cidade criada para os

funcionários do governo estadual e para os membros da elite do estado era habitada também

por imigrantes europeus, negros e migrantes de outras regiões brasileiras. Pessoas que vieram

participar da construção do novo símbolo do estado na era republicana e por aqui ficaram, se

tornando parte da cidade que surge em meio à poeira das obras.

Rio de Janeiro: polo cívico e civilizador

O exercício que será proposto a seguir, propõem refletir sobre o papel e função dos

discursos que são construídos diante da reforma urbana ocorrida no Rio de Janeiro. Em 1903 o

presidente da República do Brasil, Rodrigues Alves, designou o prefeito, Francisco Pereira

Passos para empreender as reformas necessárias na capital do país. Nesse panorama,

observa-se que as intenções do presidente da República delinearam duas frentes de trabalho

essenciais no Rio de Janeiro entre 1903 e 1906: a reforma de Pereira Passos, que no cargo de

prefeito se foca na área urbana, e a de Francisco Bicalho, que se concentraria apenas na área

portuária.

A reforma empreendida por Pereira Passos buscou também desenvolver um aspecto

cívico e civilizacional no espaço urbano. Compreendendo que estes tipos de ações sob a

cidade correspondiam a um imaginário vigente em um período que se insere na virada do

século XIX para o XX, verificar-se-á que tais reformas não se restringiram apenas a propostas

funcionalistas, tais como a salubridade e higienização pública, à regulamentação de atividades

econômicas, mas um conjunto de expectativas e crenças nas quais suas capitais seriam o lócus

do civismo por excelência. Esta prerrogativa foi um importante elemento na tentativa de se

buscar a consolidação do estado e a inserção de seus países nos rumos da civilização e do

progresso.

Baseado nas concepções técno-científicas que estavam em voga no século XIX e XX,

intelectuais, técnicos e políticos, acreditavam que a cidade viria a ser o lócus capaz de

condicionar seus cidadãos aos novos preceitos civilizacionais. Para Leonardo Benévolo

(1993), a capital reafirmada dentro dos novos parâmetros de civilização, acentua-se como

berço da nação e se concretiza como sede do progresso e da ordem a ponto persuadir distintos

territórios e sua população.

Page 8: FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

O debate cultural da segunda metade do século XIX e dos primeiros decênios do XX segue centrado nos temas que se puseram em evidência no confronto internacional: o choque com a tradição passada, o equilíbrio entre esfera pública e privada e, finalmente, a continuidade do papel aristotélico da cidade como instrumento para conseguir a perfeição da existência humana no mundo industrializado

(BENÉVOLO, 1993, p.205)

Debruçando sob esta análise, torna-se pertinente refletir sob a forma da qual se

construíram significados que agregavam um sentido a tais transformações. Obviamente como

aponta Benévolo, os espaços tem um elemento capaz de disciplinar e persuadir. Porém,

somado a esta função aristotélica da cidade, confere-se que se proferiram um repertorio de

discursos feitos por políticos, intelectuais que buscaram justificar às remodelações urbanas e

difundiram a imagem de suas cidades. O discurso destes indivíduos constituiu-se como um

elemento essencial que proporcionou a estas grandes capitais a propriedade de simbolizar o

conceito de civilização e o progresso.

Não obstante, também deverá ser identificado que estas representações acerca da

cidade, embasadas pelo referencial de civilização e progresso, refletiram um imaginário que

começava a se vigorar no período, mas, por outro lado, geraram resistências e conflitos. Desta

forma, busca-se compreender as reformas urbanas enquanto um conjunto de ações colocadas

em prática não apenas por uma elite política, mas como um desígnio de vários agentes sociais.

Se em certos aspectos tais reformas foram projetadas a fim de materializar expectativas e

utopias correspondentes a um imaginário social, em outros, surtiram de forma mais impositiva e

autoritária, resultando em situações de tensões e embates com outros setores da sociedade.

