Formação do leitor: o que o ensino de gramática...
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Formação do leitor: o que o ensino de gramática tem a ver com isso?
Solange Mittmann1
RESUMO
As aulas de Língua Portuguesa, no ensino fundamental e médio, costumam ser desenvolvidas com a aplicação de quatro tipos de gramática: a teórica, que recebe maior espaço; a normativa, que ainda que receba pouco espaço é a mais cobrada como algo que se deve saber; a de uso, que começa a ser trabalhada a partir de pressupostos variacionistas, mas ainda como um anexo à regra; a reflexiva, quase inexistente. Considerando que a concepção de língua por parte do professor é que determina o que e como será trabalhado em sala de aula, avalio aqui as conseqüências, para a leitura e a formação do leitor, de duas concepções: a de língua como instrumento de comunicação, transparente, bem regulada e sem falhas, e a de língua como base de processos discursivos, cujo equívoco lhe é próprio.
Descontentamentos sobre o ensino de língua portuguesa
Alguns discursos a respeito das aulas de Língua Portuguesa2 no Ensino
Fundamental e Médio costumam ser repetidos, volta e meia, em diferentes ambientes. Entre
os mais presentes está aquele de que os brasileiros, em sua maioria, apesar de passarem
pelos anos de formação, não sabem ler e escrever com a competência que o mundo lhes
exige, o que lhes impõe o rótulo de analfabetos funcionais, e que se há uma minoria que
tem essa competência, isso se dá apesar da escola.
Das reuniões de pais e mestres às revistas (especializadas ou de informação geral),
passando por disciplinas dos cursos de Letras, numa espécie de caça às bruxas, busca-se
quem lançar à fogueira. Entre os culpados pelo fracasso, aponta-se para todo lado: a
miséria econômica em que vivem a família, a escola e o professor, a miséria intelectual da
sociedade brasileira, o alto custo de materiais culturais de qualidade, a falta de formação do
professor, as turmas imensas, os atrativos da imagem televisiva, o interesse das elites em
evitar a criticidade, a omissão da universidade... E a lista parece não ter fim.
No contato entre professores de escolas e professores universitários, outros
discursos se repetem: de um lado, os professores universitários acusam os colegas das
escolas de esperarem por receitas prontas, quando a solução implicaria mudança de
postura: jogar a gramática ao lixo e trabalhar leitura e produção textual; de outro, os
professores das escolas acusam os das universidades pela arrogância, pela realização de
1 Professora Adjunto da UFRGS, doutora em Estudos da Linguagem pela mesma universidade. Membro do grupo de pesquisa GEPAD/RS. 2 Utilizarei sempre iniciais maiúsculas para referir-me à disciplina, considerando seus conteúdos e metodologia.
pesquisas que não contribuem para a busca de soluções e pela falta de conhecimento da
realidade escolar.
O fantasma que ronda a maior parte das discussões tem sido a gramática, vista
como algo que não se consegue definir muito bem e que assusta. Por isso, gostaria de
lançar um olhar de relance sobre a gramática trabalhada em aula de Língua Portuguesa.
Para tanto, vou aproveitar-me da descrição efetuada por Travaglia (1996), que envolve a
gramática de uso, a reflexiva, a teórica e a normativa.3 A seguir, apresentarei uma breve
descrição do que seria um trabalho com texto em sala de aula a partir dos pressupostos
desses tipos de gramática.
A gramática teórica
Atualmente, a gramática que ocupa maior espaço no ano letivo é a teórica, com
ênfase mais na metalinguagem do que na lógica ou teoria que conduz a essa
metalinguagem. Recheada de classificações, a gramática mais conhecida é aquela das
tabelas a memorizar e a aplicar nos mais diversos lugares, da frase de uma propaganda a
um conto de Machado de Assis (com a análise morfossintática de todas as suas frases),
sem deixar de passar pelo Hino Nacional com suas “divertidas” inversões. Assim, na sétima
ou oitava série (quando os alunos, em geral, estão com treze ou quatorze anos), numa frase
como “preciso sair”, aplica-se ao segundo verbo a análise sintática: “oração subordinada
substantiva objetiva indireta reduzida de infinitivo e não encabeçada por preposição”. E o
máximo de teorização e lógica a que essa análise leva o aluno é que há duas orações, que
o primeiro verbo é transitivo indireto, que o segundo é subordinado ao primeiro e não é
antecedido de preposição como faria supor o primeiro. Quer dizer, uma teorização em nível
científico altamente especializado é aplicada, sem muita explicação, ao aluno de ensino
fundamental, como algo que, naturalmente, se deve saber.
Essa forma de ensino da língua espelha a fragmentação dos demais saberes da
escola, já que, em geral, Literatura nada tem a ver com História, nem com Geografia, nem
com Língua Portuguesa, só para ficar nesses exemplos. Paradoxalmente, os objetos dessas
quatro disciplinas são relacionados internamente, porém, isolados pelas fronteiras de cada
uma. Quer dizer, os mesmos objetos estão inter-relacionados em cada disciplina, mas sob
um ângulo específico, e essa especificidade parece fazer toda diferença. Em algumas
escolas, projetos pedagógicos buscam “furar” as fronteiras instaurando a
interdisciplinaridade, mas, mesmo nesses casos, os limites estarão lá, já que a formação
3 Seguirei uma ordem diferente da que consta na obra, pois tomarei como critério a valoração comumente atribuída a cada uma na escola.
universitária dos professores, apesar do nome, pouco tem de universal, pois se encaminha,
necessariamente, para a especialização.
