Formação do leitor: o que o ensino de gramática...

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Formação do leitor: o que o ensino de gramática tem a ver com isso? Solange Mittmann 1 RESUMO As aulas de Língua Portuguesa, no ensino fundamental e médio, costumam ser desenvolvidas com a aplicação de quatro tipos de gramática: a teórica, que recebe maior espaço; a normativa, que ainda que receba pouco espaço é a mais cobrada como algo que se deve saber; a de uso, que começa a ser trabalhada a partir de pressupostos variacionistas, mas ainda como um anexo à regra; a reflexiva, quase inexistente. Considerando que a concepção de língua por parte do professor é que determina o que e como será trabalhado em sala de aula, avalio aqui as conseqüências, para a leitura e a formação do leitor, de duas concepções: a de língua como instrumento de comunicação, transparente, bem regulada e sem falhas, e a de língua como base de processos discursivos, cujo equívoco lhe é próprio. Descontentamentos sobre o ensino de língua portuguesa Alguns discursos a respeito das aulas de Língua Portuguesa 2 no Ensino Fundamental e Médio costumam ser repetidos, volta e meia, em diferentes ambientes. Entre os mais presentes está aquele de que os brasileiros, em sua maioria, apesar de passarem pelos anos de formação, não sabem ler e escrever com a competência que o mundo lhes exige, o que lhes impõe o rótulo de analfabetos funcionais, e que se há uma minoria que tem essa competência, isso se dá apesar da escola. Das reuniões de pais e mestres às revistas (especializadas ou de informação geral), passando por disciplinas dos cursos de Letras, numa espécie de caça às bruxas, busca-se quem lançar à fogueira. 1 Professora Adjunto da UFRGS, doutora em Estudos da Linguagem pela mesma universidade. Membro do grupo de pesquisa GEPAD/RS. 2 Utilizarei sempre iniciais maiúsculas para referir-me à disciplina, considerando seus conteúdos e metodologia.

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Formação do leitor: o que o ensino de gramática tem a ver com isso?

Solange Mittmann1

RESUMO

As aulas de Língua Portuguesa, no ensino fundamental e médio, costumam ser desenvolvidas com a aplicação de quatro tipos de gramática: a teórica, que recebe maior espaço; a normativa, que ainda que receba pouco espaço é a mais cobrada como algo que se deve saber; a de uso, que começa a ser trabalhada a partir de pressupostos variacionistas, mas ainda como um anexo à regra; a reflexiva, quase inexistente. Considerando que a concepção de língua por parte do professor é que determina o que e como será trabalhado em sala de aula, avalio aqui as conseqüências, para a leitura e a formação do leitor, de duas concepções: a de língua como instrumento de comunicação, transparente, bem regulada e sem falhas, e a de língua como base de processos discursivos, cujo equívoco lhe é próprio.

Descontentamentos sobre o ensino de língua portuguesa

Alguns discursos a respeito das aulas de Língua Portuguesa2 no Ensino

Fundamental e Médio costumam ser repetidos, volta e meia, em diferentes ambientes. Entre

os mais presentes está aquele de que os brasileiros, em sua maioria, apesar de passarem

pelos anos de formação, não sabem ler e escrever com a competência que o mundo lhes

exige, o que lhes impõe o rótulo de analfabetos funcionais, e que se há uma minoria que

tem essa competência, isso se dá apesar da escola.

Das reuniões de pais e mestres às revistas (especializadas ou de informação geral),

passando por disciplinas dos cursos de Letras, numa espécie de caça às bruxas, busca-se

quem lançar à fogueira. Entre os culpados pelo fracasso, aponta-se para todo lado: a

miséria econômica em que vivem a família, a escola e o professor, a miséria intelectual da

sociedade brasileira, o alto custo de materiais culturais de qualidade, a falta de formação do

professor, as turmas imensas, os atrativos da imagem televisiva, o interesse das elites em

evitar a criticidade, a omissão da universidade... E a lista parece não ter fim.

No contato entre professores de escolas e professores universitários, outros

discursos se repetem: de um lado, os professores universitários acusam os colegas das

escolas de esperarem por receitas prontas, quando a solução implicaria mudança de

postura: jogar a gramática ao lixo e trabalhar leitura e produção textual; de outro, os

professores das escolas acusam os das universidades pela arrogância, pela realização de

1 Professora Adjunto da UFRGS, doutora em Estudos da Linguagem pela mesma universidade. Membro do grupo de pesquisa GEPAD/RS. 2 Utilizarei sempre iniciais maiúsculas para referir-me à disciplina, considerando seus conteúdos e metodologia.

pesquisas que não contribuem para a busca de soluções e pela falta de conhecimento da

realidade escolar.

O fantasma que ronda a maior parte das discussões tem sido a gramática, vista

como algo que não se consegue definir muito bem e que assusta. Por isso, gostaria de

lançar um olhar de relance sobre a gramática trabalhada em aula de Língua Portuguesa.

Para tanto, vou aproveitar-me da descrição efetuada por Travaglia (1996), que envolve a

gramática de uso, a reflexiva, a teórica e a normativa.3 A seguir, apresentarei uma breve

descrição do que seria um trabalho com texto em sala de aula a partir dos pressupostos

desses tipos de gramática.