Seguindo as premissas embasadas em doutrinas positivistas e liberais, encarava-se a

cidade enquanto polo cívico deveria ser atrativo, um modelo a ser seguido que materializava a

organização para o trabalho e o refinamento de hábitos civilizados. Tal fato pode ser

identificado nas palavras do presidente Rodrigues Alves em seu discurso de posse em 1902 ao

se preocupar com as obras de estruturação dos portos e saneamento do Rio de Janeiro, capital

da República:

A capital da Republica não pode continuar a ser apontada como sede de vida difícil, quando tem fartos elementos para constituir o mais notável centro de atração de braços, de atividades e de capitais nesta parte do mundo. Os serviços de melhoramento do porto desta cidade devem desta cidade devem ser tomados como elementos de maior ponderação para esse empreendimento grandioso. Quando se consumarem poder-se-á dizer que a Capital da Republica libertou-se da maior dificuldade para o seu completo

Page 9: FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

saneamento e o operário bem dirá o trabalho que lhe for proporcionado para o fim de tanta utilidade.

1

É importante destacar que um repertório de mecanismos foi empregado a fim de

construir a cidade moderna. Não era suficiente, entretanto, apenas a reformulação física da

cidade, mas também o desenvolvimento de uma nova cultura urbana. De acordo com Chartier,

é possível compreender que este tipo de prática resulta em resistências e disputas sociais uma

vez que as formas de (re)significação do mundo são idealizadas e projetadas no seio de uma

determinada classe social: “As representações do mundo social assim construídas, embora

aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos

interesses de grupo que as forjam” (CHARTIER, 1990, p.17).

Seguindo a abordagem sobre a construção de discursos, identificam-se que muitas

crônicas de Revistas Ilustradas eram favoráveis as ações de remodelação urbana, sentimento

que expressava o apoio de alguma parte da sociedade. No seguinte trecho da revista o Malho,

o cronista condena os barracões que se propagam nos morros e infestam o Rio de Janeiro e

parabeniza o prefeito Pereira Passos pelas obras civilizadoras:

(...) não havia limpeza, nem publica, nem particular, nem interna nem externa, bem no corpo nem na alma da pobre Sebastianopolis, a higiene e o asseio eram figuras de retórica ... Mas foi nessa situação de imundice e de andrajos que veio encontrar o reformador ativo e forte que é o dr. Passos, e foi assim que ele resolveu varrer toda essa porcaria e sobre o terreno limpo e saneado levantar melhoramentos que nos honram, que já dizem bem a respeito da nossa cultura e do nosso adiantamento (...) as ruas e praias alargam-se, o calçamento e restaurado a grandes

trechos, as casas oferecem um melhor aspecto , avenidas surgem miraculosamente, há no ar, na gente e nas coisas um tom de alegria, de contentamento, de esperança em ver dentro em breve poder o rio de janeiro dizer-se com razão e sem provocar o riso zombeteiro de nossos vizinhos do prata , que é a primeira cidade da América do sul"

2

A partir da leitura da crônica anterior, da Revista O Malho, constata-se como o cronista

reafirmava o discurso oficial, que se integra a proposta totalizadora e ideal da qual Certeau

problematiza. Entretanto podemos verificar que durante a reforma do Rio existiam visões que se

contrapunham ao oficialismo urbano.

Sobre esta divergência de visões, acerca do urbano, podemos identificar que estes

contrapontos surgiram até mesmo nas representações cartográficas da cidade do Rio. Por um

1 Discurso do Presidente Rodrigues Alves quando anuncia publicamente a realização do que seria a Grande

Reforma Urbana de 1903-1906. para mais ver em: O manifesto inaugural à nação. Correio da Manhã, 16 de

novembro de 1902, também disponibilizado em http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/

2 Cronica, Revista o Malho, 1903 Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.

Page 10: FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

lado, o prefeito Pereira Passos apresentou um projeto que continha as obras e reestruturações

viárias que seriam implementadas na cidade (Imagem 3), com as avenidas a serem criadas e

alargamento de ruas, que foi chamado de Plano de Melhoramentos da Cidade do Rio de

Janeiro.

Na contramão desta representação técnica da cidade, verifica-se uma charge deste

plano (Imagem 4), ou uma charge de parte da planta do Rio de Janeiro, da qual denuncia-se

não apenas os tumultos provocados pela obra, mas a situação política atual e contradições que

as elites políticas republicanas buscavam impor ao espaço carioca. O autor da caricatura foi

Raul Pederneiras que a publicou na revista humorística Tagarela (25/06/1903) com o título

“Planta da cidade do Rio, seus melhoramentos, sem obras do porto nem nada”.