No caso específico da disciplina de Língua Portuguesa, ocorre uma forma de
descolamento da disciplina com o objeto que lhe dá o nome. Embora a língua portuguesa
esteja presente em todas as disciplinas, a disciplina de Língua Portuguesa costuma não ter
nada a ver com nenhuma outra, a não ser quando os professores das outras pedem socorro
justamente ao professor de Língua Portuguesa (numa forma gentil de acusação), porque os
alunos não conseguem interpretar as questões de prova e escrevem com muitos erros de
ortografia. E ainda, para as aulas de Língua Portuguesa, algumas escolas vêem por bem
distribuir em diferentes períodos a produção textual e a gramática, para não correr o risco de
deixar de oferecer a primeira, mas com maior número de horas dedicado à segunda.
E a fragmentação também se dá entre os conteúdos a serem trabalhados a cada ano
letivo. Como citei em texto anterior (Mittmann, 2003), os sujeitos memorizam, por exemplo,
num primeiro ano, listas de advérbios e locuções adverbiais, no ano seguinte, adjuntos
adverbiais e suas classificações, no próximo, orações subordinadas adverbiais. Como
resultado, entram em pânico diante das questões de redação e interpretação; como
profissionais, contratam um professor particular de português que ensine regras para bem
escrever. E os tantos anos dedicados ao aprendizado da gramática teórica e sua lógica
parecem não ajudar muito nas questões práticas de trabalho com a língua.
A gramática normativa
Com menor ênfase no número de horas trabalhadas, mas com maior cobrança nos
resultados, a norma também ocupa seu espaço nas aulas de gramática e de produção
textual. Pressupõe-se que sabendo a teoria e a lógica, é possível deduzir a aplicação de
uma regularidade. Tal regularidade normativa (ou normatividade regular) costuma-se buscar
nos cânones. De Camões a Machado de Assis (os favoritos à dissecação), transita-se
naturalmente entre nações, tempos e estilos, como se as diferenças não existissem. As
irregularidades, por sua vez, vão para uma lista posterior a ser memorizada, a lista das
exceções. Regra e exceção acabam funcionando como dois conteúdos separados, e alguns
alunos dizem que na gramática até que se saem bem, o que não conseguem gravar são as
exceções, apesar de, em boa parte das vezes, aquilo que foge à regra ser o que
efetivamente acontece na língua do cotidiano.
Na outra ponta, a gramática normativa é justificada em nome de provas de concurso
e vestibular. E, efetivamente, em muitos deles, a regra e aquilo que foge à sua lógica são o
que se exige mostrar que se sabe, comprovando que os anos de escola foram bem
aproveitados pelo candidato, ou, na outra ponta, são o que funciona como critério de
eliminação. Quem trabalha com base neste tipo de justificativa não costuma perguntar-se
quantos alunos efetivamente irão deparar-se com este tipo de prova e em quantos outros
momentos da vida (de todos os alunos) a língua estará presente decidindo sucessos e
fracassos profissionais, amorosos, políticos enfim. Como resultado desse ensino dirigido,
depois dos anos de estudo nos níveis fundamental e médio, o egresso vai para o cursinho
ou contrata um professor particular para aprender a interpretar textos difíceis, redigir com
clareza e organização, lembrar as exceções.
Em meio a regras que seguem modelos de autores consagrados e exceções, vão
surgindo bíblias que podem salvar o cidadão do inferno, pois ensinam as obrigações, ou
seja, o que se deve dizer, ainda que ninguém diga, como “à (moda de) Carlos II” e “vou a
casa” (sem crase, se a casa for minha), e aquilo que se está proibido de dizer, ainda que se
diga e que ninguém saiba por que não se pode dizer, como “a nível de”, “implica em”. Como
um saber acessível a poucos, os “que se deve” e os “que não se pode” da gramática
normativa podem funcionar como argumento de autoridade capaz de calar o oponente numa
discussão e até de justificar que não se vote para presidente num candidato que não siga
suas prescrições. Não é à toa, portanto, que o professor de português seja visto, no mundo
dos mortais, como um torturador e censor, ou, se tiver publicado algumas bíblias, como um
sábio e salvador.
A gramática de uso
Seguindo ainda a descrição de Travaglia (op.cit.), temos a gramática de uso, aquela
que todo mundo “usa” para falar, escrever, estabelecer contato com o outro. Essa costuma
aparecer naquela parte final do livro de gramática ou do livro didático, que geralmente não
pode ser trabalhada porque o ano letivo acabou. E ali, trechos descontextualizados são
usados para classificação em perífrase, eufemismo, hipérbole4 e outros, sem relação com as
conversas cotidianas. Ou seja, elementos da gramática de uso (que todo mundo “usa”) são
encaixados no formato classificatório da gramática teórica (que ninguém “usa”).
Também nessa parte do livro, o anacoluto e a silepse5, para ficar em apenas dois
exemplos, aparecem como possibilidades da língua portuguesa, ainda que estas
possibilidades sejam negadas através do canetaço vermelho que aponta erro na escrita do
aluno. A contradição entre a obrigação de aprender e a proibição de usar sequer é pensada. 4 Para o leitor que, justificadamente, não mantenha memorizada a metalinguagem e não queira interromper a leitura para consultar uma gramática, seguem alguns exemplos, imaginados a partir de uma conversa de alunos que podem estar na oitava série estudando as classificações: a) Olha, o que eu queria falar, tipo assim.... que é muito importante pra mim, sabe... por isso eu não queria deixar pra depois... vê se me entendes... (perífrase) b) Fala logo, assim tu me matas do coração. (hipérbole) c) Não é que eu não goste mais de ti, é que eu gosto como irmã... (eufemismo)5 Outros exemplos daquela mesma conversa: d) É que a gente sempre... sei lá... (anacoluto) e) Mas a galera...o que é que vão pensar? (silepse)
Alguns livros didáticos já trazem questões de variação para justificar a tarja com os dizeres
“segundo os PCNs” na capa, o que dá mais valor de mercado ao livro. Porém, quando isso
acontece, esses casos aparecem como um anexo à norma padrão, mantendo-se o mesmo
formato das exceções.