A gramática teórica

Atualmente, a gramática que ocupa maior espaço no ano letivo é a teórica, com

ênfase mais na metalinguagem do que na lógica ou teoria que conduz a essa

metalinguagem. Recheada de classificações, a gramática mais conhecida é aquela das

tabelas a memorizar e a aplicar nos mais diversos lugares, da frase de uma propaganda a

um conto de Machado de Assis (com a análise morfossintática de todas as suas frases),

sem deixar de passar pelo Hino Nacional com suas “divertidas” inversões. Assim, na sétima

ou oitava série (quando os alunos, em geral, estão com treze ou quatorze anos), numa frase

como “preciso sair”, aplica-se ao segundo verbo a análise sintática: “oração subordinada

substantiva objetiva indireta reduzida de infinitivo e não encabeçada por preposição”. E o

máximo de teorização e lógica a que essa análise leva o aluno é que há duas orações, que

o primeiro verbo é transitivo indireto, que o segundo é subordinado ao primeiro e não é

antecedido de preposição como faria supor o primeiro. Quer dizer, uma teorização em nível

científico altamente especializado é aplicada, sem muita explicação, ao aluno de ensino

fundamental, como algo que, naturalmente, se deve saber.

Essa forma de ensino da língua espelha a fragmentação dos demais saberes da

escola, já que, em geral, Literatura nada tem a ver com História, nem com Geografia, nem

com Língua Portuguesa, só para ficar nesses exemplos. Paradoxalmente, os objetos dessas

quatro disciplinas são relacionados internamente, porém, isolados pelas fronteiras de cada

uma. Quer dizer, os mesmos objetos estão inter-relacionados em cada disciplina, mas sob

um ângulo específico, e essa especificidade parece fazer toda diferença. Em algumas

escolas, projetos pedagógicos buscam “furar” as fronteiras instaurando a

interdisciplinaridade, mas, mesmo nesses casos, os limites estarão lá, já que a formação

3 Seguirei uma ordem diferente da que consta na obra, pois tomarei como critério a valoração comumente atribuída a cada uma na escola.

universitária dos professores, apesar do nome, pouco tem de universal, pois se encaminha,

necessariamente, para a especialização.

No caso específico da disciplina de Língua Portuguesa, ocorre uma forma de

descolamento da disciplina com o objeto que lhe dá o nome. Embora a língua portuguesa

esteja presente em todas as disciplinas, a disciplina de Língua Portuguesa costuma não ter

nada a ver com nenhuma outra, a não ser quando os professores das outras pedem socorro

justamente ao professor de Língua Portuguesa (numa forma gentil de acusação), porque os

alunos não conseguem interpretar as questões de prova e escrevem com muitos erros de

ortografia. E ainda, para as aulas de Língua Portuguesa, algumas escolas vêem por bem

distribuir em diferentes períodos a produção textual e a gramática, para não correr o risco de

deixar de oferecer a primeira, mas com maior número de horas dedicado à segunda.

E a fragmentação também se dá entre os conteúdos a serem trabalhados a cada ano

letivo. Como citei em texto anterior (Mittmann, 2003), os sujeitos memorizam, por exemplo,

num primeiro ano, listas de advérbios e locuções adverbiais, no ano seguinte, adjuntos

adverbiais e suas classificações, no próximo, orações subordinadas adverbiais. Como

resultado, entram em pânico diante das questões de redação e interpretação; como

profissionais, contratam um professor particular de português que ensine regras para bem

escrever. E os tantos anos dedicados ao aprendizado da gramática teórica e sua lógica

parecem não ajudar muito nas questões práticas de trabalho com a língua.

A gramática normativa

Com menor ênfase no número de horas trabalhadas, mas com maior cobrança nos

resultados, a norma também ocupa seu espaço nas aulas de gramática e de produção

textual. Pressupõe-se que sabendo a teoria e a lógica, é possível deduzir a aplicação de

uma regularidade. Tal regularidade normativa (ou normatividade regular) costuma-se buscar

nos cânones. De Camões a Machado de Assis (os favoritos à dissecação), transita-se

naturalmente entre nações, tempos e estilos, como se as diferenças não existissem. As

irregularidades, por sua vez, vão para uma lista posterior a ser memorizada, a lista das

exceções. Regra e exceção acabam funcionando como dois conteúdos separados, e alguns

alunos dizem que na gramática até que se saem bem, o que não conseguem gravar são as

exceções, apesar de, em boa parte das vezes, aquilo que foge à regra ser o que

efetivamente acontece na língua do cotidiano.

Na outra ponta, a gramática normativa é justificada em nome de provas de concurso

e vestibular. E, efetivamente, em muitos deles, a regra e aquilo que foge à sua lógica são o

que se exige mostrar que se sabe, comprovando que os anos de escola foram bem

aproveitados pelo candidato, ou, na outra ponta, são o que funciona como critério de

eliminação. Quem trabalha com base neste tipo de justificativa não costuma perguntar-se

quantos alunos efetivamente irão deparar-se com este tipo de prova e em quantos outros

momentos da vida (de todos os alunos) a língua estará presente decidindo sucessos e

fracassos profissionais, amorosos, políticos enfim. Como resultado desse ensino dirigido,

depois dos anos de estudo nos níveis fundamental e médio, o egresso vai para o cursinho

ou contrata um professor particular para aprender a interpretar textos difíceis, redigir com

clareza e organização, lembrar as exceções.

Em meio a regras que seguem modelos de autores consagrados e exceções, vão

surgindo bíblias que podem salvar o cidadão do inferno, pois ensinam as obrigações, ou

seja, o que se deve dizer, ainda que ninguém diga, como “à (moda de) Carlos II” e “vou a

casa” (sem crase, se a casa for minha), e aquilo que se está proibido de dizer, ainda que se

diga e que ninguém saiba por que não se pode dizer, como “a nível de”, “implica em”. Como

um saber acessível a poucos, os “que se deve” e os “que não se pode” da gramática

normativa podem funcionar como argumento de autoridade capaz de calar o oponente numa

discussão e até de justificar que não se vote para presidente num candidato que não siga

suas prescrições. Não é à toa, portanto, que o professor de português seja visto, no mundo

dos mortais, como um torturador e censor, ou, se tiver publicado algumas bíblias, como um

sábio e salvador.