Imagem 3 - Plano melhoramentos Cidade Rio de Janeiro

Page 11: FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

Imagem 4 - Raul |Pederneiras, Revista Tagarela “Planta da cidade do Rio, seus melhoramentos,

sem obras do porto nem nada”. (25/06/1903) Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional –

Brasil.

Além destas caricaturas, existiam outras críticas que condenavam o processo de

modernização urbana realizado na capital do país. Não se tratava de um discurso denunciador

ou antagônico aos projetos oficias, mas uma crítica de que estas ações eram ineficientes e

banais comparadas a demais centros urbanos. Poderiam ser críticas que se direcionavam para

o discurso oficial, questionando os meios, mas muitas vezes direcionados para o mesmo fim,

como no caso da seguinte Cronica publicado na Revista Commentario em 1904:

Acabo de percorrer as cidades de Lisboa, Paris, Berlim, Londres, New-York, Chicago, Búfalo, S. Luiz, Philadelphia, e recolho-me envergonhado à minha cidade natal. Chego a ter duvidas sobre as vantagens da excursão que fiz pelo antigo e novo continente: condennado a viver aqui, não podendo reformar o meio ambiente, antes não conhecesse o que vai por esse mundo de Progresso e de Civilização!

3

O que se pode compreender através destas representações da Reforma realizada no

Rio é que o discurso oficial, balizado por argumentos técnicos, de relações de poder que

conferem autoridade e muitas vezes se impõem de forma inquestionável. As outras formas de

discursos, do qual Cauquellin chama de oblíquos, são frutos de vivencia, experiência e muitas

vezes se contrapõem aos oficiais, como o caso da caricatura feita por Pederneiras na Revista

3 Revista O Commentario. N. 5 2ª série. Set. 1904. & N. 9 3ª série. Jan.1906. Acervo da Fundação Biblioteca

Nacional – Brasil.

Page 12: FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

Tagarela. Nesta charge o caricaturista, mesmo que sob uma ilustração aguçada aplica um

discurso baseado nas suas experiências com o espaço urbano, contrário ao idealizado pelo

trabalho técnico de Passos.

A construção de marcos da cidade por meio dos livros de memórias

Italo Calvino (1990, p. 15-16) ao falar da cidade de Zaíra, afirma que é inútil que o Kublai

tente descrevê-la ressaltando somente seu aspecto arquitetônico, como por exemplo quantos

degraus fazem as ruas em formas de escada, porque a cidade não é feita disso, mas das

relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado. De acordo com ele,

“a cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata.

[…]. Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos

ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-

raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes,

esfoladuras. ” A cidade é um objeto polissêmico por excelência, variadas também são portas

como aponta Bresciani, onde o historiador e demais pesquisadores podem escolher por quais

delas aportar, sempre atentos às ranhuras.

Parte de nossa pesquisa se dedica a compreender como memorialistas criaram marcos

cronológicos e sentimentais a respeito do município de Campanha, localizado na região sul do

estado de Minas Gerais na virada do século XIX para o XX e nos anos de 1920, da imagem de

decadência aos discursos de ressurgimento. Como se deram essas construções? Para

compreende-las e desnaturalizá-las, escolhemos duas obras, “Minhas Recordações” de

Francisco de Paula Ferreira de Rezende, concluída em 1893 e “Campanha, 1929”, de Manuel

Casanta, publicada em 1973. Alertamos desde já que ao tomarmos o discurso de “decadência”

e de “reerguimento” da cidade de Campanha, precisamos compreender como foram

construídos, sendo assim, não é do nosso interesse buscar comprovar se a decadência é real

ou não.