A gramática reflexiva
A última forma de gramática que tomo da descrição de Travaglia é a reflexiva, aquela
que leva a pensar sobre o funcionamento língua e sobre o que se lê e escreve. A partir do
conhecimento intuitivo dos mecanismos da língua – por exemplo, através da análise de
semelhanças em grupos de palavras ou da alteração de sentido diante da substituição de
uma palavra na frase –, pretende-se o domínio consciente da língua. Esta gramática costuma
passar longe das salas de aula, e quando ali entra, geralmente fica colada ao professor,
enquanto o aluno, visto como um aprendiz que não conhece a própria língua, continua
sendo mantido à margem da reflexão, recebendo seus respingos.
Quando esta gramática é trabalhada, dificilmente é ultrapassado o nível da frase,
ficando mesmo no nível de uma reflexão lingüística tradicional que se limita às
possibilidades paradigmáticas de construção. Quando se passa de uma abordagem do
significado para a do sentido, chega-se ao nível do enunciado, mas só muito raramente se
alcança o nível do discurso e de suas condições de produção.
A língua-instrumento e a língua-gramática
A concepção que se tenha de língua e de sujeito determina a forma de, em sala de
aula, trabalhar-se a língua e formar-se o sujeito. Afinal, tudo o que ali acontece depende da
postura do professor diante do objeto de estudo e dos lugares sociais ocupados.
Quando a língua é considerada um instrumento de comunicação, confunde-se com a
gramática. A língua cotidiana, fluida, cheia de falhas, contradições e ambigüidades não
serve ao estudo dito científico, que é, ao mesmo tempo, padronizado e padronizador. Até
porque a língua cotidiana o que menos faz é comunicar. Recorre-se, então, a uma “língua-
gramática”, tida como verdadeiro instrumento de comunicação, completa, com sentido único
e evidente, capaz de transmitir tudo o que se quer comunicar, capaz de desvendar tudo o
que o autor quis dizer. Nesta perspectiva, necessita-se de uma língua comportada, isto é,
que fique dentro dos limites das comportas, represada, que se possa segmentar para
analisar, isolar a parte do todo, já que se supõe que é o conjunto das partes que forma o
todo.
O aluno é convocado a conhecer todas as suas peças de composição, com os
devidos nomes (substantivo composto, adjetivo superlativo, verbo defectivo...), seus
parafusos e roldanas que executam encaixamentos (conjunção coordenativa adversativa,
preposições indicativas de posse...), a função dos elementos quando da sua combinação
(sujeito inexistente, predicado verbo-nominal, oração subordinada adverbial causal...), a
ordem normal de aparecimento (sujeito antes do predicado, adjunto adverbial no final da
frase...), os efeitos do movimento de uma peça sobre outra (concordância, regência, aspecto
verbal, vírgula). Como se pode ver por esta breve, incompleta, mas cansativa listagem, a
aula de Língua Portuguesa costuma resumir-se num ensino pleno de metalinguagem prêt-à-
porter que pressupõe uma reflexão, mas sem que esta se dê de fato.
Nesta perspectiva, para dar conta de todas as classificações, é preciso trabalhar-se
com segmentos que evidenciem e não deixem dúvidas. Por exemplo, um segmento deve
deixar evidente o sujeito inexistente (às vezes, para evitar-se o paradoxo de fazer buscar o
que não existe, usa-se o eufemismo “oração sem sujeito”); três segmentos devem
transparecer a diferença entre o “pois” conjunção coordenativa explicativa, subordinativa
causal e subordinativa conclusiva. Recorre-se, então, a segmentos da língua-gramática
especialmente construídos para dar conta do aspecto trabalhado naquela aula. E para
comprovar que as classificações não são criações fictícias, mas fatos concretos da
realidade, tomam-se fragmentos de obras clássicas de séculos passados. Para mostrar
atualidade, mostram-se fragmentos de propagandas, charges, notícias de jornais, sempre
com a ressalva de que o que não segue a norma da língua-gramática é exceção.
Para melhor concretizar esta perspectiva, tomo um fragmento de um panfleto que foi
distribuído a cirurgiões dentistas, convidando-os para um curso. O texto completo encontra-
se em anexo6. Cito, então, algumas formas de trabalho com cada uma das gramáticas
acima referidas e deixo ao leitor o levantamento de hipóteses sobre as respostas dos
alunos:
Há uma nova tendência em nosso mercado de trabalho: o dentista trabalhando integrado com o médico cirurgião plástico.
Gramática teórica: Identifique o sujeito do verbo “haver”.Gramática normativa: Mostre a diferença de concordância entre os verbos “haver” e “existir”. Gramática de uso: Escreva um convite formal de um cirurgião dentista a um médico cirurgião plástico para que trabalhem de forma integrada.Gramática reflexiva: Identifique as palavras que seguem um mesmo padrão de formação: dentista – médico – florista – jornalista – pista.