A gramática de uso

Seguindo ainda a descrição de Travaglia (op.cit.), temos a gramática de uso, aquela

que todo mundo “usa” para falar, escrever, estabelecer contato com o outro. Essa costuma

aparecer naquela parte final do livro de gramática ou do livro didático, que geralmente não

pode ser trabalhada porque o ano letivo acabou. E ali, trechos descontextualizados são

usados para classificação em perífrase, eufemismo, hipérbole4 e outros, sem relação com as

conversas cotidianas. Ou seja, elementos da gramática de uso (que todo mundo “usa”) são

encaixados no formato classificatório da gramática teórica (que ninguém “usa”).

Também nessa parte do livro, o anacoluto e a silepse5, para ficar em apenas dois

exemplos, aparecem como possibilidades da língua portuguesa, ainda que estas

possibilidades sejam negadas através do canetaço vermelho que aponta erro na escrita do

aluno. A contradição entre a obrigação de aprender e a proibição de usar sequer é pensada. 4 Para o leitor que, justificadamente, não mantenha memorizada a metalinguagem e não queira interromper a leitura para consultar uma gramática, seguem alguns exemplos, imaginados a partir de uma conversa de alunos que podem estar na oitava série estudando as classificações: a) Olha, o que eu queria falar, tipo assim.... que é muito importante pra mim, sabe... por isso eu não queria deixar pra depois... vê se me entendes... (perífrase) b) Fala logo, assim tu me matas do coração. (hipérbole) c) Não é que eu não goste mais de ti, é que eu gosto como irmã... (eufemismo)5 Outros exemplos daquela mesma conversa: d) É que a gente sempre... sei lá... (anacoluto) e) Mas a galera...o que é que vão pensar? (silepse)

Alguns livros didáticos já trazem questões de variação para justificar a tarja com os dizeres

“segundo os PCNs” na capa, o que dá mais valor de mercado ao livro. Porém, quando isso

acontece, esses casos aparecem como um anexo à norma padrão, mantendo-se o mesmo

formato das exceções.

A gramática reflexiva

A última forma de gramática que tomo da descrição de Travaglia é a reflexiva, aquela

que leva a pensar sobre o funcionamento língua e sobre o que se lê e escreve. A partir do

conhecimento intuitivo dos mecanismos da língua – por exemplo, através da análise de

semelhanças em grupos de palavras ou da alteração de sentido diante da substituição de

uma palavra na frase –, pretende-se o domínio consciente da língua. Esta gramática costuma

passar longe das salas de aula, e quando ali entra, geralmente fica colada ao professor,

enquanto o aluno, visto como um aprendiz que não conhece a própria língua, continua

sendo mantido à margem da reflexão, recebendo seus respingos.

Quando esta gramática é trabalhada, dificilmente é ultrapassado o nível da frase,

ficando mesmo no nível de uma reflexão lingüística tradicional que se limita às

possibilidades paradigmáticas de construção. Quando se passa de uma abordagem do

significado para a do sentido, chega-se ao nível do enunciado, mas só muito raramente se

alcança o nível do discurso e de suas condições de produção.

A língua-instrumento e a língua-gramática

A concepção que se tenha de língua e de sujeito determina a forma de, em sala de

aula, trabalhar-se a língua e formar-se o sujeito. Afinal, tudo o que ali acontece depende da

postura do professor diante do objeto de estudo e dos lugares sociais ocupados.

Quando a língua é considerada um instrumento de comunicação, confunde-se com a

gramática. A língua cotidiana, fluida, cheia de falhas, contradições e ambigüidades não

serve ao estudo dito científico, que é, ao mesmo tempo, padronizado e padronizador. Até

porque a língua cotidiana o que menos faz é comunicar. Recorre-se, então, a uma “língua-

gramática”, tida como verdadeiro instrumento de comunicação, completa, com sentido único

e evidente, capaz de transmitir tudo o que se quer comunicar, capaz de desvendar tudo o

que o autor quis dizer. Nesta perspectiva, necessita-se de uma língua comportada, isto é,

que fique dentro dos limites das comportas, represada, que se possa segmentar para

analisar, isolar a parte do todo, já que se supõe que é o conjunto das partes que forma o

todo.

O aluno é convocado a conhecer todas as suas peças de composição, com os

devidos nomes (substantivo composto, adjetivo superlativo, verbo defectivo...), seus

parafusos e roldanas que executam encaixamentos (conjunção coordenativa adversativa,

preposições indicativas de posse...), a função dos elementos quando da sua combinação

(sujeito inexistente, predicado verbo-nominal, oração subordinada adverbial causal...), a

ordem normal de aparecimento (sujeito antes do predicado, adjunto adverbial no final da

frase...), os efeitos do movimento de uma peça sobre outra (concordância, regência, aspecto

verbal, vírgula). Como se pode ver por esta breve, incompleta, mas cansativa listagem, a

aula de Língua Portuguesa costuma resumir-se num ensino pleno de metalinguagem prêt-à-

porter que pressupõe uma reflexão, mas sem que esta se dê de fato.

Nesta perspectiva, para dar conta de todas as classificações, é preciso trabalhar-se

com segmentos que evidenciem e não deixem dúvidas. Por exemplo, um segmento deve

deixar evidente o sujeito inexistente (às vezes, para evitar-se o paradoxo de fazer buscar o

que não existe, usa-se o eufemismo “oração sem sujeito”); três segmentos devem

transparecer a diferença entre o “pois” conjunção coordenativa explicativa, subordinativa

causal e subordinativa conclusiva. Recorre-se, então, a segmentos da língua-gramática

especialmente construídos para dar conta do aspecto trabalhado naquela aula. E para

comprovar que as classificações não são criações fictícias, mas fatos concretos da

realidade, tomam-se fragmentos de obras clássicas de séculos passados. Para mostrar

atualidade, mostram-se fragmentos de propagandas, charges, notícias de jornais, sempre

com a ressalva de que o que não segue a norma da língua-gramática é exceção.