Nosso objetivo remete somente à forma com que os atores, nesse caso, as elites locais,

alimentaram nessa virada do Império para República o imaginário de uma cidade decaída,

imagem que vai perdurar por longo período, inclusive como parte de discursos de políticos que

se colocarão a posteriori como capazes de reergue-la. Médicos, intelectuais, políticos,

jornalistas e lideranças religiosas vão se debruçar para entender o que levou à derrocada

daquela que foi uma destacada vila e cidade até a primeira metade do século XIX e, quais as

saídas ou diagnósticos para (re)torná-la a ocupar lugar de centralidade regional e por que não

Page 13: FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

dentro do estado de Minas? Esses diagnósticos perpassam sobretudo pela materialidade da

cidade, daí uma série de obras de melhoramentos (iluminação elétrica, linha férrea, calçamento

e abertura de ruas, serviço de água e esgoto, praças, jardins) e regulamentações do espaço por

meio de leis municipais como o Código de Posturas, que acabam também por incidir sobre a

moralidade dos seus habitantes.

As recordações4 seguem o transcurso das vivências do autor, sendo organizada de

maneira cronológica, da infância até a fase adulta, ou seja, com vestígios da memória.

Compartilhando dos valores e de um ideário então em voga no final daquele século, Ferreira de

Rezende insere o seu discurso no movimento de mudanças que se processavam nessa época,

no Brasil e no mundo, particularmente quanto às ideias da incorporação do progresso e do

avanço técnico.

Relembrando a cidade de sua infância, percebia-a como que em descarrilamento com

as mudanças que ocorriam. Tomando como ponto de fuga, por exemplo, a “impossibilidade” da

instalação de vias férreas, devido à sua topografia, o que se ressalta então é a decadência e o

caráter não sincronizado do tempo, entre as mudanças que aconteciam no mundo e a

estagnação que verifica em Campanha. Tempo este, agora, em finais do século, muito mais

acelerado, que Campanha parecia não seguir.

Quatro décadas após passagem pela cidade sul mineira, Manuel Casasanta ambicionou

por meio de um corte cronológico fazer ressurgir a Campanha do ano de 1929, sua intenção era

reconstituir a atmosfera da cidade, o comportamento de sua gente, no entanto, embora queira

dar colorido, comunicar-lhes graça, explica por meio de uma metáfora, que a distância

(temporal) esfuma o quadro, como tempo, amarela sutilmente as fotografias, sendo assim, a

sua reconstituição memorialística não tem a pretensão de ser a tradução daquela realidade,

com o passar do tempo, alguns acontecimentos e personagens perderam a nitidez, ao contrário

da ficção em que Funes, o memorioso de Borges (1989), tudo lembra, a memória de Casanta

se assemelha à fotografia, que é resultado de operações do fotógrafo, manipulando-a entre a

técnica e química, jogo de luz e sombra, seleção de ângulos e etc, descortina-se por meio de

recortes. Diante do atropelo da vida moderna, com tantos estímulos, velocidade e informações,

4 Francisco de Paula Ferreira Rezende, seguiu o caminho da magistratura, além de ser proprietário de terras e de

escravos. Foi juiz, fazendeiro de café e terminou sua vida como Ministro do Supremo Tribunal Federal, no princípio da República. Minhas Recordações é um relato autobiográfico, que lança luz sobre os cenários cotidiano de Campanha e da região sul da província, do Império, como na Capital Rio de Janeiro, por onde registra passagens, ou ainda São Paulo e Leopoldina.

Page 14: FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

Mal pude recuperar, em flash-back, alguns instantâneos, simultanemanete remotos e próximos, jacentes nos escaninhos da memória, de permeio a reminiscência de leitura. (CASASANTA, 1973, p.9)

Pela linguagem usada na “Explicação” (introdução a obra) de Casasanta, notamos que o

seu recorte não diz apenas de uma escolha aleatória no tempo. Por que o ano de 1929? Nosso

autor se transformaria em Inspetor Técnico de Ensino em 1935, mas é sobre a Campanha de

1929 que nosso observador fala. Em seu relato uma cidade pacata do interior do Brasil

empreendendo esforços para ser moderna, buscando realizar o percurso da civilização, da

velha para a nova Campanha, remouçada por seus agentes públicos, numa passagem nada

tranquila, pelo contrário, cheia de contradições e embates.

