Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

256
1 DANIELA PALMA FOTOGRAFIA: ARTE E SOBREVIVÊNCIA A trajetória de Hans Gunter Flieg Dissertação apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Mestre, sob a orientação do Prof. Dr. Boris Kossoy. São Paulo 2003

description

Autora: Daniela Palma Principal trabalho sobre a obra e a biografia do fotógrafo Hans Gunter Flieg.

Transcript of Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

Page 1: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

1

DANIELA PALMA

FOTOGRAFIA: ARTE E SOBREVIVÊNCIA A trajetória de Hans Gunter Flieg

Dissertação apresentada à Escola de

Comunicações e Artes da Universidade de

São Paulo, como exigência parcial para

obtenção do Título de Mestre, sob a

orientação do Prof. Dr. Boris Kossoy.

São Paulo

2003

Page 2: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

2

Page 3: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

3

_____________________________________

_____________________________________

_____________________________________

Page 4: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

4

Page 5: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

5

RESUMO

A proposta desta dissertação é um exame da produção fotográfica de Hans

Gunter Flieg, desde da chegada ao Brasil, no final de 1939, até o fim de suas atividades

profissionais, na década de 1980. Foram utilizados dois eixos para o desenvolvimento

das análises. O primeiro toma como centro a relação do fotógrafo estrangeiro com o

país tropical em vias de modernização, privilegiando as temáticas da cidade de São

Paulo, as viagens pelo Brasil e os retratos. Na seqüência, verifica-se a configuração de

uma estética moderna em suas imagens, produzidas na esfera da indústria cultural

nascente no país, a partir da atuação nos campos da fotografia de arquitetura, de

indústria e de publicidade. A natureza dupla da obra de Flieg - o empenho artístico e

artesanal na produção de imagens ricas em significações e a necessidade de sobreviver

integrando-se ao mercado - é traço comum à parte da produção de fotógrafos imigrantes

que desempenharam um papel renovador na fotografia brasileira do século XX.

Page 6: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

6

Page 7: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

7

ABSTRACT

This work propose to examine the production of Hans Gunter Flieg in

photography, since his arrive in Brazil, in 1939, until the end of his professional

activities in the 1980s. Two axis had been used for the analysis’ development. The first

one has focus on the relation of the foreign photographer with the tropical land that was

about to modernize itself, and privileges as themes São Paulo city, the travels through

Brazil and the portraits. In sequence, examines the configuration of a modern aesthetic

in his images, produced in the sphere of the rising brazilian cultural industry, from his

performance in archtectural, industrial and advertising photography. The double nature

of Flieg’s work – the artistic and artisanal interest present in the production of images

full of signification and the necessity in surviving through the integration to market – is

a commom trace in part of the immigrant photographers works that represent a

renovation in the brazilian photography the the XX’s century.

Page 8: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

8

Page 9: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

9

À Laura.

Por ela

e para ela.

Page 10: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

10

Page 11: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

11

AGRADECIMENTOS

Meus agradecimentos sinceros a pessoas e instituições que tornaram este trabalho

possível:

Hans Gunter Flieg, fonte de tudo, pela dedicação, amabilidade e generosidade com que

me abriu seu baú de imagens, objetos e histórias;

Boris Kossoy, meu orientador e grande referência para mim e para a fotografia

brasileira, obrigada pelo estímulo, carinho e confiança depositada;

Cremilda de Araújo Medina e Marcos Silva, pelas leituras atentas e sensíveis;

Adson Vasconcelos, pela seriedade na revisão, amizade e alegria de sempre;

Marisa Masumi Komura e Walney Rozemberg Alves, pela ajuda fundamental e serena

nas entranhas do arquivo de Flieg;

Museu da Imagem e do Som de São Paulo, pela reprodução das fitas de depoimentos;

Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, nas figuras das gentilíssimas Marília Freidenson,

Gaby Becker e Paulina Faiguenboim, por me ceder o depoimento e outros materiais;

Arquivo do Estado de São Paulo, pelo atendimento atencioso de seus funcionários;

Instituto Martius Staden, pela presteza no fornecimento de cópias do material de seu

arquivo;

Fausto Couto Sobrinho, pela prontidão no empréstimo de equipamentos;

Ilona Simon Strimber , pelo contato com o Museu Judaico de Berlim;

Bárbara Heller e Helouíse Costa, pelas leituras dedicadas da primeira versão do projeto;

Page 12: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

12

Heliana, pelo carinho com que se desdobrou em cuidados com a Laura, para me permitir

dedicar tempo a este trabalho;

Ligia e Miguel, meus pais, por tudo que me propiciaram, pelo carinho e por

compreenderem de forma tão tranqüila minhas ausências,

Lauro, que dividiu cada momento desde as primeiras idéias, me deu incentivo,

tranqüilidade, confiança e muito amor.

Page 13: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

13

Sumário

Apresentação..................................................................................... 17

Capítulo 1: Da Alemanha ao Brasil................................................ 23

1.1) Na Alemanha, entre duas guerras.................................. 26

1.2) Destino: Brasil................................................................ 45

1.3) Panorama da fotografia no Brasil................................... 53

1.4) Flieg, fotógrafo................................................................ 60

Capítulo 2: O fotógrafo estrangeiro................................................ 69 2.1) Os europeus e a iconografia sobre o Brasil.................... 72

2.2) São Paulo, a cidade-refúgio............................................ 80

2.3) As viagens em busca de um país.................................... 122

2.4) Ver o outro: galeria de retratos e tipos........................... 143

Capítulo 3: Um olhar moderno........................................................ 171

3.1) Modernidade e fotografia............................................... 173

3.2) Uma nova perspectiva na fotografia de arquitetura........ 179

3.3) A beleza da máquina: reportagens sobre indústria......... 193

3.4) Fotografia e publicidade: a celebração dos objetos........ 213

Considerações Finais........................................................................ 235

Bibliografia........................................................................................ 238

Page 14: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

14

Page 15: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

15

Portanto, é fonte de grande virtude para a mente

exercitada aprender, pouco a pouco, primeiro a mudar em

relação às coisas invisíveis e transitórias, de tal modo que

depois ela possa deixá-las para trás completamente. O homem

que acha doce seu torrão natal ainda é um iniciante fraco;

aquele para quem todo solo é sua terra natal já é forte; mas

perfeito é aquele para quem o mundo inteiro é uma terra

estrangeira. A alma frágil fixou seu amor em um ponto do

mundo; o homem forte estendeu seu amor para todos os

lugares; o homem perfeito extinguiu tudo isso.

(Hugo de Saint Victor, monge que viveu na Saxônia

no século XII. Apud SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e

outros ensaios.)

Page 16: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

16

Page 17: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

17

Apresentação

Desde os primeiros contatos entre os dois continentes, o Brasil já foi enquadrado,

prismado, traçado, colorido e focado por penas, pincéis e lentes de muitos

estrangeiros. Viajantes que chagaram e se foram, imigrantes que chegaram e ficaram.

Estes olhares ádvenas desempenharam papel fundamental na construção de

imaginários sobre o país.

A literatura sobre iconografia estrangeira no Brasil até o século XIX é

razoavelmente consistente e permite a identificação de processos de produção e

perpetuação de modelos, bem como, de certas particularidades dentro do que foi

produzido nas artes visuais por viajantes e imigrantes. E no âmbito do século XX e da

arte moderna, podemos identificar processos semelhantes? E especificamente no

campo fotográfico, é possível identificar a presença estrangeira na constituição, não

tanto de uma estética, mas, principalmente, de um imaginário moderno sobre o Brasil?

É justamente a partir destas questões que nasce a proposta deste livro. A

fotografia ganha no século XX forte status de atividade de viajantes – do

fotojornalismo à fotografia de turismo. Se se passou a observar constantes

deslocamentos de fotógrafos pelo mundo; é também certo que muitos imigrantes

encontraram na fotografia um meio de sobrevivência. Principalmente a partir da

década de 1920, o incremento das indústrias de mídias impressas no Brasil criou

demandas por imagens. Depois, uma grande leva de imigrantes começava a chegar ao

país em função da guerra na Europa e do nazismo. Assim, muitos fotógrafos europeus

passaram a atuar no Brasil na primeira metade do século XX, principalmente nas áreas

mais aplicadas ao mercado cultural (fotojornalismo, publicidade, fotografia industrial,

retratos, fotografia de arquitetura e trabalhos vários de documentação).

Dentro deste quadro, o caso de Hans Gunter Flieg é representativo de um grupo

maior de fotógrafos imigrantes que desenvolveram seu trabalho como meio de

sobrevivência, integrando-se em vários ramos de uma indústria cultural que começava

a se estruturar até meados do século XX nos principais centros urbanos do país.

Mais especificamente, posso dizer que a atuação profissional de Flieg, que se

inicia em 1940 e se encerra no final da década de 1980, não era, originalmente, parte

de um projeto artístico ou político predefinido, nem se articulava a algum tipo de

agremiação como o caso dos fotógrafos fotoclubistas. Assim, no conjunto das imagens

Page 18: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

18

de Flieg, a modernidade não era programática, o fotógrafo permitia-se entrar e sair

dela, quando desejasse ou considerasse necessário. A tensão entre antigo e novo, de

forma manifesta ou latente, está sempre presente nos trabalhos de Flieg, eles carregam

as contradições e dialogam, diacrônica e sincronicamente, com o tempo de seu fazer.

Acredito, desta forma, que o presente trabalho possa ajudar no entendimento da

modernidade fotográfica nos trópicos, que se insere dentro de um quadro mais amplo

do próprio funcionamento e uma cultura moderna no Brasil.

Mais especificamente, espero que esse volume chame a atenção para a obra de

Hans Gunter Flieg, um fotógrafo primoroso que aparece citado timidamente dentro da

literatura da fotografia, das artes visuais e da publicidade brasileiras, sem que nunca

tenham se desenvolvido estudos mais preocupados com o teor da obra e de seu papel

dentro do ambiente fotográfico no Brasil.

No processo desta pesquisa, pude contar com um arquivo primoroso, organizado e

bastante documentado, que Hans Gunter Flieg vinha guardando e cuidando ao longo

de algumas décadas.

Além disso, foi essencial a participação direta e intensa do próprio fotógrafo, que,

durante meses, dedicou muitas de suas tardes a me contar episódios que sua memória

trazia à tona. No apartamento da rua Antonia de Queirós, cercada por um mar de

pilhas de papéis, envelopes, caixinhas, objetos e livros, tive o privilégio de ouvir tantas

histórias. Histórias que levavam a outras histórias e que levavam a outras mais. Nada

era narrado de forma direta, havia sempre um intróito que remetia a eventos

inicialmente remotos, mas que, no decorrer da fala normalmente calma, com discreto

sotaque, iam se alinhavando e mostrando a complexidade de um pensamento.

Assim, no texto que apresento, procuro trazer parte dessas histórias e outras

histórias nascidas a partir delas. Com este expediente busco modestamente mimetizar

um pouco a forma de pensar do autor estudado, tirando-o, dessa maneira, da condição

exclusiva de objeto e permitindo - para usar a expressão de Edward Said - que ele

apareça como um sujeito escrupuloso nesse trabalho.

A dissertação está estruturada em: apresentação, três capítulos, considerações

finais e bibliografia.

O capítulo 1, Da Alemanha ao Brasil, traz uma linha biográfica de Hans Gunter

Flieg costurada num painel de contextualização histórica da situação política, social e

Page 19: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

19

cultural da Alemanha no período do entreguerras e do Brasil na virada dos anos de

1930 para 1940, época da chegada do fotógrafo ao país, com foco especial na questão

da imigração. O capítulo finaliza com um panorama histórico da fotografia brasileira,

principalmente em São Paulo, do século XIX até os anos iniciais da atividade de Flieg,

na década de 1940, e a inserção dos imigrantes no ambiente fotográfico brasileiro.

Termina com uma síntese das atividades profissionais do fotógrafo. Além dos campos

de atuação e dos temas mais recorrentes, há outros trabalhos pontuais que merecem ser

destacados como na fotografia de objetos artísticos. Trabalhou com artistas plásticos,

fotografando as obras e registrando exposições, eventos e/ou a rotina de trabalho de

Bruno Giorgi, Tarsila do Amaral, Felícia Leirner, entre outros. Destaque também para

a atuação de Flieg na formação de novos fotógrafos, laboratoristas e técnicos em

impressão. Encerra o capítulo fazendo menção à pesquisa na área do restauro

fotográfico, às participações em exposições, além do trabalho de reprodução e

localização de coleções históricas.

No capítulo 2, O fotógrafo estrangeiro, as imagens estão analisadas sob a

perspectiva da construção do olhar do estrangeiro que busca conhecer e se adaptar à

realidade brasileira. O capítulo abre com um quadro histórico das artes visuais

produzidas por estrangeiros que têm como motivo o Brasil, desde os primeiros

viajantes dos tempos coloniais. Para a análise propriamente das fotografias, dentro

desta abordagem, elegi três temas que, acredito, dizem diretamente à questão da

percepção do imigrante. O primeiro é a cidade de São Paulo, tendo como idéia central

observar a relação do fotógrafo exilado com a sua cidade-refúgio, os mecanismos de

adaptação do olhar e a constante tensão entre antigo e novo. Depois, o tema das

viagens pelo Brasil, que se liga com a idéia de “descobrir o verdadeiro Brasil”, uma

busca das origens desta terra, deste novo lar. E, por fim, o gênero do retrato, a face dos

habitantes da terra-refúgio. Retratar é confrontar-se com o outro. E o outro neste caso

está dentro de um amplo leque que vai dos “nativos” até outros imigrantes que no

Brasil também buscaram refúgio, vai do amigo, dos parentes até pessoas anônimas

flagradas em seu cotidiano.

O capítulo 3, Um olhar moderno, é a apresentação das fontes principais sob o

prisma da fotografia moderna. Primeiro, faço algumas colocações de ordem conceitual

a respeito da noção de modernidade e fotografia moderna. Na seqüência, traço um

panorama do surgimento e desenvolvimento da fotografia moderna no mundo, quais

Page 20: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

20

os principais movimentos e propostas e os processos de assimilação da imagem

fotográfica pela indústria cultural. Aqui, trabalho com outros três temas que acredito

estarem historicamente ligados às principais propostas da modernidade no campo

fotográfico. Começo pela arquitetura, destacando a utilização de técnicas modernas de

composição, quebra de proporções, uso de ângulos inusuais, desnorteamento espacial,

montagens, contrastes, achatamento da perspectiva etc. e como estes procedimentos

fotográficos criam representações de um determinado ideal arquitetônico ligado às

concepções de cidade moderna de ocupação capitalista e, ao mesmo tempo, expressa a

reminiscência marginal do antigo. O segundo tema é a indústria, também buscando

ressaltar os aspectos formais e a identificação das técnicas e métodos de trabalho que

permitem construir um novo ideal de beleza extraído do ambiente industrial. Fecho o

capítulo tratando da fotografia de publicidade, também identificando as questões

formais que permitiram a valorização do objeto no âmbito da imagem, expressando o

papel da mercadoria nos contextos sociais em que se formavam.

Page 21: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

21

Page 22: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

22

Page 23: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

23

Capítulo 1

Da Alemanha ao Brasil

Filme na câmera... Fotogramas da última foto tirada na Alemanha e da primeira, registrada no

Brasil. Chemnitz, ago. 1939; São Paulo, dez. 1939.

Page 24: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

24

Page 25: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

25

O trecho do filme que Hans Gunter Flieg trazia na câmera ao sair da Alemanha e

aportar no Brasil continha o registro de dois mundos. O primeiro, a cidade onde nascera,

uma “última olhada” pela janela do apartamento onde vivia. É a origem, antes desta

imagem, o aprendizado, a formação pessoal, um núcleo familiar mais amplo,

transformações políticas, econômicas e sociais que pontuaram acontecimentos da vida

pessoal, tradições que moldaram o pensamento das várias gerações, trajetos de trem,

visitas ao leste, infortúnios, perdas, pinturas nas paredes e tanto mais. O segundo mundo

era, ainda naquele momento, uma incógnita, uma interrogação expressa pelo detalhe de

um novo mundo, apenas um vaso de flor -- flores que a mãe recebera de boas-vindas. A

imagem traz um clichê -- a vegetação tropical -- e muitas indagações – um vaso

pequeno, no ambiente íntimo, cortado, não se vê o buquê por inteiro.

Um olhar para o segundo mundo não é só a descoberta do novo, mas também o

resgate do primeiro. A faixa preta que separa os dois fotogramas não é um muro, mas

uma ponte. O entendimento de tudo que virá para a direita da tira de filme perpassa por

um entendimento do que existe à esquerda dela. Assim, antes de iniciar a análise

propriamente das imagens e dos contextos de produção da obra de Flieg, é preciso

apresentar sua biografia, relacionando-a ao amplo contexto que a envolve. Ela começa

na Alemanha e chega ao Brasil, é um processo, tem vida, tem transformação.

A própria história da Alemanha está relacionada com este processo, tomando

aqui a tese de Peter Gay de que a história cultural alemã do período da República de

Weimar é basicamente a história dos exilados do nazismo, pois estes foram portadores

do “espírito de Weimar”, ou seja, de todo um projeto moderno, gerado em solo alemão e

realizado para além de suas fronteiras. Em sua gênese também esta cultura é

universalizante, já que a Alemanha pré-Hitler também foi um polo de atração cultural:

“A cultura de Weimar foi criação de forasteiros, impelidos pela história para o seu

interior, por um momento curto, vertiginoso e frágil”.1

Flieg não viveu esta modernidade de Weimar em idade tenra, os circuitos

culturais da Alemanha da época estavam longe de sua vida cotidiana. Mas, nem tanto,

pois estas idéias se infiltravam na sociedade alemã e se inseriam na cultura de massa,

despertando novas percepções e criando novos gostos. Também muito deste projeto

moderno era calcado em idéias e valores bem mais antigos que talvez estivessem

arraigados no comportamento e no imaginário alemão de um modo geral. Então, Flieg

1 GAY, Peter. A Cultura de Weimar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 12.

Page 26: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

26

consumiu esta modernidade e assimilou-a, bem como foi formado sob a égide de alguns

dos princípios que a motivaram.

1.1. Na Alemanha, entre duas guerras

Hans Gunter Flieg nasceu em 3 de julho de 1923, na cidade de Chemnitz, região

da Saxônia, na Alemanha, filho de Eva2 e Karl Flieg. Era o auge da crise econômica

alemã do pós-Primeira Guerra:

Eu nasci na inflação, tanto que meu pai se antecipava

(...) ele estava de pé ao lado da minha caminha e disse

“escuta, eu quero te informar que o dólar hoje representa

tantos milhões de marcos, só para você mais tarde não me

culpar que não foi informado”. (...) Não foi a única inflação

que eu vi, não... foi um bom começo.3

Lembranças da hiperinflação alemã rondam relatos e outros tipos de registro

sobre a vida naquele período. Outro fotógrafo imigrado para o Brasil, Curt Schulze,

também registrou suas memórias da época:

Em [19]23, eu conhecia uma inflação tremenda da

qual eu me lembro até hoje (...). A experiência prática desta

inflação: minha mãe me mandou com seis milhões de marcos

para ir para o padeiro, que era no mesmo prédio, e eu fiquei

talvez entre uma e duas horas na fila, com mulheres e outras

crianças, quando chegou minha vez, eu recebi em vez de um

pão inteiro, a metade. Fui chorando para casa, não entendi, eu

me achei culpado porque não tinha nada para comer em

nenhum lugar. Meu pai me explicou, alguns anos mais tarde,

que nesta época, do tempo que fiquei na fila, o dinheiro

desvalorizava 50%.4

E, no cinema, Ingmar Bergman abre o seu filme O ovo da serpente (1976) com o

comentário: “Estamos no dia 3 de novembro de 1923. O maço de cigarros custa 4

bilhões de marcos. A maioria das pessoas perdeu a fé no futuro...”.5 Os anos iniciais da

República de Weimar são descritos como uma época de profunda desilusão, com uma

2 O nome de solteira é Margit Emma Eva Schafer.

3 Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 14 fev. 2002.

4 Depoimento de Curt Schulze a Ivan Negro Isola, Gery Schulze e Ricardo Lua. Museu da Imagem e do

Som, São Paulo, 1984. 5 RICHARD, Lionel. A República de Weimar: 1919-1933. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.

85.

Page 27: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

27

Alemanha mergulhada em miséria e fome, resultado da derrota na guerra que pouco

tempo antes representava o depósito das esperanças para a afirmação nacional. No ano

de 1914, o Império gozava de grande aprovação, a disposição de Guilherme II pela

entrada da Alemanha na Primeira Guerra foi ao encontro direto aos anseios de uma

população ávida pelo reconhecimento mundial da grandeza germânica.

A unificação tardia colocava a Alemanha (e também a Itália) em posição

desfavorável na corrida imperialista. A entrada na Guerra era a primeira grande

oportunidade do povo alemão expurgar o fantasma do atraso nacional, era o momento

da Alemanha se colocar em posição de igualdade com as outras potências européias.

Assim, o início da Guerra gerou uma tal histeria patriótica que arrebatou os mais

diversos setores da sociedade alemã:

Desde 1848 a Alemanha não conhecia semelhante

impulso de fervor coletivo. Há muito tempo os grandes

problemas da nação não eram colocados no centro dos debates

intelectuais com essa paixão sem discórdia.6

Havia o orgulho nos jovens alemães em servir o país num momento tão crucial. Muitos

judeus engordaram as fileiras que partiam para os fronts. O pai de Flieg, Karl Flieg, foi

um deles, serviu na artilharia montada. Os dois irmãos da mãe de Flieg também

serviram na Guerra. O mais velho, Arthur Schafer, lutou na frente russa, enfrentando o

inverno russo em trajes de verão o que lhe casou uma atrofia renal devido a uma

infecção. O irmão mais novo de Eva, Hans Gunter Schafer, movido por uma intensa

animação patriótica, alistou-se e foi à França para servir na frente ocidental. Porém, a

contagem de judeus realizada pelo exército alemão em suas fileiras em 1916 arrefeceu

os ânimos de Hans Schafer, que acabou morto em março de 1918, durante um

bombardeio às trincheiras, próximas à cidade de Cambrai, local em que ele estava. Tem-

se o registro de que, durante a Primeira Guerra, morreram cerca de 12 mil judeus que

serviam ao exército alemão.

Conforme se configurava a derrota na Guerra, a empolgação patriótica revertia-se em

descontentamento popular com o poder imperial, pois, ao invés da glória germânica,

assistiam à humilhação nacional, no âmbito externo, e à escassez de alimentos e demais

produtos básicos para as classes trabalhadoras, no âmbito interno.

6 RICHARD, Lionel. Op. cit. p. 20.

Page 28: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

28

Desta distensão social, surgem os movimentos políticos com forte apoio popular

que irão forçar Guilherme II a se retirar do poder. Em novembro de 1918, os

spartakistas convocaram os operários a iniciar um movimento revolucionário, saindo

das fábricas e caminhando para o centro de Berlim, os cortejos eram engordados por

transeuntes. Tomaram quartéis e redações de jornais, com o intuito de instituir uma

república socialista na Alemanha. No entanto, parte dos social-democratas, numa

manobra, se antecipou ao líder spartakista, Karl Liebknecht, e, num discurso de

Scheidemann no Parlamento, proclamaram a República alemã. Guilherme II fugiu para

a Holanda e o social-democrata Friedrich Ebert foi eleito presidente pela Assembléia

Nacional de Weimar e Scheidemann, primeiro-chanceler. Os spartakistas Liebknecht e

Rosa Luxemburgo foram assassinados por corpos voluntários recrutados pelo governo,

depois de uma longa campanha difamatória.

Karl Flieg, após a Guerra, voltou à sua cidade de origem, Schrimm, na província

de alemã de Posen7. Com a redefinição das fronteiras, imposta pelo Tratado de

Versalhes, a região ficaria com a Polônia8. Os Flieg optaram por permanecer na

Alemanha. O irmão mais velho de Karl havia se casado e se mudado para a cidade de

Chemnitz durante a Guerra para compor sociedade com o sogro numa firma da área

têxtil. Em 1921, Karl se juntou a eles para tocar a empresa que produzia meias e, em

1922, casou-se com Eva Schafer, judia natural de Dresden, cuja família mudou-se

posteriormente para a cidade Görlitz, na Silésia.

Chemnitz era uma cidade de colonização eslava, eminentemente industrial – era

conhecida como a “Manchester da Saxônia” -- e se destacava principalmente no ramo

têxtil: tanto na produção de máquinas, como nas tecelagens e confecções. A cidade

tinha uma curiosa tradição nessa área, pois detinha os diretos imperiais de Bleichen

(branqueamento), ou seja, todo o linho produzido na Alemanha durante o Império

deveria ser branqueado em Chemnitz, o que era uma das fontes principais de recursos

do município. Estavam instaladas na cidade também importantes indústrias de outras

áreas como a Wanderer, do grupo Auto Union, que produzia bicicletas e motocicletas e

a Hartmann, gigante na fabricação de locomotivas.

7 O nome polonês de Schrimm é Srem e, de Posen é Poznan.

8 “A cidade de Poznan, cidade outrora chamada Posen e que injustamente pertencia à Prússia, já que era

povoada por uma maioria de poloneses, tornou-se parte da Polônia. Além disso, como esta devia

possuir livre acesso para o mar, um corredor polonês de 100 quilômetros foi criado artificialmente no

território alemão, entre a Prússia oriental e a Pomerânia, abrindo caminho para o Báltico”.

RICHARD, Lionel. Op. cit. p. 65.

Page 29: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

29

No pós-Primeira Guerra, por praticamente toda a Alemanha, existiam sérios

problemas habitacionais. Em Chemnitz, a municipalidade exigia que quem se mudasse

para a cidade providenciasse a construção ou a disponibilização de mais um

apartamento ou casa, além do que iria habitar. Assim, Karl Flieg comprou uma casa

num bairro afastado do centro e, no prédio da firma, adaptou um apartamento para ser

posto à disposição da cidade. Nesta casa, nasceu Hans Gunter Flieg em 1923.

Em 1927, a família mudou-se para um apartamento mais confortável na mesma

rua da primeira residência. Em 1929, nasceu o segundo filho do casal Flieg, Stefan.

Segundo Flieg, esta era uma “época relativamente um pouco melhor, meu pai já estava

trabalhando naquela firma há uns cinco anos, havia um certo progresso na época (....)

a época não era das piores”9. De fato, os anos de 1924 a 1929 são considerados de

aparente estabilidade política, social e econômica, comparado ao estado de tensão que

se viveu na primeira fase da República. Como observa Peter Gay, era o momento

quando a Alemanha gozou de estabilidade fiscal,

relaxamento da violência política, renovação de prestígio no

estrangeiro, e prosperidade muito difundida; as artes

progrediam para a fase do Neue Sachlichkeit, da objetividade,

causalidade, sobriedade.10

No campo da cultura alemã, o período da República de Weimar é considerado

um dos mais profícuos da história ocidental. Nos anos iniciais, grande parte da produção

artística girava em torno das experiências expressionistas. O expressionismo precede a

República, mas ganha nova carga com o fim da Primeira Guerra e a Revolução de

novembro. Os expressionistas viam a experimentação como meio de combater o senso

comum e buscar uma renovação para aplacar “o descontentamento com a realidade e a

incerteza acerca dos valores que marcavam a Alemanha em geral”11

, ou, como definiu

Louis Dupeux, era “um estado de espírito mais do que uma doutrina”12

. Kandinsky em

seu ensaio de 1912, Acerca do Espiritual na Arte, criava uma oposição entre a

interioridade e a aparência, e a arte deveria ser a expressão do que há de mais profundo

no ser humano. O expressionismo se desenvolveu em quase todas as artes (pintura,

9 Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 14 fev. 2002.

10 GAY, Peter. Op. cit. p. 140.

11 GAY, Peter. Op. cit. p. 121.

12 DUPEUX, Louis. História cultural da Alemanha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992. p. 79.

Page 30: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

30

teatro, cinema, música, arquitetura, dança e artes gráficas), tendo pouca expressão na

escultura, com a exceção de Ernst Barlach, e praticamente nenhuma, na fotografia.13

Além de Berlim, as principais referências culturais para Chemnitz eram Dresden

e Leipzig, tendo a primeira uma das principais universidades da Alemanha, além de

uma portentosa atividade no campo das artes plásticas, e a segunda era centro nacional

das artes gráficas na produção de livros. Nas residências de Flieg e de seus parentes

próximos, a presença de nomes ligados ao expressionismo vinha principalmente dos

antigos integrantes do grupo Die Brücke, de Dresden, fundado em 1905: gravuras de

Karl Schmidt-Rottluff, Max Pechstein e Emil Nolde e esculturas de Barlach. Fora de

casa, o contato com a arte expressionista também acontecia, como, por exemplo, nos

passeios às Lojas Schocken, no centro de Chemnitz, cujo prédio, construído em 1928, é

um dos mais importantes trabalhos de Erich Mendelsohn.

(...) havia uma convivência com o tipo de arte que

hoje tem aquele nome e a gente reza para isto, como se fossem

deuses. No entanto, o nome Schmidt-Rottluff não era nada

mais que o seguinte: era o senhor Schmidt, dos arredores de

Chemnitz, [de um local] que se chamava Rottluff. (...) não sei

se meu pai o conhecia pessoalmente, mas, em todo caso, havia

trabalhos nas paredes desse pessoal.14

Karl Flieg era ligado a uma sociedade de bibliófilos de Leipzig, que

subvencionava edições especiais de artistas e escritores que consideravam de certa

qualidade. As tiragens limitadas dessas edições eram destinadas aos sócios, que

recebiam mensalmente uma obra. A sociedade chegou a patrocinar também escultores e

Flieg se recorda de duas pequenas esculturas de animais, de Renée Sintenes e Georg

Kolbe.

Se o expressionismo é tendência principal no cenário artístico alemão, desde o

início do século XX, a partir de 1924, aproximadamente, período que Peter Gay associa

com a estabilidade, desenvolve-se a chamada Nova Objetividade (Neue Sachlichkeit). A

proposta da nova tendência era, em oposição ao expressionismo, uma abordagem mais

realista como meio de atingir a “superação da oposição entre uma cultura imagética,

orientada segundo o passado, e o cotidiano do presente, dominado pela concentração

13

CARDINAL, Roger. O expressionismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

14

Entrevista de Hans Gunter Flieg a Gaby Beck e Paulina Faiguenboim – Arquivo Histórico Judaico

Brasileiro, São Paulo, 1993.

Page 31: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

31

dos habitantes nas grandes cidades, pela indústria e técnica e não pelos deuses e elfos

do panteão guilhermino”.15

Era o momento de se formar a Alemanha moderna. Que ficasse para trás o país

derrotado e destruído, que ficasse para trás o atraso e as antigas concepções. A

Alemanha de Weimar deveria ser o símbolo de um novo mundo. Assim, da feiura do

pós-Guerra precisaria sair um novo padrão de beleza que deveria se distanciar da

idealização expressionista. A Nova Objetividade propunha um novo olhar sobre o

mundo circundante, um novo olhar que revelasse a estranheza dos objetos mais

próximos. Este olhar procurava criar um novo conceito de belo. A beleza estaria contida

nos pequenos detalhes, no acaso, nos objetos banais.16

O ambiente muda, com efeito, a partir de

1925. A moda se volta para o concreto, a pesquisa

sociológica, a reportagem. Depois da era da

imaginação, da intuição e do misticismo, há o

retorno ao positivismo radical. A pintura recupera a

sobriedade, uma representação quase naturalista.

Otto Dix, antigo expressionista e dadaísta (...), disse

mais tarde: “Arte, os expressionistas tinham feito

demais. Nós queríamos que as coisas fossem vistas

no seu despojamento, em toda a sua evidência –

quase sem arte.” 17

Para se opor à inconstância política do período anterior, buscou-se a

racionalidade, um “racionalismo crítico”. Desenvolve-se o funcionalismo arquitetônico,

nascido a partir do expressionismo e do Grupo de Novembro (Novembergruppe), que

buscava dialetizar “todos os contrastes” e resolvê-los “pelo fio da lógica e não da

espada”18

. Em 1919, um dos principais nomes do funcionalismo arquitetônico alemão,

Walter Gropius, funda e dirige a Bauhaus, uma escola dedicada à formação de artistas

para atuar no novo mundo, com uma nova postura. “A finalidade imediata é a de

15

MOLDERINGS, Hebert. As coisas. In: INSTITUT FÜR AUSLANDSBEZIEHUNGEN. A fotografia

na República de Weimar: catálogo. Bonn, 1979; São Paulo (Paço das Artes), 2000. pp. 8-9. 16

Os preceitos da Nova Objetividade foram fundamentais no desenvolvimento da Nova Visão e, por

conseguinte, na fotografia que se configurou a partir dos anos 1920-1930, como veremos no capítulo 3. 17

RICHARD, Lionel. Op. cit. p. 258. 18

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 269.

Page 32: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

32

recompor entre a arte e a indústria produtiva o vínculo que unia a arte ao

artesanato.”19

Na concepção de Gropius, o artista tinha de o ser por completo, precisaria

conhecer profundamente seu ofício, não seria apenas um criador, mas também um

artesão, era preciso saber as técnicas, os materiais, os procedimentos e,

fundamentalmente, ter método. Ao encarar a arte como ofício, a escola capacitaria o

jovem artista a “encontrar seu próprio caminho, quaisquer que sejam as circunstâncias,

que ele crie independentemente formas autênticas, a partir de condições técnicas,

econômicas e sociais a ele dadas, em vez de impor uma fórmula aprendida a um

ambiente que talvez exija uma solução completamente diversa.”20

Estes postulados de Gropius remontam à noção, muito cara aos alemães, da

instrução para o trabalho. Esta idéia de instrução não significa obrigatoriamente a

educação formal, mas diz respeito à dinâmica na qual um mestre passa conhecimento ao

aprendiz. O trabalho não é uma ocupação, mas um ofício e existe toda uma simbologia

que valoriza isso. Vale citar o exemplo do filme de F. W. Murnau, A última gargalhada

(Der letzte Mann), de 1924, em que um porteiro de hotel tem sua dignidade

representada em seu uniforme de trabalho. Quando o trocam de posição e tiram sua

casaca é como se abortassem o seu orgulho e o respeito dos demais.

A idéia de ofício está muito relacionada aos artesãos, na tradição das

corporações. Assim, parte da educação alemã passada para os filhos está na valorização

das habilidades manuais. Flieg recorda-se de sua mãe sempre insistir para que, no

aniversário de pessoas próximas, ele produzisse o(s) presente(s). “Ela dizia: ‘Não

compre, não compre, porque qualquer um pode comprar. Tem dinheiro, vai à loja,

compra. Faça alguma coisa, faça alguma coisa, alguma coisa feita com a mão dá

valor”21

.

Para um determinado aniversário do avô, Flieg confeccionou uma capa para lista

telefônica, que era revestida na parte externa por um papel decorado e, na parte interna,

havia duas silhuetas da cidade de Görlitz. Ele desenhou os motivos, copiados a partir de

outras imagens, depois os recortou em papel preto e colou-os na capa. Outro exemplo, é

o presente que fez para o pai no aniversário de 1936. Na data, a família passava férias

19

Ibid. 269.

20

GROPIUS, Walter. Bauhaus: Novarquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1977. p. 25. 21

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 14 fev. 2002.

Page 33: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

33

na Tchecoslováquia e Flieg havia levado, entre os materiais, uma serra tico-tico. Eva

conseguiu uma foto da família de Karl. Flieg fez para a foto uma capa em madeira

compensada, em que a partir de um cartão-postal, desenhou pintou de preto a prefeitura

de Srem, como se fosse uma silhueta, e a aplicou sobre um fundo em amarelo. Na

moldura ao redor, escreveu o nome da cidade e, nos cantos, pequenas moscas, fazendo

referência aos Flieg.