Para melhor concretizar esta perspectiva, tomo um fragmento de um panfleto que foi

distribuído a cirurgiões dentistas, convidando-os para um curso. O texto completo encontra-

se em anexo6. Cito, então, algumas formas de trabalho com cada uma das gramáticas

acima referidas e deixo ao leitor o levantamento de hipóteses sobre as respostas dos

alunos:

Há uma nova tendência em nosso mercado de trabalho: o dentista trabalhando integrado com o médico cirurgião plástico.

Gramática teórica: Identifique o sujeito do verbo “haver”.Gramática normativa: Mostre a diferença de concordância entre os verbos “haver” e “existir”. Gramática de uso: Escreva um convite formal de um cirurgião dentista a um médico cirurgião plástico para que trabalhem de forma integrada.Gramática reflexiva: Identifique as palavras que seguem um mesmo padrão de formação: dentista – médico – florista – jornalista – pista.

Como sustentáculo de todo esse ensino das aulas de Língua Portuguesa, está a

ilusão de que sabendo cada parte, o aluno será capaz de deduzir o todo, de que adquirindo

6 Pertence ao arquivo do projeto de pesquisa “Mídia e discursos sobre o corpo: subjetividade e efeitos de sentido”, que coordeno, com apoio PIBIC-CNPq/UFRGS.

a língua-gramática, será capaz de colocar as engrenagens em funcionamento e obter bons

resultados como produto final: uma boa interpretação ou uma boa produção de um texto

sem falhas. E aí a realidade vem provar o contrário: o drama maior dos vestibulares é a

redação, os piores índices das provas de concurso estão nas questões de interpretação, a

escrita de e-mails leva os executivos a situações constrangedoras, o professor e o aluno de

Letras são vistos como deuses ou demônios, sem meio termo.

Até porque interpretar e produzir textos não é nada fácil, envolve subjetividade. E aí

é que está o ponto a que quero chegar: a relação da gramática com a interpretação e, por

aí, com a subjetividade. Quando digo interpretação, estou considerando que ela envolve

tanto a leitura como a produção textual, mas refiro-me, neste texto, à primeira. Nesta outra

perspectiva, poderia ser proposta para o mesmo texto, uma questão como: Por que a frase

começa falando sobre a nova tendência e não sobre os profissionais? Essa pergunta, que

não deixa de levar em conta aspectos gramaticais, impõe a necessidade de leitura do texto

em relação com suas condições de produção. É claro que a pergunta, por si só, não

desvenda essa relação, mas, ao menos, instiga o leitor a pensar por que se diz algo, por

que se diz de uma certa maneira e que efeitos esse dizer provoca, o que pode levar a uma

bela discussão com os demais colegas e com o professor.

O ensino de língua e a formação do cidadão

Em especial, estou pensando no papel do professor na formação de um cidadão

crítico, capaz de interferir nas suas condições de existência. E essas condições, no Brasil,

precisam de interferências urgentes. Nossa sociedade caracteriza-se por aspectos como a

desigualdade econômica, a elevação de valores neoliberais, a desvalorização da cultura

regional em favor de uma outra artificial, o consumo levado ao extremo substituindo valores

como a ética e o respeito por si e pelo outro.

Todos esses aspectos são aprofundados pelas diferentes formas de mídia, presente

na maioria dos lares e em qualquer conversa cotidiana. Ou seja, alguns discursos entram na

ordem do dia passando a ser considerados relevantes, outros se firmam como um pré-

construído, que é o “‘sempre-já-aí’ da interpelação ideológica que fornece-impõe a

‘realidade’ e seu ‘sentido’ sob a forma da universalidade” (Pêcheux, 1995, p.164), ocupando

os espaços de interpretação.

E os professores nas escolas ora absorvem os discursos midiáticos, ora travam uma

luta quixotesca contra eles, ora ignoram porque não há tempo a perder quando se tem tanto

conteúdo formal a ensinar/aprender. De qualquer forma, muito pouco se prepara o aluno

para a convivência cotidiana com tais discursos, ou seja, muito pouco se trabalha a

criticidade na formação de um leitor-cidadão.

Vale ressaltar que a criticidade, enquanto um emblema da cidadania e um valor atitudinal, é trabalhada ideologicamente por aqueles que detêm o poder econômico e político. Isso porque a conservação e reprodução dos esquemas de privilégio dependem, fundamentalmente, da ignorância e do conformismo, aqui tomados como formas de escravização da consciência. Daí que a presença de sujeitos críticos e, por extensão, de leitores críticos seja incômoda, seja tomada como um risco aos detentores do poder. (Silva, 1998, p.23)

A escola não pode eximir-se da responsabilidade de responder à sociedade que a

sustenta e que é motivo de existir. Como aparelho ideológico, não pode ocultar-se sob

conteúdos tidos como aqueles que natural e obviamente se deve saber.

Os saberes da escola (incluindo-se a gramática) têm-se constituído de discursos

logicamente estabilizados em que, conforme a descrição de Pêcheux (1990a, p.31), “supõe-

se que todo sujeito falante sabe do que fala, porque todo enunciado produzido nesses

espaços reflete propriedades estruturais independentes de sua enunciação: essas

propriedades se inscrevem, transparentemente, em uma descrição adequada do universo”.

Ou seja, essas “coisas a saber” num universo estável e homogêneo seguem o caminho

inverso ao da formação de criticidade.

E se se quer a formação de leitores críticos, não se pode só eventualmente chamar

para dentro da sala de aula a realidade em que se vive, num espaço mínimo que não

atrapalhe o andamento dos conteúdos a ensinar/aprender. E, neste sentido, falo inclusive e

principalmente das aulas de Língua Portuguesa. Repito um dizer que já é lugar comum nos

cursos de formação de professores da área: o texto não pode ser pretexto para o ensino de

conteúdos gramaticais. Proponho que a ordem deve ser inversa, como procurarei mostrar a

seguir. Não confundindo língua e gramática, e sim considerando a gramática como um dos

funcionamentos da língua.