Desde a inauguração do período republicano a família Oliveira assumiu a administração

da cidade, Saturnino, Zoroastro (1909-1927) e Jefferson (1927-1930), ao desembarcar na

Princesinha do Sul, o professor Manuel Casasanta elenca uma série de obras levadas a cabo

por este administrador médico de nomeada, rico, viajado e elegante no vestir, como o lago na

Praça da Estação, a reforma da Praça 13 de Maio e o edifício neocolonial fronteiro a Igreja das

Dores, o inicio do calçamento da cidade, desde o Hotel de dona Ritinha ao Palácio de Dom

Ferrão, abertura da estrada de rodagem para Ponte Alta e com apoio do governo estadual a

rodovia ligando Campanha a Cambuquira. Porém, não deixa de ressaltar o limite razoável de

amor pelas novidades e o temperamento autoritário de Jefferson de Oliveira, segundo o qual,

“não compreende a existência de vozes discordantes. Ama a urbs, despreza a civitas, na feliz

distinção do Desembargador Manoel de Vilhena”. (CASANTA, 1973. p.20). A percepção de

uma modernidade incompleta que se constituiria em Campanha é sintetizada na fala do

professor ao descrever o Colégio de Sion, que exibe o selo da civilização francesa na

arquitetura e jardins, mas que no fundo, as catas, onde vagueiam lobos, advertem-nos que

pisamos chão mineiro.

Apesar de declarar seu carinho pela adorável Campanha, a escrita de Casasanta é mais

maleável do que aquela que notamos em memorialistas e historiadores “da terra”, é um

estrangeiro, no sentido de ser de outro lugar, o que não lhe tira nem lhe confere maior mérito,

porém, decerto produziu uma visão diferenciada sobre o hábitos, costumes e o cotidiano da

sociedade campanhense. É em uma viagem de trem, símbolo maior da modernidade naquele

tempo, que inicia no dia 8 de abril de 1929 o curta-metragem do professor Casasanta, enviado

a lecionar na Escola Normal Oficial da Campanha restabelecida pelo Presidente do Estado de

Minas Gerais Antônio Carlos.

Page 15: FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

Bresciani (2002, p.31), recorrendo a Anne Caucquelin (1982), insinua que a experiência

de viver em cidades, no plano da subjetividade, configura antes de tudo uma superposição

pouco ordenada de lembranças, nem todas vividas como experiências nossas, mas tornadas

nossas pela transmissão dessas memórias e lembranças esparsas. Menos espaciais, já que

que conformam um espaço psíquico com poucas probabilidades de coincidir com o espaço

físico da cidade, do bairro, da vizinhança. Espaço afetivo que se desenvolve por fraturas

sucessivas e distorções.

Conflitos sociais urbanos: Entre a memoria e a os relatórios oficiais

Trabalhar acerca dos conflitos sociais urbanos já pressupõe lidar com narrativas e

fontes múltiplas e contraditórias. A própria disponibilidade ou natureza das fontes, ela mesma,

já traduz a dinâmica destes conflitos.

Escolhemos aqui comparar duas narrativas diferentes sobre um mesmo fato: entre

julho de 1963 e abril de 1964, uma série de ocupações de terras são realizadas por sem-teto

principalmente na região Noroeste de Belo Horizonte, em terrenos plantados com eucaliptos

que eram conhecidos por serem propriedade de um deputado.

Mesmo que as invasões tenham recebido diversos apoios, tal como da Federação dos

Trabalhadores Favelados, de militantes estudantes ou de padres de esquerda, são poucas as

fontes existentes sobre os acontecimentos. Dentro da nossa pesquisa, confrontamos dois tipos

diferentes de discursos e fontes sobre os fatos. Por um lado, os relatos de investigação

realizados pelos agentes do DOPS, entre os anos de 1963 e 1964 sobre os fatos – como parte

do discurso oficial sobre os fatos - e por outro lado, o relato de uma moradora que participou da

ocupação de um dos terrenos e da fundação consequente da Vila 31 de Março no local –

ilustração de um tipo de memória obliqua sobre a cidade.

A articulação entre as fontes escritas e orais, cruzadas e confrontadas aqui pelo

historiador, se aproxima à “história impregnada pela antropologia”, mencionada por Carlo

Ginzburg e considerada por ele como indispensável. Esta perspectiva pode nos permitir de

apreender a riqueza do que o autor chama de “o contraste entre a complexidade das relações

sociais reconstituídas pelo método antropológico e a unilateralidade dos depósitos de arquivos

do historiador” (GINZBURG, 1989, p.173). Decidimos, a título de exemplo, confrontar aqui dois

pequenos trechos destas fontes.