Este apreço pelo trabalho manual bem realizado e uma acuidade estética nos

detalhes do cotidiano eram marcantes na família de Flieg. Na segunda residência em

que viveram em Chemnitz, havia muito cuidado com a decoração e os objetos. Karl

Flieg conhecia um pintor e artista plástico, Gustav Schaffer, que havia trabalhado como

designer para a fábrica de meias. Schaffer realizou a pintura de todo o apartamento dos

Flieg com afrescos que cobriam as paredes dos cômodos.

(...) trabalho dele no meu quarto que, em 29, se tornaria nosso quarto (...), um

quarto levemente retangular, no meio, um ponto de luz, em volta do ponto de luz, o Sol

raiando e, diagonalmente, o teto dividido, separando cada parede para uma estação do

dia: manhã, hora de almoço, tarde, noite, dividido por cores, manhã -- rosa, hora de

almoço – mais para laranja, verde, de repente, verde, laranja à tarde, azul à noite, com

umas alegorias referentes, sei lá, flores referentes à noite. Á minha frente, quando estava

deitado na cama, (...) havia atrás do aquecedor de estufa, essas estufas européias que são

feitas com azulejos brancos e são aquecidas por lenha e expelia o carvão, aquecimento

individual para cada quarto. Então, atrás (...) eu sei que havia um gato no telhado à noite

miando, não miava. Havia um Lua, uma meia-lua com rosto e, não sei se foi de manhã,

na hora do almoço, estavam levantando um balão. Havia, à tarde me parece, que sobre

o lugar onde estava minha cama um anjo com uma fita que levava o texto “Ao querido

Hans Gunter” e, no fim, uma mosca que estava, digamos, pondo um ovo em cima de um

“e” que era riscado, lá está a piada, porque era pra dizer não é Fliege, mas é Flieg, o “e”

era eliminado pela mosca. Muito espirituoso... (...) Em todo o apartamento, havia uma

só privada, não no banheiro. Nesta privada, o pintor espirituoso, de acordo com o dono

do apartamento, (...) decorou com cactus...22

22

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 14 fev. 2002.

Page 34: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

34

Os móveis do apartamento tinham projeto assinado pelo designer Bruno Paul e

haviam sido executados por renomadas oficinas de marcenaria de Berlim. Além dos

quadros e das esculturas, enfeitavam o apartamento dos Flieg objetos do artesanato

local, com destaque para o vidro: “Vidro, cristal, vi muito em casa e muito na casa de

meu avô”.23

Chemnitz é cercada por regiões com grande tradição na produção de vidros,

como a Boêmia e a Silésia. Flieg tem uma recordação forte destes objetos, como

também de vasos de cristal sueco já muito apreciados na época. Além do vidro, havia

um rico artesanato em madeira, como as famosas árvores de Natal da Saxônia.

Esse contato cotidiano com a arte despertou, desde cedo, o interesse de Flieg.

Ainda no ginásio, ele dedicava especial atenção às aulas de desenho e obtinha bons

resultados. Desenhou uma cabeça composta por um amálgama de panelas de cozinha,

nos moldes dos “caprichos alegóricos” de Arcimboldo. Certa vez, Flieg chegou em casa

e mostrou orgulhoso o retrato do Führer que havia desenhado, mas obteve uma

recepção constrangida dos pais. Produziu uma linoleogravura de um desenho que fizera

do avô. No colégio, tirou primeiro lugar na confecção de um “vitral” em cartão preto de

papéis coloridos que integraria um presépio de Natal. A prática artística fazia parte do

cotidiano de Flieg na infância, talvez de maneira não tão sistemática, mas, sem dúvida,

freqüente.

Quanto à educação formal, ele freqüentava entre 1930 e 1934 o grupo escolar e,

nos três anos seguintes, o Realgymnasium24

. Em sua época no ginásio, Flieg recorda que

começou a sentir, de forma mais direta, as manifestações de anti-semitismo dentro da

escola, tornando muito restrito seu contato social com os colegas25

. Nos feriados

nacionais, por exemplo, era obrigatória a presença dos alunos. Nestas ocasiões, os

estudantes não-judeus deveriam comparecer com uniforme da Juventude Hitlerista e os

professores com fardas da SA ou da SS, já os judeus deveriam ir à paisana, marcando

bem a segregação.

É claro que num ambiente deste, mesmo por razões particulares, ninguém

ousaria entrar numa casa de um colega não-judeu ou pela possibilidade de

receber alguma palavra menos amiga ou, se for um amigo, para não colocá-lo

23

Idem.

24

Ginásio humanístico. 25

“Até 1933, indiscutivelmente, chegava em aniversários, alguma coisa, colegas de classe vinham em

casa, me lembro de uma festa... tinha convite de colegas de classe. Mas, depois de 1933, nem pensar!”

- Entrevista de Hans Gunter Flieg a Gaby Beck e Paulina Faiguenboim – Arquivo Histórico Judaico

Brasileiro, São Paulo, 1993.

Page 35: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

35

em risco, porque o contato com o judeu, (...) podia significar uma denúncia,

um risco real. Então era necessário procurar contato entre si, então se forma o

começo de uma estrutura...26

Flieg recebia formação religiosa, duas vezes por semana nas aulas em hebraico

com o rabino de Chemnitz, além da freqüência à sinagoga. Ele passou a circular quase

que exclusivamente entre judeus. Para criar um espaço de inserção aos jovens judeus,

examinou-se a proliferação de associações e grupos organizados que reunia a juventude

judaica em torno de algum interesse comum. Existiam grupos eminentemente políticos,

com propostas de integração ou sionistas e outros que se fundavam ao redor de

interesses diversos. Além de ser uma forma de inserção dos jovens que estavam “à

margem” da Juventude Hitlerista, existe uma certa tradição dos alemães, principalmente

jovens27

, de se associar em grupos de algum interesse comum, de esporte ou jardinagem

à política ou literatura. Flieg fez parte da Juventude Judaica Alemã (Bund Deutsch

Jüdisch Jugend – BDJJ), uma associação de filhos de ex-combatentes da Primeira

Guerra que tinha práticas escotistas, como excursões de bicicleta às montanhas,

acampamentos etc. Como observa o próprio Flieg: “(...) a vida era uma vida tão normal

quanto possível, mas separada e era, eu diria, do ponto de vista da população, pacífica,

pacífica com exceção da interferência do partido, do governo, na medida em que as

coisas pioravam.”28

Além dessas atividades, Flieg costumava freqüentar, com o irmão, a piscina

pública de Chemnitz, instalada em um prédio moderno construído especialmente para

este fim. Nos lazeres em família, havia as festas religiosas, como Pessach e Rosh

Hashaná, que geralmente reuniam um núcleo familiar mais amplo. A família de Flieg

possuía um pequeno jardim em uma colônia próxima ao bairro onde viviam,

freqüentavam muito o local nos finais de tarde ou fins-de-semana. Nestas

oportunidades, costumavam encontrar outros parentes que também tinham um jardim na

colônia.

26

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 14 fev. 2002.

27

“Para os jovens, além dos agrupamentos diretamente políticos ou religiosos, as organizações eram

inúmeras! Naturalistas, místicas, românticas, idealistas, todas possuíam periódico e boletins. Longe de

convenções mundanas e familiares, a camaradagem estava na origem dessas associações que eram

herança do Movimento de Juventude nascido no final do século XIX.” – RICHARD, Lionel. Op. cit. p.

149. 28

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 14 fev. 2002.

Page 36: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

36

As viagens da família eram mais freqüentes antes do nazismo, destas, Flieg se

recorda de visitas à ilha de Rügen e a Kollsberg, ambas na região do Báltico. Depois de

1933, destacam-se as viagens às estações balneárias na Tchecoslováquia e às montanhas

na Silésia, Riesengebirge e Erzagebirge, onde passaram várias férias de verão e de

inverno. Estas temporadas nas montanhas, bem como às visitas ao jardim da família,

foram registrados nos primeiros exercícios fotográficos de Flieg.

Em 1932, Arthur Schafer, irmão de Eva que após a Guerra formou-se médico e

foi clinicar num vilarejo nas montanhas da Silésia, presenteou Flieg com sua primeira

câmera fotográfica, uma Box Tengor, da Zeiss. Com esta máquina, Flieg fotografou de

1932 a 1939 as férias de sua família. Em formato 3 x 4 cm, estas imagens foram sendo

reunidas em um pequeno álbum existente ainda hoje.

Apesar de uma vida familiar harmônica, as dificuldades de convívio no ginásio

forçaram Flieg a deixar Chemnitz em 1937 para ir estudar em Berlim. A mudança se

deu num momento muito simbólico da vida de um garoto judeu, a época de seu bar

mitzva, ritual que marca a entrada do jovem na vida adulta e da comunidade. Flieg

estava na idade de treze para quatorze anos, assim, fez a preparação em Berlim e a

cerimônia aconteceu em Chemnitz, seguida por uma grande festa com a presença de boa

parte dos parentes.

Em Berlim, foi morar num apartamento na avenida Hasenheide esquina com a

praça Kaiser Friedrich, no distrito de Neukölln ao sul da capital, com duas tias, irmãs de

Karl Flieg, e suas respectivas famílias29

. O distrito residencial de Neukölln, criado em

1919, tinha população de origem operária ou de classe média.

A expansão de Neukölln e sua transformação em zona

residencial se efetuaram essencialmente durante os dez anos

que precedeu a Primeira Guerra Mundial: de 1900 a 1910, sua

população passou de 90.442 para 237.289 almas, ou seja, um

aumento de cerca de 15.000 habitantes por ano! Um

crescimento que se explicava menos afluxo de emigrantes (sic)

vindos de longe do que pelo deslocamento para os subúrbios

da população berlinense. Na realidade, a maioria dos

habitantes de Neukölln era de ex-moradores de Berlim.30

29

Linka Jonas, o marido Max Jonas e o filho, Alfred Jonas; e Alice Rosemberg, o marido Max

Rosemberg e os filhos, Rudof e Stefania. 30

BRUNN, Gerhard; DETLEF, Briesen. Um arquipélago hierarquizado. In: RICHARD, Lionel. Berlim,

1919-1933: A encarnação extrema da modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. p. 42.

Page 37: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

37

Assim, Neukölln caracteriza-se como uma cidade-dormitório, pois a região

oferecia poucos empregos e seus habitantes se empenhavam em longos percursos

diários ao centro ou às zonas industriais de Berlim, ao norte e a sudoeste. A vida em

Neukölln é descrita como provinciana se comparada à efervescência de Berlim. Na

época da mudança de Flieg, a capital já havia ultrapassado os quatro milhões de

habitantes.

Eu me lembro muito bem, eu me lembro, uma cidade

enorme, uma cidade de... não sei se já tinha 4 milhões de

habitantes (...) e Chemnitz, 50 mil. Eu só sei que era muito

homem. Aos 16 anos... que 16 anos, (...) eu estava com 13 (...).

Minha mãe tinha estado em Berlim, (...), eu vejo nós dois

atravessarmos a rua e eu dizer (...) “mãe, a mão” e nós fomos

atravessar a rua com carro.31

Porém, esta cidade aonde Flieg chegou havia perdido parte de seu brilho e sua

modernidade resplandecente depois que os nazistas assumiram o governo.

Com exceção das cervejarias, das lojas, do

artesanato, dos pequenos ofícios, o que resta da Berlim de

antes de 1933? Os espetáculos são censurados, assim como os

jornais, e o rádio onipresente efetua uma verdadeira lavagem

cerebral. A Alemanha tradicional tende a desaparecer

rapidamente. A caricatura, assim como o cinema, artes

eminentes do século XX, são impregnados de grosseria e de

simplificações exageradas. Em 1938, num só lustro, os

berlinenses passaram de uma extrema independência de

espírito a um conformismo pesado.32

Flieg foi estudar na Jüdisch Privatschule Dr. Leonore Goldschmidt, em Berlim-

Dahlem, que, além de ser uma escola judaica, era um centro de preparação para exames

para a Universidade de Cambrigde. Nesta época, a família de Flieg já vislumbrava a

possibilidade de emigrar, assim, um bom curso de inglês seria importante. Muitos

judeus já haviam deixado a Alemanha, principalmente os mais ricos, bem como, artistas

e intelectuais com algum relevo que tiveram seus trabalhos sob a mira da censura.

Entre 1935 e 1938, a pressão sobre os judeus aumentara: deveriam usar a estrela

amarela; casamentos entre judeus e não-judeus estavam proibidos e os já celebrados

foram anulados; ficava vetado aos semitas o exercício de profissões liberais (advogados,

médicos, economistas etc.) e foram expulsos do funcionalismo público, da Bolsa de

31

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 14 fev. 2002. 32

MARABINI, Jean. Berlim no tempo de Hitler. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 62.

Page 38: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

38

Valores e dos bancos; não era permitida a contração de criados judeus em casa de

alemães; foram tomadas 500 mil cartas de motoristas de judeus; não podiam ser

registrados em hotéis; apartamentos foram confiscados; suas lojas foram marcadas;

músicas judaicas estavam banidas; obras de autores judeus não podiam ser publicadas;

não podiam freqüentar cinemas e teatros; entre outras medidas e proibições.

Assim, a vida de Flieg em Berlim ficou um tanto circunscrita, seu círculo

resumia-se basicamente aos parentes e colegas de escola. Participava pouco da vida

cultural da cidade, devido às restrições de acesso aos judeus, bem como a situação

financeira, o momento exigia que os recursos da família fossem destinados a preparar

uma possível emigração, a cada dia mais iminente. Flieg chegou a assistir a algumas

apresentações teatrais, promovidas pela Associação Judaica Cultural (Jüdische Kultur

Bund). Eram espetáculos de boa qualidade que representavam uma certa resistência

cultural dos judeus que, privados dos circuitos principais, se voltavam à produção

dentro da própria comunidade. Além disso, Flieg recorda-se de eventuais passeios com

os parentes ou colegas de escola, como visitas ao zoológico, ao Palácio de Sanssouci,

em Potsdam, excursão a um lago nas redondezas da cidade e a uma partida de futebol

no estádio de Berlim.

Em novembro de 1938, os nazistas, principalmente na figura de Goebbels,

empreendem um golpe mais duro no intuito de forçar os judeus a deixarem a Alemanha.

Na noite do dia 9 para o 10, vitrines de lojas judias foram quebradas e sinagogas

incendiadas. Em Berlim, 20 mil judeus foram presos e 36, assassinados. Estas cenas se

repetiram por toda a Alemanha e o episódio ficou conhecido como a “noite de cristal”

(Reichkristallnacht), devido à quantidade de vidros quebrados. A sinagoga de Chemnitz

foi incendiada e um grupo de judeus, entre eles parentes e conhecidos de Flieg, foi

colocado em um caminhão e obrigado a assistir às chamas consumirem seu templo.

Flieg ficou sabendo dos acontecimentos da noite no dia 10 ao chegar à escola. O

impacto foi muito forte por toda a Alemanha, em Berlim, o clima era tenso. Nos vidros

das lojas que iam sendo trocados, deveria vir a inscrição “Jude” (judeu). As dívidas

advindas dos prejuízos gerados pelos acontecimentos da “noite de cristal” recaíram

sobre as vítimas das agressões. A noite de 10 de novembro foi um marco, pois a partir

daí parecia se confirmar que, aos judeus, não seria mais possível continuar na

Alemanha.

Page 39: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

39

O tempo disponível para providenciar a emigração

ficava cada vez mais restrito. Desesperados, muitos corriam

atrás de vistos que pudessem “comprar”. Circulava a

informação que em Paris se poderia conseguir um visto de

turista para o Brasil. Porém, tudo estava muito confuso dadas

as condições e as formas como chegavam as informações dos

bastidores.33

Karl Flieg tentava em três frentes obter vistos para sua família, através de

amigos e parentes que já haviam partido para Estados Unidos, África do Sul e Brasil.

Mas, enquanto isso, começou a tentar se precaver, buscando meios de sobrevivência no

exterior, em qualquer que fosse o destino. Karl Flieg era fotógrafo amador, conhecia um

pouco sobre equipamentos e pensou que daí teria uma possibilidade. Se ele adquirisse

algumas câmeras e acessórios, sob a alegação de que serviriam como meio de

sobrevivência ao filho mais velho no estrangeiro, ele talvez conseguisse autorização

para levar o equipamento. Perguntou a Flieg se ele estaria disposto. Com a resposta

afirmativa do filho, sugeriu que buscasse alguma formação na área. A idéia era que a

fotografia poderia efetivamente se configurar como uma profissão para o rapaz. E, caso

não desse certo, teriam, ao menos, o equipamento que poderia ser vendido no exterior.

De fato, Karl Flieg foi muito sensível e perspicaz ao imaginar essa possibilidade.

No curto período de tempo, que provavelmente o filho teria para obter instrução, a

fotografia era uma área em que Flieg, de alguma forma, já possuía algum conhecimento,

pois tinha uma boa noção de desenho e possuía uma máquina que operava já há alguns

anos, além de uma possível ajuda que o pai, como fotógrafo amador, poderia lhe dar,

pelo menos, no começo. Além disso, o ofício do fotógrafo tem uma grande vantagem

em relação a outras profissões, num contexto de imigração. A fotografia, primeiro,

vence a barreira do idioma, podendo ser desempenhada pelo imigrante desde o

momento de sua chegada na terra estrangeira. Além disso, é uma atividade que não

exige um investimento inicial tão pesado e o momento era muito propício à profissão,

com o crescimento da comunicação de massa e o desenvolvimento técnico, era uma

atividade requisitada, em franca expansão.

Muitos imigrantes, realmente, buscaram na fotografia uma forma de

sobrevivência no exterior. Um exemplo é o da fotógrafa Hildegard Rosenthal que havia

estudado fotografia em Frankfurt, sua cidade de origem, mas não tinha experiência

33

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Brasil, um refúgio nos trópicos. São Paulo: Estação Liberdade,

1996. p. 45.

Page 40: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

40

profissional na área. Quando ela estava aguardando seu visto para imigrar, seu marido,

que já estava no Brasil, aconselhou-a a investir na carreira: “Meu marido sempre

escrevia: ‘estuda fotografia, porque (...) aqui você pode ser [no máximo] governanta de

uma família rica, nada mais”34

.

Em Berlim, a fotógrafa do Museu Judaico, Grete Karplus35

, começou a oferecer,

em seu apartamento, cursos de fotografia para jovens judeus que pretendiam emigrar e

que precisavam de alguma instrução profissional. Flieg freqüentou o curso da fotógrafa

entre maio e julho de 1939. Ele ganhou uma câmera Leica do pai, que também havia

comprado uma Linhof para levar para o exterior.

Flieg estreou sua Leica em um passeio aos jardins do Palácio de Sanssouci, em

Potsdam, cidade da região metropolitana de Berlim. Ao fotografar, teve dificuldades no

manejo do diafragma, porque não tinha lido as instruções no manual e todas as fotos

saíram fora de foco. Dias depois, Flieg retornou ao palácio e refez as fotos, na saída do

jardim percebeu uma placa, que não notara antes, indicando que o local era vetado aos

judeus.36

Fig. 1.1.1 Fig. 1.1.2 Fig. 1.1.3

Trabalhos realizados por Flieg para o curso de Karplus: balas Kanold, molho de tomate e retrato de Grete Karplus.

Berlim, 1939.

34

Depoimento de Hildergard Rosenthal a Boris Kossoy, Hans Gunter Flieg, Moracy de Oliveira e

Eduardo Castanho. Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981. 35

As informações que apresento sobre Grete Karplus têm como fonte exclusiva os depoimentos de Hans

Gunter Flieg. Não encontrei referência ao nome da fotógrafa nos registros sobre fotografia alemã ou

sobre a comunidade judaica de Berlim na época. Foram solicitadas informações junto ao Museu

Judaico de Berlim e à Berliniche Galerie, que é um dos mais importantes centros de documentação em

arte moderna de Berlim, bem como, a uma associação que pesquisa a genealogia da família Karplus

nos Estados Unidos. Todas as respostas foram negativas. 36

Desde a “noite de cristal”, os judeus haviam sido “expulsos de todos os lugares da vida urbana, não

podem passear nos jardins públicos ou na floresta berlinense sem serem humilhados por slogans anti-

semitas grosseiros: ‘Proibidos aos judeus’, ‘o ar puro da floresta não suporta o cheiro de judeus’”.

MARABINI, Jean. Op. cit. p. 65.

Page 41: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

41

Para o curso de Grete Karplus, Flieg produziu um material, ainda hoje existente,

utilizando a Leica e também uma câmera de chassis 9 x 12 cm, Cuntesser-Netter com

filmpack (filme rígido). Fez muitas fotos de objetos – vasos, flores, caixas de cigarro,

frutas, balas, balança para cartas, esculturas, quadros – exercícios bastante interessantes,

em que é possível notar um tratamento que ia ao encontro das propostas ditas

“modernas” do período imediatamente anterior. Percebe-se que há uma tentativa de

mostrar os objetos em seu despojamento, de criar imagens limpas e centradas no

motivo. Há algumas quebras de proporção, como também arranjos curiosos, como uma

letra “k” formada por balas da marca “Kanold” (fig. 1.1.1) ou das latas de molho de

tomates com uma pequena pilha de tomates (fig. 1.1.2). Era já um treino para a

fotografia com proposta publicitária. Vale notar a apresentação, estas fotos estão

montadas sobre cartão, sem borda branca, com a imagem “sangrada”. Também foram

feitas algumas montagens, que consistiam em recortar o fundo e colar a imagem sobre o

cartão e, depois, fazer alguns retoques. Fez esse exercício com uma foto de uma mão,

escrevendo uma carta37

. Realizou alguns retratos, com a preocupação de captar

expressões diferentes e de variar a iluminação (fig. 1.1.3).

Fig. 1.1.4 Fig. 1.1.5

Em algumas das primeiras fotos com a Leica, a preocupação com a composição: Arcos próximos à Orangerie de

Sanssouci. Postsdam, 1939/ Detalhe da Quadriga no alto do Portão de Brandemburgo. Berlim, 1939.

37

Ele usou como modelo da mão a própria Grete Karplus, que simulava escrever uma carta a bordo de

um navio em setembro de 1939, data que, talvez, a fotógrafa pretendesse migrar para os Estados

Unidos.

Page 42: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

42

Fig. 1.1.6

A carruagem e o automóvel: as relações de convivência entre o antigo e o novo, que irão permear muitos dos

trabalhos de Flieg, já aparecem nesta fotografia. Berlim, 1939.

Com a Leica, Flieg fez algumas saídas por Berlim para fotografar a cidade, além

de Sansouci (fig. 1.1.4), tem imagens do Portão de Brandemburgo (fig. 1.1.5) e da

Coluna da Vitória, além de cenas das ruas, como uma em que enquadra um automóvel e

uma carruagem (fig. 1.1.6), fazendo um jogo com a idéia de velocidade.

Além do curso de Grete Karplus, Flieg também teve, no seu período em Berlim,

aulas de datilografia, além de aprender espanhol com o tio, Max Rosemberg, que havia

morado na Argentina. Em julho, Flieg retornou a Chemnitz e, neste período, arrumou

uma ocupação: organizar a coleção de selos de um senhor da cidade.

Em setembro, estourou a Guerra e, neste mesmo mês, Flieg recebeu uma

convocação da Gestapo, feita através da Congregação Israelita.

Eu estava com 16 anos, tinha altura suficiente para

18, os alemães estavam convocados para o exército, para a

campanha na Polônia e um rapaz em trajes civis na rua não

seria muito bem visto. Então, havia uma chance, uma chance

que havia praticamente todos os anos, só era atendido

normalmente pela Juventude Hitlerista, a colheita. Estava se

precisando de elementos que ajudassem na colheita na

província de Brandemburg (...) lá na região de Frankfurt-an-

der-Oder. Então, eu fui junto com mais quatro rapazes de

Chemnitz e saí, me parece, em 5-6 de novembro. Eu devo ter

ido em fins de setembro e fiquei todo outubro e início de

novembro (...) trabalhei por lá, como auxiliar de colheita.38

Flieg foi levado a uma aldeia que era, na verdade, uma espécie de colônia

agrícola chamada Mallnow. A atividade fazia parte de um movimento de preparação de

38

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 14 fev. 2002.

Page 43: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

43

jovens para o trabalho na lavoura (Harshará), com o intuito de migrar para a Palestina.

Neste momento, havia, pelo menos aparentemente, uma certa aceitação das autoridades

alemãs, pois era um programa que lhes servia duplamente, suprindo mão-de-obra na

agricultura, defasada com o início da Guerra39

, e como uma forma de estimular a partida

de judeus. No começo de novembro, os vistos para o Brasil ficaram prontos e Karl Flieg

conseguiu autorização para que seu filho deixasse a fazenda.

(...) eu saí de lá, fui chamado por telegrama, tenho os

dois telegramas escritos à mão, isto veio por telefone de Berlim

para o prefeito, que veio o prefeito, (...) era chefe dos correios,

era o entregador dos telegramas por bicicleta para o campo,

onde estávamos trabalhando e tinha sua propriedade e era

atendido pelos rapazes lá também (...). Ao sair de lá, esses

rapazes de Chemnitz me deram esse cartão-postal, assinado

por eles (...). Isto pode ser eventualmente o último documento

dessas quatro pessoas, é mais do que duvidoso que tenham

voltado de lá, porque se sabia que havia a intenção (...) de

transferir esse pessoal para um trabalho de lenhadores nas

florestas da Polônia, eu acho possível que tenha sido ainda a

intenção de faze-los trabalhar lá, o que naturalmente não deve

ter durado muito...40

Ao sair de Mallnow, Flieg partiu para Berlim, onde encontraria seu pai. Na

capital, retiraram os vistos que os amigos no Brasil conseguiram agilizar, depois foram

visitar uma tia, irmã de Karl, onde pernoitaram. A Guerra mudara a feição da cidade,

Flieg se recorda: (...) vi Berlim no início da Guerra e aí sim, eu me lembro da cidade

muito diferente, muito escura, muito cinza, pouca iluminação pública, que quando

escurece não estava ligada.”41

Ele teve a oportunidade de fazer uma foto da janela do

quarto que estavam, em que se pode ver as sarjetas pintadas de branco, por causa dos

blecautes.

No dia 9 de novembro, chegaram em Chemnitz. Durante o período em que Flieg

esteve na colônia agrícola, seus pais foram obrigados a abandonar o apartamento em

que viviam e se mudaram para um alojamento coletivo. Neste local, Flieg e seu pai

passaram a noite. Na manhã do dia 10, uma tia de Flieg que também estava morando no

mesmo alojamento chegou da rua alarmada, gritando que estavam novamente pegando

39

O governo alemão costumava enviar membros da Juventude Hitlerista para realizar trabalhos de

colheita em áreas rurais. Flieg se recorda da chegada de seu grupo a Mallnow: “Quem nós

encontramos lá, trabalhando, já carregando feno há algum tempo nisso? Um grupo de menininhas

alemãs belíssimas da Juventude Hitlerista, não sei se com uniforme...” -- Entrevista de Hans Gunter

Flieg a Gaby Beck e Paulina Faiguenboim – Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, São Paulo, 1993. 40

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 14 fev. 2002. 41

Idem.

Page 44: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

44

os judeus, em referência à “noite de cristal”, que estava completando um ano. Assim,

Flieg e seu pai voltaram à estação de trem e rumaram para Berlim. Lá, pernoitaram na

pensão em que vivia uma tia-avó de Flieg. Constatada que a situação estava, levando em

conta as circunstâncias, “tranqüila”, no dia seguinte, retornaram mais uma vez a

Chemnitz.

Flieg e seu irmão permaneceram em Chemnitz tocando os preparativos para

viagem, arrumando malas etc. Enquanto isso, seus pais partiram para Dresden para que

Eva tivesse um treinamento na operação da máquina de bordado que tinham adquirido

para levar ao exterior. O pai de Flieg, depois de vender a empresa, conseguiu com as

autoridades de Chemnitz uma autorização para levar equipamentos que serviriam ao

sustento da família no exílio – as máquinas têxteis e o equipamento fotográfico –,

mediante o pagamento de uma taxa no valor de todos os bens que seriam levados.

De Dresden, Karl foi a Berlim para mais despedidas e Eva seguiu para Görlitz,

com o mesmo intuito. De Chemnitz, Flieg foi para a Silésia encontrar a mãe. Em

Görlitz, visitaram amigos e um advogado que cuidaria dos assuntos da família na

cidade. No dia seguinte, partiram, Eva, mais uma vez, foi a Dresden onde encontrou

Karl para mais aulas sobre a máquina de bordados. Flieg continuou até Chemnitz para

passar a noite com o irmão. No dia 21 de novembro, então, ele e o irmão foram levados

à estação pela tia e embarcaram no mesmo trem em que os pais vinham de Dresden.

Munique, Milão e, enfim, chegaram a Gênova. Lá, descobriram que o preço da

passagem de navio, que já haviam pago quando estavam na Alemanha, tinha subido e

que só poderiam embarcar após o pagamento da diferença. O governo alemão permitia

que os judeus saíssem com apenas dez marcos cada um, assim, Karl teve de entrar em

contato por telégrafo com o irmão que estava vivendo em Londres. Providenciado o

dinheiro, na noite do dia 23, puderam embarcar no navio Neptunia. Foram alojados no

porão, onde em meio a um forte cheiro de gado, havia um grande número de beliches,

com aposentos separados para homens e mulheres.

Partiram, mas a viagem ainda teria mais um percalço. Na costa francesa, o navio

italiano foi detido por um cruzador francês que o conduziu até o porto de Marselha. O

governo da França tivera a informação de que os alemães estavam contrabandeando

agentes para a América do Sul, utilizando passaportes judeus falsos. Assim, exigiam

que todos os homens a bordo do navio, vindos da Alemanha, desembarcassem para

averiguação. Eva Flieg, falando francês, conseguiu conversar com um oficial e, explicar

Page 45: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

45

a situação da família, conseguindo, assim, a liberação de Karl. Flieg se recorda que

apenas o pai e um outro senhor foram liberados, os demais tiveram de desembarcar e,

somente após a checagem, puderam partir em outro navio.

Entre ilustres e desconhecidos, milhares de alemães foram obrigados a cruzar as

fronteiras de seu país na década de 1930. A família Flieg foi parte deste grupo.

Espalhados pelos Estados Unidos, Inglaterra e Brasil, buscaram sobreviver, mas nem

todos conseguiram. Alguns se tornaram muito ilustres, como o primo escritor Stefan

Heym42

. Outros não agüentaram a dor do exílio. Muitos reconstruíram suas vidas no

exterior. O que todos eles queriam era apenas reconquistar a dignidade em suas vidas.

1.2. Destino: Brasil

Era 8 de dezembro, feriado de Nossa Senhora da Conceição, quando o Neptunia

aportou em Santos, os amigos da família Flieg já os esperavam no porto para levá-los a

São Paulo.

Em 1939, entraram no Brasil 22.668 estrangeiros com vistos para imigração,

destes, 4.601 de origem judaica, sendo 2.899, provenientes da Alemanha. No ano

anterior, em 1938, o Brasil recebera apenas 530 imigrantes judeus (destes 445 vindos da

Alemanha), um dos contigentes mais baixos em muitos anos43

. O governo Vargas

executou várias políticas de orientação anti-semita. “Em 7 de junho de 1937, após dois

anos de restrição informal e cinco meses antes do estabelecimento do Estado Novo, de

inspiração fascista, o Itamaraty emitiu uma circular secreta que proibia a concessão de

vistos para todas as pessoas de ‘origem semítica’”.44

Pouco tempo depois, em

setembro, veio a público o “Plano Cohen”, uma farsa montada pelo militar integralista

Olympio Mourão Filho e divulgada amplamente pela imprensa como verdadeira. Esse

plano consistia na denúncia de uma suposta conspiração comunista para derrubada do

governo brasileiro, os planos seriam de autoria de um “Cohen inexistente,

42

Nascido Helmut Flieg, filho de uma irmã de Karl, Heym foi exilado em 1933, viveu nos Estados

Unidos, atuando na resistência ao nazismo. Mais tarde, foi enquadro pelo macartismo, por sua atuação

próxima a movimentos operários. Voltou ao seu país natal e tornou-se um dos mais importantes

escritores da Alemanha Oriental. Depois da reunificação, foi eleito senador e presidente do Senado

alemão, vindo a falecer no ano de 2001. 43

Dados retirados de: LESSER, Jeffrey. O Brasil e a questão judaica: imigração, diplomacia e

preconceito. Rio de Janeiro: Imago, 1995. 44

Ibid. pp. 21-22.

Page 46: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

46

presumivelmente um judeu”.45

Este embute foi pretexto para o Congresso aprovar a

suspensão de direitos constitucionais.46

A partir de 1938, houve pressão internacional, principalmente do governo norte-

americano para que o Brasil liberasse vistos aos judeus da Europa Central. Estava se

sedimentando a idéia de que o país era regido por uma ditadura fascista, o que chegou a

abalar as relações com os Estados Unidos. Assim, a partir desta data, começou-se a

haver uma mudança de tratamento:

A razão mais importante para que as imagens sobre

os judeus começassem a mudar estava relacionada com a

maneira pela qual os estereótipos anti-semitas brasileiros

eram concebidos e discutidos. Ao conservar as imagens

tradicionais e simplesmente modificar sua interpretação, as

organizações internacionais de ajuda puderam utilizar esses

estereótipos reconhecidos em benefício dos refugiados. Uma

das imagens sobre os judeus, por exemplo, dizia respeito a

dinheiro e sucesso econômico. Os judeus ricos podiam, assim,

ser vistos como fazendo parte de uma conspiração

internacional para forçar a riqueza nacional em direção ao

exterior, ou glorificados por sua capacidade de contribuir

para o desenvolvimento industrial nacional ao injetar capital

no Brasil.47

De início, a família Flieg foi viver na casa de amigos, conhecidos de Chemnitz,

que moravam na rua Pamplona, os mesmo que conseguiram agilizar os vistos e os

buscaram no porto. Então, era o momento de reordenar as idéias, afrouxar as amarras do

passado para buscar vislumbrar um futuro. Flieg tem a recordação de que, aos seus pais,

no princípio, não havia a idéia de uma cisão completa com a Alemanha, acreditavam

que provavelmente a situação era transitória: “Meus pais não estavam convencidos de

que isso seria algo para sempre”48

.

Mas, mesmo assim, era necessário aprender a conviver com as perdas. Como

ressalta Maria Luiza Tucci Carneiro, o imigrante sofre, além da perda material, dos

objetos, de dinheiro, a perda um modo de vida, ou seja, da própria identidade, pois teve

45

Ibid. p. 176. 46

“Por trás de um nacionalismo exacerbado, os homens do poder forjaram a luta entre o bem e o mal,

descobrindo por todos os poros planos secretos, tramas políticas e forças ocultas. O ano de 1937

deve ser considerado como um marco de triunfo do nacionalismo simbolizado pela instauração do

Estado Novo. Deve ser visto, também, como início de uma fase de revigoramento do anti-semitismo no

Brasil, sustentado pelos ‘diplomatas’ do Itamarati num autêntico cerimonial de bastidores.” -

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O anti-semitismo na Era Vargas: fantasmas de uma geração (1930-

1945). São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 501.

47

LESSER, Jeffrey. Op. cit. pp. 220-221.

Page 47: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

47

caçado o seu “direito de ‘ser cidadão’”.49 Julia Kristeva, em seu trabalho sobre a

condição do estrangeiro, diz que o imigrante vive uma grande melancolia com a perda,

que é travestida de indiferença com o que deixou:

A dura indiferença talvez seja somente a face

confessável da nostalgia. Conhecemos o estrangeiro que chora

eternamente o seu país perdido. Enamorado melancólico de

um espaço perdido, na verdade, ele não se consola é por ter

abandonado uma época de sua vida. O paraíso perdido é uma

miragem do passado que jamais poderá ser reencontrada. Ele

sabe disso, com saber desolado dos que desviam a raiva dos

outros (...) contra si mesmo (...).50

Nesse processo de se voltar para si, Flieg, nos primeiros meses de Brasil, sofreu

uma grave doença dermatológica, que ele acredita ter sido de natureza psicossomática.