Nesta perspectiva, considero que ensinar Língua Portuguesa “significa trabalhar a

organização e as marcas textuais, levar o aluno ao desvendamento das condições de

produção do discurso e dos sentidos”. (Mittmann, op.cit, p.235) Assim é que se estará

formando um cidadão preparado para ler o mundo de forma crítica e para, então, intervir

nessa realidade.

A língua em (dis)curso

Para isso, o primeiro aspecto a considerar é que a língua não é um objeto apartado

do sujeito e que o sujeito venha a adquirir ao longo da vida. Não é, portanto, um instrumento

de que o sujeito se utiliza.

Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham

nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar. (...) Os sujeitos não “adquirem” sua língua materna; é nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência. (Bakhtin, 1979, p.93)

Se o sujeito se constitui na e pela língua, se a língua só existe quando em relação

com o sujeito, ela não pode ser vista como um objeto pronto para ser ensinado, aprendido e,

finalmente, utilizado. É preciso considerá-la como constitutiva do discurso e, portanto, do

sujeito, não um sujeito que a utiliza, mas um sujeito que mergulha nela. Trata-se, portanto,

de uma língua incompleta, com falhas, com sentidos que deslizam, em virtude de sua

relação com a história e, por aí, com o ideológico.

Isso não significa que a língua não possa ser trabalhada em sala de aula. Não

significa “jogar a gramática no lixo”, como propõem alguns, ou, mais radicalmente, retirar de

cena a disciplina de Língua Portuguesa, já que o que ela se propõe a ensinar – a língua – é

o que o aluno, como falante nativo, já sabe. O que é preciso é um olhar crítico sobre o

ensino que já está firmado nas escolas e uma proposta de outro ensino.

Em sua crítica ao objetivismo abstrato, sobre o qual estão assentados os estudos

morfossintáticos, Bakhtin, já na primeira metade do século XX, afirmava a necessidade de

estudar-se a língua a partir dos preceitos enunciativos:

Com efeito, as categorias lingüísticas, tais como são, só são aplicáveis no interior do território da enunciação. Assim, as categorias morfológicas só têm sentido no interior da enunciação; elas deixam de ser úteis quando se trata de definir o todo. O mesmo se dá com as categorias sintáticas, por exemplo a oração: a categoria oração é meramente uma definição da oração como uma unidade dentro de uma enunciação, mas de nenhuma maneira como entidade global. (Bakhtin, 1979, p.126)

Passado um século dessa afirmação de Bakhtin, ainda é preciso reivindicar sentido

às atividades das aulas de Língua Portuguesa. Note-se que Bakhtin não pretende que se

eliminem os estudos de morfologia e de sintaxe, o que ele aponta é para a necessidade de

considerar-se nesses estudos a língua funcionando em instantes de enunciação, como uma

corrente em que o sujeito mergulha.

O que é preciso é instaurar um outro modo de trabalhá-la, considerando que a língua

só existe porque existe discurso, só existe discurso porque existe sujeito e, finalmente, só

existe sujeito na ideologia. Nesta perspectiva, estuda-se a língua na relação indireta e não-

transparente com a ideologia, através da análise do discurso (com base em sua

materialidade textual) buscando relações subjetivas, isto é, lugares sociais, posições de

sujeito (em sua materialidade histórica). Esta língua, que é constituída historicamente e, por

isso, fluida e opaca, não se confunde com a língua-gramática, e isso não impede que seja

trabalhada nas aulas da disciplina de Língua Portuguesa.

E é essa outra língua que eu gostaria de abordar agora, a partir de uma perspectiva

discursiva, ou seja, com base nos pressupostos da Análise do Discurso (escola francesa e

brasileira). Não vou descrevê-la, mas apenas abordar alguns aspectos que podem ser

pensados para um trabalho no Ensino Fundamental e Médio.

O primeiro gesto neste sentido é o de contestar a imagem de uma língua-instrumento

ou língua-gramática, conforme descrita acima. A base dessa imagem é a oposição

saussuriana entre língua e fala: é comum que os livros didáticos e as aulas de Língua

Portuguesa dediquem maior espaço ao estudo de uma língua que se acredita dotada de

completude e regularidade, do que a uma fala, que, por ser colada ao sujeito, é dotada de

falhas, ambigüidades, irregularidades e vícios. O que é regular, apartado do sujeito, é

passível de ser segmentado, analisado em pedaços, o “resto” fica em segundo plano.

Porém, não estou propondo aqui que se aborde a fala, deixando a língua em segundo plano.

Na perspectiva discursiva, não há oposição entre língua e fala, “a discursividade não

é a fala (parole), isto é, uma maneira individual ‘concreta’ de habitar a ‘abstração’ da língua;

não se trata de um uso, de uma utilização ou de realização de uma função” (Pêcheux, 1995,

p.91). E na discursividade, tem-se o entrelaçamento da materialidade lingüística com a

materialidade histórica. Assim, a língua (não a língua regular, saussuriana, mas a irregular,

da discursividade) é “o pré-requisito indispensável de qualquer processo discursivo”

(Pêcheux, 1995, p.135).