Page 16: FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

No dia 04 de maio de 1964, início do segundo mês após o Golpe Militar, o Delegado de

Segurança Pública Raimundo Tomaz, emitiu em Belo Horizonte uma portaria que começa

nesses termos:

Elementos conhecidos nos núcleos favelados nesta capital vêm, já de algum tempo, organizando invasões de terrenos criando novas favelas com propósitos ainda não de todo esclarecidos, porquanto, segundo suspeita, êste movimento se integrava no plano de subversão da ordem e comunização do país. [Favelas]. Arquivo Público Mineiro. Fundo DOPS. Pasta 3932. p.10

Esse modo de construção do saber desenvolvido pelos agentes do DOPS nos parece

caracterizar um certo tipo de discurso sobre a cidade. Tal como o discurso da planificação

urbana, a estratégia de investigação desenvolvida aqui pelos agentes se aparenta ao que De

Certeau chama de “ administração panóptica “ (DE CERTEAU, 1990, p.146). Este ideal, utopia

de um espaço que seria inteiramente legível e visível a partir de um mesmo local, se aparenta

ao desejo de poder “ver o conjunto”, “superar”, “totalizar” qualquer texto humano (CERTEAU,

1990, p.140). Neste sentido, o discurso policial se aproxima da prática cartográfica moderna

sendo uma “ forma de organização do conhecimento sobre o espaço […] uma forma de articular

saberes e poderes, isto é, uma configuração imaginária construída a partir de uma perspectiva

que privilegia determinados elementos […] em detrimentos de outros ” (SILVA, 2008, p.2).

A constituição em redes desses saberes-poderes explica em parte as dificuldades que

se apresentam ao historiador do urbano, já que a grande maioria dos discursos produzidos e

escritos sobre a cidade – e, portanto, disponíveis como fontes – se inserem dentro dessa rede e

se constituem numa estreita relação. Além disso, eles revelam uma certa coerência entre si se

sondados superficialmente, já que as diversas fontes parecem legitimar umas às outras, seja a

imprensa, os planos urbanísticos, o discurso policial etc. Isto, inevitavelmente, tem influenciado

e pesado sobre o trabalho historiográfico relativo ao espaço urbano, como apontado por

Berenice Guimarães em seu trabalho sobre a cidade de Belo Horizonte (GUIMARÃES, 1990,

p.4).

Mas a cartografia, assim como o discurso policial, enquanto discursos planos, “achata

qualquer coisa dentro de uma superfície plana em duas dimensões” (FARINELLI,1992, p.7

apud. MAGNAGHI, 2014, p.12), aplanando o território e seus atores – assim como suas

possíveis memorias - para encaixá-los em suas grades de leitura e interpretação, e desta

mesma forma os apagam.

Page 17: FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

Dentro do conjunto de individualidades e memorias apagadas por este discurso, esta a

Dona Neusa, moradora atual da Vila 31 de Março que, mais de 50 anos depois, se relembra de

como ela chegou a participar da invasão que deu origem à Vila :

Aí [um dia] meu irmão chegou lá e falou comigo assim: “O, comadre Neuza, o povo tá invadindo o eucalipto…” [...] Agente chamava ele de Preto. Eu falei: “Para quê, compadre Preto?”… “Para morar”. Aí eu falei: “Vai morar debaixo de baixo dos pés de eucalipto?…” Ele falou: “Não. Tá invadindo. Se dono do eucalipto ceder, vai ficar lá. Se ele não ceder, vamos ver o que vai acontecer né?” E ele falou: “Eu vou”. […] “Vamos porquê, vai dar certo”. […] Aí eu pedi para Nossa Senhora da Aparecida: “O, minha mãe, se for para minha felicidade, felicidade dos meus filho [...] me ajuda [...] vai na minha frente e conceda para mim. Me da a sua bença…” Aí foi como se ela falasse assim: “Vai, seu pedaço tá lá”.