A enfermidade o impediu, durante oito meses, de circular socialmente e de trabalhar. No

início de 1940, Flieg já havia arrumado um trabalho com Peter Scheier, imigrante

alemão, no Brasil desde 1937, que na época começava a se estabelecer como repórter

fotográfico e fotógrafo de indústria. Flieg trabalhou como assistente no estúdio de

Scheier, primeiro, no apartamento da rua do Arouche, depois em uma casa na rua Bento

Freitas51

. Mas, durou pouco, porque, devido à doença, Flieg teve de largar o emprego.

Nos oito meses de “imersão” para se recuperar, Flieg não teve quase contatos e

apenas fotografou no âmbito familiar ou produziu alguns registros pessoais de São

Paulo. As leituras tiveram papel importante, pois era um meio de tentar decifrar a nova

terra, da qual tinha referências muito vagas, como a possível leitura de Hans Staden no

tempo de ginásio e, já no período de preparação para exílio, de publicações sobre o

Brasil destinadas justamente a judeus prestes a migrar52

. Em 1938, Wolfgang

Hoffmann-Harnisch publicou na Alemanha as memórias de sua viagem que fizera ao

Brasil em 193753

. Flieg considera uma leitura muito importante, pois, na época, não se

48

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 19 fev. 2002. 49

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Brasil, um refúgio nos trópicos. p. 36. 50

KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 17. 51

Flieg se recorda de ter acompanhado Scheier, além de várias coberturas para indústria, num trabalho no

ateliê de Ernesto de Fiori. 52

“A partir de 1936 começou a circular na Alemanha um sedutor material de propaganda sobre o Brasil

como o objetivo de orientar aqueles que pretendiam emigrar. Por outro lado, estes panfletos (ou

brochuras) também se prestavam à venda de terras em áreas programadas de colonização como, por

exemplo, Rolândia.”. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Op. cit. p. 80. 53

HOFFMANN-HARNISCH, Wolfgang. Bresilien: Bildnis eines tropischen Grossreichs. Hamburg:

Hanseatische Verlagsanstalt, 1938.

Page 48: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

48

tinha em língua alemã relatos atualizados sobre a América do Sul e com tantas fotos54

.

Já no Brasil, os livros também cumpriram este papel de uma “primeira janela” para os

imigrantes. Flieg destaca a importância que os livros do escritor Richard Katz tiveram,

não só para ele e sua família, mas como para muitos estrangeiros refugiados aqui. Katz,

judeu nascido em Praga, rodava o mundo para escrever livros de viagem e, no Brasil,

produziu vários relatos55

. Flieg também leu muita literatura alemã no Brasil, os clássicos

e autores modernos importantes, “mais do que tinha lido na Alemanha”.

Passada a doença, Flieg sentiu a necessidade de conhecer e de ter contato com

pessoas. Assim, começou a participar do grupo de jovens da Congregação Israelita

Paulista. O casal Speyer, ambos pedagogos, ficou responsável pela organização das

atividades do grupo. O programa que seguiam tinha um amplo campo de cobertura, pois

a idéia era dar uma instrução em várias áreas do conhecimento, notadamente os assuntos

relacionados à Alemanha e ao judaísmo. Flieg se recorda dos cursos de literatura alemã,

que o deram uma grande bagagem cultural. Em 1942, a juventude da CIP se uniu a um

grupo de inspiração escotista, que existia desde 1938, o Avanhandava. Os jovens da CIP

e do Avanhandava passaram a realizar atividades em conjunto, como a encenação de

peças de teatros – Flieg chegou a atuar em uma delas – e isso reforçou a identidade de

grupo para aqueles jovens, além de ampliar o círculo de amizades.

Isto, de uma certa forma, foi importante, porque

reintegrou a gente num grupo, num grupo social. O contato

com brasileiros não era fácil, em parte por questão de língua.

Onde a gente tinha contato era nas firmas onde trabalhava,

entre os vizinhos (...).56

A língua é de fato um dos aspectos mais importantes na vida do imigrante, que

se ora se apresentava como “um poderoso veículo de comunicação”, em outros

momentos, representava “um obstáculo aos contatos pessoais”57

, já que, como salienta

Kristeva, “entre duas línguas, o seu elemento é o silêncio”58

. Flieg recorda-se que a

54

Flieg recorda-se que, posteriormente, o filho de Hoffmann-Harnisch, Sasha Harnisch, tornou-se

fotógrafo e, provavelmente, fez trabalhos para o Museu de Arte de São Paulo. 55

Richard Katz publicou obras como Begegnungen in Rio (Zurich: Schweizer Verlagshaus, 195-) e Auf

dem Amazonas (Zurich: Eugen Rentsch, 1951). 56

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 19 fev. 2002. 57

FAUSTO, Boris. Imigração: cortes e continuidades. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). História da

vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras,

1998. p. 51. 58

KRISTEVA, Julia. Op. cit. p. 23.

Page 49: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

49

mãe tinha uma grande preocupação com a possibilidade dos filhos perderem a língua de

origem.

Ela dizia com muita razão: “português, vocês

aprendem, sem dúvida, estando e vivendo aqui no país”. (...)

Fazia questão de falar um alemão decente, de manter um

alemão decente em casa: ‘isto vocês sabem, é só questão de

disciplina para manter isso em ordem, para o futuro é sempre

uma ferramenta”. 59

Assim, na família, no ambiente familiar60

, sempre mantiveram o alemão como

língua. O português era assim de uso social, Flieg não fez cursos específicos do idioma,

mas procurou se formar como foi possível, principalmente com muita leitura. Chegou a

ter uma ou duas aulas com uma senhora alemã, estabelecida há mais tempo no Brasil,

para aprender alguns termos da área fotográfica; ela fez uma pesquisa e montou para ele

uma espécie de glossário com palavras e expressões técnicas da fotografia. No mais,

tinha um inglês razoável e passou a entender um pouco de francês, de espanhol e de

italiano.

Em São Paulo, haviam se configurado os chamados “bairros étnicos”, comuns

nas cidades com contingente significativo de estrangeiros residentes. Nestes espaços, o

imigrante encontrava constantes referências à sua cultura de origem, como o freqüente

uso da língua, e podia circular “sem ser molestado ou sem provocar estranheza,

alimentar-se com comida tida como exótica, abrir açougues onde os fregueses

encontravam carne casher, realizar festas religiosas”61

, entre outras atividades. Boa

parte dos japoneses estava concentrada na Liberdade, enquanto os italianos no Bexiga,

Brás e Moóca e os judeus, no Bom Retiro. Mesmo que não habitasse no bairro, o

imigrante tinha nestes locais suas referências, lá podia comprar produtos que costumava

consumir antes de migrar, participar de festas e tudo isso podia tornar mais suave o

processo de adaptação.

Existia por todo o mundo, uma ampla rede de entidades e indivíduos que

objetivavam ajudar os perseguidos pelo nazismo. Em São Paulo, através principalmente

da CIP, esta rede de solidariedade estava presente para auxiliar os judeus em várias

questões. Em 1943, Flieg se recorda de ter participado de um evento promovido por

59

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 19 fev. 2002. 60

Depois do Brasil romper as relações com os países do Eixo, em 1942, até o fim da Guerra pelo menos,

os imigrantes com estas origens foram classificados como “súditos do Eixo” e o uso em público dos

idiomas alemão, italiano e japonês foi proibido. Assim, o “exercício” da língua nativa pelos Flieg teve

de ser restrito ao espaço íntimo. 61

FAUSTO, Boris. Op. cit. p. 31.

Page 50: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

50

uma destas entidades no Teatro Santana. Na ocasião, com o teatro cheio, apresentaram-

se vários indivíduos vindos da Europa muito bem informados da situação por lá. Num

determinado momento dos relatos, trouxeram ao palco uma barra de sabão e um dos

participantes disse: “Isso são os seus irmãos!”. A apresentação teve um impacto

tremendo na comunidade e Flieg diz que, a partir deste momento, ficou claro, pelos

menos a ele e sua família, do que se tratava. Desde então, a certeza de que dificilmente

haveria retorno.

Uma das características mais marcantes dos imigrantes de forma geral é o seu

apego ao trabalho. Sua força é uma das poucas coisas que se pode trazer integralmente

para o exílio, assim, é comum que dediquem ao labor toda sua energia.

(...) você reconhecerá o estrangeiro pelo fato de que

ele ainda considera o trabalho como um valor. Certamente

uma necessidade vital, o único meio da sua sobrevivência, que

ele não coroa necessariamente de glória, mas reivindica

simplesmente como um direito básico, grau zero da dignidade.

(...) Já que ele não tem nada, já que não é nada, pode

sacrificar tudo. E o sacrifício começa pelo trabalho: único bem

exportável, sem alfândega. Valor, refúgio universal em estado

errante.62

Então, era tocar a vida e trabalhar. Em março de 1940, a máquina de bordados

que Karl Flieg comprou na Alemanha, havia chegado. Com isso, a família alugou uma

casa na rua Pedro Taques, região da Consolação, onde no quarto dos fundos montaram a

pequena oficina e puderam assim começar a trabalhar. Após ter se instalado em sua

própria casa, o processo de adaptação ganhou nova dinâmica, pois já se tinha algum

local para tentar plantar suas raízes, mesmo que ainda não se tivesse convicção de que

seria de forma definitiva.

Já assentado no Brasil, o imigrante busca amenizar o

corte materializando, de várias formas, a lembrança da terra

que deixou. Desse modo, o arranjo de sua casa tem

características próprias, evidenciadas nos chamados objetos

biográficos. Um retrato emoldurado de toda família, tirado

geralmente pouco antes da partida, uma imagem religiosa,

baixelas, tapetes, uma caixa de madrepérola, ou simples

talheres, são expostos como fragmentos de um mundo a que se

deseja voltar mas que se suspeita jamais ser possível rever ou,

talvez pior, ao revê-lo, não mais reconhecer seus traços

originais.63

62

KRISTEVA, Julia. Op.cit. pp. 25-26. 63

FAUSTO, Boris. Op.cit. p. 18.

Page 51: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

51

Nesta época, Karl Flieg vendeu a Linhof que trouxera na bagagem, já que o

filho não a utilizaria tão cedo. O filho mais novo, Stefan, estava então com dez anos,

precisava continuar os estudos. A idéia de Karl era que Stefan se formasse para seguir

trabalhando com os pais. De fato, o irmão de Flieg, após o colégio, fez cursos técnicos

na área têxtil e continuou tocando a firma, que recebeu o nome Bordados Flieg. A

oficina ficou pouco tempo no quarto dos fundos, logo foi instalada em outra casa que

alugaram na própria rua Pedro Taques. Em 1952, mudou então para a rua da

Consolação, onde está instalada até hoje, sendo dirigida por Stefan Flieg.

Flieg conseguiu emprego no estúdio Foto Paramount, na rua Líbero Badaró, em

fins de 1940. O estúdio de retratos era de propriedade de Irene Lenthe, fotógrafa

húngara, formada em Munique. Os principais trabalhos do Paramount eram os retratos

de formatura, que consistiam em portraits dos formandos vestindo beca, montados em

molduras trabalhadas com enfeites de metal, num “Art Deco fajuto”.64

Pouco tempo depois, conseguiu uma colocação na Companhia Litográfica

Ypiranga e, assim, saiu do estúdio de Irene Lenthe. A Ypiranga, dirigida por Carlos

Reichenbach, era uma das mais importantes empresas gráficas do período. Flieg entrou

como aprendiz e recebia uma pequena remuneração. Teve experiência do trabalho na

pedra, com fotolito (separação de cores) e com um pouco de foto publicitária, onde pode

empregar o que aprendera em Berlim. Fez várias transposições de fotos de paisagens

para traços a nanquim, com vistas a produzir um clichê sem meios-tons.

Na paisagem, era necessário com um pequeno traço

recriar a imagem fotográfica. Com a colocação destes

pequenos traços mais juntos, maiores ou na mesma grossura e

em maior número nas sombras, deixando as luzes abertas, mas

isso tinha de ser muito bem pesado, de modo que os valores, as

intensidades de cor tinham de ser transpostas para a técnica

do desenho a nanquim (...) era algo muito próximo do trabalho

litográfico.65

Depois de dois anos, saiu da Ypiranga, em 1943, com a possibilidade de

emprego na Lintas Propaganda. No entanto, a contratação de Flieg acabou não

acontecendo e ele começou a procurar de um novo trabalho. Acabou chegando, então, à

64

Depoimento de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Paulo A. Nascimento, Eduardo

Castanho. Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981. 65

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 19 fev. 2002.

Page 52: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

52

Indústria Gráfica L. Niccolini, onde foi contratado. O chefe do estúdio era o sócio de

Luiz Niccolini, Kurt Eppenstein, gráfico alemão que teve sua formação provavelmente

em Leipzig. Flieg já tivera contato com um trabalho de Eppenstein quando trabalhava

com fotolitos na Ypiranga, “trabalho que ficou destacado pela concepção, (...) diria

uma modernidade que não se via normalmente naquela época”.66

Kurt Eppenstein foi uma figura muito importante na trajetória profissional de

Flieg e com ele aprendeu muito sobre artes gráficas. Eppenstein, que antes da Niccolini

havia trabalhado na agência Panam, foi um grande técnico, provavelmente o primeiro

do Brasil em off-set. Com uma sólida formação, ele desenhava, pintava e fotografava,

assim, entendia de todas as etapas do trabalho gráfico. Flieg recorda-se: “Eu vejo,

época de Guerra, dificuldades de off-set (...) e o Kurt fazendo experiências de silk-

screen em impressos de papel, de chapados, simplesmente, eliminava ponto. Eu não sei

se ele chegou ao ponto de usar como clichê batatas (...).”67

A Gráfica Niccolini tinha muitos clientes da área farmacêutica para a impressão

de catálogos, mata-borrões e outros materiais gráficos68

. Em 1945, ainda trabalhando na

Niccolini, Flieg começou a conseguir alguns trabalhos particulares. Kurt Eppenstein

permitiu que Flieg utilizasse o laboratório da gráfica nos finais de semana para estes

serviços. Os clientes, conseguia-os com indicações de conhecidos: “Os primeiros

trabalhos eram, em grande parte, trabalhos para conhecidos, para amigos, para

amigos de meus pais”69

. Um dos primeiros trabalhos foi a encomenda de Oscar

Landmann para realizar retratos de família. Foi sua primeira experiência profissional no

campo de retratos, fotografando, inclusive, o bebê, filho de Landmann. No mesmo ano

de 1945, Flieg saiu da Niccolini para abrir seu estúdio e começou a trabalhar por conta

própria, seguindo assim até 1988, quando decretou oficialmente sua “aposentadoria”.

Flieg permaneceu solteiro e sem filhos, assim, sua vivência familiar ficou

circunscrita aos pais e, depois, ao irmão, cunhada e sobrinhos. Karl Flieg faleceu no ano

de 1973 e Eva, em 1977. Stefan casou-se com Vera Haberkorn, filha de Werner

Haberkorn, fotógrafo e fundador da Fotolabor, uma das mais importantes editoras de

cartões-postais de São Paulo, e tiveram três filhos. Flieg vem tendo contatos eventuais

66

Depoimento de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Paulo A. Nascimento, Eduardo

Castanho. Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981. 67

Idem. 68

Atendia aos laboratórios Fontoura, Laborterápica, Torres e Baldassari. 69

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 19 fev. 2002.

Page 53: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

53

com o núcleo maior de sua família – tios e primos que vivem nos Estados Unidos, na

Inglaterra ou mesmo na Alemanha.

1.3. Panorama da fotografia no Brasil

O cenário que se configurava na fotografia brasileira na época em que Flieg

começa a atuar caracterizava-se, basicamente, por um desejo sincero dos profissionais

de modernizar a área, tanto do ponto de vista da tecnologia, quanto da linguagem e dos

usos.

A fotografia tem sua primeira menção em terras brasileiras, ainda na pré-história

da técnica, em 1833, com as pesquisas de Hercules Florence, na então Vila de São

Carlos, atual Campinas (SP)70

. A primeira imagem fixada no Brasil, e possivelmente na

América Latina, remonta a 17 de janeiro de 1840 com as demonstrações do abade Luois

Compte, no Paço da Cidade do Rio de Janeiro. Nas duas décadas seguintes a esta

primeira tomada, a daguerreotipia no Brasil teve uma expansão circunscrita aos grandes

centros urbanos e restrita a um “pequeno mercado ou clientela”.71

A partir de 1860, com o aperfeiçoamento do processo negativo-positivo e o

desenvolvimento de técnicas e formatos de produção de retratos em série, os estúdios se

proliferaram nos principais centros urbanos e observou-se a formação de um mercado

fotográfico mais amplo. Os negócios prosperavam e os estúdios passaram a oferecer não

apenas as imagens como estojos e álbuns com trabalhos e materiais diversos: “papier-

machê, madeira, marroquim lavrado ou veludo” e “incrustações de prata, cobre,

madrepérola, porcelana, esmalte e até mesmo ouro”72

. As “fotopinturas”, que consistia

na produção, a partir de fotografias, de retratos a óleo, aquarela ou pastel, também

foram muito apreciadas e consumidas no Brasil, durante a segunda metade do século

XIX.

Outro gênero muito importante na fotografia brasileira do século XIX foram as

vistas. Grandes tomadas de cidades e paisagens naturais começaram a ser

70

Sobre o assunto ver: KOSSOY, Boris. Hercules Florence: 1833, a descoberta isolada da fotografia no

Brasil. São Paulo: Duas Cidades, 1980; e ______. Dicionário histórico-fotográfico brasileiro. São

Paulo: Instituto Moreira Salles, 2002. 71

KOSSOY, Boris. Fotografia (1980). In: ZANINI, Walter (org.). História geral da arte no Brasil, v. 2.

São Paulo: Instituto Moreira Salles/Djalma Guimarães, 1983. p. 875. ______. Origens e expansão da

fotografia no Brasil. Rio de janeiro: Funarte, 1980.

Page 54: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

54

comercializadas avulsamente ou em álbuns. Em São Paulo, destaca-se o Álbum

Comparativo – 1862-1887, editado em 1887 pelo ateliê Carneiro e Smith, com fotos de

Militão Augusto de Azevedo que idealizam o progresso da cidade. “Na verdade, Militão

foi um dos primeiros fotógrafos a registrar, com intenção comercial, a cidade de São

Paulo”73

. Em outros centros como Rio de Janeiro, Salvador e Recife, fotógrafos

começaram a se estabelecer na produção das vistas regionais.

A partir das últimas décadas do século XIX, começaram a ser requisitados os

trabalhos de fotógrafos pelos poderes políticos locais ou nacional, bem como, para

expedições, presumidamente, de cunho científico. D. Pedro II em seu projeto de

construir a imagem de uma “civilização nos trópicos” arregimentou vários profissionais

principalmente europeus para a publicação do Album de vues du Brésil, editado pelo

Barão do Rio Branco para a exposição universal de 1899 em Paris. No álbum, há fotos

de autoria de, entre outros, Marc Ferrez, Lidemann, Duscasble, Joaquim Insley Pacheco

e Augusto Riedel74

.

No século início do século XX, os poderes locais começaram a se preocupar em

registrar paisagens urbanas, rurais, estradas de ferro, obras etc. para a produção de

álbuns com intuito promocional. Em São Paulo, há o exemplo do fotógrafo suíço

Guilherme Gaensly que recebeu várias encomendas do governo do Estado para produzir

material para as publicações das secretarias75

. Gaensly fotografou, além das cenas

urbanas da capital do Estado, fazendas de café, estradas de ferro e o porto de Santos. No

Rio de Janeiro, o alagoano Augusto Malta entrava para trabalhar para a prefeitura da

cidade, em 1903, como “o primeiro funcionário público com cargo de fotógrafo no Rio

de Janeiro e, possivelmente, o único naquela época em todo o país”76

. Malta tinha a

missão de registrar o processo de transformação da capital federal durante dezenove

administrações até 1936, ano em que se aposentou. Os dois exemplos mostram

fotógrafos contratados para empreitadas com finalidades promocionais de produzirem

imagens “oficiais”, mas que, ao unirem um apurado conhecimento técnico a uma grande

72

MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (org.). Retratos quase inocentes. São Paulo: Nobel, 1983.

p.26. 73

LIMA, Solange Ferraz de. O circuito social da fotografia: estudo de caso – I. In: FABRIS, Annateresa.

Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1998. p. 67. 74

KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê, 1999. pp. 73-123. 75

______. São Paulo, 1900. São Paulo: CBPO/Kosmos, 1998. 76

OLIVEIRA JR., Antonio Ribeiro de. O visível e o invisível: um fotógrafo e o Rio de Janeiro no início

do século XX. In: SAMAIN, Etienne (org.). O fotográfico. São Paulo: Hucitec, 1998. p. 77.

Page 55: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

55

sensibilidade visual particular a cada um deles, produziram imagens emblemáticas e

fundamentais para a história das duas cidades.

Além dos álbuns, promocionais ou comerciais, a demanda por vistas aumenta no

início do século XX com o incremento do mercado de cartões-postais. As vistas

impressas em formato postal tinha a finalidade de servir como souvenir que o viajante

enviava a conhecidos ou guardava para si. A valorização do turismo somada a moda que

se seguiu das coleções (cartofilia) tornaram os postais um dos grandes produtos

culturais para consumo de massa do início do século e um dos principais sustentos de

muitos fotógrafos e estúdios.

Na outra ponta da fotografia comercial, no início do século XX, há uma

significativa produção com propósitos puramente “artísticos”, principalmente através

dos fotoclubes, entidades que promoviam a discussão, seja em reuniões ou publicações,

de questões técnicas e conceituais acerca da fotografia. A prática do fotoclube remete à

tendência pictorialista e teve seu auge na Europa e nos Estados Unidos na segunda

metade do século XIX. No Brasil, tem-se registros de atividades relacionadas à criação

de espaço para a “fotografia artística” em Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro nos

anos da primeira década do século XX. O primeiro clube de fotografia mais organizado

e com expressão foi o Photo Club Brasileiro, no Rio de Janeiro, que começou a atuar em

1923. Na cola ainda do pictorialismo e com forte influência da pintura academicista,

principalmente através da Escola de Belas-Artes, o clube tinha um programa em que

eram ditados os principais preceitos do que seus membros consideravam uma boa

fotografia. Em 1939, surge em São Paulo, o Foto Cine Clube Bandeirante, que buscou

inspiração nas formas dos movimentos de arte moderna do século XX, mas com a

proposta de espaço para discussão e para circulação da “fotografia artística”, ainda nos

moldes de seus antecessores.77

Quanto ao inter-relacionamento da fotografia com movimentos artísticos mais

amplos no contexto brasileiro, até os anos de 1940, os exemplos praticamente

inexistem. A principal tendência no campo das artes brasileiras, a se configurar como

tal, no século XX, foi o Modernismo. Com produção significativa em pintura, escultura,

arquitetura, literatura e música, o Modernismo brasileiro não enxergou na fotografia um

meio potencial para seus propósitos.

77

Sobre os fotoclubes no Brasil ver: RODRIGUES, Renato; COSTA, Helouise. A fotografia moderna

no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/Funarte, 1995.

Page 56: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

56

A “intelectualidade” paulistana, e, em especial, o

“agrupamento” que será conhecido como os modernistas, é

atraída por outra modalidade de imagem técnica. O cinema

rouba a cena, com sua presença crescente e “popular”,

especialmente com a penetração da produção americana nos

anos 20.78

No campo da pesquisa e desenvolvimento técnico da fotografia no Brasil, existe

uma experiência a destacar, a do estabelecimento de uma indústria de papel fotográfico

nos anos de 1920 em São Paulo, por Conrad Wessel. A indústria de Wessel conseguiu a

façanha de produzir um papel de qualidade aceitável, no Brasil dos anos 1920, ou seja,

“sem dispor de equipamentos e técnicas sofisticadas empregadas em centros

industrializados”79 e, efetivamente, teve condições de competir com o material

estrangeiro. A fábrica e marca Wessel foram compradas pela Kodak no início da década

de 1950.

Quanto à fotografia impressa, houve sempre uma marcha atrás do

desenvolvimento tecnológico na área que permitisse a reprodução, embora as condições

técnicas não fossem fator exclusivo para a utilização das imagens. O meio-tom,

processo que permitia a impressão de fotografias com certa agilidade e a um custo

razoável, foi inventado em 1880. A fotografia chega de forma tímida às chamadas

“revistas ilustradas” e almanaques, a imprensa diária ainda iria demorar algumas

décadas para ter condições viáveis de utilizar imagens. No século XIX, o uso de

fotografias na imprensa ainda era muito esporádica, evidenciando que a imagem

fotográfica ainda não havia sido assimilada pelas estruturas de funcionamento e

circulação jornalística. A partir do século XX, há um aumento gradual, que começa pelo

crescimento no volume de imagens publicadas para, posteriormente, se processar uma

melhora qualitativa, com a profissionalização dos repórteres fotográficos e a integração

da fotografia na construção da visualidade das páginas e nos conteúdos.

A revista O Cruzeiro, fundada em 1928, era fartamente ilustrada desde seus

primeiros números. No entanto, a partir da década de 1940, rodada em rotogravura,

passa a ter um projeto mais atualizado, com um uso bastante racional e criativo da

78

CAMARGO, Mônica J.; MENDES, R. Fotografia: cultura e fotografia paulistana no século XX. São

Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. p. 31. 79

KOSSOY, Boris. Fotografia (1980). p. 883.

Page 57: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

57

imagem fotográfica, influenciada pelas propostas de revistas como a francesa Vu e a

norte-americana Life.

Na publicidade impressa, antes da década de 1940, o uso de fotografias, sem

retoque americano, era muito raro. Os jornais, que eram os grandes veículos, não tinham

qualidade técnica para reprodução de detalhes e, mesmo as revistas, ainda deixavam a

desejar, o que levava ao predomínio do uso de desenhos e gravuras nas peças de

propaganda. Além da precariedade na impressão, as estruturas no campo publicitário

ainda estavam em formação no Brasil, então, por um lado, não havia ainda a

incorporação da fotografia na prática da criação publicitária, e, por outro, existia uma

carência de profissionais com alguma especialização neste campo.

Os serviços técnicos, na área da fotografia, eram

inexistentes. E os próprios fotógrafos, todos retratistas,

resistiram a idéia de fazer fotografias publicitárias, sentindo-

se humilhados por serem dirigidos pelos diretores de arte das

agências.80

Os anos 1940 marcaram uma mudança profunda no campo da fotografia

brasileira. A implementação de estruturas mais complexas no campo da produção

cultural exigiu novas posturas dos fotógrafos e propostas mais antenadas ao que já se

produzia no exterior. Sem dúvida, influiu neste quadro a chegada de profissionais

estrangeiros, principalmente europeus, refugiados do nazismo e/ou da Guerra.

É fato importante de observar que os fotógrafos europeus que chegaram ao

Brasil no período não tiveram, de forma geral, grandes dificuldades em conseguir

empregos na área e, em poucos anos, boa parte deles já estava estabelecida com estúdios

e empresas próprias. O anteriormente citado Peter Scheier chegou no país em 1937 sem

experiência profissional. Como fotógrafo, teve alguns empregos variados, e, já em 1939,

era colaborador regular do Suplemento em Rotogravura do jornal O Estado de S. Paulo,

um dos mais importantes veículos de publicação de imagens dentro da imprensa

paulistana, e tinha estúdio próprio para trabalhos de indústria, principalmente. Scheier,

inclusive, importou equipamento e teve um dos primeiros laboratórios para

processamento de material colorido81

.

80

ALBUQUERQUE, Francisco (Chico). A fotografia publicitária. In: BRANCO, Renato Castelo;

MARTENSEN, Rodolfo Lima; REIS, Fernando (coord.). História da propaganda no Brasil. São

Paulo: T.A.Queiroz, 1990. p. 168. 81

Depoimento de Curt Schulze a Gery Schulze, Ricardo Lua e Ivan Negro Isola. Museu da Imagem e do

Som, São Paulo, 1984.

Page 58: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

58

Curt Schulze chegou ao Brasil em 1940 e, no início do ano seguinte, já tinha seu

estúdio e loja, o Foto Curt, funcionando na avenida São João. Em 1948, já vendia e

processava material colorido e, com o tempo, sua empresa cresceu e se transformou

numa das maiores e mais modernas redes de laboratório fotográfico do Brasil. O próprio

Curt se recordou, em depoimento prestado, de algumas dificuldades na época de sua

chegada:

a gente chegou aqui no começo da Guerra,

naturalmente, a aquisição de material era tremendamente

difícil e quase todos os fotógrafos não conseguia, vamos dizer,

‘se alimentar’. Na época, era o uso de fazer as fotografias 3x4

com chapas 9 x 12, então, eles fizeram máscaras de papelão,

dividindo a chapa em seis e só podia revelar depois de acabar

a sexta fotografia, se não, eles não revelavam porque material

era raro ou, então, o freguês pagava as seis. Então, eu

descobri num destes negociantes de material velho, descobri

uma máquina estéreo e tive uma pequena idéia. Eu comprei

uma lâmpada (...) e adaptei a ela um visor com um pequeno

vidro de enxergar o quadro e, no outro lado, chassis pequenos

de tamanho 3 x 4 e 4 x 4, que eram os tamanhos usados na

época, e consegui cortar com diamantes as chapas e consegui

usar filmes que se vendiam e que não tinha nem mais máquina,

como 116 e estes formatos, e consegui usar até último restinho

e consegui com isso entregar fotografia rápido e consegui com

isso formar uma freguesia (...)” 82

Hildegard Rosenthal chegou ao Brasil em 1937 e, em 1938, já era fotógrafa e

diretora de uma agência que enviava material jornalístico sobre o Brasil para o exterior,

a Press Information. Outros com maior experiência anterior, como os franceses Jean

Manzon e Marcel Gautherot83

foram logo chamados para empreitadas “oficiais”.

Manzon, que chegou no Brasil em 1940, foi no mesmo ano encarregado de organizar o

Setor de Fotografia do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo

federal. Gautherot, que se fixou no Rio de Janeiro também em 1940, é contratado pelo

recém-criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) para

fotografar e colaborar na montagem do Museu das Missões no Rio Grande do Sul84

.

82

Depoimento de Curt Schulze a Gery Schulze, Ricardo Lua e Ivan Negro Ísola – Museu da Imagem e do

Som, São Paulo, 1984. 83

Manzon já havia trabalhado para importantes órgãos da imprensa francesa como as revistas Vu e Paris

Match, além do vespertino Paris Soir. Gautherot, com formação como arquiteto, tinha colaborado na

criação do Museu do Homem, em Paris, e com a missão de catalogar as peças do acervo começa a

praticar fotografia e vai ao México onde realiza uma reportagem fotográfica sobre arte pré-colombiana. 84

Sobre Jean Manzon: ______. Um olho que pensa: estética moderna e fotojornalismo, 1998. Tese

(Doutorado em Artes) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo.

Page 59: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

59

Nos anos 1940, aparece um grande número de estúdios de retratos montados por

imigrantes nos principais centros urbanos do país. Neste campo, muitos fotógrafos

atuaram e trouxeram inovações e grande parte deles permanece praticamente esquecida.

Nomes como Heinrich Joseph, conhecido como Hejo, alemão que chegou ao Brasil em

1939 e, em 1942, fundou o Foto Studio Hejo, na rua Augusta em São Paulo, que foi um

dos mais importantes estúdios de retratos da cidade nos anos 1950 e 196085

. Hans

Gunter Flieg recorda-se de Edith Hoffmann, imigrante de Praga, que por muitos anos se

dedicou ao retrato de crianças:

À senhora Hoffmann, deve ter acontecido o que

acontecia a maioria das donas de casa judias da meia ou alta

burguesia, provavelmente, era dona de casa e talvez tenha feito

um curso profissionalizante para imigrante, coisa muito

comum. O que é que ela fazia? Ela fotografa crianças. O que

ela inovava? Se até lá as crianças eram fotografadas em

estúdio, se a oportunidade de fotografar a criança era

primeira comunhão ou a foto do bebê, ou qualquer coisa

assim, para bem dizer, a foto do bebê falecido, que se

fotografava muito. Essa mulher deve ter sido uma das

primeiras a fazer o que na Europa já se fazia bastante, ela ia ir

às casas dos clientes e fotografava a criança no seu ambiente.

Isto era novo, completamente novo, isto não era mais aquele

ato de ir ao fotógrafo depois de ter passado pelo cabeleireiro,

depois de ter vestido o terninho novo, mas era a criança dentro

da sua vivência, criança pequena brincando, essas coisas, eu

mesmo fiz isso, mais tarde. Mas... isto era um fato que me dava

a impressão de algo novo e inovador, simplesmente pela

necessidade, por quê? A necessidade dela de se preparar para

uma profissão a ser exercida no exterior, para imigração, a

necessidade de exercer a profissão com crianças, talvez ela

gostasse, tinha jeito com criança, não sei, mas não tinha lugar

em casa, era uma casinha pequena, então o óbvio era

fotografar na casa do cliente.86

A fotografia apresentou-se como um campo de possibilidades para imigrantes

com ou sem formação e experiência específica. Outros nomes que podem ser citados:

Sjoerd De Boer – holandês, trabalhou para Shell e para Henker; Leon Libermann –

fotógrafo de arquitetura, Henri Ballot – francês atuou no fotojornalismo brasileiro, Ernst

Mandowsky – fotografou indústria; Ernst Schauder – austríaco, fotógrafo de

publicidade; Frederico Kikóler – atuou também na área publicitária, entre tantos mais. É

uma atividade que serviu como ganha-pão de muitos e, que através dela, acabaram

Sobre Marcel Gautherot: INSTITUTO MOREIRA SALLES. O Brasil de Marcel Gautherot:

catálogo. São Paulo, 2001. 85

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Brasil, um refúgio nos trópicos. p. 172. 86

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 14 fev. 2002.

Page 60: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

60

produzindo um rico referencial cultural do Brasil do século XX. Ainda, recorro mais

uma vez às memórias de Flieg:

eu me lembro de uma fotógrafa que eu conheci que

trabalhou por pouco tempo que veio da Inglaterra (...) era

Gerda Pasternak, Pasternak ou Pastornak, não estou bem

certo. Eu trabalhei durante alguns anos na região da rua

Augusta, não sei o que aconteceu com ela, ela estava ligada,

isso depois da guerra, ela estava ligada a um casal, ele era um

advogado polonês, judeu, que também trabalhou algum tempo

como fotógrafo, também os perdi de vista, não devem estar

mais aqui. Havia mais um senhor de certa idade, na rua

Batatais, se não me engano, que trabalhava mais em fotografia

de publicidade, alguém que era notável, o esforço enorme de

começar, também não sei por quanto tempo viveu. Havia

fotógrafos judeus imigrantes, havia muitos.(...) Por que estou

citando (...)? Para lhe dizer que é uma leva de pessoas que

veio e a fotografia teve para o imigrante a vantagem de

relativamente pouca bagagem. Todo mundo pensava que de

médico, de farmacêutico e de fotógrafo todo mundo tem um

pouco...e de louco.87

1.4. Flieg, fotógrafo

Ao sair da Niccolini em 1945, Flieg, primeiro, instalou-se em um pequeno

quarto na casa da Pedro Taques, depois conseguiu alugar o porão do sobrado do maestro

Hermann Frischler, na avenida Angélica. Frischler era ex-diretor da ópera popular de

Viena e, em sua casa no Brasil, dava aulas de canto e Flieg chegou a fotografar

apresentações do maestro e seus alunos. Sobre este período que ocupou este porão,

Flieg se recorda: “tive, durante um ano, bel-canto acompanhando meu trabalho de

fotógrafo”.88

O momento era propício às atividades ligadas ao mercado de bens culturais. Foi

na década de 1940, segundo Renato Ortiz89

, que começou a se constituir uma sociedade

de massa no Brasil. Abria-se um campo para a atuação de profissionais ligados ao meio

gráfico. O mercado de publicações cresceu consideravelmente, além do aumento no

número de jornais e revistas, as tiragens atingem números inéditos, como a revista O

Cruzeiro que chegou a 300 mil exemplares em 1948 e 550 mil em 1952. No caso dos

livros, houve um crescimento de 46,6 %, entre 1936 e 1944, e de 31% entre 1944 e

87

Idem. 88

Idem. 89

ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo:

Brasiliense, 1991.