Diante da relação necessária da língua com o discursivo e, por aí, com o histórico, já

que o discurso constitui-se simultaneamente – talvez melhor fosse dizer intrincadamente –

pela materialidade lingüística e pela histórica, desfaz-se o que, segundo Leandro Ferreira

(2003, p.204-205), por muito tempo imperou nos domínios da linguagem: a "sagrada

trilogia": transparência, univocidade e regularidade. No primeiro postulado, a língua

funcionaria como veículo de pensamento, com uma relação direta entre linguagem e mundo;

no segundo, haveria uma relação direta entre a língua e a interpretação, em virtude de o

sentido ser único; no terceiro, a língua figuraria como um conjunto homogêneo, estável e

uniforme. Através dessa descrição do que a língua não é (ao menos aquela língua a que eu

e a autora estamos referindo-nos), podemos afirmar como características fundamentais da

língua: a opacidade, a falha, o deslize, a pluralidade, o equívoco. Destaco que essas

características são fundamentais e não acessórias, marginais, eventuais.

Nesta perspectiva, o equívoco é tratado como próprio da língua e não como um erro

que deve ser consertado pelo professor. Afinal, como bem afirma Pêcheux,

“toda descrição – quer se trate da descrição de objetos ou de acontecimentos ou de um arranjo discursivo-textual (...) – está intrinsecamente exposta ao equívoco da língua: todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro (a não ser que a proibição da interpretação própria

ao logicamente estável se exerça sobre ele explicitamente). Todo enunciado, toda seqüência de enunciados é, pois lingüisticamente descritível como uma série (léxico-sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação.” (Pêcheux, 1990a, p.53)

Ou seja, para que a interpretação se dê, é necessário que se trabalhe não sobre o

sentido pronto, pré-determinado, pronto para ser descoberto, mas sobre as possibilidades

de sentidos, sobre os deslocamentos, deslizamentos, pontos de deriva. Por outro lado,

pensar a pluralidade não significa admitir qualquer sentido, pois se há constituição pelo

heterogêneo, há também determinação sobre os limites.

A interpretação

A partir dessa perspectiva sobre a língua e o sentido, é possível pensar o processo

de interpretação. Este processo vai além da leitura, já que ocorre tanto na leitura como na

produção de um texto, já que se pode dizer que a interpretação é a forma de contato com o

mundo, um contato sempre indireto, visto que é intermediado pela ideologia. Neste sentido,

o mundo em si é o que menos interessa, já que é inatingível ao sujeito que só consegue

alcançar imagens e simbologias. O que interessa é a própria interpretação. A Análise do

Discurso se propõe, segundo Pêcheux (1990a, p.57), “que, através das descrições regulares

de montagens discursivas, se possa detectar os momentos de interpretações enquanto atos

que surgem como tomadas de posição”. Ou seja, a interpretação é analisada como caminho

para pensar-se a constituição da subjetividade, visto que sujeito e sentido se constituem

juntos no discurso. Afinal, “as palavras mudam de sentido segundo as posições sustentadas

por aqueles que as empregam” (Pêcheux, 1995, p.160), assim, uma mesma palavra pode

mudar de sentido, bem como palavras diferentes podem apontar para um sentido próximo.

Isso, porém, não significa, como temos dito neste texto, a transparência e evidência do

sentido e do sujeito, pois esses são efeitos ideológicos:

a distinção entre as duas figuras articuladas do sujeito ideológico, sob a forma da identificação-unificação do sujeito consigo mesmo (o “eu vejo o que vejo” da “garantia empírica”), de um lado, e da identificação do sujeito com o universal, de outro, por meio do suporte do outro enquanto discurso refletido, que fornece a “garantia especulativa” (“cada um sabe que...”, “é claro que...”, etc.) (Pêcheux, 1995, p.132-133)

Esse efeito de evidência do sentido e do sujeito se dá através da Formação

Discursiva, que e a delimitação, a partir de uma posição ideológica dos sentidos permitidos

e das posições permitidas. A Formação Discursiva é o que, a partir de uma posição,

determina "o que pode e deve ser dito" (Pêcheux, 1995, p.160) e, por extensão, o que pode

e deve ser interpretado e, ainda, o que não pode e não deve ser dito ou interpretado, o que

acaba por marcar-se no próprio fio do discurso. Uma marcação que, é claro, nem sempre é

evidente, já que o jogo entre o que pode e o que não pode leva-nos a pensar "a presença de

não ditos no interior do que é dito" em certos "arranjos sócio-históricos de constelações de

enunciados" (Pêcheux, 1990a, p.44). A essas constelações podemos relacionar o

interdiscurso, definido pelo autor como uma materialidade anterior e exterior à existência do

discurso em questão e que intervém para constituí-lo. (Ibid..1990b, p.289)

Ou seja, o processo discursivo faz falar tanto o dito, como o não dito, ou, ainda, o

dito em outro lugar e independentemente. E por não dito, podemos entender tanto as

relações de parafrásticas de uma mesma Formação Discursiva, isto é, o que pode ser dito

de outro modo a partir das mesmas condições de produção; como as relações parafrásticas

de outra Formação Discursiva, isto é, o que vem de outro lugar e ressoa verticalmente a

partir do dito, por exemplo, sob a forma de negação e silenciamento.

É através da memória discursiva que o não dito fala naquilo que é dito. Não se trata

de uma memória mental ou psicológica, nem de uma memória que recupere literalmente um

dito localizável em um sujeito específico. Também não se trata de uma memória regular

capaz de recuperar tal e qual o que se encontra em outro lugar. Trata-se de uma forma de

intervenção do interdiscurso no intradiscurso (Ibid, 1990b, p.291), ou, olhando do lado

inverso, trata-se do acionamento, pelo dizer do intradiscurso, dos dizeres do interdiscurso, o

que cria a possibilidade de que o primeiro seja dito e interpretado. Desta forma, pode-se

observar a impossibilidade de, para pensar-se a leitura, separar o interno do externo, o

intradiscurso do interdiscurso, o dito do não dito.