Como sustentáculo de todo esse ensino das aulas de Língua Portuguesa, está a
ilusão de que sabendo cada parte, o aluno será capaz de deduzir o todo, de que adquirindo
6 Pertence ao arquivo do projeto de pesquisa “Mídia e discursos sobre o corpo: subjetividade e efeitos de sentido”, que coordeno, com apoio PIBIC-CNPq/UFRGS.
a língua-gramática, será capaz de colocar as engrenagens em funcionamento e obter bons
resultados como produto final: uma boa interpretação ou uma boa produção de um texto
sem falhas. E aí a realidade vem provar o contrário: o drama maior dos vestibulares é a
redação, os piores índices das provas de concurso estão nas questões de interpretação, a
escrita de e-mails leva os executivos a situações constrangedoras, o professor e o aluno de
Letras são vistos como deuses ou demônios, sem meio termo.
Até porque interpretar e produzir textos não é nada fácil, envolve subjetividade. E aí
é que está o ponto a que quero chegar: a relação da gramática com a interpretação e, por
aí, com a subjetividade. Quando digo interpretação, estou considerando que ela envolve
tanto a leitura como a produção textual, mas refiro-me, neste texto, à primeira. Nesta outra
perspectiva, poderia ser proposta para o mesmo texto, uma questão como: Por que a frase
começa falando sobre a nova tendência e não sobre os profissionais? Essa pergunta, que
não deixa de levar em conta aspectos gramaticais, impõe a necessidade de leitura do texto
em relação com suas condições de produção. É claro que a pergunta, por si só, não
desvenda essa relação, mas, ao menos, instiga o leitor a pensar por que se diz algo, por
que se diz de uma certa maneira e que efeitos esse dizer provoca, o que pode levar a uma
bela discussão com os demais colegas e com o professor.
O ensino de língua e a formação do cidadão
Em especial, estou pensando no papel do professor na formação de um cidadão
crítico, capaz de interferir nas suas condições de existência. E essas condições, no Brasil,
precisam de interferências urgentes. Nossa sociedade caracteriza-se por aspectos como a
desigualdade econômica, a elevação de valores neoliberais, a desvalorização da cultura
regional em favor de uma outra artificial, o consumo levado ao extremo substituindo valores
como a ética e o respeito por si e pelo outro.
Todos esses aspectos são aprofundados pelas diferentes formas de mídia, presente
na maioria dos lares e em qualquer conversa cotidiana. Ou seja, alguns discursos entram na
ordem do dia passando a ser considerados relevantes, outros se firmam como um pré-
construído, que é o “‘sempre-já-aí’ da interpelação ideológica que fornece-impõe a
‘realidade’ e seu ‘sentido’ sob a forma da universalidade” (Pêcheux, 1995, p.164), ocupando
os espaços de interpretação.
E os professores nas escolas ora absorvem os discursos midiáticos, ora travam uma
luta quixotesca contra eles, ora ignoram porque não há tempo a perder quando se tem tanto
conteúdo formal a ensinar/aprender. De qualquer forma, muito pouco se prepara o aluno
para a convivência cotidiana com tais discursos, ou seja, muito pouco se trabalha a
criticidade na formação de um leitor-cidadão.
Vale ressaltar que a criticidade, enquanto um emblema da cidadania e um valor atitudinal, é trabalhada ideologicamente por aqueles que detêm o poder econômico e político. Isso porque a conservação e reprodução dos esquemas de privilégio dependem, fundamentalmente, da ignorância e do conformismo, aqui tomados como formas de escravização da consciência. Daí que a presença de sujeitos críticos e, por extensão, de leitores críticos seja incômoda, seja tomada como um risco aos detentores do poder. (Silva, 1998, p.23)
A escola não pode eximir-se da responsabilidade de responder à sociedade que a
sustenta e que é motivo de existir. Como aparelho ideológico, não pode ocultar-se sob
conteúdos tidos como aqueles que natural e obviamente se deve saber.
Os saberes da escola (incluindo-se a gramática) têm-se constituído de discursos
logicamente estabilizados em que, conforme a descrição de Pêcheux (1990a, p.31), “supõe-
se que todo sujeito falante sabe do que fala, porque todo enunciado produzido nesses
espaços reflete propriedades estruturais independentes de sua enunciação: essas
propriedades se inscrevem, transparentemente, em uma descrição adequada do universo”.
Ou seja, essas “coisas a saber” num universo estável e homogêneo seguem o caminho
inverso ao da formação de criticidade.
E se se quer a formação de leitores críticos, não se pode só eventualmente chamar
para dentro da sala de aula a realidade em que se vive, num espaço mínimo que não
atrapalhe o andamento dos conteúdos a ensinar/aprender. E, neste sentido, falo inclusive e
principalmente das aulas de Língua Portuguesa. Repito um dizer que já é lugar comum nos
cursos de formação de professores da área: o texto não pode ser pretexto para o ensino de
conteúdos gramaticais. Proponho que a ordem deve ser inversa, como procurarei mostrar a
seguir. Não confundindo língua e gramática, e sim considerando a gramática como um dos
funcionamentos da língua.
Nesta perspectiva, considero que ensinar Língua Portuguesa “significa trabalhar a
organização e as marcas textuais, levar o aluno ao desvendamento das condições de
produção do discurso e dos sentidos”. (Mittmann, op.cit, p.235) Assim é que se estará
formando um cidadão preparado para ler o mundo de forma crítica e para, então, intervir
nessa realidade.
A língua em (dis)curso
Para isso, o primeiro aspecto a considerar é que a língua não é um objeto apartado
do sujeito e que o sujeito venha a adquirir ao longo da vida. Não é, portanto, um instrumento
de que o sujeito se utiliza.
Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham
nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar. (...) Os sujeitos não “adquirem” sua língua materna; é nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência. (Bakhtin, 1979, p.93)
Se o sujeito se constitui na e pela língua, se a língua só existe quando em relação
com o sujeito, ela não pode ser vista como um objeto pronto para ser ensinado, aprendido e,
finalmente, utilizado. É preciso considerá-la como constitutiva do discurso e, portanto, do
sujeito, não um sujeito que a utiliza, mas um sujeito que mergulha nela. Trata-se, portanto,
de uma língua incompleta, com falhas, com sentidos que deslizam, em virtude de sua
relação com a história e, por aí, com o ideológico.
Isso não significa que a língua não possa ser trabalhada em sala de aula. Não
significa “jogar a gramática no lixo”, como propõem alguns, ou, mais radicalmente, retirar de
cena a disciplina de Língua Portuguesa, já que o que ela se propõe a ensinar – a língua – é
o que o aluno, como falante nativo, já sabe. O que é preciso é um olhar crítico sobre o
ensino que já está firmado nas escolas e uma proposta de outro ensino.
Em sua crítica ao objetivismo abstrato, sobre o qual estão assentados os estudos
morfossintáticos, Bakhtin, já na primeira metade do século XX, afirmava a necessidade de
estudar-se a língua a partir dos preceitos enunciativos:
Com efeito, as categorias lingüísticas, tais como são, só são aplicáveis no interior do território da enunciação. Assim, as categorias morfológicas só têm sentido no interior da enunciação; elas deixam de ser úteis quando se trata de definir o todo. O mesmo se dá com as categorias sintáticas, por exemplo a oração: a categoria oração é meramente uma definição da oração como uma unidade dentro de uma enunciação, mas de nenhuma maneira como entidade global. (Bakhtin, 1979, p.126)
Passado um século dessa afirmação de Bakhtin, ainda é preciso reivindicar sentido
às atividades das aulas de Língua Portuguesa. Note-se que Bakhtin não pretende que se
eliminem os estudos de morfologia e de sintaxe, o que ele aponta é para a necessidade de
considerar-se nesses estudos a língua funcionando em instantes de enunciação, como uma
corrente em que o sujeito mergulha.
O que é preciso é instaurar um outro modo de trabalhá-la, considerando que a língua
só existe porque existe discurso, só existe discurso porque existe sujeito e, finalmente, só
existe sujeito na ideologia. Nesta perspectiva, estuda-se a língua na relação indireta e não-
transparente com a ideologia, através da análise do discurso (com base em sua
materialidade textual) buscando relações subjetivas, isto é, lugares sociais, posições de
sujeito (em sua materialidade histórica). Esta língua, que é constituída historicamente e, por
isso, fluida e opaca, não se confunde com a língua-gramática, e isso não impede que seja
trabalhada nas aulas da disciplina de Língua Portuguesa.
E é essa outra língua que eu gostaria de abordar agora, a partir de uma perspectiva
discursiva, ou seja, com base nos pressupostos da Análise do Discurso (escola francesa e
brasileira). Não vou descrevê-la, mas apenas abordar alguns aspectos que podem ser
pensados para um trabalho no Ensino Fundamental e Médio.
O primeiro gesto neste sentido é o de contestar a imagem de uma língua-instrumento
ou língua-gramática, conforme descrita acima. A base dessa imagem é a oposição
saussuriana entre língua e fala: é comum que os livros didáticos e as aulas de Língua
Portuguesa dediquem maior espaço ao estudo de uma língua que se acredita dotada de
completude e regularidade, do que a uma fala, que, por ser colada ao sujeito, é dotada de
falhas, ambigüidades, irregularidades e vícios. O que é regular, apartado do sujeito, é
passível de ser segmentado, analisado em pedaços, o “resto” fica em segundo plano.
Porém, não estou propondo aqui que se aborde a fala, deixando a língua em segundo plano.
Na perspectiva discursiva, não há oposição entre língua e fala, “a discursividade não
é a fala (parole), isto é, uma maneira individual ‘concreta’ de habitar a ‘abstração’ da língua;
não se trata de um uso, de uma utilização ou de realização de uma função” (Pêcheux, 1995,
p.91). E na discursividade, tem-se o entrelaçamento da materialidade lingüística com a
materialidade histórica. Assim, a língua (não a língua regular, saussuriana, mas a irregular,
da discursividade) é “o pré-requisito indispensável de qualquer processo discursivo”
(Pêcheux, 1995, p.135).
Diante da relação necessária da língua com o discursivo e, por aí, com o histórico, já
que o discurso constitui-se simultaneamente – talvez melhor fosse dizer intrincadamente –
pela materialidade lingüística e pela histórica, desfaz-se o que, segundo Leandro Ferreira
(2003, p.204-205), por muito tempo imperou nos domínios da linguagem: a "sagrada
trilogia": transparência, univocidade e regularidade. No primeiro postulado, a língua
funcionaria como veículo de pensamento, com uma relação direta entre linguagem e mundo;
no segundo, haveria uma relação direta entre a língua e a interpretação, em virtude de o
sentido ser único; no terceiro, a língua figuraria como um conjunto homogêneo, estável e
uniforme. Através dessa descrição do que a língua não é (ao menos aquela língua a que eu
e a autora estamos referindo-nos), podemos afirmar como características fundamentais da
língua: a opacidade, a falha, o deslize, a pluralidade, o equívoco. Destaco que essas
características são fundamentais e não acessórias, marginais, eventuais.