Page 61: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

61

1948, o volume de título aumenta em 300%, entre 1938 e 1950, e as casas editoras

duplicam em número, entre 1936 e 1948. As agências de publicidade multinacionais,

que começaram a se instalar no Brasil na década de 1930, consolidaram-se nos anos

1940 e 1950, com a implementação do comércio lojista. Ainda era, sem dúvida, um

cenário incipiente do ponto de vista das grandes estruturas de mídias que já vinham se

formando no hemisfério norte. Mas, de qualquer forma, existia um forte desejo de

modernização, que só se efetivaria mais sistematicamente a partir da década de 1960.

Com a configuração deste quadro, os refugiados do nazismo e da Guerra, que

chegaram com alguma experiência na área encontraram um ambiente favorável, pois

havia uma deficiência de mão-de-obra com formação técnica e profissional. Além disso,

os técnicos e artistas europeus, de forma geral, já haviam experimentado uma

modernidade, do ponto de vista tecnológico, estético e de relações de trabalho, que

ainda buscava se imaginar no Brasil. No caso de Flieg, se tomarmos como exemplo

alguns dos trabalhos que realizou como aprendiz de Grete Karplus, mesmo sem um

rigor técnico absoluto, pode-se identificar uma proposta visual ainda pouco usual na

publicidade e na fotografia brasileiras, de modo geral, até os anos 40 e, no entanto, já

praticada e ensinada em cursos livres na Europa.

Atuando autonomamente, Flieg começou a formar uma clientela de empresas

como a Ventiladores Zauli, a Metalúrgica Aliança, além de clientes da Niccolini que

continuou a atender como a Laborterápica e o Laboratório Torres. Nesta época, o único

equipamento que tinha era a Leica III C, que o acompanharia até o fim de sua carreira

nos anos 1980. Depois, comprou uma câmera austríaca com chassis de madeira, a

Lechner, que utilizou até adquirir uma Linhof que usou até a década de 1960, quando a

substitui por outra Linhof mais moderna com qual trabalhou até o final de suas

atividades profissionais.

No primeiro catálogo que fez para a Metalúrgica Aliança, só possuía ainda a

Leica e, com ela, fotografou cada peça com uma teleobjetiva e teve um resultado

adequado, já que na época o uso do retoque americano ainda era imperativo. Para este

tipo de retoque, eram confeccionadas máscaras de celulóide para serem colocadas sobre

a imagem e, então, se aplicava tinta através de uma pistola a combustão. Com isso,

eliminava-se o fundo ou era usado para destacar ou definir formas, colocava luzes e

sombras. O resultado final assemelha-se mais a uma ilustração por traço que a uma

fotografia, por isso considerado muito “artificial”, mas era uma técnica que viabilizava a

Page 62: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

62

impressão de detalhes técnicos, principalmente em jornal, que ainda reproduziam as

imagens de forma muito reticuladas, perdendo grande parte dos meios-tons (fig. 1.4.1).

Com uma clientela já formada, em 1946, Flieg alugou uma casa na rua Maria

Antonia, ocupou a parte superior e sublocou a parte térrea. Ficou nesta casa até 1952,

quando mudou-se para o primeiro andar de um prédio na avenida Prestes Maia, num

espaço de 72 m2, ali instalou um laboratório bem mais sofisticado que os anteriores.

Alguns anos depois, alugou mais uma sala no mesmo andar, aumentando a área do

estúdio para 100 m2. Neste local, ficou até encerrar suas atividades profissionais em

1988.

Fig. 1.4.1

Exemplo de emprego de retoque americano sobre foto de equipamentos da empresa Siam-Util. São Paulo, s/d.

Quando começou a trabalhar como autônomo, o maior volume de encomendas

que recebia eram os retratos de particulares. A partir do final da década de 1950, a

clientela da área técnica, industrial e de publicidade, já estava muito consolidada e estes

se tornam seus principais campos de atuação. Atendia com regularidade a Brown

Boveri, inclusive na produção de calendários, a Companhia Brasileira de Alumínio, fez

trabalho para a Willys Overland, Pirelli, Duchen-Peixe, G.I.E, Cristais Prado, entre

tantas outras empresas. Era muito requisitado por várias agências de propaganda como a

Standard, McCann-Erickson, P. A. Nascimento, Alcântara Machado, Lintas, Orion e

muito mais.

Paralelamente a essas grandes áreas comerciais, Flieg também desenvolveu

alguns trabalhos, talvez não tão rentáveis, mas que lhe interessavam particularmente.

Um desses é o campo da fotografia para reprodução de obras de arte. Trabalhou com

Page 63: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

63

Bruno Giorgi, Felícia Leirner, Tarsila do Amaral, Lina Bo Bardi -- em encomendas

pessoais e para o MASP (fig. 1.4.2) --, Nelson Leirner, foi fotógrafo oficial da I Bienal

de Artes de São Paulo (fig. 1.4.3), em 1951, além de trabalhos esporádicos para outros

clientes. Com os artistas, mantinha uma prática comercial muito comum, o escambo de

trabalhos – fotos por desenhos ou esculturas -- já que, nestes casos, muitas vezes quem

encomendava não teria como pagar o serviço.

Fig. 1.4.2 Fig. 1.4.3

Cena no Museu de Arte de São Paulo com quadro A amazonas, de Manet. São Paulo, s/d. Unidade

Tripartite, de Max Bill,. Primeiro colocado na categoria escultura na I Bienal de Artes. São Paulo, 1951.

Flieg tinha muito prazer em fotografar arte, pois estava muito ligado a este

universo. Este gênero de fotografia, muitas vezes, visto como um trabalho meramente

técnico, envolve grande sensibilidade, é preciso conhecer um pouco do assunto, saber

apreciar e, sobretudo, interpretar uma boa peça, porque é esta interpretação que será

registrada na imagem.

Se a fotografia exerceu uma influência profunda na

visão do artista, ela mudou também a visão que o homem tem

da arte. A maneira de fotografar uma escultura ou uma pintura

depende daquele que se encontra por detrás da máquina. O

enquadramento e a iluminação, a ênfase que o fotógrafo

atribui aos detalhes de um objecto, podem modificar

completamente a sua aparência.90

Outra área em que Flieg realizou alguns trabalhos foi a do restauro fotográfico,

movido pela curiosidade e vontade em desenvolver experiências neste campo,

Page 64: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

64

aprimorando, assim, a prática do retoque. Recebia eventualmente algumas encomendas,

que lhe serviam de laboratório. Flieg nunca trabalhava diretamente na cópia fornecida

pelo cliente, sempre em reproduções.

Certa vez, alguém da família Hering, de Blumenau, trouxera-lhe um retrato

esmaecido de uma matriarca quando jovem, Selma Wagner Renaux. A imagem, além de

estar muito clara, tinha rabiscos a grafite em torno do cabelo e entre os dois lados da

gola branca (fig. 1.4.4).

Fig. 1.4.4 Fig. 1.4.5 Fig. 1.4.6 Fig. 1.4.7

Delicadamente, com uma borracha, Flieg apagou o lápis e apareceu o decote

com um colar de medalhão. Flieg acredita que os “retoques” com grafite podem ter sido

feitos para publicação e tinham a função de melhorar o contraste da gola com a pele e

do cabelo com o fundo. Mas, ele também aventa a possibilidade de que os rabiscos no

decote tinham a intenção de esconder o detalhe do medalhão torto, que “deveria

incomodar muito uma alemã da virada do século ser retratada assim”91

. Então, fez uma

reprodução do retrato sem o grafite, carregando no contraste, para tentar resgatar os tons

originais, esta seria a cópia de trabalho (fig. 1.4.5), que era uma vez e meia do tamanho

da imagem final. Assim, trabalha-se na cópia maior, que, além de permitir melhor

visualização de detalhes, faz que algumas imprecisões de retoque desapareçam, quando

for reduzida.

Depois, com uma lâmina de barbear, raspou as manchas em tons mais escuros e,

com tinta, cobriu as mais claras. Flieg retocou a parte da imagem da mulher e um de

seus auxiliares, o fundo do retrato, trabalho que segundo o rapaz tomou-lhe cerca de

cem horas! Não usava retoque americano nem para o fundo neutro, porque sempre há

90

FREUND, Gisèle. Fotografia e sociedade. Lisboa: Veja, 1995. p. 99. 91

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 9 mai. 2002.

Page 65: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

65

um pouco de textura que seria perdida. Reproduziu a fotografia com uma luz que deixa

as áreas raspadas em tonalidades mais escuras para guardar um registro desta etapa de

trabalho (fig. 1.4.6). A etapa seguinte era uma nova reprodução do exemplar de trabalho

para confecção da foto final, no tamanho solicitado, com viragem sépia (fig. 1.4.7).

Outro campo de atuação de Flieg que merece ser mencionado é o da reprodução

de documentos históricos. Movido principalmente pelo interesse pessoal no assunto, ele

realizou diversos trabalhos junto a coleções como a das fotos de Dana Merril, sobre a

construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré, e de Otto Hees. Uma de suas

principais incursões nesta área foi junto ao arquivo de Hercules Florence, para a

pesquisa de Boris Kossoy.

Flieg também fotografou muitas atividades da comunidade judaica em São

Paulo, principalmente ligadas à Congregação Israelita Paulista. Como observa Maria

Luiza Tucci Carneiro, estas imagens são o registro do “processo de reorganização

sociocultural marcado por uma rede de significados: os laços de solidariedade, o

murmúrio das rezas, o ideal dos escoteiros, a força do teatro ídiche”.92

Nos cerca de 44 anos que Flieg manteve seu estúdio em atividade, empregou

vários técnicos, que chegavam a ele com ou sem formação específica na área. Seu

primeiro assistente foi o alemão Gert Kornblum. Em 1948, Flieg o conheceu numa

festa, em que Kornblum era o cozinheiro. Ele havia se formado no preparo de comida

dietética, em Berlim. No Brasil, trabalhou na cozinha do Hotel Esplanada e do

Automóvel Clube, mas confessou a Flieg que estava infeliz na profissão. Então, o

fotógrafo o convidou para ser seu assistente. Depois de certa resistência, Kornblum

aceitou e teve uma carreira como laboratorista, trabalhando posteriormente no Stúdio

Tati e no Foto Curt.

Outro funcionário, que foi indicado pelo marceneiro de Flieg, era Carmo Franco.

O rapaz, filho de policial, aprendeu o trabalho de fotógrafo, foi para o Fotolabor,

retornou ao estúdio de Flieg e, depois, conseguiu se estabelecer como autônomo,

atuando na área industrial. Em 1952, Flieg contratou Jorge David, office-boy da

Standard, que um dia chegou ao fotógrafo: “Seu Flieg, vou trabalhar com o senhor...”.

David ficou no estúdio até 1961, depois Flieg não teve mais notícias, mas é possível que

tenha se mantido na área. Entre 1954 e 1958, teve como aprendiz Rámon Chust, catalão,

92

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Brasil, um refúgio nos trópicos. p. 172.

Page 66: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

66

cujo irmão, Alberto Chust, era publicitário da Standard, conhecido de Flieg e que pedira

ao fotógrafo para contratar o irmão mais novo. Posteriormente, Rámon Chust montou

estúdio próprio e se tornou um profissional bastante requisitado.

Certa vez, o pedreiro Pedro Pinto de Souza foi realizar um serviço no estúdio e

pergunta a Flieg se ele não podia ficar lá e aprender aquele ofício. Ficou como auxiliar

entre 1962 e 1964 e, depois, se estabeleceu como fotógrafo. Por indicação da secretária

do estúdio, Flieg contratou em 1961 o ex-office-boy Celso de Oliveira com quem

trabalhou até 1981. Oliveira tinha grande habilidade para fazer serviços de acabamento,

como retoques e esmaltagens. Anos depois que saiu do estúdio, telefonou a Flieg para

dizer que estava trabalhando em uma tipografia e o aprendizado que tivera com o

fotógrafo estava lhe sendo essencial. O laboratorista Walney Rozemberg Alves foi

trabalhar com Flieg em 1954, tendo passado antes pelo Foto Curt, aposentou-se no

estúdio em 1981, mas continua até hoje com Flieg, cuidando do arquivo e de eventuais

trabalhos de laboratório que o fotógrafo solicite.

Teve um momento, logo após a Guerra, que Flieg resolveu dar emprego a

estrangeiros, imigrantes europeus que precisavam de uma colocação no Brasil. Assim,

colocou um anúncio no jornal, vieram algumas pessoas, mas não deu certo. Aí, veio

Otakar Svoboda que falava apenas sua língua materna, tcheco, e um arranhado alemão.

Ele já tinha experiência profissional em fotografia, teria feito a cobertura para a agência

United Press da liberação de Praga pelos russos ao final da Guerra. Svoboda trabalhou

com Flieg por alguns anos, chegou a pegar alguns serviços “por fora”. Em 1950, casado

como uma teuto-brasileira mudou-se para São Francisco, nos Estados Unidos, onde

abriu um estúdio que funciona ainda hoje sob responsabilidade dos filhos de Svoboda.

Em 1955, contratou o holandês Cornelis van der Steur, recém-chegado da

Europa, recomendado por Sjoerd De Boer. Steur também tinha uma boa experiência

anterior, como fotógrafo da Phillips. Trabalhou com Flieg por cerca de um ano e meio.

Outros estrangeiros que vieram sem experiência anterior em fotografia foram o Dr.

Zoltan Seide, advogado húngaro, que trabalhou com Flieg entre 1951 e 1952, cuidando

da parte administrativa e arquivo, chegou também a fazer retoques. O major do exército

polonês Stanislaw Muczinovsck que lutara na Inglaterra atuou por um curto período no

laboratório. Existem outros nomes de auxiliares e aprendizes que passaram pelo estúdio

e que podem ter continuado na profissão: Minoru Yoshida, Sylvio Nunes da Silva,

Page 67: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

67

Sérgio Garcia, Serge Kandauroff, Fernando Greenhalgh e outros que não sobraram

registros.

Em 1947, Flieg filia-se ao recém-criado Sindicato das Empresas de Artes

Fotográficas de São Paulo (SEAFESP). O núcleo inicial do sindicato patronal era

formado basicamente por proprietários de pequenos estúdios de retratos. Com o tempo,

atraiu profissionais de outras áreas. O SEAFESP criou algum espaço para o debate

sobre a fotografia, principalmente, através da revista Objetiva. Por iniciativa do

advogado Cecílio Coimbra de Araújo, ofereceu cursos de aprimoramento profissional.

Flieg recorda-se de ter participado de aulas de oratória que ele acredita terem lhe

ajudado muito não só a falar em público, mas a se articular em conversas e negociações

com clientes, por exemplo. Também havia salões de fotografia, onde eram expostos

trabalhos dos associados. Flieg participou algumas vezes e chegou a receber premiação.

Em 1972, ao levar um equipamento para consertar na oficina do Trevisan, este

lhe disse que haveria uma reunião na casa de Madalena Schwartz sobre a fundação de

uma entidade. Flieg recebeu o convite e foi ao encontro no apartamento da fotógrafa.

Daí iniciou-se um movimento que reunia fotógrafos de diversos estilos e atuações, no

Rio de Janeiro e em São Paulo, a Photogaleria. O empreendimento tinha como objetivo

criar um ambiente e uma estrutura para possibilitar de divulgação da fotografia. O

primeiro presidente do grupo foi George Racz, no Rio de Janeiro, e a vice-presidência

ficou com Boris Kossoy, em São Paulo. Organizaram exposições que, em São Paulo,

aconteceram na Galeria Bonfiglioli, na rua Augusta. Havia a preocupação em inserir a

fotografia no mercado das artes, trabalhando na atribuição de valores e na discussão

sobre direito autoral. A Photogaleria sobreviveu por dois anos.

No campo das exposições, além da experiência com o SEAFESP e a

Photogaleria, Flieg teve uma mostra individual de seu trabalho, 40 Anos de

Fotografias, no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, em 1981. Ele participou de

algumas exposições coletivas como a panorâmica sobre a fotografia brasileira dos anos

40 e 50 no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, em 1984.

Integrou o panorama da década de 1950 ao lado de Alice Brill, Eduardo Salvatore,

Chico Albuquerque, José Medeiros e José Oiticica Filho93

. Em 1994, Flieg teve

trabalhos seus na mostra 170 Anos de Imigração dos Povos de Língua Alemã, na

93

BRIL , Stefania. Modestos panoramas da fotografia. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 25 ago. 1984. p.

19.

Page 68: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

68

Pinacoteca do Estado de São Paulo, painel de imagens – desenhos, pinturas e fotografias

– de artistas imigrantes alemães, austríacos e suíços sobre o Brasil. Também em 1994,

Flieg participou da exposição e de uma palestra dentro do evento Anos 50 Revisitados,

no Centro Cultural São Paulo.

Sem fotografar desde 1988, Flieg dedica-se atualmente a cuidar de seu arquivo

com estimadas 30 mil imagens em negativos (chapas e 35 mm), embora parte deste

material esteja em processo de deterioração de suporte. Quanto às cópias em papel não

foi feito um cálculo do volume total de imagens, mas se sabe que estão armazenadas em

cerca de 20 caixas e 30 álbuns, além de envelopes com imagens avulsas e caixas e

pastas com impressos. O fotógrafo atende mensalmente pesquisadores brasileiros e

estrangeiros, particulares ou vinculados a instituições, com finalidades acadêmicas,

editoriais, museológicas e outras, cobrindo uma gama de interesses variados –

industrialização no Brasil, estudo sobre as Bienais, imigração, pesquisas nas áreas de

arquitetura, artes plásticas, design de móveis e objetos, comunidade judaica, história da

publicidade brasileira, cidades históricas, entre tantos outros temas presentes na coleção

que Flieg montou ao longo de quase 50 anos.

Page 69: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

69

Capítulo 2

O fotógrafo estrangeiro

A partir da varanda da casa dos Flieg, vista do jardim e da rua Pedro Taques. São Paulo, 1940.

Page 70: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

70

Page 71: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

71

Nos meses que ficou em “imersão”, devido à sua enfermidade, Flieg pouco

fotografou. Um dos raros trabalhos que realizou foram algumas fotos da casa em que

vivia com a família na rua Pedro Taques e de seus arredores. Deste rolo, ele fez cópias

por contato, recortou-as e, uma a uma, colou sobre uma cartolina. Depois, anotou junto

a cada imagem algumas observações muito pessoais sobre o seu conteúdo. A colagem

seria o presente de aniversário para seu pai, naquele ano de 1940.

Eram cenas de rua como o vendedor de laranjas chegando ou a charrete da

prefeitura abarrotada com as podas das árvores. Ainda os flagrantes do cotidiano

familiar, como a mãe lavando roupa, o irmão sentado na mureta, vizinhos à janela ou

crianças na calçada. Um ramo de árvore que surpreendia por ostentar flor e fruto

simultaneamente. Tomadas da fachada e do interior do sobradinho. Da varanda da casa,

Flieg fez a imagem que abre este capítulo, o pequeno jardim com a rua se vislumbrando

ao fundo.

O jardim, mesmo com dimensões nada babilônicas, era algo de inusual nas

residências pequeno-burguesas da Europa de clima temperado. Remete aos jardins da

colônia de Chemnitz, às praças e parques da Alemanha. Lá tinham um caráter mais

coletivo, e aqui aquele jardinzinho adornava a entrada da casa particular.

Já disseram que o jardim é a domesticação da natureza, os ingleses o teriam

reinventado como parte de sua missão de se sentirem senhores do mundo. O jardim é,

na verdade, a representação da força do homem sobre a natureza, a ordenação da

selvageria, remete ao ideal de integração do homem à paisagem natural, tal como a

Arcádia94

perpetuada pela pintura.

Neste momento da biografia de Flieg, em que, tão jovem, ele se fecha em si para

começar um processo de digestão sobre sua própria condição, surge uma imagem tão

forte em significação. O jardim recupera toda uma tradição na iconografia estrangeira

sobre o Brasil, primada pela noção de pitoresco, que teve sua primeira manifestação na

ordenação dos jardins ingleses.95

O ponto de vista da foto é de dentro da casa para fora, é este olhar de quem

mostra alguma disposição em começar a se abrir. No primeiro plano, a hostilidade

94

Panofsky revela o alto grau de idealismo das imagens poéticas que se construíram sobre a Arcádia. A

“terra da beatitude pastoral perfeita” nada mais era, geofisicamente falando, que uma região

pedregosa, fria e “destituída de todas as amenidades da vida e quase incapaz de produzir alimento para

umas poucas cabras”. PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva,

1979. p. 380. 95

BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. v. 3. São Paulo: Metalivros, 1994. p. 18.

Page 72: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

72

tropical já aparece domesticada conforme os códigos europeus. Depois da mureta e

grades que fazem a demarcação do interior com o exterior, vem a rua, a cidade e seus

personagens. Ao fundo, um senhor de pijamas na calçada e garotinhas negras,

elementos de uma nova realidade que, mais uma vez, distanciam a cena de um padrão

europeu de visualidade urbana.

Estas imagens de 1940 foram talvez o primeiro movimento de Flieg no

reconhecimento da nova terra, através delas o estrangeiro começava seu diálogo com o

Brasil, ouvindo e falando, observando e intervindo, através de sua fotografia.

2.1. Os europeus e a iconografia sobre o Brasil

As primeiras representações visuais sobre o continente americano, após a

chegada dos europeus, foram algumas xilogravuras que acompanharam as cartas de

Américo Vespúcio, publicadas em forma de folhetim em 1505.

Na carta atribuída a Vespucci conhecida como

Mundus Novus é relatada a experiência direta do navegador,

que se aventura no espaço aberto e contempla maravilhado

‘coisas jamais pensadas’. Nem Vespucci tinha idéias muito

claras a respeito das terras a que tinha chegado, nem os

geógrafos punham de acordo sobre a realidade geográfica dos

lugares. O que poderia então ensejar um mapa, ou mesmo uma

palavra!96

Da falta de um conhecimento constituído sobre o Novo Mundo, vai surgir um farto

repertório de imagens de conteúdo fantástico que começa com as gravuras veiculadas

nas edições das cartas do cosmógrafo florentino e se estende pelos séculos seguintes na

iconografia e nos relatos produzidos por viajantes que se aventuram a cruzar o Atlântico

pelo mais variados motivos. É curioso notar como estas imagens reverberam ainda no

século XX. O antropólogo Claude Lévi-Strauss, ao narrar, em 1955, a viagem que

realizou ao Brasil em 1935, tenta resgatar suas sensações antes da viagem, ao receber o

convite:

O Brasil e a América do Sul não significavam muito

para mim. Entretanto, ainda revejo, com a maior nitidez, as

imagens que logo evocou essa proposta inesperada. Os países

exóticos apareciam-me como o oposto dos nossos, em meu

pensamento o termo antípodas adquiria um sentido mais rico e

96

BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Op. cit. v. 1. p. 18.

Page 73: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

73

mais ingênuo do que o seu conteúdo literal. Muito me

surpreenderia se me dissessem que uma espécie animal ou

vegetal podia ter o mesmo aspecto nos dois lados do globo.

Cada animal, cada árvore, cada fiapo de capim devia ser

radicalmente diferente, exibir já à primeira vista sua natureza

tropical.97

O imaginário europeu se desenvolveu proficuamente na produção de um vasto

repertório de representações sobre os indígenas brasileiros. Na pintura portuguesa, por

exemplo, o índio é transformado em personagem religioso, uma espécie de quarto Rei

Mago, no quadro Adoração dos Magos (c.1505), de autoria anônima, operando assim

uma “humanização” do selvagem por meio do cristianismo e uma conseqüente negação

da cultura indígena. Outro quadro de meados do século XVI, de autoria anônima

também, cria uma figuração d’ O Inferno, onde figuras diabólicas submetem os

pecadores aos mais virulentos tipos de torturas, sob o olhar do demônio-mor que usa um

cocar de penas na cabeça. A identificação do índio com o diabo expressa ao mesmo

tempo temor e condenação aos costumes dos nativos americanos. Nestes exemplos da

iconografia portuguesa sobre o Novo Mundo, “destaca-se o teor eminentemente

simbólico desses processos, uma vez que nem de longe se pretende uma nova versão

religiosa e sabe-se que os índios não figuram nos textos sagrados, e (...) os pintores

fazem ver por analogia imagens constituídas no seio do projeto missionário colonial”.98

Ainda no século XVI, o padre franciscano André Thevet e o pastor calvinista

Jean de Léry, que integraram a expedição colonizadora francesa liderada por

Villegaignon, produziram obras – texto e imagens -- de caráter enciclopédico sobre as

“singularidades da França Antártica”. Neste século ainda, os relatos do aventureiro

Hans Staden foram publicados com a inclusão de 53 xilogravuras produzidas sob a

orientação direta do viajante alemão. Estas imagens não têm caráter meramente

ilustrativo, como ressalta Ana Maria de Moraes Belluzzo, elas trabalham com ângulos e

desdobramentos diferentes do texto. Um exemplo está na cartografia utilizada carregada

de simbologia religiosa, “a linha do litoral brasileiro, estabelecida pelo mapa de

Staden, é, no fundo, desenho de Deus, que, segundo a concepção religiosa da criação

do mundo, separou as águas e as terras”.99

Os interesses coloniais das grandes potências no século XVII voltam-se para o

Novo Mundo e as representações visuais começam a expressar o desejo e a cobiça dos

97

LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 45. 98

BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Op. cit. v.3. p. 24.

Page 74: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

74

europeus. Albert Eckout, que integrou a missão artística de Maurício de Nassau durante

a ocupação holandesa no nordeste brasileiro, pintou, entre 1641 e 1643, oito painéis de

2,60 metros de altura retratando quatro casais de tipos étnicos do Brasil. Os grandes

retratos constroem a idéia de “quatro estados civilizatórios” com certa alusão alegórica

ao quatro continentes. Assim, os painéis, mais do que representações etnológicas do

Brasil, carregam um projeto mais universalizante da Holanda. “Os grandes conjuntos

artísticos de concepção holandesa fixam a perspectiva do domínio holandês e não o

Brasil, com contorno unitário, desejado e imaginado a partir de um ponto de vista

autodefinidor”.100

Para uma conquista efetiva do novo território, fazia-se necessário conhecê-lo.

Assim, os holandeses começam a apresentar certa preocupação científica na construção

de representações sobre o Brasil expressa no detalhamento descritivo que aparece nos

retratos, paisagens e naturezas-mortas produzidas por artistas e amparadas por cientistas

da comitiva de Nassau. Deste legado holandês, se desenvolveu a partir do século XVII

uma cultura artística de motivação científica que tinha como objeto paisagens, fauna,

flora, habitantes nativos e mestiços, costumes e manifestações culturais brasileiros. Os

principais meios para a realização desta arte foram as inúmeras expedições científicas

patrocinadas por governos ou mecenas europeus.

Nos séculos XVII e XVIII, a exploração científica era exclusividade dos

portugueses que realizaram algumas incursões e produziram materiais, mas as

expedições mais estruturadas e cujos trabalhos terão maior repercussão datam na

primeira metade do XIX. Em 1808, com a vinda da corte portuguesa para o Brasil, a

abertura para estrangeiros atraiu não apenas negociantes como também naturalistas,

artistas e viajantes aventureiros de diversas nacionalidades européias.

Em 1817, os naturalistas da Real Academia de Ciências de Munique, Johann

Baptist von Spix e Carl Friedrich Phillip von Martius, e membros da equipe do Museu

de História Natural de Viena, entre os quais o pintor Thomas Ender101

, chegaram ao

Brasil para uma viagem científica integrando a comitiva que acompanhou a

arquiduquesa austríaca Leopoldina, que se casaria com o príncipe herdeiro Pedro I.

99

Ibid. p. 45. 100

Ibid. p. 95. 101

Outros pintores participaram da comitiva austríaca: Joahann Buchberger, G. K. Frick e Franz Joseph

Frühbeck.

Page 75: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

75

Spix e Martius produziram, além de ilustrações de espécimes animais e vegetais,

algumas vistas e paisagem e desenhos etnográficos de populações indígenas. Seguindo a

tradição de Humboldt, os naturalistas alemães valorizaram a arte no âmbito das

pesquisas científicas e não perderam o enfoque humanista em suas análises.

(...) Spix e Martius comungam com apreensão

romântica, referindo-se a uma natureza dos trópicos que na

alma humana estimula o prazer, o deleite, o encantamento, o

êxtase e o conforto. Ao mesmo tempo, esse processo de

identificação entre o contemplador e a natureza física permite

a subjetivação da descrição naturalista e a estetização do

mundo natural. Por meio da poética do pitoresco, representam

uma natureza afável, capaz de integrar o homem europeu ao

mundo natural dos trópicos.102

Thomas Ender produziu mais de 1.000 aquarelas e desenhos no período em que

permaneceu no Brasil. Estas imagens são basicamente vistas de cidades, paisagens

naturais e desenhos botânicos. Belluzzo destaca a noção de múltiplas posições do artista

frente ao cenário representado, criando a idéia de um “observador em movimento”, e de

“continuidade da paisagem e a vontade de abarcar o todo”103

. Nas cidades, Ender

enfoca vários elementos da vida urbana colonial, figuras humanas, atividades

comerciais nas ruas, arquitetura etc., colocando-se como uma “presença viva de um

observador invisível, que articula toda a obra”104

.

Em 1821, o barão Georg Heinrich von Langsdorff, que já estivera no Brasil

como cônsul da Rússia, retorna ao país patrocinado pelo governo russo acompanhado de

cientistas e do artista alemão Johann Moritz Rugendas. Langsdorff e o pintor chegaram

a realizar uma viagem por Minas Gerais em 1824, mas logo se desentenderam e

Rugendas seguiu sozinho. Um ano depois, o barão reiniciou sua expedição à qual

integrou os artistas franceses Adrien Aimé Taunay e Hercules Florence.

A incursão artístico-científica liderada por Langsdorff produziu uma rica iconografia

que registrou as visões dos três artistas em vistas paisagísticas que abarcam cenários

totalmente naturais ou já alterados pelo homem, desenhos botânicos e zoológicos,

retratos etnográficos de índios e mestiços, costumes e modo de vida indígenas. Taunay

imprimiu em seus trabalhos um tratamento mais afetivo, mostrando um envolvimento

102

LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na Viagem

pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Hucitec/Fapesp, 1997. p. 202. 103

BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Op.cit. v. 3. p. 34. 104

Ibid.

Page 76: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

76

do artista com os retratados e com o ambiente. Já Florence buscava uma completa

objetividade utilizando e testando muitas técnicas que o permitissem uma reprodução

mais fiel da natureza, como o uso de câmera clara na produção de alguns de seus

desenhos.105

Rugendas produziu 67 vistas durante a viagem com Langsdorff que, mantendo

“afinidades com a concepção humboldtiana de paisagem” em que os elementos

humanos e os motivos arquitetônicos ficam subordinados à composição paisagística106

.

O pintor tem ainda uma grande produção desvinculada de Langsdorff, além da viagem

de 1824, ele também esteve no Brasil entre 1845 e 1846. Um dos aspectos mais notáveis

das imagens de Rugendas é sua inclinação pela totalidade em todos os seus detalhes:

Nos desenhos originais de Rugendas transparece o

grande gesto que sustenta a visão de conjunto, o modo como

primeiro desenha o todo e depois intensifica alguma parte.

Quantos aspectos da sociedade fluminense se conjugam na

Rua Direita, quantas plantas na floresta. O artista está

interessado na multiplicidade, e por isso faz de cada desenho

um microcosmo.107

A França enviou ao Brasil uma Missão Artística, da qual fez parte o pintor Jean

Baptiste Debret. Permanecendo no país de 1816 e 1831, Debret produziu um dos mais

importantes conjuntos iconográficos sobre o Brasil no século XIX, com representações

de caráter etnográfico de índios e objetos indígenas, paisagens naturais, principalmente

florestas, o espaço rural organizado pelo sistema de monocultura e o trabalho escravo,

aspectos da vida urbana com comércio, festas e costumes, acontecimentos políticos e

retratos de personalidades. “Debret trata de centrar a atenção no estado geral da

sociedade, buscando apreendê-la com base no entendimento da transformação da

natureza em cultura, do natural em civilizado”108

.

Tanto Rugendas como Debret publicaram seus trabalhos em formato de álbuns de

viagens, que se tornavam muito populares na Europa àquela altura. Estas publicações

surgem no bojo da onda colecionista européia, de acento humanista, que consistia na

aspiração em inventariar o mundo com cenários e povos diferentes do seu. Designados

de “álbuns pitorescos”, traziam um padrão de representação da paisagem natural que

unia uma estética romântica à preocupação científica, onde o olhar é detido por uma

105

BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Op. cit. v.2. pp. 124-137. 106

Ibid. p. 124. 107

BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Op. cit. v.3. p. 77 108

Ibid. p. 83.

Page 77: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

77

“espécie de encanto derramado sobre o objeto que deseja-se tornar pintura”109

. Muitos

pintores europeus, principalmente ingleses, franceses e alemães, profissionais e

amadores, vieram ao Brasil no século XIX imbuídos desta visão “pitoresca” sobre

mundo tropical, carregavam “imagens prévias criadas pela pintura”, que agiam “no

momento da percepção do mundo sensível”110

.

Um gênero de pintura muito utilizado por artistas oitocentistas que viajaram ao

Brasil foi a vista panorâmica. Estas pinturas buscavam abarcar espaços muito amplos

tentando chegar a visão do todo. Os panoramas eram, muitas vezes, exibidos em uma

espécie de rotunda, construída especialmente para este fim, onde o espectador ficava ao

centro com a imagem a circundá-lo. Para operar correções ópticas decorrentes da forma

curva do suporte da imagem, o espaço pictórico era organizado em vários pontos de

fuga. O pintor inglês Emeric Essex Vidal chegou a pintar marinhas no Rio de Janeiro

com 5 metros de comprimento, Maria Graham, artista amadora e escritora inglesa,

pintou, em 1825, uma vista da Baía de Guanabara, a partir do mar, com 3,52 metros.

A pintura de paisagem sobre o Brasil no século XIX evoca duas grandes tradições

pictóricas, segundo Belluzzo. Uma está relacionada à noção da natureza idílica, de veia

romântica, trabalha com o imaginário europeu sobre a Arcádia, sobre a harmonia

conciliadora do homem com a natureza. Nicolas Antoine Taunay, que veio ao Brasil

com a Missão Artística Francesa, pintou o quadro Cascatinha da Tijuca, em que coloca

um pintor trabalhando com fundo de mata exuberante e de queda d’água. Uma

atmosfera com muitas cores, as brumas e o efeito luminoso da água criam uma poética

em que os “estímulos da natureza são transformados simbolicamente em imagens da

origem da vida”. Outra tradição se desvincula do conceito de ideal e buscam uma

representação paisagem primada pelo naturalismo. Um dos filhos de Nicolas, Félix

Émile Taunay, pintou em 1828 duas vistas da Baía de Guanabara em que o contraste

entre os planos e a luminosidade límpida cria um conjunto que valoriza os detalhes.111

A fotografia no século XIX foi também praticada em sua maior parte por

estrangeiros que passaram ou se fixaram no Brasil imperial. É fato que a inclinação do

monarca Pedro II para a fotografia beneficiou o desenvolvimento da prática por aqui,

atraindo profissionais e diletantes de várias partes do mundo. O principal gênero de

fotografia oitocentista foi o retrato, que representava o sustento da maioria dos ateliês

109

STAROBINSKI, Jean. A invenção da liberdade: 1700-1789. São Paulo: Unesp, 1994. p. 193. 110

BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Op. cit. v.3. p. 19. 111

Ibid. pp. 118-125.

Page 78: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

78

que se espalhavam pelas principais cidades do país desde a segunda metade do século.

Como descreve Boris Kossoy, todas as referências materiais e simbólicas nestas

imagens remetiam à cultura européia – vestuário, mobiliário, decoração de fundos,

objetos de cena, poses etc.