5

Se a fonte oral nos parece um dos caminhos – mas não o único – para acessar a

memória do espaço urbano, é justamente porque o depoimento oral não é uma fonte direta

sobre um evento passado, mas uma reinterpretação de fatos passados, impregnada

inevitavelmente da subjetividade e da vivência da pessoa entrevistada. Por isto, como

mencionado por Robert Frank (FRANK, 1990), através do uso da fonte oral, a memória se torna

uma matéria-prima para o trabalho do historiador.

No âmbito de nossa pesquisa, o fato da memória da moradora entrevistada estar –

obviamente – impregnada de lembranças íntimas e afetivas nós permite entender uma

dimensão profunda de sua relação com os espaços urbanos vividos. Enquanto que o discurso

policial faz uma descrição do espaço geográfico urbano que se reduz a um mínimo de

elementos visíveis e aparentes, o discurso da Dona Neusa nos permite enxergar um espaço

urbano impregnado pela sua dimensão afetiva, pela sensibilidade e pelas experiências do

vivido, o que poderíamos chamar de “paisagens sensíveis” (CORBIN, 1994, apud LANGUE,

2006, p.20).

Enquanto que o discurso policial apresenta uma temporalidade linear e simplificada

para expor os fatos que resultam na criação da Vila 31 de Março, podemos perceber nos

discursos das entrevistadas, e especialmente da Dona Neusa, uma temporalidade complexa,

dividida entre as incertezas e dificuldades do dia-a-dia e a esperança num futuro melhor,

sustentada pela crença no tempo eterno da fé e nas rezas à Nossa Senhora de Aparecida.

Além de expressar duas espacialidades diferentes, os dois discursos também ilustram

temporalidades do urbano distintas. Enquanto um certo discurso oficial sobre o urbano busca

criar, como dizia De Certeau, um “não-tempo”, é negada a pluralidade de outras temporalidades

que existem no espaço urbano. Essa negação ou, poderíamos dizer, este apagamento das

5 Idem

Page 18: FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

temporalidades oblíquas, se concretiza historicamente quando a gestão profissional do urbano

decide remover uma comunidade, ou parte dela, para construção de uma via de transito rápido.

Assim, partes dos locais que povoam a memória da Dona Neusa foram aniquiladas pela

ampliação da BR 381, também chamada de anel rodoviário, que dividiu a Vila em duas

comunidades distintas, hoje interligadas por uma estreita passarela6.

Se Cauquelin afirma que o urbanismo é uma tentativa de controlar e manusear o tempo

urbano (CAUQUELIN, 1982, p.11), poderíamos dizer que este processo se opera sacrificando

certas temporalidades em detrimento de outras, o que torna ainda mais urgente e importante a

reflexão e a busca acerca destas outras vozes que seriam as narrativas oblíquas sobre a

cidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta apresentação foi uma proposta que reuniu diversas pesquisas que tinham como

ponto em comum os vários discursos que constroem o cenário urbano. A partir de variadas

fontes, foi possível perceber as diferentes abordagens no estudo da Historia Urbana.

Conseguimos compreender os diferentes olhares que se lançam sobre a cidade através

de fontes que nos contam detalhes, ao mesmo tempo em que silenciam determinados grupos

sociais ou visões sobre o urbano.

Percebe-se que a cidade portanto não é edificada apenas por ruas, edifícios e

monumentos, mas sobretudo por aqueles que ali vivem e deixam suas marcas e suas vivências.

As tensões inerentes às cidades, como nos aponta Michel de Certeau, são a força vital do

espaço urbano, criando um organismo vivo e dinâmico, portanto mais complexo de se analisar

enquanto objeto de estudos.

Tal dinamismo, ao mesmo tempo que dá o sopro de vida à cidade, também se torna

responsável pelas disputas em torno dos discursos oficiais e reais, entre a cidade que se

planeja e a cidade que se vive. Ao resgatar os exemplos abordados pelas diferentes pesquisas,

foi possível compreender que os discursos sobre as cidades possuem várias naturezas:

enquanto alguns legitimam uma ação outros questionam; enquanto alguns reivindicam espaços

e direitos, outros censuram estas reivindicações. Porém este exercício sobre as vozes

6 Ibidem

Page 19: FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

proferidas na cidade permitiu compreender que dois discursos nem sempre são diretamente

antagônicos. Alguns contestam os meios, mas querem o mesmo fim, enquanto outros objetivos

diametralmente distintos.