Nesta perspectiva, o equívoco é tratado como próprio da língua e não como um erro
que deve ser consertado pelo professor. Afinal, como bem afirma Pêcheux,
“toda descrição – quer se trate da descrição de objetos ou de acontecimentos ou de um arranjo discursivo-textual (...) – está intrinsecamente exposta ao equívoco da língua: todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro (a não ser que a proibição da interpretação própria
ao logicamente estável se exerça sobre ele explicitamente). Todo enunciado, toda seqüência de enunciados é, pois lingüisticamente descritível como uma série (léxico-sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação.” (Pêcheux, 1990a, p.53)
Ou seja, para que a interpretação se dê, é necessário que se trabalhe não sobre o
sentido pronto, pré-determinado, pronto para ser descoberto, mas sobre as possibilidades
de sentidos, sobre os deslocamentos, deslizamentos, pontos de deriva. Por outro lado,
pensar a pluralidade não significa admitir qualquer sentido, pois se há constituição pelo
heterogêneo, há também determinação sobre os limites.
A interpretação
A partir dessa perspectiva sobre a língua e o sentido, é possível pensar o processo
de interpretação. Este processo vai além da leitura, já que ocorre tanto na leitura como na
produção de um texto, já que se pode dizer que a interpretação é a forma de contato com o
mundo, um contato sempre indireto, visto que é intermediado pela ideologia. Neste sentido,
o mundo em si é o que menos interessa, já que é inatingível ao sujeito que só consegue
alcançar imagens e simbologias. O que interessa é a própria interpretação. A Análise do
Discurso se propõe, segundo Pêcheux (1990a, p.57), “que, através das descrições regulares
de montagens discursivas, se possa detectar os momentos de interpretações enquanto atos
que surgem como tomadas de posição”. Ou seja, a interpretação é analisada como caminho
para pensar-se a constituição da subjetividade, visto que sujeito e sentido se constituem
juntos no discurso. Afinal, “as palavras mudam de sentido segundo as posições sustentadas
por aqueles que as empregam” (Pêcheux, 1995, p.160), assim, uma mesma palavra pode
mudar de sentido, bem como palavras diferentes podem apontar para um sentido próximo.
Isso, porém, não significa, como temos dito neste texto, a transparência e evidência do
sentido e do sujeito, pois esses são efeitos ideológicos:
a distinção entre as duas figuras articuladas do sujeito ideológico, sob a forma da identificação-unificação do sujeito consigo mesmo (o “eu vejo o que vejo” da “garantia empírica”), de um lado, e da identificação do sujeito com o universal, de outro, por meio do suporte do outro enquanto discurso refletido, que fornece a “garantia especulativa” (“cada um sabe que...”, “é claro que...”, etc.) (Pêcheux, 1995, p.132-133)
Esse efeito de evidência do sentido e do sujeito se dá através da Formação
Discursiva, que e a delimitação, a partir de uma posição ideológica dos sentidos permitidos
e das posições permitidas. A Formação Discursiva é o que, a partir de uma posição,
determina "o que pode e deve ser dito" (Pêcheux, 1995, p.160) e, por extensão, o que pode
e deve ser interpretado e, ainda, o que não pode e não deve ser dito ou interpretado, o que
acaba por marcar-se no próprio fio do discurso. Uma marcação que, é claro, nem sempre é
evidente, já que o jogo entre o que pode e o que não pode leva-nos a pensar "a presença de
não ditos no interior do que é dito" em certos "arranjos sócio-históricos de constelações de
enunciados" (Pêcheux, 1990a, p.44). A essas constelações podemos relacionar o
interdiscurso, definido pelo autor como uma materialidade anterior e exterior à existência do
discurso em questão e que intervém para constituí-lo. (Ibid..1990b, p.289)
Ou seja, o processo discursivo faz falar tanto o dito, como o não dito, ou, ainda, o
dito em outro lugar e independentemente. E por não dito, podemos entender tanto as
relações de parafrásticas de uma mesma Formação Discursiva, isto é, o que pode ser dito
de outro modo a partir das mesmas condições de produção; como as relações parafrásticas
de outra Formação Discursiva, isto é, o que vem de outro lugar e ressoa verticalmente a
partir do dito, por exemplo, sob a forma de negação e silenciamento.
É através da memória discursiva que o não dito fala naquilo que é dito. Não se trata
de uma memória mental ou psicológica, nem de uma memória que recupere literalmente um
dito localizável em um sujeito específico. Também não se trata de uma memória regular
capaz de recuperar tal e qual o que se encontra em outro lugar. Trata-se de uma forma de
intervenção do interdiscurso no intradiscurso (Ibid, 1990b, p.291), ou, olhando do lado
inverso, trata-se do acionamento, pelo dizer do intradiscurso, dos dizeres do interdiscurso, o
que cria a possibilidade de que o primeiro seja dito e interpretado. Desta forma, pode-se
observar a impossibilidade de, para pensar-se a leitura, separar o interno do externo, o
intradiscurso do interdiscurso, o dito do não dito.
Uma análise
Estas relações podem ser exemplificadas através da análise do texto que citei
anteriormente e que consta em anexo. Trata-se de um folheto que é nomeado como
“INFORMATIVO DE INTEGRAÇÃO ODONTO <-> PLÁSTICA” e é dirigido aos cirurgiões dentistas,
divulgando um curso sobre essa integração. Além de chamar os cirurgiões dentistas
(doravante CD) para inscreverem-se no curso, busca que estes estendam o convite aos
cirurgiões plásticos (doravante CP): “CONVIDE OS PLÁSTICOS DA SUA CIDADE”. O informativo
traz todas as características de uma propaganda, como o valor, a duração do curso, o
currículo dos ministrantes, um suposto aval de uma associação de cirurgiões, além de
recortes de matérias de Zero Hora e Veja. Por duas vezes, os EUA são citados como
pioneiros neste procedimento.