(...) a experiência fotográfica brasileira como a latino-

americana de ateliê reproduz basicamente a experiência

européia, particularmente quando se trata da imagem da

burguesia ou da elite. Não há (...) qualquer preocupação em se

construir o nacional nos retratos antigos. Pelo contrário, a

intenção é a de se obter um produto estético com a melhor

aparência européia possível, seja por parte do retratista em

seu processo de criação/construção do signo, seja por parte do

retratado ao representar no teatro de ilusões que é palco o

fotográfico, conforme o modelo europeu, modelo no qual se

espelha. 112

No entanto, dentro do projeto imperial em construir uma imagem de uma

“civilização nos trópicos”, o português Joaquim Insley Pacheco fotografou o imperador

em meio a um cenário de vegetação nativa, em 1883.

Os indígenas brasileiros também foram objetos das imagens produzidas por

europeus. Em 1867, algumas imagens de índios nas cercanias de Manaus, realizadas

dois anos antes pelo fotografo alemão August Frisch, foram apresentadas na Exposição

Universal de Paris. Os nativos foram mostrados por Frisch em seu meio natural,

entrando em choque “com a ideologia civilizatória que o Império pretendia passar no

exterior”, mas que iam ao encontro da expectativa do público europeu, uma vez que

reforçavam “os estigmas perpetuando preconceitos de um país que queria se apresentar

como nação moderna”113

. Na década de 1860, Christiano Junior, nascido possivelmente

em Portugal, realizou uma série de retratos de escravos aos moldes dos registros

etnográficos, em voga na época, que davam tratamento de objetos de estudo e

curiosidades científicas aos retratados114

. Também alijados de seu contexto, índios e

negros foram fotografados em estúdio pelo filho de franceses, Marc Ferrez.

Continua o interesse ambíguo do europeu em consumir

imagens de etnias “inferiores” o que, se por um lado,

“ilustra” o exotismo das populações tropicais, por outro, vem

reforçar através do “testemunho” fotográfico a idéia de

112

KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê, 1999. pp.78-79. 113

Ibid. p. 86. 114

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci; KOSSOY, Boris. O olhar europeu: o negro na iconografia

brasileira do século XIX. São Paulo: Edusp, 1994.

Page 79: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

79

“atraso”, prejudicial ao projeto nacional de edificação de uma

civilização nos trópicos.115

Na onda dos álbuns de viagens, o francês Victor Frond produziu uma série de

fotografias entre 1858 e 1859, das quais foram executadas litogravuras para a

publicação de Brazil Pittoresco, em 1861. Nas imagens de Frond, os elementos –

paisagem natural, arquitetura e trabalho escravo – são compostos de forma a constituir

um conjunto harmônico em que o aparente naturalismo é subordinado ao arranjo

estético e ideológico.

Não apenas nos álbuns pitorescos, mas também nas exposições universais as

imagens oitocentistas sobre o Brasil começaram a ganhar público na Europa. Foi, então,

produzido um grande repertório fotográfico calcado na noção do exotismo. Eram vistas

de paisagens naturais ou detalhes botânicos, de grandes cidades que ganhavam muito

corpo no século XIX e adentrando no início do XX, retratos burgueses de

personalidades locais ou de veia etnográfica para o registro das populações indígenas,

negra e mestiça. Quase todo este material foi produzido por europeus ou descendentes e

eram destinados ao mercado da Europa. Assim, eram imagens já de antemão

estigmatizadas, que buscavam responder a uma demanda e a um gosto específicos. Não

é raro inferir algum tratamento preconceituoso ou, no mínimo, ingênuo em relação a

muitos dos motivos fotografados, no entanto, é também correto afirmar que estas

imagens ajudaram a forjar uma identidade nacional elaborada em grande parte no

exterior, mas que também sofreu alterações em seus projetos iniciais a partir do contato

efetivo que os artistas e fotógrafos tratavavam com o Brasil.

A entrada no século XX marca a chegada ao país de grandes levas de imigrantes,

refugiados econômicos ou políticos de suas pátrias de origem. Novamente, muitos

destes exilados vão se dedicar a registrar visualmente ou em letras o novo espaço que

ocupam transitória ou definitivamente. Como relembra Edward Said, “a moderna

cultura ocidental é, em larga medida, obra de exilados, emigrantes, refugiados”116

, o

autor cita inclusive a tese do crítico George Steiner de que a literatura produzida por

exilados e sobre exilados configurariam um gênero particular uma vez que é bastante

expressiva a produção ocidental extraterritorial do século XX117

. Um caráter

115

KOSSOY, Boris. Op. cit. p. 87. 116

SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

p.46.

117

Ibid. p. 47.

Page 80: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

80

multinacional ou multicultural é comumente evocado nas obras de exilados, no entanto,

apesar das particularidades dos processos de imigração do último século, a presença de

múltiplas culturas é traço comum em boa parte da produção de viajantes e imigrantes

que cruzaram mares e fronteiras.

Assim, buscando inscrever as fotografias de Hans Gunter Flieg no extenso campo

de uma produção visual do Brasil por europeus118

, resguardando as particularidades

histórico-sociais e biográficas do fotógrafo e seu tempo, proponho um exame de três

temáticas muito contempladas por ele e que, ao mesmo tempo, remontam à tradição das

representações de viajantes e imigrantes em geral: o espaço construído (cidade de São

Paulo), a natureza e as manifestações histórico-culturais (viagens pelo Brasil) e a

população local (retratos).

2.2. São Paulo, a cidade-refúgio

Fig. 2.2.1

Viaduto e avenida 9 de Julho em obras e centro da cidade, vistos do belvedere do Trianon. São Paulo,

1940.

Page 81: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

81

Ainda no começo do ano de 1940, o jovem Flieg, durante um passeio pela região

da avenida Paulista, fotografou, a partir do Trianon, a avenida Nove de Julho em obras

com centro da cidade ao fundo (fig. 2.2.1). Esta foi a primeira vista de São Paulo que

realizou e chama atenção o destaque dado ao espaço em construção, que ocupa o

primeiro plano e segue nos contornos da avenida, que penetra pelos morros do plano

intermediário da imagem. Ao fundo, a metrópole já delineada com densidade urbana e

altos edifícios, como o Martinelli e o Columbus. Nesta fotografia, a avenida Nove de

Julho em construção cumpre claramente o papel de uma ligação entre o primeiro e

último plano.

As obras na avenida Nove de Julho e abertura do túnel faziam parte do Plano de

Avenidas, projeto do prefeito e engenheiro Prestes Maia para a expansão do centro

antigo, configurando a região de grande adensamento urbano a partir da qual poderia se

“irradiar” gradualmente o crescimento em direção às periferias no modelo de anéis

sucessivos em torno do centro, de modo que abrisse a possibilidade de uma “expansão

permanente”. Para permitir esta “irradiação”, em termos viários, Maia montou uma

estrutura perimetral-radial que tinha como um de suas principais artérias o “sistema em

Y” que seria a junção das avenidas Anhangabaú (av. 9 de Julho) e Itororó (av. 23 de

Maio) no tronco da atual avenida Prestes Maia.

Neste esquema de radiais, as obras viárias se espalharam por toda parte119

, por

isso é comum encontrar a descrição de São Paulo como um grande canteiro de obras

neste período da administração Prestes Maia (1938-1945). Havia, de fato, no imaginário

118

O painel traçado no presente texto não é um panorama, não tem a intenção de dar conta de tudo ou de

eleger o mais expressivo dentro deste repertório visual sobre o Brasil. Foram apenas relacionados e

relatados alguns casos que exemplificassem certos aspectos marcantes desta produção. 119

“(...) seguindo a orientação do plano elaborado por Preste Maia, foram executadas as principais

obras: abertura das avenidas Ipiranga (...), São Luís, Duque de Caxias e Senador Queirós e da praça

da Consolação (atual praça Roosevelt), da rua atrás da antiga Escola Normal (...) e da rua Riskalah

Jorge; estava em andamento a implantação da avenida Rio Branco; prolongamento da avenida

Pacaembu, da antiga avenida Anhangabaú (atual avenida Nove de Julho), rua Major Sertório, rua

dos Andradas (....), rua Augusta (...), rua Bráulio Gomes (...); construção dos viadutos Major

Quedinho, Nove de Julho, Jacareí, Dona Paulina e Pacaembu e da praça em frente à antiga Estação

Sorocabana (...); remodelação da praça João Mendes (...), do Anhangabaú inferior (atual avenida

Tirandentes), do vale do Anhangabaú (...), praça Ramos de Azevedo (...), praça do Patriarca (...), do

antigo largo do Piques (atual praça das Bandeira (...), do largo do Arouche (...); alargamento da

antiga praça do Carmo (atual Clóvis Bevilácqua (...), da rua Anita Garibaldi, da ladeira do Carmo,

avenida Senador Queirós, avenida São João, rua Vieira de Carvalho (com a demolição de algumas

construções para fazer a ligação com a avenida São João), avenida Liberdade (...), rua Tabatingüera,

avenida Rebouças, rua Couto de Magalhães (...), avenida Conceição (atual avenida Cásper Líbero),

rua Xavier de Toledo, rua Venceslau Brás, rua Benjamin Constant e parte do largo São Francisco; e

início do projeto de retificação do rio Tietê”. DIÊGOLI, Leila Regina. Estado Novo – Nova

Arquitetura em São Paulo, 1996. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade

Católica, São Paulo. pp. 35-36.

Page 82: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

82

urbano da época um certo orgulho nesta idéia dos canteiros, pois deles brotariam o novo

centro, a nova cidade, concretizando nos trópicos o ideal moderno da cidade americana.

Orgulho do gigantismo que já vinha há alguns anos estampado nos bondes: “São Paulo

é o maior centro industrial da América Latina”, justo nos bondes, os primeiros

ameaçados no plano de crescimento permanente através das grandes avenidas que

abriam caminho de honra para o símbolo da nova era, o automóvel.

Voltando à foto, examinemos as circunstâncias de sua produção. Flieg, recém-

chegado ao Brasil (ainda vivia na casa dos amigos na rua Pamplona), com pouco

dinheiro, muitas incertezas e um resto de filme na câmera. Material fotográfico e os

serviços de revelação, tinham um custo relativamente elevado. Não era realmente o caso

de o rapaz sair por aí disparando sua câmera como um turista deslumbrado que não

consegue se fixar mais que dois segundos em uma cena. Nestas condições, esta visão da

metrópole emergindo deve ter despertado a atenção do fotógrafo iniciante. Algo

provavelmente tocou sua sensibilidade. E o que seria?

O que despertaria a atenção, de maneira especial, em um estrangeiro europeu

numa grande cidade sul-americana? Lévi-Strauss resume a natureza de sua relação com

metrópole brasileira:

Ao contrário desses turistas europeus que torcem o

nariz porque não podem acrescentar a seus troféus de caça

mais uma catedral do século XIII, alegro-me em me adaptar a

um sistema sem dimensão temporal, para interpretar uma

forma diferente de civilização. Mas é o erro contrário que

caio: já que as cidades são novas e tiram dessa novidade sua

essência e justificação, custo a perdoá-las por não

continuarem a sê-lo.120

O processo de crescimento da cidade dependia da sua própria capacidade de atrair

forasteiros, vindos de outros Estados brasileiros ou de continentes além-mar. Eram os

braços que ergueriam o cimento dos sonhos paulistanos de modernidade ou as mentes

que representavam a promessa de se abrir caminho a um iluminismo tropical. Já em

1935, um grupo de acadêmicos franceses veio a São Paulo para lançar as bases de uma

universidade local, entre eles Lévi-Strauss. Europeus, asiáticos ou migrantes internos,

todos, de uma certa forma, haviam sido atraídos pela onda fresca da novidade que a

120

LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 91.

Page 83: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

83

metrópole prometia. Assim, muitos dos olhares que miravam São Paulo estavam

cobrando a promessa e, ao mesmo tempo, questionando o desafio da eterna juventude.

Lévi-Strauss se referiu a “um sistema sem dimensão temporal”, São Paulo era

uma cidade americana, como Nova York ou Chicago, em que se passava da “barbárie à

decadência sem conhecer a civilização”121

, pois ao perder seu ar de novidade já

automaticamente entrava no estágio de decrepitude. Como observa Annateresa Fabris,

ao analisar as fotografias produzidas pelo antropólogo em São Paulo122

, prevalece nestes

trabalhos uma imagem provinciana da cidade pontilhada por alguns índices modernos

em que o jogo de contrastes – “natureza exuberante/cimento armado; festas

populares/cinematógrafo; modernos meios de transporte/tração animal; espacialidade

contemporânea/resquícios do passado” – correspondem à dicotomia

frescor/decrepitude que definiria as cidades americanas na concepção do autor123

.

Na foto de Flieg, a cidade moderna é avistada ao fundo, no último plano, distante

do observador. Mas há uma ligação entre os dois que é justamente a avenida em

construção e as obras sobre o túnel. Este caminho em construção liga a cidade a quem a

observa, que se transforma em personagem da imagem. Cria-se um contracampo com o

próprio espectador, ou melhor, com o fotógrafo, já que as duas figuras se sobrepõe,

ainda mais em um caso destes, de uma fotografia produzida como um registro de

âmbito particular, de uma lembrança pessoal, sem a intenção de circular socialmente.

Da mesma forma que as radiais, que abririam caminho para a metrópole latino-

americana deslanchar, estavam em construção, o elo que ligaria o fotógrafo estrangeiro

à cidade estava ainda por se formar. Na imagem, convivem ao mesmo tempo, a

modernidade, ao fundo; o estágio intermediário, que é o espaço da transformação, da

construção, e a reminiscência do passado expressa pelos morros ainda verdejantes a

ladear a avenida em obras e no detalhe do pequeno trecho da balaustrada com luminária

do belvedere, no canto inferior esquerdo da imagem. Era esta cidade de múltiplos

tempos que começava a transparecer no horizonte do jovem fotógrafo.

121

LÉVI-STRAUSS, Claude. Op. cit. p. 91 122

As fotografias foram publicadas no livro: LÉVI-STRAUSS, Claude. Saudades de São Paulo. São

Paulo: Companhia das Letras, 1996. 123

FABRIS, Annateresa. Fragmentos urbanos: representações culturais. São Paulo: Studio Nobel, 2000.

p. 89.

Page 84: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

84

O tempo da modernidade

As cidades modernas, que têm sua expressão máxima nos grandes centros norte-

americanos, caracterizam-se pelo constante movimento de renovação de sua feição e de

seu funcionamento. O ideal de uma cidade moderna é a eterna juventude de suas formas

e de sua dinâmica, almeja exalar frescor em moto-contínuo. A lógica que a rege é a de

erguer e depois demolir para novamente construir. O engenheiro norte-americano

Robert Moses que projetou e defendeu o esquema das vias expressas em Nova York,

disse: “Quando você atua em uma metrópole superedificada, tem de abrir seu caminho

a golpes de cutelo. Eu vou simplesmente continuar construindo. Vocês façam o que

puderem para impedi-lo”124

. Para os novos ideólogos e defensores deste modelo de

megalópole, construir e erguer apresentam-se como uma missão perpétua que responde

ao insaciável apetite capitalista em mercantilizar o espaço urbano.

Como ressalta o urbanista Cândido Malta Campos, modelos urbanísticos

coexistem numa mesma cidade e, se pensarmos nas cidades brasileiras, é bastante claro

que projetos distintos se impõem para os bairros operários, para os centros mercantis e

para as áreas residenciais chiques. Ações modernizadoras como ocorreram em cidades

européias exigiram rupturas profundas na estrutura social, a implementação de

mudanças semelhantes no Brasil não passariam pela pauta do poder local. Além disso, a

idéia de modernidade no Brasil tocaria em cheio na ferida do atraso nacional, o que

causaria um paradoxo, pois se modernizar é sair da posição de dependência, romper

com a lógica internacional de poder seria cortar o acesso do Brasil ao mundo moderno,

ou seja, aos próprios modelos de modernidade.

Assim, a coerência e o alcance das propostas

urbanísticas desenvolvidas para as cidades brasileiras eram

limitados, não apenas pelas contradições estruturais e

conflitos que marcam o espaço urbano em geral, mas também

pelos impasses da modernização periférica – a qual nos

condenaria a perseguir o moderno sem nunca atingir a

modernidade.125

124

Máximas de Robert Moses apud BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a

aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 274. 125

CAMPOS, Cândido Malta. Os rumos da cidade: urbanismo e modernização em São Paulo. São

Paulo: Senac, 2002. p. 21.

Page 85: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

85

Esta “perseguição” ao modelo moderno, em termos urbanísticos, na cidade de

São Paulo se inicia com a virada do século XX, mas a dinâmica de crescimento da

cidade foi dada no século XIX. Em 1867, a inauguração da São Paulo Railway, ligando

o interior produtor de café a Santos, colocou São Paulo no entroncamento das linhas de

trem o que impulsionou o crescimento da cidade. Se nesta época, a população estava em

torno de 26 mil habitantes, em 1890, passou para 65 mil, em 1893, ultrapassou os 120

mil (sendo cerca de 70 mil estrangeiros), chegando a 240 mil em 1900.126

O café, que transformou a antiga vila em centro econômico, financiara a infra-

estrutura do pólo industrial que já começava a se articular na virada do século. Como

afirma Richard Morse, o processo de urbanização das cidades latino-americanas foi

anterior à industrialização, enquanto no resto do mundo ocidental eles ocorreram quase

que simultaneamente127

. Assim, no final do século XIX, a cidade já começa a mudar

suas feições conforme o gosto da aristocracia cafeeira que se transfere em peso para a

capital.

Na primeira década do século XX, várias obras foram realizadas para a

remodelação da cidade, principalmente na região central, com vistas a reafirmar o

espaço segundo “os requisitos do modelo agroexportador, que exigia, em primeiro

lugar, um centro de negócios adequadamente agenciado para que a ‘capital do café’

cumprisse seu papel”128

. Entre estas obras, estão o Teatro Municipal – “elemento

considerado indispensável à afirmação da cultura européia pela qual se legitimava a

elite paulistana”129

– alargamento da rua XV de Novembro e demolição da igreja de

Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos para a construção no local do prédio

Martinico, o “arranha-céu” mais alto da cidade com cinco andares.

O desenho urbano de São Paulo vinha, então, sendo delineado desde os

primeiros anos do século XX, segundo os modelos das cidades européias, mas em

conformidade com os interesses especulativos do mercado imobiliário. A grande

explosão no processo de metropolização aconteceu na década de 1920. Muitos

126

ACKEL, Luiz; CAMPOS, Cândido Malta. “Antecedentes: a modernização de São Paulo”. In:

CAMPOS, Cândido Malta; SOMEKH, Nadia (orgs.). In: CAMPOS, Cândido Malta; SOMEKH

(orgs.). A cidade que não pode parar: planos urbanísticos de São Paulo no século XX. São Paulo:

Mackpesquisa, 2002. p. 15. 127

MORSE, Richard M. Formação histórica de São Paulo. São Paulo: Difusão Européia do Livro,

1970. p. 274. 128

ACKEL, Luiz; CAMPOS, Cândido Malta. Op. cit. p. 24. 129

Ibid. p. 25.

Page 86: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

86

engenheiros e arquitetos europeus deixaram suas marcas em São Paulo, o que dava à

cidade “um arzinho de exposição internacional”130

:

(...) a colina central ficava circundada de uma

ornamentação paisagística européia, atravessada pelas

impressionantes estruturas metálicas dos viadutos do Chá e de

Santa Ifigênia importadas direto da Alemanha, e cingida pela

arquitetura neo-renascença do Teatro Municipal, êmulo

fáustico do Ópera de Paris, a assinalar uma súbita

reformulação do panorama refletindo mudança radical da

identidade da capital. Nos limites deste complexo paisagístico

figuravam, ao norte, a Estação da Luz, totalmente importada

da Inglaterra até os últimos tijolos e os menores parafusos,

segundo os modelos da Estação de Paddington e da torre do

Big Ben. Ao sul, ia se definindo o desenho da catedral da Sé,

talhada sob o figurino da matriz medieval de Colônia. A oeste,

dominando a Praça da República, se destacava a imponente

Escola Normal, de feitio eclético, recaindo sobre o

neoclássico do Segundo Império francês. A leste, mais para o

final da década, se ergueria no topo da colina histórica o

colossal prédio do arquiteto italiano Giuseppe Martinelli...131

A década de 1930 marca a substituição do modelo urbano europeu pelo

americano. O plano de Prestes Maia é o coroamento da idéia que vincula o progresso

ao gigantismo urbano e à racionalização do capital, estas transformações eram resposta

à necessidade de modernizar a cidade para alavancar a indústria. Neste contexto, Prestes

Maia defendia que “o crescimento é um aspecto essencial da realidade paulistana, a

ser organizado e articulado, e não um problema a ser contido (...)”132

e que “São

Paulo, como diversas cidades brasileiras, deveria ser a cidade da modernidade, aquela

que o Estado Novo projetava para uma nova sociedade moderna”133

.

A cidade que crescia em movimento frenético tanto vertical como

horizontalmente é o cenário preferencial das imagens de Hans Gunter Flieg. Um dos

gêneros mais recorrentes na coleção do fotógrafo são as vistas de São Paulo, produzidas

a pedido de clientes ou por motivação pessoal, enquadrando principalmente a região

central. O Vale do Anhangabaú, nas proximidades dos viadutos do Chá e Santa Ifigênia,

130

António de Alcântara Machado, Prosa preparatória & Cavaquinho e saxofone. Rio de Janeiro,

Civilização Brasileira, 1983. Apud SEVCENKO, Nicolau. Orfeu estático na metrópole: São Paulo,

sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 119. 131

SEVCENKO, Nicolau. Op. cit. p. 116 132

CAMPOS, Cândido Malta; SOMEKH, Nadia. “Plano de Avenidas: o diagrama que se impôs”. In:

______ (orgs.). Op.cit. p. 64. 133

DIÊGOLI, Leila Regina. Op. cit. p. 34.

Page 87: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

87

é a área mais recorrente nestas vistas. Quanto ao posicionamento do fotógrafo, a maior

parte das imagens é tomada do alto de prédios.

Em 1950, Flieg captou uma bela vista da cidade a pedido da indústria de

colchões Probel (fig. 2.2.2) para a produção de um calendário, em que esta imagem

apareceria colorida a mão. Flieg se colocou reclinado sobre o parapeito do alto do

edifício do Banco do Estado, com seu assistente segurando-lhe pelas pernas, e apoiou o

tripé com pesada câmera de madeira, a Lechner, sobre a cornija do prédio, fez todos os

ajustes, utilizando inclusive um fotômetro manual, e compôs a vista da cidade através

do visor em vidro fosco que mostrava a imagem invertida e de ponta-cabeça.

Fig. 2.2.2

Panorâmica de São Paulo a partir do prédio do Banco do Estado. Encomenda da Probel. São Paulo, 1950.

Usando lente grande-angular, fez uma vista em que aparece um pouco das

construções da margem direita do Vale do Anhangabaú, o topo do Martinelli, a Praça do

Patriarca e o edifício Matarazzo; na seqüência, o Anhangabaú e o Viaduto do Chá

cortam a foto numa leve diagonal; na outra margem, os prédios da Light, Mappin, CBI-

Esplanada, praça Ramos de Azevedo, Teatro Municipal, seguidos do mar de edifícios

que vem logo atrás, na área da Praça da República, subindo em direção á avenida

Page 88: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

88

Paulista e segue no sentido da região sudoeste da cidade, em que a densidade urbana vai

diminuindo gradualmente até a dissolução no horizonte.

Em 1958, um tio de Flieg que vivia na Inglaterra veio ao Brasil visitar a família.

Quando Karl Flieg convidara o irmão, em princípio, este relutou, pois o Brasil era

alguma coisa muito distante de seu horizonte. Acabou aceitando e finalmente aportou

em Santos. Stefan Flieg e os pais desceram a serra para buscar o visitante. Durante a

viagem, as paisagens encantaram o recém-chegado, embora não o tenham espantando

tanto, pois correspondia de certa formas às suas expectativas. Na estrada ainda, quando

via alguma pequena concentração de construções já logo imaginava ser São Paulo.

Então, Stefan propositadamente mudou o caminho para entrar na cidade, de modo que

eles passassem pelo meio do Vale do Anhangabaú. Ao se deparar com aquele cenário,

suspirou. Aquilo sim, o teria surpreendido.134

Fig. 2.2.3

Vale do Anhangabaú a partir do topo do edifício do Banco do Brasil. São Paulo, 1958.

Durante esta visita, Flieg produziu um álbum com imagens dos passeios que

fizeram e com algumas vistas de São Paulo, para servir de souvenir de viagem para o

tio. Neste álbum, existe uma foto (fig. 2.2.3), tirada do topo do edifício do Banco de

Brasil, na avenida São João, mostrando uma composição muito similar ao da imagem

134

Baseado nas informações fornecidas por Hans Gunter Flieg em seu depoimento à autora. São Paulo,

fev. 2002.

Page 89: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

89

do calendário da Probel. A câmera aponta no mesmo sentido – sudoeste da cidade --

mas desta vez como o vale mais aproximado, trabalhando com ângulo e profundidade

menores. Também no primeiro plano uma faixa diagonal com construções da margem

direita do Anhangabaú, mas, desta vez, o edifício Conde de Prates, que ainda não havia

sido erguido na época da foto anterior, domina a esta parte da imagem. A tomada a

partir do Banco do Brasil deixou o vale mais próximo, na mesma inclinação diagonal e

passando por ele, na diagonal oposta, o Viaduto do Chá. Na seqüência, aparecem o

núcleo da praça Ramos com os quatro prédios que a cercam (Light, Mappin, Teatro

Municipal e CBI-Esplanada), seguido pelo emaranhado de prédios.

As duas imagens funcionam como registros da velocidade acelerada do processo

de verticalização do centro de São Paulo na década de 1950. A presença imponente do

edifício Conde de Prates e a massa de construções no último plano da foto de 1958

marcam um contraste com a vista de 1950. As imagens partem de pontos de vista

similares, os dois edifícios, Banco do Estado e Banco do Brasil, estão posicionados bem

próximos da praça Antônio Prado, o primeiro na rua João Brícola e o outro no começo

da avenida São João, ou seja, estão em pleno coração do triângulo, o centro antigo de

São Paulo. Assim, trazem uma visão de quem está olhando da origem do núcleo urbano

para o centro novo e, no caso da foto de 1950, estende-se a regiões mais periféricas da

cidade.

As fotos trazem um olhar de certo encantamento com o processo de

metropolização da cidade. Na imagem mais antiga, a modernidade aparece como uma

promessa em vias de efetivação, é um olhar para a potencialidade de crescimento da

metrópole, trabalha com horizonte, com a idéia de futuro. O horizonte com a faixa de

céu também dilui o ponto de fuga, não afunila o fundo da imagem, mas, pelo contrário,

amplia o ângulo de visão da panorâmica, o que, ao mesmo tempo em que denuncia o

fim do perímetro urbano, abre em leque as possibilidades de ampliação da cidade. Há,

também, um elemento a chamar atenção nesta foto, a publicidade da Coca-Cola sobre o

edifício Martinelli que ganha certo destaque na composição. É a única alusão direta,

visualmente eloqüente, à mercantilização do espaço, estabelece a relação entre ocupação

urbana e comércio e alude ao caráter periférico da modernização brasileira ao expor a

dependência econômica. A presença de uma referência à Coca-Cola na imagem pode

também ser lida como apenas uma menção sobre o modelo que a cidade está perseguir

(o das cidades americanas), representado por um dos mais populares símbolos da

Page 90: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

90

cultura norte-americana – a marca do refrigerante – a pairar sobre a grande cidade

latino-americana, o cenário panorâmico que mostra a potencialidade local para

concretizar o projeto de modernidade e o questionamento se realmente este ideal se

efetivará.

Quanto à fotografia de 1958, o horizonte desaparece, a imagem se fecha ao fundo

numa massa quase disforme de prédios que se sobrepõem e cria-se um ponto de fuga em

um dos edifícios que consegue se destacar um pouco deste conjunto, com contraste de

cores que define melhor os seus contornos. Esta ausência de horizonte reforça a idéia de

adensamento urbano, pois o corte ao meio dos edifícios mais ao fundo dá a noção de

continuidade daquele conjunto, ou seja, tem-se a impressão de que a selva de prédios

“não tem fim”. Nesta imagem, a verticalidade é brindada, pois representa a própria

concretização da modernidade. Esta foto seria levada para Inglaterra como uma

recordação de viagem, então, a imagem deveria circular entre familiares e conhecidos

do tio. Estes olhares europeus provavelmente deveriam guardar referências latentes

sobre natureza e índios das terras tropicais. Assim, aquela imagem deveria surpreendê-

los, da mesma forma que Flieg e seu tio foram surpreendidos no contato inicial com

Brasil, ao reconhecerem aqui aspectos de uma urbanidade ocidental do “mundo

civilizado”.

Outra fotografia do fim da década de 1950 (fig. 2.2.4) cria uma nova perspectiva a

partir do mesmo ponto de vista, o alto do edifício do Banco do Brasil. O vale não

aparece na imagem, assim o primeiro plano é ocupado pelo o jardim da praça Ramos de

Azevedo, cercado à esquerda de um pequeno trecho do edifício da Light, à direita, o

CBI-Esplanada também fracionado e, atrás, o Mappin e o Teatro Municipal bastante

valorizados.

Na seqüência, também bem definidas, algumas construções da rua Conselheiro

Crispiniano e, a partir daí, começa o mar de prédios que se estende ao infinito. Ao fundo

uma faixa de céu que não dispersa o ponto de fuga, pois, a posição vertical da

composição quebra com a idéia de vista panorâmica, colaborando com que a imagem

convirja para o edifício mais alto e escuro que, por volume e cor, se destaca no último

plano. Um elemento ganha destaque, a praça Ramos de Azevedo no primeiro plano,

ocupando uma grande área da imagem.

Page 91: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

91

Fig. 2.2.4

Praça Ramos de Azevedo e a “selva” de arranha-céus. São Paulo, s/d [final

da década de 1950].

A opção pelo posicionamento vertical da câmera dá uma idéia de estreitamento do

ângulo de visão que cria um espaço comprimido, os edifícios parecem bem juntos e as

formas ficam mais longilíneas. Novamente, há uma exaltação da modernidade

representada na proliferação dos arranha-céus, que se concentram em maior quantidade

num menor espaço. O jardim colocado no primeiro plano, em termos de composição, dá

um respiro, não deixando claustrofóbica a visão do conjunto de prédios. E não por acaso

que o elemento organizador do espaço da imagem é um jardim, que como já disse antes

funciona como símbolo do processo civilizatório, da ação do homem sobre o ambiente

hostil. As palmeiras plantadas na praça denunciam que se trata de uma paisagem

tropical. Cria-se um contraste do jardim com a “selva” de prédios ao fundo que, na

verdade, serve para amenizar o caráter ameaçador desta verticalização, apresentada

como indissociável do movimento modernizador da cidade. Há embutido aí uma noção

de civilização, calcada no equilíbrio e na razão, muito mais ligado ao ideal europeu de

cidade, que valoriza espaços públicos, como as praças. A idéia por trás desta imagem é

de que não seria contraditório racionalizar o modelo americano de metrópole, sem ser

pela lógica exclusiva do consumo, indicando assim que poderia haver uma “pitada” de

humanismo no projeto de modernização da cidade brasileira.

Page 92: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

92

A partir do Teatro Municipal, há uma bela tomada do Anhangabaú do início da

década de 1960 (fig. 2.2.5). Composta de vários planos: ponto de ônibus na lateral do

teatro, palmeiras, vale com tráfego de automóveis e Viaduto do Chá, cortando à direita

da foto, os edifícios Conde de Prates e Matarazzo e mais alguns prédios ao fundo. De

novo,as palmeiras identificam a condição tropical.

Estas seqüências de planos e a composição muito equilibrada da foto ordenam o

dinamismo da cidade fotografada, numa idéia de uma “agitação” organizada. Como na

fotografia anterior, projeta um ideal de cidade moderna, racional e humana, na América

do Sul.

Fig. 2.2.5

Vale do Anhangabaú a partir do Teatro Municipal. São Paulo, s/d [final da década de

1950 ou início da década de 1960].

A verticalidade da cidade é um dos aspectos mais presentes nos trabalhos de

Flieg que tinham como tema a cidade. Muitas soluções formais foram dadas para

construir estas imagens. Na foto da avenida Ipiranga de 1963 (foto 2.2.6), por exemplo,

publicada no calendário da Brown Boveri de 1964, Flieg utiliza a tomada de baixo para

cima para valorizar a altura dos edifícios São Tomás e Copan.

Page 93: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

93

Fig. 2.2.6

Avenida Ipiranga com os edifícios São Tomás, Copan e Itália (em construção). Foto do

calendário da Brown Boveri para 1964. São Paulo, 1963.

Os calendários da multinacional seriam distribuídos em vários países e, entre as

imagens que queriam passar sobre o país, sem dúvida, a questão da modernidade,

encarnada por São Paulo, era pauta obrigatória135

. O crescimento é mostrado nesta

imagem também de maneira oxigenada, com a valorização do céu e com a presença de

pouca vegetação. Flieg usou uma grande-angular de 90° para enquadrar uma área

relativamente ampla de um ponto de vista muito próximo, assim os três edifícios são

mostrados com muito volume e as distâncias entre eles são valorizadas. Mais uma vez, a

imagem de uma modernização ordenada, onde um espigão residencial convencional

convive de maneira harmoniosa com o canteiro de obras do edifício Itália e com as

inovadoras formas curvas e a proposta comunitária do arranha-céu Copan, ou seja, o

supra-sumo de uma modernidade utópica.

135

A produção dos calendários da Brown Boveri será tratada no item 2.3.

Page 94: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

94

Fig. 2.2.7 Fig. 2.2.8

Jovens suíços posando com edifício do Banco

do Estado ao fundo. São Paulo, 1949.

Tio de Flieg em visita à cidade posando com

edifício do Banco do Estado ao fundo. São

Paulo, 1958.

Muitas vezes, Flieg enquadrou um único edifício para sintetizar o processo de

verticalização. O arranha-céu do Banco do Estado, por exemplo, foi utilizado por Flieg,

em pelo menos duas ocasiões, criando composições similares: em 1949 (fig. 2.2.7),

numa foto encomendada para uma reportagem do jornal Schweizer Illustrierte Zeitung

sobre jovens suíços em São Paulo e, em 1958, durante a visita de seu tio ao Brasil (fig.

2.2.8). Nos dois casos, segue o padrão de fotografar um edifício de baixo para cima,

quase isolado, deixando transparecer apenas um pouco das construções vizinhas. O

espigão ao fundo rasga as imagens em sentido vertical, impondo sua presença como um

totem. No primeiro plano das duas fotos, os personagens retratados, novamente num

jogo de escalas. Há, nas imagens, toda uma ambientação que dá um ritmo de grande

metrópole, o tio posando de perfil, olhando no sentido de três homens que caminham

em direção a quem observa a foto, um pouco atrás dos jovens suíços, também há

transeuntes em movimento. A matéria-prima da grande cidade são, assim, os edifícios e

as pessoas em sua eterna corrida no tempo. Há, inclusive, na foto dos suíços, uma

Page 95: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

95

alusão mais direta à noção do tempo na modernidade, com o relógio de rua logo atrás

dos rapazes.

Em ambas as fotografias, os retratados são estrangeiros em estada na capital

paulista, o edifício desempenha nas imagens o papel de marco da cidade, remetem às

tradicionais fotos de viagens em que turistas posam com a Torre Eiffel ou as pirâmides

de Egito ao fundo. Flieg apresenta o arranha-céu moderno como imagem-síntese (ou

“cartão-postal”) da cidade, referência que aparecem em muitos trabalhos do fotógrafo

como um “ponto marcante”.136

Há uma remissão à iconografia moderna sobre Nova

York, que já circulava em larga escala pelo mundo principalmente através das revistas

ilustradas, imagens que celebravam a cidade norte-americana e seus arranha-céus como

a encarnação exemplar da cultura moderna. O tratamento majestoso ao edifício nas

imagens não remete apenas à idéia de “um Empire State tropical”, mas também busca

dar toda uma ambientação “nova-iorquina” à cena. Esta identificação de São Paulo com

Nova York, primeiro, busca estabelecer um diálogo com o potencial público destas

imagens – os colegas do tio na Inglaterra e os leitores do jornal suíço -- dando

referências de que já faziam parte do repertório do europeu médio na época. Em

segundo lugar, expõe este anseio, ainda hoje comum, de reconhecimento na cidade de

São Paulo, do “espírito” cosmopolita de Nova York.