Bibliografia

AGUIAR, Tito Flávio Rodrigues de. Vastos subúrbios da nova capital: formação do espaço urbano na primeira periferia de Belo Horizonte. 445 p. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em História da UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. 2006.

BARTHES, Roland. “Sémiologie et urbanisme”. In : L’Aventure sémiologique. Paris : Éditions du Seuil. 1985, pp. 261-271.

BENÉVOLO, Leonardo. La ciudad europea. Barcelona, Crítica, 1993, p. 205.

CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Companhia das Letras, 1990. 1a edição. [Le città invisibili, 1972] Tradução: Diogo Mainardi.

CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. / São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

CASASANTA, Manuel. Campanha, 1929. Imprensa da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1973.

CAUQUELIN, A. “Anne CAUQUELIN, Octobre 1999”. Entrevista realizada por Thierry Pacquot em outubro de 1999. Disponível em: http://urbanisme.u-pec.fr/servlet/com.univ.collaboratif.utils.LectureFichiergwID_FICHIER=1259768720186&ID_FICHE=38696. Consultado em: 25/10/2015.

CAUQUELIN, A. Essai de philosophie urbaine, Paris: P.U.F, 1982, 200 p.

CHARTIER, R. A história cultural. Entre práticas e representacoes. Lisboa: Difel, 1990. 244 p.

____________. O mundo como representação. Estudos avançados, São Paulo , v. 5, n.

11, Apr. 1991 . disponivel em <http://www.scielo.br/scielo.php?

DE CERTEAU, M. L'invention du quotidien, Tome 1 : Artes de faire, Paris : Folio Essais, 1990, 347 p.

FOUCAULT, M. L'ordre du discours. Paris: Gallimard, 1971, 81 p.

FRANK, R. “La mémoire et l'histoire”. In: Cahier de l’IHTP n°21 : La bouche de la Vérité ? La recherche historique et les sources orales. Novembre 1992.

Page 20: FONTES E DOCUMENTAÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DA … · A filósofa francesa Anne Cauquelin, no fim dos anos 1980, constatava a dificuldade dos urbanistas de sua época em lidar com

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

GINZBURG, C. A micro-história e outros ensaios, Lisboa: Difel, 1989, 244 p.

GUIMARÃES, B. M. Cafuas, barracos e barracões: Belo Horizonte, cidade planejada. Tese (Doutorado em Ciências Humanas: Sociologia) 1991. 323 f., Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1991.

LANGUE, F. “L'histoire des sensibilités et l'Amérique latine : une autre maniere d'écrire l'histoire au Venezuela et ailleurs”. In: Caravelle, n°86, 2006. L'Amérique latine et l'histoire des sensibilités. pp. 13-30.

MAGNAGHI, A. La biorégion urbaine, petit traité sur le territoire bien commun, Paris: Eterotopia, 2014.

PROST, A. “Une histoire urgente: le temps présent des villes” In: Vingtieme Siecle. Revue d'histoire. N°64, octobre-décembre 1999. pp. 121-126, Paris.

RAMA, Angel. A cidade modernizada In: A Cidade das Letras. São Paulo: Brasiliense: 1985.

REZENDE, Francisco de Paula Ferreira de. Minhas recordações (1892-1893). Imprensa Oficial. Belo Horizonte, 1987.

SILVA, R. H. A.; FONSECA, C. G.; FRANCO, J. O. R. F. ; MARRA, P. S.; GONZAGA, M. M. “Dispositivos de memória e narrativas do espaço urbano: cartografias flutuantes no tempo e espaço”. In: Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, E-Compós, Brasília, v.11, n°1, jan/abr. 2008.

FONTES:

Revista O Commentario. N. 5 2ª série. Set. 1904. & N. 9 3ª série. Jan.1906. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil

Discurso do Presidente Rodrigues Alves quando anuncia publicamente a realização do que seria a Grande Reforma Urbana de 1903-1906. para mais ver em: O manifesto inaugural à nação. Correio da Manhã, 16 de novembro de 1902, também disponibilizado em http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/

Cronica, Revista o Malho, 1903 Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.