No primeiro trecho, apresenta-se a novidade que é objeto do curso: “Há uma nova
tendência em nosso mercado de trabalho: o dentista trabalhando integrado com o médico
cirurgião plástico.” Como o folheto é dirigido aos CD, supõe-se que, o pronome em primeira
pessoa do plural não se refira a ambos profissionais, mas especificamente ao interesse dos
CD, citados na frase (como em outros momentos do texto) antes dos CP. Temos então,
duas questões sobre o funcionamento do pronome, que podem não ser tão óbvias ao aluno:
que o referente do pronome deve ser deduzido a partir da leitura do texto, e que a primeira
pessoa do plural indica uma cumplicidade entre o CD-leitor e o suposto autor, designado
apenas pela sigla RGO, que é quem promove o curso. Quer dizer, ambos se deparam com
um fato que é tomado como “uma nova tendência”. Note-se que há uma topicalização dessa
tendência na frase, antes da citação dos profissionais envolvidos. É como se os
profissionais tivessem que se encaixar em algo já posto.
Essa tendência é desmembrada em diferentes espaços do informativo, com ênfase
sobre a presença da cirurgia plástica no cotidiano de pacientes/clientes: “Não fique de fora
do ‘boom’ da plástica”. “Cada vez mais homens e mulheres estão fazendo cirurgias
plásticas”. “O CD não pode ficar de fora do ‘boom’ da plástica”. A cirurgia plástica, portanto,
é apresentada como algo já-lá, já conhecido, com um sentido pronto, fechado e
transparente. Esse efeito se dá tanto pela repetição no percurso do texto e também pela
repetição interdiscursiva, quando outros discursos são trazidos, sejam eles explícitos (Zero
Hora, Veja), ou não. No caso da não explicitação, ocorre o acionamento de uma voz pré-
existente, não localizável, através de uma memória falhada, deslizante e que atua sob efeito
de transparência e univocidade. Então, uma suposta “necessidade” do mercado em que se
sobressai a cirurgia plástica se apresenta também no discurso do consultório do CD. Essas
repetições intra e interdiscursivas tornam possível iniciar o primeiro parágrafo com o verbo
impessoal: “há uma tendência”, isto é, a cirurgia plástica já está presente na vida cotidiana
e, portanto, também na vida dos pacientes do CD, por isso, já há um trabalho integrado
entre CD e CP.
Se, por um lado, a memória sustenta o dizer sobre a cirurgia plástica como algo já
conhecido e estabelecido, por outro, faz soar estranho que ela esteja presente no discurso
do consultório do CD. Isso porque a mesma memória discursiva traz à tona os limites das
atribuições desse profissional. Esse estranhamento precisa ser amenizado com um discurso
que parta do mesmo argumento para implodi-lo: o limite é mantido para que não o seja.
Tomando palavras dos primeiros parágrafos do texto, podemos perceber que ali são
descritos procedimentos autorizados apenas ao CP e, portanto, não autorizados ao CD,
sendo por isso mesmo seu objeto de desejo: “plásticas faciais” e “cirurgias estéticas faciais”.
Inversamente, outros procedimentos são de incumbência do CD, não podendo ser
realizados pelo CP, o que dispõe ao primeiro um certo espaço no mercado do segundo:
“reabilitação estética dentária” e “tratamentos protéticos, restauradores e ortodônticos”. De
início, poderíamos dizer que estão aí presentes duas formações discursivas, ou seja, alguns
discursos são possíveis (e não outros) em determinados espaços de repetição. Mas, por
outro lado, há dois posicionamentos ideológicos em jogo: aquele que defende que os limites
se mantenham como tal e aquele que propõe um cruzamento, esburacando os limites. O
interessante a observar neste texto é a forma como ambas posições são negadas. Por um
lado, propõe-se que o discurso de uma formação discursiva possa transitar pela outra, o que
se pode observar com os trechos paralelos:
“os plásticos começaram a exigir em complementação das suas cirurgias, a reabilitação estética dentária”“o dentista também passou a sugerir em seus tratamentos protéticos, restauradores e ortodônticos, a realização de plásticas faciais”
Por outro lado, constrói-se a ilusão de que os limites éticos serão mantidos:
“Os preceitos éticos e acordos de limites de atuação, entre a Odontologia e a Medicina, estabelecem que...”
Essa dupla negação, com a proposta de um cruzamento (ultrapassagem) que
respeita limites (não ultrapassagem) é que possibilita a primeira chamada do informativo:
“Como ganhar mais dentro dos limites éticos”. Neste sentido, a expressão “limites éticos”
passa a significar a não ultrapassagem de limites de atribuições, silenciando um outro
sentido que entraria em confronto com “ganhar mais”: O profissional que atua na área da
saúde, especificamente, o CD, a quem o informativo se dirige, pode ganhar mais atuando
conjuntamente com o CP, e perseguir esse objetivo (ganhar mais) não significa ultrapassar
limites éticos.
O mesmo verbo aparece em outro contexto, no verso do informe: “Desta maneira
todos saem ganhando, principalmente o paciente”. O apagamento do objeto de “ganhar”
leva o CD-leitor a efetuar o preenchimento. O que é que o paciente pode ganhar? E o que é
que ele, CD, pode ganhar? Certamente, não será o mesmo léxico a preencher o objeto de
“ganhar” em cada caso. No caso do CD, este preenchimento tem relação, não com a
seqüência “principalmente o paciente”, mas com esta outra: “Você verá que o plástico
possibilitará uma nova demanda para seu consultório.” É aí que se encontra o objeto de
“ganhar mais dentro dos limites éticos”.