Outro elemento comumente identificável nas cidades modernas é o movimento,

as pessoas caminham a passos rápidos, os veículos motorizados dão a dinâmica às

metrópoles. Com o grande plano de abertura de avenidas, São Paulo abre um grande

espaço ao tráfego dos automóveis particulares, privilegiando este meio de locomoção

em detrimento de soluções de transporte coletivo. Assim, a partir dos anos 1940, o

automóvel toma conta de espaços vitais da cidade como o Vale do Anhangabaú, que

além de funcionar como uma via de fluxo constante, era também um grande

estacionamento. Ao registrar a construção do edifício CBI-Esplanada (fig. 2.2.9), em

1949, Flieg fotografou as obras a partir do outro lado do Anhangabaú, aparecendo o

número elevado de automóveis estacionados na região. Esta “dobradinha” arranha-céu e

136

Kevin Lynch define “ponto marcante” como um elemento que se destaca no cenário urbano, servindo

como referência a quem observa. Estes “pontos” podem dominar o espaço de duas formas: “tornando

um elemento visível de muitos pontos (...) ou criando um contraste local com os elementos

circundantes, isto é, sendo uma variante em altura ou constituição”. LYNCH, Kevin. A imagem da

cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1982. p. 91.

Page 96: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

96

automóvel é, sem dúvida, uma das mais emblemáticas imagens das cidades modernas, e

é muito recorrente nos trabalhos de Flieg.

Há uma foto dos anos 50 que mostra a avenida São João no sentido de quem

olha para a praça Antônio Prado (fig. 2.2.10). Flieg posicionou-se em uma ilha de modo

que aparecessem as duas pistas da avenida com automóveis nos dois sentidos. Paredes

de edifícios molduram a principal artéria do centro velho da cidade que se afunila até

desaparecer no conjunto de arranha-céus ao fundo. Criou, assim, um ponto de fuga no

edifício do Banco do Estado que se configura bem no fundo da imagem. Carros, ônibus

e bonde estão fracionados, muito distantes ou mostram apenas a parte traseira dos

veículos.

Nessas duas imagens, o automóvel aparece indissociável dos arranha-céus como

se os dois fossem os elementos vitais da alma moderna da cidade. O uso de velocidade

lenta de diafragma na foto da São João reforça a idéia de movimento. Os transeuntes

perdem substância e dão dinâmica à cena. A fila de carros parados do lado direito da

imagem mostra o paradoxal papel desempenhado pelo automóvel nos grandes centros

que, em sua presença maciça para dar movimento à vida urbana, acaba quebrando a

cadência da cidade com os congestionamentos.

Fig. 2.2.10

Avenida São João, sentido praça Antônio Prado. São Paulo, s/d [início da década de 1950].

Esta combinação de altos edifícios e efeitos de movimento para remeter à idéia

de modernidade chega a aparecer numa fotomontagem de 1972 (fig. 2.2.11) para o

material de divulgação do metrô de São Paulo que seria inaugurado em 1974. Na parte

Page 97: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

97

superior da imagem, uma bonita vista da cidade a partir da zona norte, que

originalmente tinha o Anhembi e as pistas do Campo de Marte no primeiro plano, o mar

de prédios na seqüência e um enorme céu que ocupava dois terços da imagem. Para a

montagem, o primeiro plano foi todo cortado, como também foram eliminados parte das

laterais e sobrou apenas uma pequena faixa de céu. Assim, a vista da fotomontagem

ficou resumida a uma panorâmica do conjunto de prédios. Na parte inferior da imagem,

sobre um fundo neutro foi montada a foto dos vagões sobre trilhos, cruzando o

retângulo diagonalmente para dar efeito de movimento, chegando a invadir um pouco a

foto de cima. A composição do trem rasgando o “subterrâneo” da grande cidade chega

com ímpeto para coroar a modernização de São Paulo.

Fig. 2.2.11

Fotomontagem para a material de divulgação do metrô. São Paulo, 1972.

Espaço em construção

Em 1951, começaram as obras para a demolição do belvedere e da pérgola do

Trianon. No lugar, seria erguido o pavilhão que sediaria a Bienal de Artes a ser

inaugurada naquele ano, com a promessa de inserir as artes plásticas em grande estilo

no calendário cultural da cidade. Flieg foi contratado como fotógrafo oficial da I Bienal,

a convite de Arturo Profili, figura muito próxima a Francisco Matarazzo Sobrinho

(Cicillo Matarazzo).

Page 98: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

98

Fig. 2.2.12

O trabalho de Flieg começaria antes mesmo da montagem da exposição, no

acompanhamento da derrubada do Trianon e da construção do prédio. Primeiro, uma

última olhada para o belvedere e a pérgola numa foto que enquadra a rua Plínio de

Figueiredo no sentido da avenida 9 de Julho (fig.2.2.12). A bonita composição com um

trecho da lateral do Trianon aparecendo em quina no lado direito da imagem, a rua em

declive para baixo com sua textura de paralelepípedos a ocupar um espaço privilegiado

da foto.

Um automóvel sobe a rampa da rua retratada e, ao fundo, surgem os edifícios da 9

de Julho e do centro da cidade. Sem a contextualização exata, ou seja, a da iminência da

demolição, a ênfase desta imagem estaria no contraste da São Paulo antiga do Trianon

com a modernidade dos espigões e da avenida que, sem aparecer claramente, impõe sua

presença. No entanto, quando se encaixa esta imagem no conjunto de fotos que

reportam à construção do pavilhão da Bienal, ela adquire conotação nostálgica. Aquela

ponta de Trianon a mirar a paisagem da cidade moderna, onde tudo é muito perecível,

constata que seu tempo já passou, agora é um novo ciclo. O antigo marco da avenida

Paulista é personificado nesta imagem que poeticamente poderíamos comparar à última

visão de um condenado.

Page 99: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

99

Fig. 2.2.13

Outra foto da série mostra a partir da avenida Paulista a colocação dos tapumes

de madeiras para o início das obras (fig. 2.2.13). Da calçada oposta ao belvedere, Flieg

fotografou a avenida com carro e bonde passando e, no plano seguinte, as construções

do Trianon com o tapume sendo colocado. Duas presenças humanas na foto: o operário

montado numa escada para colocar as placas de madeira e um transeunte caminhando

no meio-fio em frente à obra. A cena é coberta por um céu expressivo, com um clarão

sobre a área ocupada pelo Trianon. O automóvel e o bonde movimentam-se da direita

para esquerda da imagem, tem ação, o carro está um pouco “tremido”, indicando

deslocamento, e o bonde está apenas com meio corpo dentro do quadro da foto, também

transmitindo a idéia de movimento. O carro está à frente, deixando o bonde para trás.

No mesmo sentido, da direita para a esquerda, os tapumes vêm cobrindo a antiga

construção. Estes deslocamentos na mesma direção vão fazendo uma varredura no

quadro da foto. É o processo de modernização chegando. O condenado já está no

corredor da morte.

Um monte de pedras que encobre a escadaria do Trianon (fig. 2.2.14) ocupa o

primeiro plano, ganhando grandes proporções. Mais ao fundo, aponta um edifício

moderno. A texturização do primeiro plano, com os pedregulhos e os quadriculados do

calçamento, estetiza a imagem. As pedras tomando a escada indicam que o processo de

supressão do antigo para a elevação do novo está começando. O condenado já está

amarrado à cadeira elétrica e os algozes estão a postos.

Page 100: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

100

.

Fig. 2.2.14

As outras imagens que compõem a reportagem sobre o Trianon mostram cenas

um pouco similares a três descritas acima. São vistas do Trianon a partir da 9 de Julho,

tapumes cobrindo o complexo da pérgola e belvedere, materiais de construção

despejados sobre o local. Assim, o que aparece nestas fotos é o processo de preparação

da obra, não são mostradas cenas como operários com marreta em punho e ruínas do

antigo marco da cidade. Na metáfora do condenado, o momento da execução e o

cadáver não foram fotografados.

O conjunto completo de fotos encomendadas pela organização da Bienal é

composto ainda por imagens do pavilhão já concluído e das peças que participaram da

mostra, formando uma coleção provavelmente única sobre o assunto. A ausência de

referências diretas à demolição do Trianon, como também à construção do prédio da

Bienal, pode ser muito eloqüente. Imagens da destruição de um quase patrimônio da

cidade, como o Trianon, não combinavam com a idéia de civilidade que a grande mostra

de artes deveria representar. Assim, solicita-se que sejam fotografados o começo e o fim

do processo, mostrando construções que ainda ou já estão de pé. No entanto, a poética

das imagens do início das obras faz transparecer uma certa melancolia do fotógrafo com

relação à demolição que estava por vir. Não acredito que ele estava colocando em

dúvida a importância de tal iniciativa de valorização das artes na cidade, mas vejo

nestas fotos um olhar bastante europeu que não deixa de se comover frente à facilidade

Page 101: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

101

com a qual a cidade americana consumia sua própria história. Por isso, Flieg ritualiza

em sua narrativa visual o fim de um espaço público.

Se este estágio intermediário, entre a cidade antiga e a moderna, que é o do

canteiro de obras, desaparece na reportagem sobre o Trianon, em outros trabalhos vai

aparecer com muito destaque. Os canteiros até hoje pontilham o cenário paulistano, são

como um atestado do empenho da cidade em se renovar conforme a lógica do capital.

Em 1949, Flieg executava um trabalho para a Sociedade Técnica de Instalações Gerais

(STIG), eram fotos de alguns edifícios, para os quais a empresa prestou serviço, que

seriam utilizadas em material de divulgação. A estrutura em madeira montada para

erguer o edifício CBI-Esplanada aparece retratada a partir de vários pontos de vista,

como a tomada a partir do Viaduto do Chá (fig. 2.2.9). Esta imagem tem uma idéia de

progresso expressa através da valorização do esqueleto de arranha-céu e dos automóveis

na cena. Estes elementos identificadores da modernidade parecem convivendo

harmoniosamente com o núcleo mais antigo da praça Ramos de Azevedo.

No entanto, em outra imagem, feita na mesma ocasião (fig. 2.2.15), o ponto de

vista muda, a partir do meio do vale, e o tratamento muda também. O edifício de

escritórios, projetado pelo arquiteto polonês Lukjan Korngold em 1946, tinha a maior

estrutura em concreto armado do país, nesta época137

. Assim, as grandes proporções da

obra podiam facilmente se chocar com as construções que já existiam em seu perímetro

mais próximo. A foto tirada do viaduto do Chá foi composta em uma perspectiva mais

tradicional que a da outra imagem, com a câmera a certa distância do motivo,

posicionada em um nível elevado do solo (altura do viaduto) e com maior amplitude de

enquadramento

137

SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. São Paulo: Edusp, 1999. p. 135.

Page 102: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

102

Construção do edifício CBI-Esplanada. São Paulo, 1949.

Fig. 2.2.15

A segunda foto com a tomada de baixo para cima enfatiza a monumentalidade do

edifício em construção o que oprime os prédios vizinhos de proporção bastante

inferiores. Estas duas fotos que compõem o mesmo trabalho trazem concepções

diferentes quanto ao papel das novas construções no cenário urbano. A primeira me

parece uma imagem que iria mais de encontro às expectativas do cliente, ou seja, uma

empresa de instalações gerais em obras de engenharia que teria maior interesse em

estimular a cultura dos altos edifícios. A outra foto soa como uma visão mais particular

do fotógrafo sobre o processo, um olhar que sutilmente denuncia o esmagamento da

velha cidade pela nova.

É muito comum os habitantes das grandes cidade se relacionarem ambiguamente

com os canteiros de obra. Marshall Berman descreve seus sentimentos frente às obras de

construção da Via Expressa do Bronx que colocava a baixo uma região de charmosos

edifícios Art-deco – “era o que tínhamos de mais parecido com um bulevar parisiense

no bairro”. O conjunto de prédios era a expressão da modernidade de primeira-hora que

cativara os moradores do Bronx, mas, a própria lógica da modernização o ameaçava:

Enquanto via um dos mais graciosos desses edifícios vir

abaixo para dar passagem à estrada, senti um pesar que, hoje

posso ver, é endêmico à vida moderna. Com demasiada

freqüência, o preço da modernidade crescente e em constante

avanço é a destruição, não apenas das instituições e ambientes

Page 103: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

103

“tradicionais” e “pré-modernos”, mas também – e aqui está a

verdadeira tragédia – de tudo o que há de mais vital e belo no

próprio mundo moderno. Aqui no Bronx, graças a Robert

Moses, a modernidade do bulevar urbano era condenada como

obsoleta e feita em pedaços pela modernidade da rodovia

interestadual. Sic transit! Ser moderno revelava-se muito mais

problemático, e mais arriscado, do que eu jamais pensara.138

Neste turbilhão, o moderno é sobreposto pelo mais moderno. A cidade vive numa

eterna transitoriedade, o que quebra qualquer possibilidade de vínculo dos habitantes

com o espaço, ou melhor, com certas qualidades do espaço, pois, estas estão em

constante transformação. Da mesma forma que os judeus do Bronx, “viveiro de todas as

formas de radicalismos”139

, viviam a contradição entre a necessidade de estabelecer

referências e a empolgação pela renovação, Flieg também mantinha uma relação

ambígua com a modernização de São Paulo. Esta dualidade, vivenciada de forma geral

pelos moradores dos grandes centros, é concretizada na figura dos canteiros de obras.

Elemento que denuncia a dinâmica moderna na cidade e que também se configura como

objeto de contemplação, pois estampa o sonho de progresso e a ameaça de

desenraizamento. Para um estrangeiro, formado na modernidade européia, na condição

de refugiado no país tropical, esta questão adquire proporções ainda maiores, uma vez

que, há um choque entre seu encantamento pelo novo e a sua necessidade de obter

referências para fixar raízes.

Em 1949, na já citada encomenda da STIG, Flieg fotografou o edifício do Banco

do Brasil sendo erguido (fig. 2.2.16). A partir da rua Líbero Badaró, ele enquadrou a

estrutura em madeira do arranha-céu no centro da imagem, aparecendo ao redor, as

construções mais antigas da avenida São João (à esquerda) e o Martinelli e o Banco do

Estado (à direita) fracionados. No primeiro plano, tapume de madeira coberto de

cartazes que anunciam o “Circo da Folia – Carnaval de 1949”.

Nesta imagem, convivem várias etapas do processo de modernização da cidade:

os altos edifícios já erguidos (Martinelli e Banco do Estado), o que estava sendo erguido

(Banco do Brasil), o que foi posto a baixo (tapumes) e os remanescentes (prédios na

avenida São João). No entanto, esta convivência não é mostrada de maneira

harmoniosa. Os espigões surgem por trás das construções mais antigas de maneira

descoordenada, o primeiro plano mostra uma área desolada, os prédios da São João

estão desfigurados por placas, letreiros e anúncios e uma fila de automóveis se forma.

138

BERMAN, Marshall. Op. cit. p. 280. 139

Ibid. p. 279.

Page 104: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

104

Há uma deterioração da cidade mercantilizada – bancos e escritórios comerciais erguem

edifícios que não respeitam a organização anterior do espaço urbano, a publicidade se

espalha desordenadamente pelas ruas e fachadas e construtoras demolem e levantam

paredes ao vau da valsa do capital. Tudo na cidade é efêmero, como lembra a fachada

do prédio comercial que aparece do lado direito da foto, na frente do Martinelli. Marcas

de letreiros arrancados misturam-se a anúncios de acumuladores e armas para caça, o

toldo fechado exibe o nome da loja “A Feira da Nações” e no suporte para letreiros o

indício da publicidade arrancada apressadamente “Leia e anuncie no...”.

Fig. 2.2.16

Edifício do Banco do Brasil em construção. São Paulo, 1949

Flieg realizou alguns trabalhos, por intermédio da agência P.A. Nascimento

Publicidade, para a Companhia Esmeralda de Imóveis, empresa especializada na

construção e comercialização de edifícios residenciais. Nos anos 50, houve um boom

imobiliário em São Paulo, com uma população que pulou de 2 milhões de habitantes em

Page 105: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

105

1950 para 3 milhões em 1957140

. Com a valorização excessiva dos terrenos aumentou a

procura por apartamentos de alto e médio padrão o que gerou uma grande

movimentação no mercado imobiliário. Grandes projetos arquitetônicos para prédios de

residência surgiram neste período, no centro e na valorizada região de Higienópolis,

com projetos saídos das pranchetas de arquitetos como Rino Levi e Vilanova Artigas. A

publicidade de venda de móveis se intensificou e se fez perceber na cidade, com a

proliferação de escritório de vendas, anúncios em outdoors, cartazes, material de

divulgação impresso etc.

Fig. 2.2.17

Divulgação do lançamento do Condomínio Vicente Amato Sobrinho, na Praça Carlos Gomes.

Encomenda da Cia. Esmeralda de Imóveis. São Paulo, 1954.

Em 1954, Flieg fez uma foto da fachada do canteiro de obras do Condomínio

Comendador Vicente Amato Sobrinho, na praça Carlos Gomes (fig. 2.2.17), coberta de

enormes placas de divulgação do empreendimento, com informação sobre os

apartamentos e contagem regressiva para o lançamento. Vale a pena notar certas pistas

que a foto fornece quanto à questão imobiliária em São Paulo na década de 1950, como

o fato do condomínio comportar apartamentos de 1, 2 e 3 dormitórios, numa proposta de

“democratização” dos conjuntos residenciais, tal qual o Copan de Oscar Niemayer, que

começou a ser erguido na mesma época. Também se destacava que o condomínio

oferecia “garagens individuais a parte” (sic), revelando a disseminação do automóvel

entre a classe média paulistana. O registro fotográfico da construção do prédio resume-

140

MORSE, Richard. Op. cit. p. 365.

Page 106: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

106

se a enquadrar publicidade do empreendimento, sem resquícios das obras de engenharia

à mostra. Esta imagem dá a síntese da modernidade ao trabalhar, de maneira articulada,

com alguns de seus principais símbolos: o canteiro de obras (que mesmo não visível

está latente na foto), o edifício (também não presente, mas anunciado), o espaço de

concentração de várias pessoas (o edifício com apartamentos com vários tipos de

plantas), a referência ao automóvel (no anúncio do edifício, como também os veículos

estacionados na rua) e a presença ostensiva da publicidade a comercializar o espaço

urbano.

Fig. 2.2.18

Operários nas obras na cobertura do Condomínio Vitória Régia. Encomenda da Cia. Esmeralda de

Imóveis. São Paulo, 1956.

Outro trabalho para a Cia. Esmeralda de Imóveis foi o das obras na cobertura do

edifício Vitória Régia, na rua Marquês de Itu, em 1956 (fig. 2.2.18). Para uma das fotos

que seriam publicadas no folder de divulgação do empreendimento, Flieg colocou no

centro de composição os operários trabalhando. Foi publicado um dos fotogramas que

mostrava os trabalhadores com a cidade ao fundo. No entanto, neste filme há uma outra

imagem mais expressiva, em que os mesmos homens empurram carrinhos com material

de construção. O posicionamento dos operários é bastante orquestrado. Um caminha

perpendicularmente ao outro, estando um de costas para o fotógrafo e o outro de perfil.

Flieg os fotografa de um nível mais baixo, elevando os trabalhadores como um

monumento com céu ao fundo. O próprio fotógrafo declarou que fez esta foto por “não

ter resistido à cena” pois ela aludia diretamente a imagens soviéticas de elevação da

classe trabalhadora. A imagem é como um lembrete que a modernidade só se realiza

Page 107: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

107

através do trabalho, a força potencial do laboro é que leva os homens às alturas de seus

arranha-céus, empilhando tijolos ou armando concreto. Como nas imagens de Lewis

Hine sobre a construção do Empire State Building (1930-1931), o homem é presença

fundamental no processo de modernização das cidades, não há máquina que substitua

sua força. A foto de Flieg é um elogio ao trabalho o que não implica num

posicionamento de crítica às relações de produção vigentes.

A rua e o ritmo da vida

Fig. 2.2.19

Visita do presidente norte-americano Dwight Eisenhower ao Brasil. São Paulo, fevereiro de 1960.

Flieg caracteriza-se por ser um fotógrafo de motivos estáticos e/ou arranjados. As

imagens que produziu sobre São Paulo, como é possível perceber pela amostra

apresentada até aqui, são em grande parte vistas da cidade e fotografias de arquitetura.

No entanto, existem alguns raros momentos em que ele experimenta uma fotografia

mais próxima da reportagem jornalística. Em fevereiro de 1960, o presidente norte-

americano Dwight Eisenhower visitou São Paulo. Flieg foi à avenida Paulista e

registrou o acontecimento em três imagens. Em uma delas, Eisenhower aparecem em

meio a militares, banda e a audiência popular que observam o estadista sob guarda-

chuvas pretos para proteger da garoa de São Paulo (fig. 2.2.19). Numa atitude típica de

Page 108: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

108

um repórter fotográfico, Flieg se infiltra no meio da ação, produzindo imagens com

muitos elementos e em que o assunto literalmente envolve o espectador.

Além deste rápido exercício fotojornalístico, existem duas pequenas reportagens

realizadas em 120 mm que mostram um vigoroso cronista urbano, são imagens que

apresentam agilidade e muita espontaneidade.

Em 1948, recebeu emprestada uma câmera Flexarette 6 x 6 cm para fazer um teste

com o equipamento. Então, ele saiu pela região da rua Augusta fotografando livremente,

o que lhe permitiu uma experiência bastante nova, justamente pelo

descomprometimento profissional -- não havia uma pressão de outras pessoas quanto ao

resultado das imagens – e pela agilidade que sentiu com o equipamento de médio

formato, com o qual ele nunca efetivamente trabalhou. Deste “passeio fotográfico”, nos

arredores da casa onde Flieg morava, resultou um filme de doze poses (fig. 2.2.20).

Dois garotos tomam sorvete na calçada. Nada de automóveis, altos prédios e

multidões. Uma bicicleta estacionada no meio-fio, uns poucos passantes ao fundo e uma

construção com loja e sobreloja, em que funciona um bar ou armazém. No meio da rua,

um homem puxa uma corda que começa do lado de fora do quadro da imagem. Não

sabemos o que está sendo puxado, só nos resta imaginar. Em outra foto, vem a resposta.

O mesmo homem – um operário – puxa o cabo que deve levantar um componente de

rede elétrica até o alto de um poste. Para esta operação, teve de podar as árvores, há

ramos espalhados pelo chão. Muitas linhas – dos cabos, da escada, do meio-fio --

compõem a imagem e, para reforçar este jogo, o enquadramento em diagonal.

Pai e filho recolhem objetos velhos na carroça estacionada. Na porta da sapataria,

o trabalhador negro engraxa o sapato do senhor de terno, enquanto o rapaz branco de

calças curtas se recosta para esperar. No outro quadrado, avista-se a roda gigante por

cima do muro, de um ângulo inusual, enquadrada de um jeito que ela não aparece por

inteiro. Mas, é dia, a roda está parada, um técnico ajusta algum mecanismo para que à

noite ela possa funcionar. Um simpático sobrado, fracionado pelo enquadramento, tem

jardim e mureta. Deve ser bom morar lá.

Reforma-se qualquer colchão” lê-se na vitrine inclinada vista por um ângulo tão

incomum. No Cinema Paulista, tem sorveteria, confeitaria e bar. Passam por ali a

mulher que olha para trás e a outra que vai chegando, garotos que voltam da escola e o

homem que para um pouco, enquanto lê o jornal. No balcão da sorveteria, o homem de

avental branco trabalha. O outro fotograma mostra que ele está mexendo o sorvete de

Page 109: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

109

creme ou chocolate. E uma tomada da rua Augusta, calminha, casas baixinhas, pequeno

comércio, mulheres conversam na calçada, crianças brincam, um único carro avança

pela via cheia de trilhos de bonde, iluminação pública e rede elétrica.

Fig. 2.2.20

Proximidades da rua Augusta. Cópia contato do filme produzido para testar a câmera Flexarette 6x6 cm. São Paulo,

1948.

Page 110: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

110

“Nesta reportagem, Flieg mostra uma cidade muito distante daquela da região do

Parque do Anhangabaú. Existem elementos que remetem à modernidade, como a

eletricidade e as estruturas metálicas da roda gigante, mas o que estas imagens buscam é

a humanização da cidade, pondo em cena o lado provinciano de São Paulo. A rua pacata

é celebrada como palco de uma vida autêntica. Esta série descortina uma cidade que não

aparecia com freqüência nos meios de comunicação da época, nem era comumente

identificada como símbolo de uma cidade ideal. Estas imagens remetem à fotografia de

rua, que valoriza a presença humana na cidade, praticada por fotógrafos como Robert

Doisneau, Brassaï, Willys Ronis e Izis.

Vinte anos depois, Flieg repete esta experiência dos instantâneos de rua, desta vez,

com a câmera Rolleicord, também formato 6 x 6 cm, com que ele e o irmão

presentearam o pai em 1953. As doze poses de 1968 foram feitas na região do começo

da avenida Prestes Maia, próximo ao estúdio de Flieg (fig. 2.2.21). Há uma

identificação do espaço. Olhando para cima, ele via o arranha-céu, composto na foto em

forma piramidal. Para um lado, a larga avenida, com carros e edifícios, para o outro,

automóveis estacionados, estrutura de metal do viaduto, entre tantos mais elementos.

Na faixa de pedestres, um sujeito espera e um outro também, até que, com o

guarda em cena, todo mundo já atravessou. Os carros estacionados são tão brilhantes

que refletem as árvores, as estruturas do viaduto e o homem debruçado. Tem “pipócas”

(sic) pulando sem parar dentro da máquina. Um casal passa de braços dados por uma

barraca de frutas, onde mulheres pechincham o preço, alheias ao barulho dos carros e

ônibus que passam logo atrás e ao espigão que se ergue ao fundo. Embaixo do viaduto

Santa Ifigênia, duas amigas (conhecidas, vizinhas?) conversam, nem ligando que a rua

da cidade moderna seja lugar só de passagem. Nos jornais e revistas, todos preocupados

-- será que a Marta Rocha vai mesmo perder o título?

Nesta série de 1968, a cidade é mostrada com todos os seus elementos de

modernidade – automóvel, trânsito, arranha-céu, transeuntes, máquinas e mídia. Mas,

como no filme de 1948, a rua também é festejada. Há uma grande vida correndo nas

vias da metrópole, há no fundo um certo provincianismo – da conversa na calçada, da

pechincha na feira – que a modernidade não apaga. Assim, as imagens identificam esta

convivência do metropolitano com o provinciano como fonte da vitalidade da cidade.

Page 111: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

111

Fig. 2.2.21

Proximidades da avenida Prestes Maia. Cópia contato do filme produzido com a câmera Rolleicord 6x6

cm. São Paulo, 1968.

As duas reportagens em 120 mm mostram um Flieg atípico do ponto de vista

formal. As cenas não são previamente preparadas em todos os detalhes, a câmera corre

solta em busca do flagrante. Há um grande naturalismo e, ao mesmo tempo, uma

visualidade muito renovada que abusa das composições diagonais e de ângulos não-

Page 112: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

112

convencionais, decepa os objetos retratados e brinca com reflexos e distorções. No

entanto, estas imagens têm uma poética que não é única, que aparece, de maneiras

diversas, em outros trabalhos. As duas séries fazem parte de um conjunto muito mais

amplo de fotos que expressam a relação do fotógrafo com a cidade e que captam o que

ele considera como a verdadeira essência paulistana.

Reminiscências

Argan destaca em seu estudo sobre o relacionamento entre arte e cidade que os

traços mais antigos de um centro urbano são usualmente aceitos como a sua identidade

histórica, enquanto, o moderno seria identificado como “não-histórico” ou “anti-

histórico”. Assim, a cidade moderna depende em parte da antiga, pois, somente em

contrate com o “histórico” é que a sua modernidade se legitima.

(...) a cidade moderna contrapõe-se à antiga

exatamente na medida em que reflete o conceito de uma cidade

que, não tendo uma instituição carismática, pode continuar a

mudar sem uma ordem providencial e que, portanto,

exatamente a sua mudança contínua é representativa, de modo

que o que resta do antigo é interpretado, sim, como

pertencente à história, mas a um ciclo histórico já

encerrado.141

Estas reminiscências do passado de São Paulo aparecem nos trabalhos de Flieg

de maneira muito contundente, é possível dizer que havia uma busca por esses

elementos, pois, eles dariam sentido à cidade. Em 1971, a Brown Boveri encomendou

as fotos para o calendário do ano seguinte que seria comemorativo do sesquicentenário

da Independência do Brasil. Flieg, então, escolheu como tema o Monumento do

Ipiranga, pois ele sempre “pasmava ao ouvir da maioria das pessoas a quem (...)

perguntava, a resposta: Aquele monumento onde se passa no caminho para Santos?

Não, nunca o vi de perto”.142

O Monumento do Ipiranga foi inaugurado em 7 de setembro de 1922. De autoria

de Ettore Ximenez, o projeto venceu o concurso internacional, promovido pelo Governo

141

ARGAN, Giulio Carlo. História da arte com história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.

75. 142

FLIEG, Hans Gunter. Texto introdutório. SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Estado da Cultura.

Comissão de Fotografia e Artes Aplicadas. Arquivo Fotográfico Hans Gunter Flieg. São Paulo,

1980.

Page 113: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

113

do Estado de São Paulo em 1919. Circulou na época a versão de que Ximenez havia

recebido a encomenda para um monumento ao czar russo. No entanto, com os

acontecimentos revolucionários de 1917 na Rússia, o italiano literalmente perdeu o seu

cliente. “Assim, pois, seu enorme esfôrço no projeto da biga romana e os dois cavalos

encontrou aplicação aqui em S. Paulo no monumento à Independência...”143

. Além de

alegorias, as representações de “vultos”, como José Bonifácio, Gonçalves Ledo e

Regente Feijó, e de episódios relacionados do processo do independência do Brasil,

como Revolução Pernambucana, martírio de Tiradentes, Conjuração Baiana e, é claro, a

própria cena da proclamação. O espaço interno do monumento foi adaptado para uma

cripta onde, em 1954, foram depositados os despojos de D. Leopoldina e, em 1972, os

de D. Pedro I.

A maioria das fotos que compõem o calendário mostra o monumento em

tomadas gerais, centrado em algum dos estágios que compõem a obra ou em detalhes

menores. Numa época em que a ditadura militar evocava o ufanismo verde-amarelo, os

temas históricos com apelo a personalismos foram valorizados no âmbito da produção

cultural de massa. Em 1972, por exemplo, foi lançado o filme Independência ou Morte,

de Carlos Coimbra, que rendeu uma das maiores bilheterias do cinema nacional na

década de 1970. Neste contexto de uma certa “euforia” patriótica, verifica-se que

algumas das imagens do Monumento do Ipiranga carregam no verniz épico.

Fig. 2.2.22

Monumento triunfal da Nação Brasileira, Ipiranga. Foto do calendário da Brown Boveri 1972. São Paulo,

1971.

143

AMARAL, Aracy. Artes Plásticas na Semana de 22. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 67.

Page 114: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

114

A foto que mostra a alegoria do “triunfo da Nação Brasileira” (fig. 2.2.22) em

silhueta com a pira acesa bem a frente vem bem neste “espírito” da época. O trabalho

com cores fortes bem contrastadas – azul do céu, amarelo do fogo e preto da silhueta – e

a tomada de baixo para cima dão força à composição e acentuam o tratamento

grandiloqüente. Estes expedientes se repetem em várias outras imagens que compõem o

calendário.

Outra imagem mostra este mesmo “grupo triunfal” durante as comemorações de

7 de setembro de 1971 (fig. 2.2.23), com os degraus da base do monumento tomados

pelo público. Com uma claridade natural distribuída por toda a imagem, a cena tem um

colorido vivo e alguns detalhes como os balões e bandeiras verde-amarelos no primeiro

plano ganham destaque. Na composição, o monumento acima do público ocupa cerca de

dois terços da imagem, reafirmando a imponência da construção. A pequena multidão

aos pés do conjunto de esculturas serve para revitalizar a imagem do marco histórico e

coloca a questão do monumento em interação no contexto urbano.

Fig. 2.2.23

Comemorações de 7 de setembro, Monumento do Ipiranga. Calendário da Brown Boveri 1972. São Paulo, 1971

Page 115: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

115

Entre as imagens não publicadas no calendário, há uma foto que estabelece uma

relação do monumento com a vida da cidade – as festividades, visitantes, movimento de

veículo, comércio etc.--, não são mais os conjuntos escultóricos isolados

, estáticos e sem presença humana. Esta imagem é um exemplo de como “a

memória histórica e a trama visual das cidades modernas”144

, num processo em que o

marco urbano é enquadrado dentro de uma dinâmica, ganha assim novos sentidos.

Néstor Canclini ressalta que os monumentos estão constantemente adquirindo

significados no contexto da vida moderna. Se o processo de modernização buscou

organizar os elementos urbanos em lugares específicos e atribuir-lhes funções

particulares, a própria dinâmica citadina transgrediu esta ordem, uma vez que “no

movimento da cidade, os interesses mercantis cruzam-se com os históricos, estéticos e

comunicacionais”145

. Assim, a memória interage com a mudança e os monumentos em

espaço aberto estão em constante renovação, pois “mesmo que os escultores resistam a

abandonar as fórmulas do realismo clássico ao representar o passado, a fazer heróis

de manga curta, os monumentos se atualizam por meio das ‘irreverências’ dos

cidadãos”.146

Em São Paulo, esta carga de irreverência que os habitantes das cidades latino-

americanas destilam no confronto com a história chamou a atenção Lévi-Strauss durante

sua estada.

No meio de uma dessas ruas quase rurais, (...) a

colônia italiana mandara erguer uma estátua de Augusto. Era

uma reprodução de bronze, em tamanho natural, de um

mármore antigo, medíocre, para falar a verdade, mas que

merecia algum respeito numa cidade onde nada mais evocava

a história anterior ao século passado. Contudo, a população

de São Paulo decidiu que o braço levantado para a saudação

romana significava: “É aqui que mora Carlito”. Carlos

Pereira de Sousa, ex-ministro e político influente, possuía na

direção indicada pela mão imperial uma dessas vastas casas

térreas (...).147

É assim curioso observar que Flieg, no começo da década de 1970, ou seja,

vivendo há cerca de 40 anos no Brasil, incorpora parte deste “espírito irreverente” ao se

144

CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São

Paulo: Edusp, 1997. p. 300. 145

Ibid. p. 301. 146

Ibid.

147

LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. p. 98.

Page 116: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

116

deliciar em identificar nas esculturas do monumento um boi moldado com a

constituição física de uma vaca ou, na cena da aclamação popular a D. Pedro I, um

“trombadinha” em ação nos bolsos de entusiasmados compatriotas que saúdam o

imperador (fig. 2.2.24). Quanto à distribuição das figuras do “grupo triunfal”, sempre se

lembra do comentário sarcástico de um antigo conhecido “pra variar, deixaram o índio

para trás”.

Fig. 2.2.24

A cidade antiga pode deixar suas marcas na moderna não somente através de seus

marcos históricos, mas também através de certas dinâmicas que sobrevivem dentro de

certos espaços ou núcleos e que rompem com o ritmo da modernidade. Nos primeiros

registros de Flieg em São Paulo, em 1940, com os quais ele fez a colagem para

presentear o pai, há imagens que remetem a uma vida comunitária em que um vizinho

usa o telefone na casa do outro, as pessoas ficam à janela ou ao portão vestindo pijamas.