Uma análise

Estas relações podem ser exemplificadas através da análise do texto que citei

anteriormente e que consta em anexo. Trata-se de um folheto que é nomeado como

“INFORMATIVO DE INTEGRAÇÃO ODONTO <-> PLÁSTICA” e é dirigido aos cirurgiões dentistas,

divulgando um curso sobre essa integração. Além de chamar os cirurgiões dentistas

(doravante CD) para inscreverem-se no curso, busca que estes estendam o convite aos

cirurgiões plásticos (doravante CP): “CONVIDE OS PLÁSTICOS DA SUA CIDADE”. O informativo

traz todas as características de uma propaganda, como o valor, a duração do curso, o

currículo dos ministrantes, um suposto aval de uma associação de cirurgiões, além de

recortes de matérias de Zero Hora e Veja. Por duas vezes, os EUA são citados como

pioneiros neste procedimento.

No primeiro trecho, apresenta-se a novidade que é objeto do curso: “Há uma nova

tendência em nosso mercado de trabalho: o dentista trabalhando integrado com o médico

cirurgião plástico.” Como o folheto é dirigido aos CD, supõe-se que, o pronome em primeira

pessoa do plural não se refira a ambos profissionais, mas especificamente ao interesse dos

CD, citados na frase (como em outros momentos do texto) antes dos CP. Temos então,

duas questões sobre o funcionamento do pronome, que podem não ser tão óbvias ao aluno:

que o referente do pronome deve ser deduzido a partir da leitura do texto, e que a primeira

pessoa do plural indica uma cumplicidade entre o CD-leitor e o suposto autor, designado

apenas pela sigla RGO, que é quem promove o curso. Quer dizer, ambos se deparam com

um fato que é tomado como “uma nova tendência”. Note-se que há uma topicalização dessa

tendência na frase, antes da citação dos profissionais envolvidos. É como se os

profissionais tivessem que se encaixar em algo já posto.

Essa tendência é desmembrada em diferentes espaços do informativo, com ênfase

sobre a presença da cirurgia plástica no cotidiano de pacientes/clientes: “Não fique de fora

do ‘boom’ da plástica”. “Cada vez mais homens e mulheres estão fazendo cirurgias

plásticas”. “O CD não pode ficar de fora do ‘boom’ da plástica”. A cirurgia plástica, portanto,

é apresentada como algo já-lá, já conhecido, com um sentido pronto, fechado e

transparente. Esse efeito se dá tanto pela repetição no percurso do texto e também pela

repetição interdiscursiva, quando outros discursos são trazidos, sejam eles explícitos (Zero

Hora, Veja), ou não. No caso da não explicitação, ocorre o acionamento de uma voz pré-

existente, não localizável, através de uma memória falhada, deslizante e que atua sob efeito

de transparência e univocidade. Então, uma suposta “necessidade” do mercado em que se

sobressai a cirurgia plástica se apresenta também no discurso do consultório do CD. Essas

repetições intra e interdiscursivas tornam possível iniciar o primeiro parágrafo com o verbo

impessoal: “há uma tendência”, isto é, a cirurgia plástica já está presente na vida cotidiana

e, portanto, também na vida dos pacientes do CD, por isso, já há um trabalho integrado

entre CD e CP.

Se, por um lado, a memória sustenta o dizer sobre a cirurgia plástica como algo já

conhecido e estabelecido, por outro, faz soar estranho que ela esteja presente no discurso

do consultório do CD. Isso porque a mesma memória discursiva traz à tona os limites das

atribuições desse profissional. Esse estranhamento precisa ser amenizado com um discurso

que parta do mesmo argumento para implodi-lo: o limite é mantido para que não o seja.

Tomando palavras dos primeiros parágrafos do texto, podemos perceber que ali são

descritos procedimentos autorizados apenas ao CP e, portanto, não autorizados ao CD,

sendo por isso mesmo seu objeto de desejo: “plásticas faciais” e “cirurgias estéticas faciais”.

Inversamente, outros procedimentos são de incumbência do CD, não podendo ser

realizados pelo CP, o que dispõe ao primeiro um certo espaço no mercado do segundo:

“reabilitação estética dentária” e “tratamentos protéticos, restauradores e ortodônticos”. De

início, poderíamos dizer que estão aí presentes duas formações discursivas, ou seja, alguns

discursos são possíveis (e não outros) em determinados espaços de repetição. Mas, por

outro lado, há dois posicionamentos ideológicos em jogo: aquele que defende que os limites

se mantenham como tal e aquele que propõe um cruzamento, esburacando os limites. O

interessante a observar neste texto é a forma como ambas posições são negadas. Por um

lado, propõe-se que o discurso de uma formação discursiva possa transitar pela outra, o que

se pode observar com os trechos paralelos:

“os plásticos começaram a exigir em complementação das suas cirurgias, a reabilitação estética dentária”“o dentista também passou a sugerir em seus tratamentos protéticos, restauradores e ortodônticos, a realização de plásticas faciais”

Por outro lado, constrói-se a ilusão de que os limites éticos serão mantidos:

“Os preceitos éticos e acordos de limites de atuação, entre a Odontologia e a Medicina, estabelecem que...”

Essa dupla negação, com a proposta de um cruzamento (ultrapassagem) que

respeita limites (não ultrapassagem) é que possibilita a primeira chamada do informativo:

“Como ganhar mais dentro dos limites éticos”. Neste sentido, a expressão “limites éticos”

passa a significar a não ultrapassagem de limites de atribuições, silenciando um outro

sentido que entraria em confronto com “ganhar mais”: O profissional que atua na área da

saúde, especificamente, o CD, a quem o informativo se dirige, pode ganhar mais atuando

conjuntamente com o CP, e perseguir esse objetivo (ganhar mais) não significa ultrapassar

limites éticos.