Conclusão
Através desta breve análise de um discurso, é possível observar que a formação de
um leitor crítico e capaz de agir sobre suas condições de existência também pode ocorrer
nas aulas de estudo da língua.
Levando esse informativo para a sala de aula, o professor pode seguir diferentes
caminhos. Pode, por exemplo, ensinar o aluno a classificar os adjuntos adverbiais “mais” e
“dentro dos limites éticos”. Pode, ainda, pedir que o aluno complete com a pontuação
adequada a mesma frase, ou corrigir os erros de digitação presentes no texto: “os novos
materiais ... agora também tem indicação”, “A APCD, foi”... Pode pedir o preenchimento do
objeto de “ganhar”. Pode perguntar o que é que está dentro e fora dos limites éticos de um
profissional da saúde. Pode pedir que o aluno se posicione como paciente diante da atitude
do profissional que visa ao aumento da demanda (não de pacientes, mas de clientes) no
consultório e escreva uma carta ao Conselho de Odontologia, ou seja, brincando com o
trocadilho, que ele passe da posição de paciente à de agente.
Enfim, as decisões sobre o que é fundamental ou secundário na aula de Língua
Portuguesa depende do posicionamento do professor diante da língua, dos lugares sociais,
das condições históricas de produção de discurso.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail (Voloshnov). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec,
1979.
LEANDRO FERREIRA, Maria Cristina. Nas trilhas do discursivo: a propósito de leitura,
sentido e interpretação. In: ORLANDI, Eni P. (org.) A leitura e os leitores. 2.ed. Campinas:
Pontes, 2003.p.201-208.
MITTMANN, Solange. Leitura de textos jornalísticos em sala de aula. In: LAMPERT, Ernani.
O ensino sob o olhar dos educadores. Pelotas: Seiva, 2003. p.233-247.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 2.ed.
Campinas: Unicamp, 1995.
_____. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 1990a.
_____. Lecture et mómoire: projet de recherche. In: _____ MALDIDIER, Denise. L'inquiétude
du discours. Éditions des Cendres, 1990b. p.285-293.
SILVA, Ezequiel Theodoro da. Criticidade e leitura: ensaios. Campinas: Mercado de
Letras:ALB, 1998.
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: Uma proposta para o ensino de gramática
no 1o. e 2o. graus. São Paulo: Cortez, 1996.
ANEXO
(frente)
INFORMATIVO DE INTEGRAÇÃO
ODONTO < - > PLÁSTICATENDÊNCIA Trabalho integrado CD com o Cirurgião Plástico
Como ganhar mais dentro dos limites éticosHá uma nova tendência em nosso mercado de trabalho: o dentista trabalhando integrado com o médico cirurgião plástico.Surgiu nos EUA, onde os plásticos começaram a exigir em complementação das suas cirurgias, a reabilitação da estética dentária, gerando uma nova e importante demanda para a Odontologia.Como conseqüência, formaram-se parcerias CD-PLÁSTICO e uma atuação integrada, onde o dentista também passou a sugerir em seus tratamentos protéticos, restauradores e ortodônticos a realização de plásticas faciais.Os preceitos éticos e acordos de limites de atuação, entre a Odontologia e a Medicina, estabelecem que a cirurgias estéticas faciais sejam de atribuição do médico, razão pela qual surgir a atuação integrada. Os novos materiais, como o BOTOX, utilizados cada vez mais pelos plásticos, agora também tem indicação de uso na Odontologia, como nos casos de bruxismo e dores orofaciais (relaxa a musculatura).A Associação Paulista dos Cirurgiões Dentistas (APCD), foi uma das pioneiras em promover esta integração, realizando curso específico ministrado por dentista e plástico em conjunto.
Não fique de fora do “boom” da plásticaCada vez mais homens e mulheres estão fazendo cirurgias plásticas. O que antes era mantido em segredo, agora tem até festa para mostrar a nova aparência.A reportagem publicada no jornal ZERO HORA (29/10/03), coloca que nos EUA as transformações estéticas estão sendo festejadas.O CD não pode ficar de fora do “boom” da plástica. Uma forma de incluir-se, é trabalhar integrado com os médicos plásticos.
______________________________________________
(verso)
PARTICIPE Curso de integração CD-Plástico
Odontologia Estética e Cirurgia Plástica no Rejuvenecimento FacialSaiba como trabalhar junto com os plásticos (e vice-versa).
Apenas 1 dia de curso (8h) e investimento de R$ 200,00.Convide os cirurgiões plásticos da sua cidade, para participarem juntos do curso exclusivo de integração do dentista com o plástico.Desta maneira todos saem ganhando, principalmente o paciente.INTEGRAÇÃO – A integração Odontologia/Medicina Estética tem proporcionado uma abordagem de planejamento mais ampla, abrindo um leque de novas possibilidades nas reabilitações buco-faciais, tornando os resultados funcionais estéticos tão sonhados, uma realidade alcançável.Você verá que o plástico possibilitará uma nova demanda para seu consultório (e vice-versa).
CONVIDE OS PLÁSTICOS DE SUA CIDADE
Reportagem publicada na VEJA mostra que o Botox tem diversas aplicações na Odontologia.Além das suas aplicações na estética facial, o Botox também tem diversas aplicações na Odontologia._____Nota da Autora: Por questão de espaço, aqui foram apresentados apenas fragmentos. Destaco que a digitação foi feita sem correções.