Este modo de vida, dos arredores da casa da rua Pedro Taques, rompiam, aos olhos de

Flieg, com aquela pulsão moderna à velocidade e à individualidade.

Nada poderia parecer mais anacrônico no contexto da modernidade do que um

vendedor de laranjas que ia de porta em porta com sua carroça (fig. 2.2.25). A laranja,

produto agrícola, remete ao campo que é o antagônico à cidade; de porta em porta não

segue a lógica do comércio de massa que começa a ser implantado no Brasil na década

de 1940 e a carroça, à tração animal, é a antítese do símbolo da velocidade, o

automóvel. Este lapso espacial onde remanesce um modo de vida que não segue a

dinâmica moderna também aparece na reportagem com equipamento 6 x 6 cm realizado

em 1948 (fig. 2.2.20).

Há também na nova cidade a permanência de elementos naturais. No centro da

cidade a presença das palmeiras imperiais na praça Ramos de Azevedo remetem ao

Page 117: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

117

tropicalismo que permanece como elemento de identidade do espaço (figs. 2.2.4 e

2.2.5). Em 1940, Flieg fotografou os jardins do Museu do Ipiranga (Museu Paulista) a

partir de umas das sacadas do edifício do século XIX (fig. 2.2.26). Durante a visita do

tio que vivia na Inglaterra, em 1958, Flieg fotografou o passeio da família ao orquidário.

Na foto, aparecem os pais e o tio de Flieg observando espécimes da flor em um viveiro,

com uma área gramada e com árvores ao fundo (fig. 2.2.27). Outra foto que podemos

encaixar neste grupo é a dos filhotes de onça pintada no zoológico de São Paulo (fig.

2.2.28). Esta imagem, Flieg produziu em cores, em 1963, para no trabalho para o

calendário da Brown Boveri do ano de 1964.

Fig. 2.2.25 Vendedor de laranjas na rua Pedro Taques. São Paulo, 1940.

Fig. 2.2.28

Page 118: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

118

Fig. 2.2.26 Fig.2.2.27

Jardim do Museu Paulista, Ipiranga. São Paulo, 1940; Família Flieg em passeio ao orquidário. São Paulo, 1958;

Filhotes de onça pintada no zoológico. São Paulo, 1963.

Estas fotos mostram como que a natureza associada à cidade de São Paulo é

sempre mostrada por Flieg em sua forma domesticada. Mesmo quando se quer criar a

idéia de um ambiente selvagem como na foto das onças, não identificamos nos animais

retratados traços de hostilidade. São filhotes, ou seja, representam muito mais a

docilidade do que uma ameaça, eles não estão encarando a câmera -- sua potencial

vítima – mas olham tranqüilamente para a esquerda. Os filhotes estão posicionados em

tal harmonia que parecem em pose montada, o que também reforça a idéia de

dominação do homem sobre as feras. A imagem que circulou nos calendários da

multinacional teria a função de mostrar para um público internacional um elemento do

exotismo tropical (as onças) que sobrevive na modernidade brasileira dentro de certas

barreiras (o zoológico) e códigos (a pose) de forma que não ameace a civilidade.

Os jardins do Ipiranga148

, com inspiração nos jardins barrocos de Versalhes,

representam o ápice do modelo de espaço público ligado a um modelo anterior de

cidade, mas que também não ameaça o processo de modernização, pois, funciona como

área de lazer um pouco afastada do centro. As pessoas vão de automóvel até o parque

para passar o domingo, dia de descanso, existe, assim, uma interação entre a natureza

ordenada, conforme códigos do século XVIII e a dinâmica da vida moderna.

A outra foto do orquidário seria um souvenir de viagem para o tio e confronta os

europeus, dois estabelecidos na terra tropical e um turista recém-chegado, com a

exuberância da botânica local representada pelas orquídeas. As plantas estão em

148

O prédio do Museu, projeto de Tommaso Gaudenzio Bezzi, em estilo neo-renascentista, foi

inaugurado em 1895. Os jardins foram projetados mais tarde, em 1909, pelo paisagista Arsênio

Puttemans.

Page 119: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

119

viveiros, a grama do fundo está bem aparada, as árvores são plantadas, mais uma vez a

natureza está absolutamente controlada pelo homem. Assim, qualquer pessoa não-nativa

poderia circular neste espaço e ter contato com a flora tropical em um ambiente muito

amistoso.

As reminiscências de alguma idéia de passado na cidade moderna das imagens

de Flieg expressam que a latência destes elementos sobrevive aos arranha-céus. A

convivência dos dois (ou mais) tempos não parece dilacerar o ideal de modernidade,

pelo contrário, daria até uma certa vitalidade fundamental ao “espírito renovador” da

modernização.

Muitos tempos

O trabalho que Flieg realizou em 1939 para a STIG consistia basicamente em

fotografia de arquitetura. Um dos prédios a ser fotografado era o edifício Mara, na rua

Brigadeiro Tobias, entre a Senador Queirós e a Beneficência Portuguesa. Flieg primeiro

o fotografou a partir da própria Brigadeiro Tobias, não havia espaço para o fotógrafo se

posicionar, então para evitar distorções acentuadas de grande-angulares, optou por

compor a imagem com linhas diagonais, o que seria uma solução adequada às formas

atualizadas do prédio. No entanto, Flieg não ficou satisfeito com o resultado e achou

que deveria compor uma imagem em uma perspectiva mais convencional. Então, ele se

dirigiu ao Vale do Anhangabaú e a partir de um terreno de propriedade da companhia

Antarctica, onde funcionava um depósito de gelo, fotografou o edifício no centro de um

contexto mais amplo.

A imagem (fig. 2.2.29) traz ao centro e ao fundo com destaque o edifício branco

de formas modernas, ao redor dele, levitam alguns casarões mais antigos, com seus

telhados escuros, paredes manchadas pelo tempo e que, sem dúvida, remetem ao caráter

histórico que a cidade não deixava apagar. No primeiro plano, transparece o terreno

ocupado por automóveis estacionados e também uma casa onde se vê o detalhe de uma

lira, remetendo possivelmente a um clube alemão de música. Esta idéia de contrastes, tal

qual aparece também nas imagens de Lévi-Strauss149

, de um símbolo moderno

emergindo de paisagem de outro(s) ciclo(s) histórico(s) é certamente constante nas

fotografias de Flieg.

149

Segundo a análise de Annateresa Fabris, nas imagens do antropólogo, a definição de uma cidade em

decrepitude pontilhada por ícones de modernidade. Por exemplo, o edifício Martinelli adquire uma

função totêmica em meio a uma cidade que se desfaz. FABRIS, Annateresa. Op. cit. pp. 81-95.

Page 120: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

120

Fig. 2.2.29

Ainda hoje, Flieg diz gostar muito desta imagem por reunir uma certa diversidade

- “foto que parece unir várias épocas e vários interesses”– um possível clube alemão

de música, automóveis, palmeiras imperiais, paredes com pintura descascada, casarões,

edifício em obras, arranha-céus e arquitetura moderna. Esta confraternização entre

tempos e culturas parece ser a chave da visão de Flieg sobre a cidade.

Em 1968, Flieg faz uma vista da cidade a partir da zona norte (fig. 2.2.30). A foto

é composta em vários planos: primeiro, um casebre e um grupo de pessoas que assistem

a uma partida de futebol de várzea que acontece no plano seguinte, depois, as pistas de

pouso e aterrissagem do Campo de Marte, ao fundo, o mar de arranha-céus do centro

concentrados numa fina faixa, acima, o céu formando uma larga linha com a linha do

horizonte baixa. A imagem trabalha os planos como unidades com “luz própria e conta

uma história, traz uma realidade”150

. Além da luz, há um jogo de inversão de escalas –

o casebre adquire proporções enormes perto dos diminutos edifícios ao fundo.

150

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 23 mai. 2002.

Page 121: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

121

Fig. 2.2.30

As várias histórias contadas em cada plano da foto remetem a tempos e a ritmos

diferentes. Na várzea, a vivência do presente, que na verdade é um passado expandido,

que, naquela área não-construída, de terra batida, encontrou espaço para sobreviver na

tranqüilidade de quem tira a tarde para ficar com os amigos ali, de pé, assistindo a uma

partida. O joguinho de várzea parece um universo à parte da grande cidade que, na

composição da imagem, fica resumida a uma estreita faixa de prédios, não apresentando

sua fisionomia dominadora. A cidade é quase uma miragem quando observada daquele

descampado.

Podemos fazer uma comparação com a panorâmica que Flieg produziu em 1950 a

partir do edifício do Banco do Estado (fig. 2.2.2). A partir do núcleo da cidade moderna

– inclusive de cima do edifício tratado em muitos trabalhos de Flieg como o principal

marco da modernidade paulistana – avista-se as áreas periféricas da cidade, sem

construções, que somem na estreita faixa de céu. Nesta imagem, cria-se uma linha de

tensão imaginária entre a nova cidade em expansão e a que ainda vive sob a égide do

passado – a falta de civilização – mas com uma perspectiva de futuro – virar uma

extensão da grande cidade.

Na vista a partir do campinho de várzea, olha-se no sentido inverso da periferia

para o centro da cidade, é o espaço remanescente indo no sentido do bloco de prédios,

novamente fica estabelecida uma linha de tensão. Observando estas duas panorâmicas,

podemos indagar quem está indo no sentido de quem, a cidade moderna “engole” a

Page 122: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

122

periférica ou o modelo de vida que esta última representa se infiltra na grande cidade e

corrói o seu projeto de modernidade por dentro? Ou ainda é possível uma eterna

convivência harmônica?

Das tantas imagens que Flieg produziu tendo como tema a cidade de São Paulo, a

questão do resgate de tempos me parece fundamental. O rapaz europeu que chegou na

cidade de feições americanas buscou entender a lógica do espaço regida pelo processo

de modernização periférica. Sua própria adaptação à cidade dependia deste

entendimento. Flieg consumiu a modernidade paulistana, ora encantando-se com ela,

ora compadecendo-se de seu caráter destrutivo. E, acima de tudo, vislumbrou um ideal

de cidade que andaria no compasso da modernização, sem comprimir os outros muitos

tempos que davam à capital paulista uma vitalidade única.

2.3. As viagens em busca de um país

Em 1956, Flieg foi a uma região próxima à Cotia, cidade da Grande São Paulo,

para realizar algumas fotos para um anúncio publicitário da Wyllis-Overland. Uma

estrada barrenta em meio a uma mata seria um cenário ideal para mostrar um veículo

projetado para guerras que prometia rodar em qualquer tipo de terreno e nas condições

mais adversas. Feita a foto, era hora de levar o Jeep embora, mas o automóvel atolou no

barreiro. Depois de muitas tentativas, só houve uma solução: “manda vir o carro de

boi”. A cena insólita não passou desapercebida pelas lentes do nosso fotógrafo (fig.

2.3.1).

Esta imagem expõe o dilema da modernidade que metafórica e literalmente – o

automóvel indo a reboque do carro de boi – se impõe no cenário tropical às vistas de

Flieg. Talvez possa ser até apresentada como uma das imagens-síntese da visão que o

fotógrafo construiu do Brasil. Estes contrastes antigo/novo aguçam muito a percepção

de que o fotógrafo tem do mundo moderno, pois permeiam grande parte de sua obra e

aparecem, inclusive, na produção de Flieg nos tempos de aprendiz em Berlim, vide a

foto em que contrapõe a carruagem ao automóvel (fig. 1.1.6).

Page 123: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

123

Fig. 2.3.1

Carro de boi rebocando Jeep atolado. Foto realizada por ocasião da produção de imagem para anúncio

publicitário da Wyllis-Overland. Cotia, 1956.

Assim, Flieg carrega uma profunda curiosidade histórica, a busca das origens do

objeto fotografado é uma função vital em seu trabalho. Isto provavelmente foi reforçado

pela condição de exilado, uma vez que o processo de adaptação passa pela vontade de

apreender o funcionamento da nova terra, o que obrigatoriamente pressupõe um olhar

histórico. Se na cidade de São Paulo, Flieg identificava as reminiscências do passado

urbano, foi nas viagens pelo país que ele pode mergulhar mais fundo nas origens do

Brasil.

Viajar, de forma geral, é um ato que remete a uma dimensão temporal. Como

afirma o filósofo Sérgio Cardoso, “as viagens, na verdade, nunca transladam o viajante

a um meio completamente estranho, nunca o atiram em plena e adversa exterioridade

(...); mas, marcadas pela interioridade do tempo, alteram e diferenciam seu próprio

mundo, tornam-no estranho para si mesmo”. A sensação de estranhamento e distância,

desta forma, abriria o seu mundo, na medida em que “experimenta a vertigem da

desestruturação (...) que lhe impõem as alterações do tempo”. Ele conclui que a

sensação de estranhamento das viagens não se relaciona com o outro, e sim ao próprio

viajante, pois a situação “afasta-o de si mesmo, deflagra-se sempre na extensão

circunscrita de sua frágil familiaridade, no interior dele próprio”151

. Assim, a viagem

abriria uma ponte para o entendimento do próprio sujeito e disto

151

CARDOSO, Sérgio. O olhar viajante (do etnólogo). In: NOVAES, Adauto (org.). O olhar. São Paulo:

Companhia das Letras, 1988. p. 359.

surge toda uma mitologia em torno do ato de viajar, que é sem dúvida um dos grandes

temas das literatura, da pintura e do cinema ao longo da história ocidental.

Page 124: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

124

Desde meados do século XIX, a fotografia transformou-se numa das práticas essenciais

no contexto das viagens, pois o próprio ato de “viajar torna-se estratégia para o

acúmulo de fotografias”152

. Muitos fotógrafos oitocentistas dedicaram-se a viajar pelo

mundo, produzindo imagens que não apenas serviam de souvenirs aos turistas de classe

média como também “traziam o mundo para as casas daqueles impossibilitados de

fazer tais viagens”153

. O principal meio de circulação eram os álbuns de vistas

pitorescas ou as imagens avulsas, em que as fotografias eram transpostas para gravuras,

já que a impressão direta só foi possível a partir de 1880, com o desenvolvimento do

processo do meio-tom. Depois, veio a onda dos cartões-postais, as revistas e seções

sobre turismo, material promocional e toda uma sorte de publicações e usos que

incrementaram a demanda por imagens de viagem ao longo do século XX.

É também de se ressaltar que boa parte dos fotógrafos que se destacaram ao longo

da história da fotografia foram grandes viajantes. Fotojornalistas, cronistas urbanos,

projetos de documentação de temas específicos e tantas outras categorias trabalhos em

fotografia, encomendados ou empreitada pessoal, propiciaram uma intensa

movimentação de fotógrafos pelo mundo. De posse de uma câmera, os indivíduos têm a

sensação de dominar o espaço estranho, Susan Sontag já disse que “a fotografia, ao

mesmo tempo em que nos atribui a posse imaginária de um passado irreal, ajuda-nos

também a dominar um espaço no qual nos sentimos inseguros”.154

As viagens de Flieg podem ser identificadas em três tipos: trabalho (geralmente

para produção de reportagens industriais ou calendários), férias ou lazer (nestas ocasiões

produzia fotos de família e dos locais em que visitava, mas descompromissadamente,

sem pauta ou qualquer planejamento prévio) e de motivação pessoal (não estavam

vinculadas a uma encomenda, eram realizadas por interesse próprio do fotógrafo, mas

tinham algum planejamento, no mínimo, alguma intenção previamente identificada).

Mas como ressalta o próprio Flieg, mesmo as viagens de trabalho “nunca eram

puramente de trabalho, sempre teve alguma extensão e, quase sempre, são as extensões

mais interessantes do que o próprio serviço”155

.

O principal meio de transporte usado por Flieg em suas viagens foi o automóvel,

que era o mais prático quando se tinha que carregar câmeras, tripé, objetivas,

152

SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Arbor, 1981. p. 10. 153

ROSENBLUM, Naomi. A world history of photography. New York: Abbeville, 1997. p. 95. 154

SONTAG, Susan. Op. cit. p. 11 155

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 5 mar. 2002.

Page 125: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

125

iluminação e toda uma gama de acessórios e materiais. Logo, as estradas fizeram parte

do universo das viagens do fotógrafo e mereceram registro. Em 1958, durante a visita de

um tio, a família Flieg fez um passeio ao litoral e um dos cenários que foram

fotografados para compor o álbum de recordação de viagem foi justamente uma grande

tomada da Serra do Mar com a rodovia dos Imigrantes. A imagem dá grande destaque

para a topografia da serra, coberta pelo manto de vegetação densa, as curvas sinuosas da

estrada acompanhando as encostas e, ao centro, com maior destaque, o imponente

viaduto. A foto destaca as dimensões da serra o que valoriza a grande obra de

engenharia, mais uma vez o homem dominando a natureza selvagem. E justamente é a

estrada que liga o litoral com o interior do país, permitindo o rápido acesso a quem

chega ao Brasil por mar para a capital paulista.

Em 1968, Flieg recebeu a encomenda de fotografar a recém-construída rodovia

Castelo Branco para material de divulgação (fig. 2.3.2). Uma bela tomada aérea em que

a perspectiva não é chapada, pelo contrário, ele trabalha com uma grande profundidade.

Então se cria o efeito da estrada cortando a foto que se afunila até se perder no infinito,

nas laterais pequenos morros em série que dão uma certa cadência à foto com a idéia de

repetição. Esta tomada em que a estrada se perde de vista reforça o gigantismo da obra

viária, abre o horizonte para o desbravamento do território pelo processo civilizatório. O

espaço apresentado na imagem é muito ordenado, a composição é toda equilibrada, no

enquadramento, na disposição dos elementos e no uso das cores, que dão um tom de

sobriedade, sem perder o colorido. A ordenação espacial, a ausência de automóveis, a

linhas diagonais com forte peso compositivo e a paisagem cadenciada criam um

cenário quase irreal, o que também acentua o caráter civilizador da obra, pois quanto

menos familiaridade o espectador tiver com o ambiente apresentado, maior será o

impacto do poder desbravador da engenharia moderna.

Se estes caminhos abertos pela modernidade conduziriam Flieg para a história do

Brasil, outras passagens mais arcaicas também permitiam o acesso a certo tesouros do

patrimônio nacional. Em 1967, Flieg fez companhia à artista Diana Danon, que iria

realizar desenhos arquitetônicos da Capela de Santo Antônio, em São Roque. A capela,

descoberta por Mário de Andrade, faz parte do sítio Santo Antônio de 1681, que fora

propriedade de Fernão Paes de Barros. Mário de Andrade comprou o sítio no final de

1944 e assinou um documento pelo qual a propriedade com capela e casa-grande

Page 126: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

126

passaria ao Patrimônio Histórico do Estado de São Paulo, após a sua morte, o que

aconteceu apenas alguns meses depois da compra.

Rodovia Castelo Branco, 1968.

Fig. 2.3.2

Flieg faz uma seqüência de quatro fotos da chegada ao sítio. Na primeira (fig.

2.3.3), aparece um trecho da estradinha de terra no primeiro plano, cercada por

vegetação arbustiva, mais atrás, num nível mais baixo que o da estrada, avista-se a

capela e a casa-grande pela lateral, ao fundo uma parede de montanhas e, ocupando

metade da imagem, um céu contrastado e com nuvens. Na imagem seguinte (fig. 2.3.4),

a câmera está mais próxima das construções e quase no mesmo nível, ainda tem estrada

no primeiro plano, montanhas ao fundo e céu com nuvens. Na terceira foto (fig. 2.3.5),

nova aproximação, com posicionamento horizontal de câmera – as anteriores são

verticais –, pois a maior proximidade com a capela e a casa exigem este formato para

uma melhor composição. O caminho de terra desaparece e fica em primeiro plano um

pouco da vegetação rasteira com arbustos, a cerca que fica bem visível, os prédios, as

montanhas ao fundo. Há céu, mas com a linha do horizonte bem mais alta. A última foto

da seqüência (fig. 2.3.6) é uma tomada lateral da capela em que transparece apenas um

pouco da montanha e do céu ao fundo.

Page 127: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

127

Fig. 2.3.3 Fig. 2.3.4

Fig. 2.3.5 Fig. 2.3.6

Sítio Santo Antônio. São Roque, 1967.

Esta pequena série trabalha a noção de movimento de maneira cinematográfica,

cada foto é composta quase como um fotograma de cinema. Enxergamos a

movimentação e temos a sensação de velocidade, ou seja, de tempo. A aproximação da

capela é um passeio, em que o visitante se desloca lentamente e vai parando no caminho

para contemplar a paisagem . É a recriação em imagens de um ritmo de vida que remete

ao campo e a outros tempos. Também vale ressaltar que, ao analisar cada imagem

individualmente e depois contrapô-las às demais, noto uma mudança de campo de

interesse conforme a distância e o enquadramento do objeto focado. Na primeira, o

elemento que mais se destaca é a topografia, na segunda, a vegetação, na terceira, a

ordenação do espaço rural e, na última, a arquitetura. Ou seja, envolve o

reconhecimento da geografia, da natureza, da ocupação humana e de aspectos culturais.

Pensando que esta seqüência está incluída dentro de uma série maior, que

podemos chamar de um ensaio, as quatro fotos iniciais não só assimilam a noção de

movimento do cinema, como um pouco da própria estrutura narrativa. Elas são como os

primeiros minutos de um filme, quando é feita a ambientação e apresentação do que vai

Page 128: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

128

se desenvolver depois. As três primeiras fotos ambientam e a quarta imagem apresenta o

que vai ser efetivamente o foco das outras fotos do ensaio, a arquitetura.156

As estradas e caminhos têm um tratamento simbólico nos trabalhos de Flieg, são a

expressão da possibilidade de acesso a um novo universo, que deve ser contemplado,

dissecado, analisado e assimilado pelo fotógrafo. A simbologia da liberdade de

locomoção tem significado especial para um exilado pois é justamente o que lhe fora

amputado em sua terra natal. Vale lembrar ainda que nos primeiros anos de Flieg no

Brasil, durante a guerra, este direito não lhe tinha sido assegurado plenamente. Os

imigrantes alemães que viviam no Brasil na primeira metade da década de 1940 foram

classificados pelo governo de Vargas como “súditos do Eixo” e com isso estavam sob a

mira das autoridades policiais. Entre as restrições que sofriam, estavam a proibição de

usar o idioma alemão em espaços públicos e a necessidade de autorização especial para

se locomover dentro do território brasileiro.

Flieg teve de solicitar salvo-conduto para uma viagem realizada em 1943 ou 1944

para visitar a Fazenda Itaúna, de propriedade dos Niccolini, localizada entre Descalvado

e São Carlos do Pinhal. Esta viagem foi o primeiro contato de Flieg com o interior do

Brasil, o próprio fotógrafo a descreve como “uma grande experiência, foi uma coisa

completamente nova, era lavoura, eram tipos, caboclos e paisagens, é muito bonito

isso”157

. Os passeios pela fazenda, o cenário rural, o convívio com as personagens

locais, tudo isso teve um caráter de descoberta quanto aos costumes e modos de vida,

mas me parece que a relação de Flieg com este cenário se deu essencialmente em

termos estéticos.158

Em 1963, Flieg foi chamado por Paul Hubacher, diretor da Brown Boveri,

multinacional suíça que produzia equipamentos elétricos, que informou que os

calendários promocionais da empresa começariam a ser feitos no Brasil e convidou o

fotógrafo para realizar o trabalho. Flieg já atendia a Brown Boveri há cerca de oito anos

em fotografia técnica, mas o convite lhe surpreendeu.

Para mim foi uma chance incrível, foi uma coisa

completamente nova, porque seria um trabalho de escolha

minha, de uma liberdade muito grande minha e eu confesso

que, eu aceitei porque lógico que tinha de aceitar, mas não era

156

Outras imagens desta série sobre a capela do Sítio Santo Antônio são apresentadas e analisadas no

capítulo 3, no item que trata de fotografia de arquitetura. 157

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 19 fev. 2002. 158

Na terceira parte deste capítulo, serão mostrados alguns dos retratos de tipos que Flieg executou

durante a viagem à Fazenda Itaúna.

Page 129: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

129

muito fácil, eu não tinha exercido essa liberdade. Meu

trabalho tinha sido, de uma certa forma, eu diria, um pouco

reprodutivo, quer dizer reproduzir um objeto ou uma pessoa...

no caso de portrait é um pouco diferente, é interpretativo, mas

não é uma escolha, se há uma pessoa, é essa pessoa que tem de

ser fotografada, você tem de fazer disso o que você consegue

fazer com seus conhecimentos, com a sua forma de tratar etc.

Fotos de propaganda vinham com layout em quase todos os

casos. Foto de escultura é interpretativo. Mas, a escolha do

objeto, a escolha do tema era algo completamente novo. Isso

foi uma aventura e uma abertura muito grande para mim.159

A fala de Flieg revela uma certa hesitação inicial quanto ao trabalho pela sua

natureza diversa de tudo o que ele havia realizado antes. Apesar de fazer referência ao

caráter “reprodutivo” ou “interpretativo” das imagens que produzia, o ponto principal

que distinguia esse projeto dos demais era a possibilidade de ele próprio se pautar.

Destas encomendas para a Brown Boveri, sairia um material muito rico e que

demonstram a constante busca de Flieg pelo entendimento do país.

A produção de calendários promocionais foi e ainda é muito usual, eles funcionam

como brinde de fim de ano com o qual as empresas presenteiam clientes e fornecedores,

ao mesmo tempo que reforçam a marca através de um material, geralmente, de alto

padrão gráfico. Desde a década de 1940, pelo menos, a fotografia se tornou a principal

linguagem empregada neste tipo de material e, assim, muitos grandes fotógrafos no

Brasil e no exterior se empenharam na criação de imagens para as folhinhas. Na

verdade, Flieg já havia feito um calendário para Pirelli, em 1949, este todo com

temática industrial160

. Mas, os trabalhos para a Brown Boveri tinham uma amplitude

maior do ponto de vista de um projeto pessoal de Flieg, que realmente viriam a abrir

seus horizontes de fotógrafo e de observador do mundo.

Para o calendário de 1964, ele propôs que as imagens fossem concentradas em

tomadas de São Paulo e arredores da cidade. O material era destinado a público

brasileiro e estrangeiro, então a proposta de Flieg era “mostrar um pouco esse lado

típico, exótico (...) aquilo, que ainda depois de 23 anos, achava típico”161

. Ele coloca

em pauta a questão do exotismo e o caracteriza como um elemento tipicamente

brasileiro aos olhos de um europeu. Um dia Flieg saiu do escritório da Brown Boveri

para começar a buscar motivos para fotografar. Foi em direção a Osasco e pegou uma

estradinha estreita, em certo momento, viu um eucalipto com folhas em várias

159

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 5 mar. 2002. 160

As imagens que compõem o calendário da Pirelli serão tratadas no capítulo 3, na parte sobre

fotografia industrial.

Page 130: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

130

tonalidades contrastando com o céu azul do dia ensolarado. A cena despertou uma

percepção do fotógrafo por se colocar aos seus olhos como um pequeno espetáculo.

Então, fotografou as folhagens e esta imagem acabou sendo utilizada na capa do

calendário (fig. 2.3.7), pois, na visão de Flieg, a foto era uma indicação, um índice do

que viria nas outras páginas.

Fig. 2.3.7 Folhas de eucalipto. Foto da capa do calendário da Brown Boveri para 1964. Osasco, 1963.

Fotografou prédios na avenida Ipiranga, composição com objetos de artesanato de

várias partes do país, o rio Tietê com construções em Bom Jesus do Pirapora, espécime

de borboleta no Museu de Zoologia, casario colonial em Santana do Parnaíba, filhotes

de onça no zoológico, paisagem do rio Tietê com nascer do sol, pedra de ágata, caminho

de terra com passantes em Paraibuna, tapeçaria das Índias, paisagem com flores, lago e

cisne, hall da Fundação Armando Álvares Penteado com réplica de profeta de

Aleijadinho e vitrais modernos.

Todas estas imagens compunham um conjunto que funcionava como um

mostruário de assuntos ou interesses sobre o Brasil – natureza, história, modernidade,

arte -- em que a relação que se estabelece entre o espectador e o cenário retratado é uma

espécie de deleite visual. O elemento mais vibrantemente utilizado e que dá uma certa

unidade estética a este conjunto são as cores. O colorido tropical sempre foi uma das

fontes do fascínio visual aos olhares europeus. Na foto de Santana do Parnaíba (fig.

2.3.8), por exemplo, o casarão amarelo tem janelas e portas verdes, flores de um

161

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 5 mar. 2002.

Page 131: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

131

vermelho encarnado no primeiro plano, o céu bem azul e a mata verde que transparece

ao fundo.

Fig. 2.3.8

Casario colonial. Foto para o calendário da Brown Boveri para 1964. Santana do Parnaíba, 1963.

O próprio Flieg declarou sua intenção em fotografar o “exótico” para este

calendário e, no exotismo, o indivíduo não percebe a alteridade, apenas desfruta da

experiência estética que culturas e cenários diversos lhe propiciam. Flieg carregava

ainda esta visão bastante eurocêntrica sobre o país tropical, mas já modificada pela

convivência. No entanto, ao pensar as imagens para compor o calendário, ele

deliberadamente buscou seguir um padrão eurocentrista de visualidade para responder a

uma demanda específica. A Brown Boveri foi agraciada na categoria “turístico” com o

Prêmio Ampulheta, concurso promovido pela Biblioteca Municipal, que avaliava a

qualidade gráfica, propostas e tratamento estético de calendário impressos.

Rio de Janeiro

No ano seguinte, os diretores da Brown Boveri pediram que seguisse a mesma

linha do primeiro calendário, mas que cobrisse “arte moderna e mulher”. Assim, Flieg

incluiu duas obras de arte, uma pequena escultura que ganhara de Bruno Giorgi e que

levou até o Pico do Jaraguá para fotografar e o quadro Nossa Senhora Bonita, de

Cássio M’Boy. Fotografou um pé de mamonas na Serra da Cantareira e, num passeio

em um Jeep da Brown Boveri avistou um bonito campo todo florido próximo a Barueri

onde fotografou uma flor de ipê amarelo que foi publicada no calendário. Flieg conta

Page 132: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

132

que próximo a este campo havia uma pequena floresta onde encontrou restos de um

ritual de umbanda -- alimentos, garrafa de cachaça, velas coloridas, árvores levemente

inclinadas com troncos queimados. Aquilo foi uma grande surpresa – “era algo

totalmente novo para mim” 162

– fez fotos do local, mas não foram utilizadas.

Para a realização das outras fotos, Flieg partiu para o Rio de Janeiro. Não era a

primeira vez que o fotógrafo viajava para a ex-capital federal. Em 1950, em férias,

esteve durante três semanas na cidade, quando fez fotos no Jardim Botânico, na praia e

de detalhes arquitetônicos, pois chamaram muita atenção os contrastes entre as

construções novas e antigas. Nas duas viagens nota-se a relação intensa de

contemplação que estabeleceu com a paisagem natural.

Na estada para a produção do calendário, saiu, certa vez, de madrugada do hotel

para fazer um nascer do sol a partir da Vista Chinesa. Quando chegou lá, olhou ao redor

e estava quase tudo coberto de nuvens, mas de uma determinada posição via o

Corcovado e fotografou com um céu bem alaranjado, silhuetas vegetação e uma bruma

espessa passando entre os morros (Fig. 2.3.9) . Flieg descreve este episódio na Vista

Chinesa como “um dos momentos mais pitorescos” que viveu e, sem dúvida, há uma

referência muito pictórica nesta imagem, suas brumas e céu em cores remetem à

visualidade da pintura romântica. Esta imagem foi publicada na capa do calendário de

1965.

Fig. 2.3.9 Fig. 2.3.10

Vistas do Corcovado ao nascer do sol, a partir da Vista Chinesa, com Pão de Açúcar, ao anoitecer, a partir

da Estrada do Sumaré. Fotos do calendário da Brown Boveri para 1965. Rio de Janeiro, 1964.

162

Idem.

Page 133: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

133

A encomenda incluía alguma foto em que aparecesse mulher. Flieg, então,

fotografou uma modelo de biquíni na praia brincando com uma bola e outra posando em

meio a flores e plantas no jardim do Alto da Boa Vista. Também entraram no calendário

imagens do interior, em estilo barroco, da Catedral Metropolitana; uma baiana a caráter

vendendo quitutes no centro do Rio de Janeiro; uma vista do Corcovado e Pão de

Açúcar ao anoitecer (Fig. 2.3.10), a partir da estrada do Sumaré; um pássaro guará no

zoológico do Rio de Janeiro; detalhe da fachada no Museu Histórico Nacional com

portão entreaberto e bananeiras na Cascatinha da Tijuca.

Como no calendário anterior, são mostradas imagens que apresentam um rol de

interesses “turísticos” sobre a cidade do Rio de Janeiro e o Brasil. Há em quase todas as

imagens um recorte pitoresco. Além da foto de capa outro exemplo é a imagem do

Corcovado ao anoitecer em que o céu vai do azul ao roxo e há uma sobreposição de

planos, mantendo certa profundidade de campo na paisagem, atribuindo um caráter

sublime à representação. Novamente, o modelo é o romantismo.

Nos dois casos acima, é possível dizer que Flieg recorreu ao que Jacques Aumont

chama de “esquemas”. Aumont define esquema como uma “estrutura relativamente

simples, memorizável como tal além de suas diversas atualizações”163

, isso equivale

dizer que uma imagem é, na verdade, a combinação de outras imagens parciais, estas

“imagens parciais” são as “estruturas simples”, os esquemas. Segundo o autor, estes

esquemas visuais funcionam como instrumentos de rememoração, processo

fundamental para que o espectador possa se relacionar com a imagem. Nós, como

espectadores, aprendemos certas idéias ou noções que nos são transmitidos

historicamente. Então, o esquema tem uma função cognitiva, por isso, segundo Aumont,

os esquemas precisam apresentar estrutura simples, justamente, para facilitar a

rememoração.

Assim, quando alguém olha uma imagem, carrega já algumas expectativas que são

informadas exatamente pelo repertório de representações visuais que o indivíduo tem

acumulado pelo seu intelecto. Estes repertórios, construídos historicamente, direcionam

o olhar. Por isso, que ao utilizar imagens recorrentes na pintura, Flieg torna mais rápida

e eficaz a identificação e assimilação por parte do público que vai “consumir” os

calendários.

163

AUMONT, Jacques. A Imagem. Campinas: Papirus, 2000. p. 84

Page 134: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

134

Fig. 2.3.11

Cascatinha da Tijuca. Rio de Janeiro, 1964.

Gostaria também de destacar uma imagem que não foi incluída no calendário da

Brown Boveri, mas é muito representativa da visão do fotógrafo sobre a cidade. Na foto

feita na Cascatinha da Tijuca, aparece a queda d’água, vegetação e a bica (fig. 2.3.11).

Para a tomada original, foi utilizado diapositivo colorido 4’x 5’, do qual,

posteriormente, Flieg produziu um internegativo preto-e-branco que gerou a cópia aqui

reproduzida. A cena mostra um bonito arranjo de texturas e tonalidades, e a marcação

de linhas na mesma diagonal – da esquerda para direita, de cima para baixo -

desenhadas pela queda d’água, pelas folhagens ao pé do morro e pela bica com seu

esguicho de água. A imagem recupera toda uma tradição pictórica da representação de

natureza, traz à tona a idéia do “jardim poético” em que os elementos fundamentais –

árvore, água e rocha – compõem-se harmoniosamente, dando o estímulo visual, e a

presença humana – bica e escada – não é descartada, embora fique subjugada ao

desenho compositivo dos elementos naturais.

Parati

Page 135: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

135

Em 1965, recebeu mais uma vez a incumbência de um novo calendário. Quando

Flieg viu uma exposição de pinturas de Takaoka, os quadros sobre Parati chamaram-lhe

atenção. Assim, partiu de carro com um assistente para a antiga vila colonial do litoral

do Rio de Janeiro. Ao chegar à cidade, ficou muito impressionado: “Parati rendeu

muito. Não era turístico como hoje. Era muito novo encontrar alguma coisa tão

velha”164

. Antes de fazer a viagem, procurou ler a respeito do lugar e da história.