O mesmo verbo aparece em outro contexto, no verso do informe: “Desta maneira

todos saem ganhando, principalmente o paciente”. O apagamento do objeto de “ganhar”

leva o CD-leitor a efetuar o preenchimento. O que é que o paciente pode ganhar? E o que é

que ele, CD, pode ganhar? Certamente, não será o mesmo léxico a preencher o objeto de

“ganhar” em cada caso. No caso do CD, este preenchimento tem relação, não com a

seqüência “principalmente o paciente”, mas com esta outra: “Você verá que o plástico

possibilitará uma nova demanda para seu consultório.” É aí que se encontra o objeto de

“ganhar mais dentro dos limites éticos”.

Conclusão

Através desta breve análise de um discurso, é possível observar que a formação de

um leitor crítico e capaz de agir sobre suas condições de existência também pode ocorrer

nas aulas de estudo da língua.

Levando esse informativo para a sala de aula, o professor pode seguir diferentes

caminhos. Pode, por exemplo, ensinar o aluno a classificar os adjuntos adverbiais “mais” e

“dentro dos limites éticos”. Pode, ainda, pedir que o aluno complete com a pontuação

adequada a mesma frase, ou corrigir os erros de digitação presentes no texto: “os novos

materiais ... agora também tem indicação”, “A APCD, foi”... Pode pedir o preenchimento do

objeto de “ganhar”. Pode perguntar o que é que está dentro e fora dos limites éticos de um

profissional da saúde. Pode pedir que o aluno se posicione como paciente diante da atitude

do profissional que visa ao aumento da demanda (não de pacientes, mas de clientes) no

consultório e escreva uma carta ao Conselho de Odontologia, ou seja, brincando com o

trocadilho, que ele passe da posição de paciente à de agente.

Enfim, as decisões sobre o que é fundamental ou secundário na aula de Língua

Portuguesa depende do posicionamento do professor diante da língua, dos lugares sociais,

das condições históricas de produção de discurso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail (Voloshnov). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec,

1979.

LEANDRO FERREIRA, Maria Cristina. Nas trilhas do discursivo: a propósito de leitura,

sentido e interpretação. In: ORLANDI, Eni P. (org.) A leitura e os leitores. 2.ed. Campinas:

Pontes, 2003.p.201-208.

MITTMANN, Solange. Leitura de textos jornalísticos em sala de aula. In: LAMPERT, Ernani.

O ensino sob o olhar dos educadores. Pelotas: Seiva, 2003. p.233-247.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 2.ed.

Campinas: Unicamp, 1995.

_____. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 1990a.

_____. Lecture et mómoire: projet de recherche. In: _____ MALDIDIER, Denise. L'inquiétude

du discours. Éditions des Cendres, 1990b. p.285-293.

SILVA, Ezequiel Theodoro da. Criticidade e leitura: ensaios. Campinas: Mercado de

Letras:ALB, 1998.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: Uma proposta para o ensino de gramática

no 1o. e 2o. graus. São Paulo: Cortez, 1996.

ANEXO

(frente)

INFORMATIVO DE INTEGRAÇÃO

ODONTO < - > PLÁSTICATENDÊNCIA Trabalho integrado CD com o Cirurgião Plástico

Como ganhar mais dentro dos limites éticosHá uma nova tendência em nosso mercado de trabalho: o dentista trabalhando integrado com o médico cirurgião plástico.Surgiu nos EUA, onde os plásticos começaram a exigir em complementação das suas cirurgias, a reabilitação da estética dentária, gerando uma nova e importante demanda para a Odontologia.Como conseqüência, formaram-se parcerias CD-PLÁSTICO e uma atuação integrada, onde o dentista também passou a sugerir em seus tratamentos protéticos, restauradores e ortodônticos a realização de plásticas faciais.Os preceitos éticos e acordos de limites de atuação, entre a Odontologia e a Medicina, estabelecem que a cirurgias estéticas faciais sejam de atribuição do médico, razão pela qual surgir a atuação integrada. Os novos materiais, como o BOTOX, utilizados cada vez mais pelos plásticos, agora também tem indicação de uso na Odontologia, como nos casos de bruxismo e dores orofaciais (relaxa a musculatura).A Associação Paulista dos Cirurgiões Dentistas (APCD), foi uma das pioneiras em promover esta integração, realizando curso específico ministrado por dentista e plástico em conjunto.

Não fique de fora do “boom” da plásticaCada vez mais homens e mulheres estão fazendo cirurgias plásticas. O que antes era mantido em segredo, agora tem até festa para mostrar a nova aparência.A reportagem publicada no jornal ZERO HORA (29/10/03), coloca que nos EUA as transformações estéticas estão sendo festejadas.O CD não pode ficar de fora do “boom” da plástica. Uma forma de incluir-se, é trabalhar integrado com os médicos plásticos.

______________________________________________

(verso)

PARTICIPE Curso de integração CD-Plástico

Odontologia Estética e Cirurgia Plástica no Rejuvenecimento FacialSaiba como trabalhar junto com os plásticos (e vice-versa).

Apenas 1 dia de curso (8h) e investimento de R$ 200,00.Convide os cirurgiões plásticos da sua cidade, para participarem juntos do curso exclusivo de integração do dentista com o plástico.Desta maneira todos saem ganhando, principalmente o paciente.INTEGRAÇÃO – A integração Odontologia/Medicina Estética tem proporcionado uma abordagem de planejamento mais ampla, abrindo um leque de novas possibilidades nas reabilitações buco-faciais, tornando os resultados funcionais estéticos tão sonhados, uma realidade alcançável.Você verá que o plástico possibilitará uma nova demanda para seu consultório (e vice-versa).

CONVIDE OS PLÁSTICOS DE SUA CIDADE

Reportagem publicada na VEJA mostra que o Botox tem diversas aplicações na Odontologia.Além das suas aplicações na estética facial, o Botox também tem diversas aplicações na Odontologia._____Nota da Autora: Por questão de espaço, aqui foram apresentados apenas fragmentos. Destaco que a digitação foi feita sem correções.