Constatou que Parati, antigo escoadouro do ouro de Minas Gerais, permanecera

conservada porque “estava cortada do país”, como estava apartada da dinâmica

econômica nacional, ficou “parada no tempo”.

No caminho para Parati, fez uma foto que foi publicada no calendário, uma

paisagem natural entre São José dos Campos e Paraibuna. Já na cidade, fotografou os

solares coloniais, o mercado de peixes, o pátio da igreja Santa Rita de Cássia, uma vista

da cidade a partir de um barco, um homem raspando mandioca na Fazenda Corisco,

paisagem de praia na Ilha da Sapeca, mulher à janela num casarão colonial, festa pela

abertura da capela de Penhas, movimento de pedestres em rua da cidade, vista dos

telhados de algumas construções antigas e a pintora Djanira em sua residência com seus

quadros.

Na capa deste calendário, há uma vista da cidade com vários planos (fig. 2.3.12).

No primeiro, a areia da praia com um depósito de conchas, onde Flieg colocou um caco

de cerâmica decorada que havia comprado de um antiquário, a seguir, ainda sobre a

areia, cascas e galhos secos de árvores, depois, um braço de mar, logo atrás, uma faixa

de construções com um pouco de vegetação e, ao fundo, as montanhas. Segundo o

próprio fotógrafo, esta foto traria a síntese de Parati, o mar que é a porta de entrada por

onde chegavam os visitantes, também traz o antigo, a história, representada pelas

conchas e pelo caco. Nos outros planos, traz um pouco de tudo: mar – fonte de recursos,

antes com o porto, hoje com a pesca - natureza, arquitetura, religiosidade – há uma

igrejinha - e topografia.

164

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 5 mar. 2002.

Page 136: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

136

Fig. 2.3.12

Vista de Parati. Foto da capa do calendário da Brown Boveri para 1966. Parati, 1965.

Se os calendários anteriores foram marcados pelo pitoresco e pelo exótico, em

que o olhar do visitante marca uma posição de separação clara com o que está sendo

fotografado, neste de Parati, sinto um fotógrafo com olhos mais livres, que busca se

infiltrar no contexto social que está sendo retratado, para compreender e interagir. Um

índice disso é a maior presença humana neste calendário.

Só para recapitular, na primeira folhinha, de 1964, praticamente não aparecem

pessoas, a não ser no papel de figurantes na foto de Bom Jesus do Pirapora. No

calendário de 1965, há a foto da baiana e as de duas modelos, todas em poses

dissimuladas, o que não agrega sentido social às personagens fotografadas, mesmo à

“não-ficcional” – a vendedora de acarajé. Estes retratos são regidos pela tônica das

imagens turísticas em que a significação está mais na superfície estética, do arranjo da

pose e dos elementos do que propriamente na dimensão humana dos retratados.

Nas imagens de Parati, em oitos fotos há presença de pessoas e todas elas

apresentados com maior naturalismo. Na foto da inauguração da capela (fig. 2.3.13),

por exemplo, os instrumentos musicais, as bandeirolas e mesmo a igrejinha funcionam

quase como uma moldura ao grupo de pessoas – habitantes locais – que estão

concentradas no centro da imagem. Cada uma das pessoas que aparecem na foto tem

Page 137: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

137

uma dimensão própria – tem gente olhando para trás, outras para frente, um

participando da banda, alguns conversando etc. – estas figuras têm existência própria e

suas poses e disposição na imagem não estão subjugados exclusivamente a uma

ordenação estética. Há muita vida ali, o que é reforçado pela existência de extracampos

– a cena não se encerra no quadro, ela vai continua para além do retângulo - pelas

bandeiras coloridas esvoaçantes – o que dá movimento – e a presença reluzente e

vibrante dos instrumentos musicais.

Fig.2.3.13 Fig. 2.3.14

Festa de abertura da capela de Penhas e claustro da igreja Santa Rita de Cássia. Fotos do calendário da Brown

Boveri para 1966. Parati, 1965.

A fotografia do claustro da igreja da igreja Santa Rita de Cássia (fig. 2.3.14) traz

um arranjo muito ordenado com a seqüência de colunas, certa simetria, as linhas que se

afunilam com a torre emergindo ao fundo. As cores pálidas da construção ganham um

onda de frescor com o verde do jardim central. A presença do religioso a observar as

plantas, apesar de diminuta em proporções, povoa o espaço, dando força vital à foto.

O casario colonial de Parati é representado numa linda foto (fig. 2.3.15) que

congrega, além das construções brancas com detalhes coloridos, um manto de mata bem

verdejante no primeiro plano, muro em ruínas, burro de carga na rua, pessoas habitando

e interagindo nos casarões e um pouco das montanhas ao fundo. O passado colonial – o

casario – é apresentado como um traço de história que sobrevive, mas não como um

objeto museológico, mas sim como um componente urbano que faz parte da dinâmica

da cidade. Claro que é um ritmo muito próprio, lento, que fica muito marcado inclusive

Page 138: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

138

pela presença do burro. As pessoas vivem aquele espaço, seja conversando na calçada,

debruçadas nas sacadas ou apoiadas no batente da porta vendo a vida passar, cada uma

tem história particular, e , ao mesmo tempo, são partes da mesma história.

Fig. 2.3.15 Fig. 2.3.16

Fig. 2.3.15-16 Casario colonial e Djanira na varanda de sua casa com alguns quadros. Fotos do calendário da

Brown Boveri para 1966. Parati, 1965.

A imagem que ilustra o mês de dezembro no calendário é um retrato de Djanira

posando com o cão, na varanda de sua casa, rodeada por algumas de suas telas e uma

pequena bancada com seus instrumentos de trabalho (fig. 2.3.16). A foto é muito

festiva, tem muitas cores – azul das portas e da janela do casarão, o colorido forte dos

quadros, a retratada sorri com muita espontaneidade erguendo seu cachorro no colo.

Djanira, que Flieg conheceu durante esta viagem, o impressionou bastante, era uma

mulher de muita sensibilidade e força, ele guarda boas lembranças do relacionamento

que teve com a pintora e com o marido dela. Além da empatia pessoal, Djanira também

ajudou a guiar um pouco o fotógrafo no conhecimento da cidade. Flieg foi no barco do

casal, e ciceroneado por eles, à Ilha da Sapeca, na Baía da Ilha Grande, que rendeu a

única paisagem natural de Parati que foi incluída no calendário. Foi também a pintora

que sugeriu a Flieg uma visita à Fazenda Corisco, onde funcionava uma casa de farinha.

O retrato de Djanira além de funcionar como uma espécie de tributo à figura que

despertou tanta admiração no fotógrafo, traz também um simpático panorama da cidade

através das pinturas que a cercam. Os quadros fazem referência ao caráter histórico do

local, expresso no quadro do casario colonial; à religiosidade, através da imagem da

santa; os peixes remetem ao mar e à pesca e ao trabalho, e a representação do camponês

vendendo frutas no mercado indica as atividades comerciais. Anos depois desta foto,

Page 139: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

139

Flieg soube que alguns dos quadros fotografados haviam sido roubados da casa da

artista e a polícia usou uma cópia desta imagem, que o fotógrafo havia deixado com

Djanira, como referência nas investigações para identificar as telas que acabaram sendo

reencontradas.

Fig. 2.3.17

Raspagem de farinha, na Fazenda Corisco. Foto do calendário da Brown Boveri para 1966. Parati, 1965.

Na estada em Parati, Flieg foi um dia à casa de farinha da Fazenda Corisco,

conforme indicação de Djanira. Levou a Linhof com filme colorido e a Rolleiflex com

filme preto-e-branco. Dos diapositivos, saiu a imagem que entrou para o calendário, de

um homem raspando mandioca em uma construção com paredes de pau-a-pique (fig.

2.3.17). Como o interior da casa era muito escuro, Flieg colocou uma fonte de luz do

lado direito, para onde o retratado estava virado, simulando a iluminação de uma janela.

Bem à frente da cena passou um galo do qual se vê na foto apenas a cabeça com a crista

vermelha. A presença inesperada do animal no quadro da imagem colocou um ponto de

cor vibrante na homogeneidade de tons e deu a idéia de movimento a uma cena quase

estática. A ambientação da foto segue alguns modelos formais da pintura, no que tange

principalmente à iluminação e ao esquema de cores. Neste caso, a figura do galo acabou

por gerar uma quebra no padrão pictórico e tornou a cena mais “fotográfica”. Há ainda

uma concepção pitoresca no retrato, mostra um camponês em um cenário rústico o que

remete às choupanas do ideário romântico, imagens onde “os citadinos, cansados do

espetáculo da cidade, encontrarão (...) um delicioso repouso que os liberta do cuidado

Page 140: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

140

com o útil e da preocupação com a camada social: é um mundo em que nada acontece

e onde as coisas são simplesmente oferecidas à contemplação”165

.

No entanto, esse caráter pitoresco não se efetiva plenamente, uma vez que o

retratado ganha muita expressão pessoal e com isso subjetividade. A própria presença

da cabeça do galo quebra um modelo de visualidade idealizada, herdeira da pintura

romântica. Assim, ganha peso na representação, a dimensão social do personagem e de

seu ambiente. Esta imagem insere no conjunto que compõe o calendário a referência ao

trabalho e ao trabalhador, o que nos outros não aparece. A simplicidade do ambiente e

dos instrumentos de trabalho não deixa de expor o pauperismo a que os camponeses da

região estão submetidos.

Fig. 2.3.18 Fig. 2.3.19

Casa de farinha e moeda na casa de farinha da Fazenda Corisco. Parati, 1965.

Com o filme preto-e-branco, Flieg fez um ensaio sobre a casa de farinha. Nestas

fotos, há um primoroso trabalho de composição com texturas e tons de cinza. Há uma

imagem que mostra todo o pequeno galpão pelo lado de fora, com um pouco do

ambiente ao redor da casa, trabalhadores e burros de carga (fig. 2.3.18). Há bancos e um

quadro, talvez de uma escola rural a céu aberto, algumas sombra e silhuetas no primeiro

plano, depois, várias padronagens que se combinam e harmonizam no conjunto – mato

do chão, sapê na cobertura do galpão, pau-a-pique e ripas de madeira paralelas na

estrutura das paredes, árvores ao fundo etc. Um cenário visualmente rico em que a casa

165

STAROBINSKI, Jean. Op. cit. p. 194.

Page 141: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

141

de farinha expressa o trabalho, marca emblemática do homem do campo, e os móveis

escolares marcam a inserção da educação formal no meio rural. Outra imagem mostra

em detalhes a moenda do trigo (fig. 2.3.19). Existem na foto superfícies muito marcadas

– a madeira, o metal, o vime – o que também valoriza os subtons e dá expressão às

marcas do tempo, à transformação dos materiais pelo homem e o desgaste pelo uso,

numa imagem poética, um índice do trabalho.

Minas Gerais

Finalizado o calendário de Parati, logo era tempo de pensar no seguinte. Na

Brown Boveri, definiram que o tema era ciclo do ouro em Minas Gerais. Esta proposta

acabou indo ao encontro do processo de busca pelas origens do país em que mergulhava

Flieg.

Os três calendários já têm elementos que ligam a um

assunto que sempre me interessou, que é a história. O primeiro

já tem um pouco do Brasil colonial, temos as tapeçarias. O

segundo tem arquitetura barroca no Rio de Janeiro. E esse

terceiro é todo ele patrimônio histórico e (...) isso me liga um

pouco à história de Minas.166

O funcionário responsável por supervisionar a produção do calendário, pediu

uma foto para capa da entrada de alguma igreja, com as portas entreabertas por onde se

avistaria o interior com altar todo iluminado, como uma alusão ao destino final do

trabalho da Brown Boveri, a produção de energia elétrica. Flieg partiu para Belo

Horizonte de carro, com o filho do publicitário Fritz Lessin, como auxiliar. Na capital

mineira tinham uma recomendação de Luiz Saia, do Patrimônio Histórico de São Paulo,

para procurar o diretor do Museu do Ouro de Sabará, Antônio Joaquim de Almeida, a

quem conheceu junto com a esposa Lúcia Machado de Almeida, com os quais manteve

boas relações por anos.

Quando chegou a Belo Horizonte, ainda não tinha lido muito sobre o assunto e

estava totalmente aberto a sugestões. Na cidade, fotografou a igreja da Pampulha com o

mural de Portinari. Também esteve em Lagoa Santa, onde fez fotos do sítio

Page 142: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

142

arqueológico e ainda teve contato com um grupo de congada167

. O casal Antônio

Joaquim e Lúcia Machado de Almeida o convidou para ir a Sabará, Flieg foi e ficou

encantado com a cidade. Pensou que “no ano anterior Otto Stupakoff já tinha estado em

Ouro Preto e tinha fotografado Ouro Preto e para que novamente Ouro Preto? Sabará

ninguém conhecia, Sabará era algo novo, ia descobrir Sabará”168

. Assim, fez um

bonito trabalho em Sabará, com casario e ruas da cidade, tipos populares e muita coisa

do Museu do Ouro, que o casal Almeida abriu e deixou totalmente disponível ao

fotógrafo. Não foi a Ouro Preto, nem Mariana, nem Congonhas do Campos, nem

Tiradentes, simplesmente nada disso, somente Sabará.

Depois de três semanas de viagem, retornou a São Paulo, trazendo na bagagem

além das imagens que produziu, vários livros sobre a história de Minas Gerais. Levou o

material a Brown Boveri e recebeu uma “chamada” do responsável dentro da empresa

pela supervisão do calendário. “O que é que foi combinado, senhor Flieg? O cliente não

manda nada?”169

. Então, acabou sendo acertado que Flieg deveria voltar a Minas para

produzir um material sobre Ouro Preto e Congonhas que seria completado com o já

produzido em Sabará.

Flieg foi desta vez de avião a Belo Horizonte, onde encontrou Antônio Joaquim

e Lúcia Machado de Almeida na estação de trem, para entregar-lhe cópias das fotos do

Museu do Ouro para que levassem ao exterior onde buscavam financiamento. Da

capital, pegou um ônibus até Ouro Preto. Ao desembarcar na antiga Vila Rica, foi

cumprimentado na Praça da Inconfidência por uma figura muito popular da cidade, a

Olímpia, uma senhora que ganhava alguns trocados posando para fotos de turistas. “Ah,

vai tirar umas fotos de mim que nem o Otto Stupakoff] tirou no ano passado e eu vou

ganhar uns dolarzinhos”170

. Fotografou a mulher, pagou-lhe o “cachê” e foi conhecer a

cidade e fazer o trabalho. Dias depois da chegada, partiu para Congonhas do Campo,

onde aprendeu muito sobre Aleijadinho.

Depois de 11 dias, retornou a São Paulo e compôs o calendário para 1967 com

imagens de Ouro Preto, Congonhas do Campo e Sabará. A Brown Boveri mudou de

gráfica para a impressão do calendário, passando o trabalho para uma empresa que não

166

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 5 mar. 2002. 167

Material sobre a congada será apresentado no item 2.4. 168

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 5 mar. 2002. 169

Idem. 170

Idem.

Page 143: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

143

tinha experiência neste tipo de material, o resultado não agradou muito o fotógrafo, pois

as cores perderam intensidade.171

Na capa, foi usada uma foto dos profetas com a Basílica de Congonhas do

Campo ao fundo; um anjo de altar, fotografado no Museu do Ouro em Sabará; detalhe

no interior na Basílica em Congonhas do Campo; forro da igreja São Francisco de

Assis, de Ouro Preto, com pintura de Mestre Ataíde; púlpito da igreja Nossa Senhora do

Pilar, em Ouro Preto; imagem de Nossa Senhora da Conceição, fotografada no Museu

do Ouro, em Sabará; duas fotos da igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Sabará,

mostrando uma geral do interior com fiéis e outra do altar com a santa; detalhe da

Capela Padre Faria; detalhe da igreja Nossa Senhora do Pilar, de Ouro Preto, com

imagem da santa e outra com o trabalho de entalhe no sustentáculo das colunas; sacristia

em pedra sabão da igreja São Francisco de Assis, em Ouro Preto; vista geral do interior

da igreja Nossa Senhora do Pilar.

Neste calendário, como é possível perceber pela relação das imagens, prevaleceu

como tema a arte sacra barroca em todas as fotos, sem exceção. A edição das fotografias

para o calendário elegeu um único aspecto dos locais visitados, o que de certa forma não

deu conta da riqueza do que foi observado por Flieg. Optou-se claramente por imagens

de apelo turístico que exploram o atrativo histórico. Até mesmo o tema inicial proposto

pela Brown Boveri que era “ciclo do ouro” permitiria uma cobertura muito mais ampla.

Dentro deste espectro, o conjunto traz um bonito exercício de composição de fotos de

arquitetura e de objetos artísticos.

Existem muitas variações de ângulos, as imagens fogem dos enquadramentos

frontais e simétricos, como a foto da capa (fig. 2.3.20) em que a tomada do adro da

basílica de Congonhas do Campo, privilegia apenas dois dos profetas e a igreja ao fundo

aparece levemente diagonais e as agulhas das torres foram cortadas do quadro. Os

objetos artísticos e os detalhes arquitetônicos ganham expressividade com o uso da luz

que ora valoriza os coloridos, ora ajudam a compor a ambientação mais escura e

monocromática dos interiores. Há também um caso muito curioso que é uma foto no

interior da basílica de Congonhas do Campo que mostra em destaque um sustentáculo

de lustre da igreja em forma de uma serpente (fig. 2.3.21). A alegoria muito “chinesa”

171

Em fim de 1966, houve um incidente relacionado à produção deste calendário. Flieg encontrou à venda

cartões de Natal com fotos suas do trabalho de Minas Gerais, reproduzidas sem seu conhecimento e

creditadas ao fotógrafo contratado pela Brown Boveri para fazer os fotolitos do calendário de 1967.

Page 144: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

144

para o ambiente setecentista brasileiro chamou atenção de Flieg, porque justamente toca

num dos temas mais apreciados por Flieg, o dos cruzamentos culturais.

Fig. 2.3.20 Fig. 2.3.21

Adro dos profetas e basílica e detalhe no interior da basílica do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos. Fotos do

calendário da Brown Boveri para 1967. Congonhas do Campo, 1966.

Fig. 2.3.22

Vista a partir do telhado da basílica do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos. Congonhas do Campo, 1966.

Das fotos que não entraram no calendário, há um material que mereceria

destaque como a vista panorâmica de Congonhas do Campo (fig. 2.3.22). Para realizar

esta foto, Flieg subiu no telhado da basílica e, com uma grande-angular de 90°,

fotografou um panorama da cidade, com adro, santuário e outras construções, a partir da

Depois, deparou-se com outras três fotos suas publicadas com o mesmo crédito. Flieg nunca moveu

Page 145: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

145

igreja que não aparece na foto. Há assim, a inversão do ponto-de-vista tradicional, que

privilegiaria a fachada da basílica, nesta tomada é o ambiente geral da cidade que toma

a cena. Um pequeno detalhe, quase um ponto, de uma pessoa montada num burro no

vão à frente do adro, entre duas palmeiras, funciona como elemento que dá à foto o

ritmo do lugar, aludindo aos passos lentos do animal.

Durante o período que esteve em Ouro Preto, Lúcia Machado de Almeida o

convidaria para ilustrar o livro que estava escrevendo sobre a cidade. Ela era autora de

livros infantis e havia escrito uma espécie de guia turístico sobre Sabará (Passeio a

Sabará) em que as “visitas” a cada ponto da cidade eram embebidas em narrativa

histórica com tratamento literário e toques afetivos. O livro foi ilustrado com desenhos

de Guignard. Lúcia recebeu então a incumbência de escrever, no mesmo estilo do

anterior, um Passeio a Ouro Preto. Gostaria de ilustrar este guia com fotos, foi então

que veio o convite a Flieg. No entanto, no meio da correria do trabalho da Brown

Boveri e a preocupação com os compromissos que tinha em São Paulo, essa história

acabou ficando no ar e não se falaram mais sobre o assunto.

Em 1970, Flieg chamou Lúcia para fazer os textos do calendário de Sabará que

ele estava editando. Ela aceitou a proposta e veio a São Paulo. No estúdio do fotógrafo

viu uma das imagens de Ouro Preto, do Largo do Rosário, e se encantou. A ampliação

em questão foi produzida em alto contraste. Pouco antes, Flieg viu alguns trabalhos de

um fotógrafo suíço em que utilizava a técnica e aquilo havia lhe agradado muito, “era

muito sóbrio”. Então fez a experiência, passou alguns diapositivos 4’x 5’que produzira

em Minas Gerais para filmline, película em negativo preto-e-branco que trabalha com

uma pequena gama de tons de cinza. Fez as ampliações que chegou a expor numa das

mostras regulares do Sindicato das Empresas de Artes Fotográficas no Estado de São

Paulo (SEAFESP), do qual era membro ativo.

Lúcia então voltou à história do livro sobre Ouro Preto e disse que havia

contratado um fotógrafo de Belo Horizonte para o trabalho, que já estava na editora,

mas confessou que não estava totalmente satisfeita. As imagens em alto-contrastes

tocaram a escritora que viu ali uma expressividade muito grande. Perguntou se poderia

levar a cópia ao seu editor. Levou e ele adorou, mandou parar toda a produção.

Selecionaram as imagens dos diapositivos (4’x 5’ e 35mm) e as cópias de 33 fotos

foram confeccionadas e publicadas (fig. 2.3.23). Além do aspecto gráfico muito atraente

processo contra o referido fotógrafo.

Page 146: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

146

que dá expressão a elementos arquitetônicos, o alto-contraste tem uma vantagem

destacada por Flieg quanto à impressão: “(...) nossa impressão em retícula, não é tão

rica em tons. (...) e preto é preto, branco é branco [papel], pode-se carregar que a

coisa será sempre visível”172

. Embora, vale destacar que, em seus trabalhos utilizando a

técnica, Flieg não ia até o máximo contraste, mantinha um pouco de cinza para que

alguns detalhes não desaparecessem.

Fig. 2.3.23

Largo do Rosário. Alto-contraste para o livro Passeio a Ouro Preto. Ouro Preto, 1966.

Quanto ao material de Sabará, Flieg não havia desistido de transformar em

calendário. Fez uma edição, montou um boneco, encomendou os textos a Lúcia

Machado de Almeida e ofereceu o projeto a várias empresas, entre elas a Belgo-

Mineira, que tem sede na cidade. Mas foi a própria Brown Boveri que acabou

comprando173

e o lançando para o ano de 1971. Na capa do calendário, há um detalhe da

fechadura e porta semi-aberta onde se entrevê o prédio do Museu do Ouro, dando a

idéia de um início, de uma porta que se abre para o descortinamento da história

brasileira.

A foto do mês de janeiro é uma ampla vista da cidade (fig. 2.3.24), que carrega

muitos elementos: a topografia, marcada pelo desenho do terreno onde está a cidade

com um grande declive e pelas montanhas ao fundo, a vegetação que aparece em alguns

pontos da imagem, área de mineração, casas e igreja coloniais e chaminés da Belgo-

Mineira. Esta foto é, talvez, de todas as imagens publicadas nos calendário, a que mais

172

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 5 mar. 2002. Por “nossa impressão”, Flieg

refere-se às condições técnicas no campo gráfico brasileiro por ocasião da produção do referido

material.

Page 147: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

147

quebra com noção turística de sight-seeing, o que é mostrado não é um espaço de mera

contemplação, mas uma reflexão sobre o processo de transformação e permanência das

cidades coloniais brasileiras. A cena não tenta jogar com a noção temporal, como

usualmente as imagens de apelo turístico fazem, isolando um objeto do contexto,

despovoando etc., pelo contrário, apresenta uma simultaneidade de elementos que

expressam a atualidade da imagem.

Fig. 2.3.24 Fig. 2.3.25

Vista da cidade com chaminés da Belgo-Mineira ao fundo e Museu do Ouro. Foto do calendário da

Brown Boveri para 1971. Sabará, 1966.

As demais imagens do calendário mostram o púlpito de Aleijadinho na igreja da

Ordem do Carmo; o Museu do Ouro visto a partir do interior de um antiquário do outro

lado da rua; a fachada e detalhes da Matriz de Nossa Senhora da Conceição; detalhe de

uma gravura, do Museu do Ouro, sobre mineração em Diamantina; prensa e barra de

ouro; vista da cidade com montanhas ao fundo.

No Museu do Ouro, uma composição com modelo (fig. 2.3.25). A moça no

primeiro degrau da escada do prédio segura um pote. Há vários elementos que remetem

ao passado – calçamento em pedra, tufos de vegetação, a construção, as cerâmicas. Há

também uma composição muito rica, que trabalha com as linhas da vigas em madeira do

173

Os calendários da Brown Boveri de 1968 a 1970 não foram encomendados a Flieg.

Page 148: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

148

casarão, com texturas, no calçamento e nas treliças. Além, disso há nesta foto a inserção

do componente ficcional, teatral, com a modelo carregando o pote.

Em frente a uma janela, Flieg fotografa uma vista com igreja e telhados (fig.

2.3.26). A cena é vista através dos vidros da janela colonial, com caixilho à mostra,

aparecem suas imperfeições. A imagem, que não entrou no calendário, tem assim uma

aparência de rugosidade, que causa um certo efeito pictórico. Flieg buscou aqui criar

uma poética ao assemelhar a representação fotográfica a uma pintura, utilizando para

isto um material que carrega as marcas do tempo – os vidros --, ou seja, que remete ao

tema central da foto e do ensaio.

Através de uma janela... Sabará, 1966.

Fig. 2.3.26

Outros pousos e paradas...

Numa descida ao litoral paulista, em 1966, Flieg fez algumas fotos da Serra do

Mar que depois foram aproveitadas num outro calendário para a uma indústria de

móveis de escritório, a RUF. A vegetação bem tropical em silhueta no primeiro plano

serve como uma moldura à paisagem litorânea que é descortinada ao fundo (fig. 2.3.27).

A foto carrega no azul que destaca o céu e o mar. Em 1975, foi ao vale do rio Juquiá

para fazer uma cobertura sobre as usinas hidroelétricas da Companhia Brasileira de

Page 149: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

149

Alumínio. Na mesma viagem, fez várias fotos com motivos de natureza que lhe

chamaram atenção. Uma delas é um detalhe da vegetação da mata com samambaias e

outras folhagens (fig. 2.3.28). É um trabalho que valoriza as texturas e que o conjunto

forma uma linda estampa da vegetação nativa. Esta imagem foi utilizada como

ilustração de papel de carta da UNICEF dos anos de 1979 e 1980.

Fig. 2.3.27 Fig. 2.3.28

Paisagem tomada a partir da Serra do Mar. Foto do calendário da RUF. São Vicente, 1966; samambaias e

outras folhagens. Vale do rio Juquiá, 1975.

A natureza é um dos temas recorrente nos trabalhos do “Flieg viajante” e

aparece mesmo quando o interesse da viagem é outro, bastante distinto, como nas

coberturas industriais. As vistas, como as imagens da Serra do Mar e a do pôr do sol no

vale do Juquiá, é talvez o gênero mais recorrente. Como destaca Starobinski:

A vista será portanto o exercício do pintor em viagem

(...). O gênero está pois ligado à peregrinação, à descoberta,

ao espanto diante de um aspecto não habitual das coisas, à

comoção diante de um capricho ou de uma singularidade da

natureza quando esta parece oferecer ao contemplador uma

antecipação dos triunfos da arte.174

Pela tradição que se estende no mínimo desde o século XVIII, a natureza é

apresentada como espetáculo para os olhos, uma linda paisagem é uma paisagem que

corresponde a certos padrões construídos principalmente pelos cânones da pintura

174

STAROBINSKI, Jean. Op. cit. p. 193.

Page 150: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

150

romântica. Vem daí todo o repertório de imagens de apelo turístico usadas até hoje em

material de divulgação de viagens ou mesmo na publicidade em geral que associa um

produto a um cenário. Esta visualidade está tão arraigada no imaginário ocidental que se

chega à situação dos turistas que mal conseguem contemplar uma paisagem a olho nu,

só se relacionam esteticamente com aquele cenário através do visor de uma câmera.

Assim, a natureza que pontua o trabalho de Flieg segue estas noções, é um olhar

idealizador, mesmo quando visualmente renovado, que vê o sublime e as singularidades

pelo prisma de um ideal de integração entre o homem e o meio natural.

Fig. 2.3.29 Fig. 2.3.30

Fig. 2.3.31

Panos no varal ou anjos corneteiros. Acampamento de usina da Companhia Brasileira de Alumínio. Vale

do rio Juquiá, 1975; sinaleira de trem ou cavaleiro medieval. Piassaguera-Guarujá,s/d; par de túmulos ou

casal de noivos. Bagé, 1977.

No contexto das viagens, surgiram algumas imagens curiosas nas quais Flieg

trabalhou com associações visuais. Na viagem ao vale do rio Juquiá, deparou-se com o

Page 151: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

151

varal da vila de funcionários de uma das usinas. Nele estava pendurada uma fileira de

panos, sendo que alguns deles estavam levantados (fig. 2.3.29). Assim, no efeito, Flieg

enxergou ali as figuras de três anjos corneteiros, que compôs com fundo verde da

vegetação e uma faixa de treliças no primeiro plano. Ao fotografar a construção da

Piassaguera-Guarujá, Flieg também não resistiu e fez algumas imagens de elementos da

antiga ferrovia que permaneciam no cenário. Fotografou uma sinaleira de trem, com

uma ponta de lança para cima que, para ele, lembraram um cavaleiro medieval (fig.

2.3.30). Numa viagem ao Rio Grande do Sul para fotografar usinas em 1977, foi a

Bagé, onde realizou uma grande série de fotos da arquitetura da cidade, do cemitério,

bem como, alguns retratos. Uma das imagens mostra dois túmulos adornados de flores,

um escuro mais alto e outro branco mais baixo (fig. 2.3.31). Para Flieg, era um casal de

noivos. Estas três imagens são um índice mais evidente do constante confronto que o

fotógrafo operava entre o novo e algum elemento que já fazia parte de seu repertório. A

visão do Brasil foi sempre construída a partir das referências que trazia e que,

obviamente, com o tempo, não eram mais exclusivamente alemãs ou européias, nem só

brasileiras, mas podendo-se dizer que multiculturais.

Fig. 2.3.32 Fig. 2.3.33

Placa de sinalização da antiga ferrovia. Piassaguera-Guarujá, s/d; ponte Rio Branco. Feira de Santana, 1978.

Na série de fotos sobre a Piassaguera, uma placa em ferro um tanto enferrujado

indicava que a “sahida” era no sentido para onde a mãozinha apontava (fig. 2.3.32). As

pessoas no fundo seguem no sentido oposto ao do indicador da plaquinha. A antiga

sinalização, com sua ferrugem e a grafia para aquém de algumas reformas ortográficas,

é um traço da história tão perseguida pelo fotógrafo. Em 1978, ele foi a um congresso a

Page 152: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

152

convite do SEAFESP para ser jurado de uma exposição, em Feira de Santana, na Bahia.

Lá fez uma foto da antiga ponte Rio Branco, toda em ferro trabalhado. Como na placa

da Piassaguera, o metal da ponte carrega as marcas da passagem do tempo em suas

ferrugens que tem sua cor avermelhada contrastada com o céu bem azul (fig. 2.3.33).

O passado, a história, a origem, foram interesses centrais do fotógrafo, europeu

de nascimento e criação, que se fixou e foi se afeiçoando, se inserindo e se adaptando ao

Brasil. Mas esta adaptação nunca foi passiva, pois ele atuou na busca de um sentido

para esta terra. O olhar de Flieg se transformou, ao longo do tempo, mas traços da sua

própria origem nunca foram apagados. Nas viagens em busca de um país, ele talvez

tenha exercitado, mais do que em quaisquer outros momentos, o paradoxo de ser um

pouco alemão e um pouco brasileiro e, quem sabe assim, mais universal.

2.4. Ver o outro: galeria de retratos e tipos

Na rua Pedro Taques, bem próximo do sobrado onde vivia a família Flieg, havia

uma vila, de corredor fino e desnivelado, com um pequeno pátio ao fundo em torno do

qual havia várias casinhas. Ali moravam algumas famílias negras que formavam uma

comunidade. Flieg e Stefan, ainda chegados há menos de um ano ao Brasil, mantinham

uma certa estranheza e curiosidade em relação àquelas pessoas e suas festas que se

estendiam noite adentro e cuja música os irmãos escutavam do quarto de dormir. O

fotógrafo conta que no período em que estava em Berlim, recorda-se que, durante um

passeio ao Tiergarten, ficou muito impressionado ao ver passar um negro todo

aprumado em um terno - “Era algo totalmente novo”175

.

A própria situação geográfica da vila chamava atenção de Flieg. Era um enclave

negro em meio a uma região praticamente toda habitada por brancos. Não havia uma

integração entre os moradores da vila e os demais habitantes, apenas uma fria

tolerância. Flieg relata que, na verdade, existia um certo véu de mistério que envolvia a

pequena comunidade negra aos olhos dos demais. Assim, como os negros também,

provavelmente como instinto de autodefesa, não abriam seu espaço facilmente à

presença dos vizinhos. Mas, mesmo assim, Flieg travou um certo contato com a

175

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 20 jun. 2002.

Page 153: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

153

comunidade da vila e foi até lá algumas vezes para fotografar. “Eu tinha uma posição

intermediária, não era negro, não era brasileiro, era fotógrafo”176

.

Numa destas ocasiões, em 1940, ele fotografou o grupo de convidados que

participavam de uma festa de casamento no pátio da vila (fig. 2.4.1). Como manda a

tradição, os retratados estão vestindo algumas de suas melhores roupas, “estão

produzidos para a foto”. Estas pessoas não se vestiram propriamente para o retrato, mas

para festa. De qualquer forma, mostram-se para câmera com segurança, porque o

vestuário está digno de registro. Não seria descabido especular que muitos destes

retratados deram uma rápida “ajeitada” no cabelo ou na roupa -- como fazemos ao

saber que seremos fotografados -- instantes antes de Flieg disparar sua máquina.

Fig. 2.4.1

Grupo de convidados de uma festa de casamento na vila da rua Pedro Taques. São Paulo, 1940.

Também seguindo a cartilha dos retratos tradicionais, está praticamente todo

mundo posando, há inclusive, a curiosa figura de uma garota em trajes de ballet nas

pontas dos pés e com os braços trançados bem à frente do grupo. A maior parte dos

retratados olha frontalmente para a câmera, embora alguns poucos ensaiem um meio-

perfil, ao não resistirem de desviar o olhar para a bailarina. Uns sorriem, levemente ou

mostrando os dentes, enquanto outros fixam seriamente e até encabuladamente a

câmera.

176

Idem.

Page 154: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

154

Ao mesmo tempo em que o retrato apresenta uma codificação em relação a

vestimentas e poses, há um certo “naturalismo” na disposição um pouco caótica da

cena. Há muito desnível do solo, as pessoas do plano intermediário, mais ao centro,

quase desaparecem, enquanto os do fundo e das laterais aparecem em graus diferentes.

O enquadramento do espaço superpovoado também fraciona alguns corpos. Mesmo as

poses não seguem padrões muito rígidos, como a garota de vestido branco no primeiro

plano: a postura corporal sisuda, com braços cruzados e pernas separadas, não combina

com a expressão sorridente e suave de sua face. Há também o policial. Posando,

presença que visa “manter a ordem”. Não a ordem da imagem, mas a ordem do Estado.

O “homem da lei” aparece não como um elemento que garante equilíbrio da imagem –

afinal ela não está tão equilibrada assim –, mas funciona como uma caricatura da sua

própria presença naquele espaço, já que, apesar do destaque na foto, o grupo não parece

se relacionar com sua figura.

A composição irregular não acentua tanto a idéia de caos, mas, pelo contrário,

estabelece uma dinâmica entre os componentes do grupo retratado – com exceção do

policial, que é quase um decalque na imagem. Se alguns elementos vão no sentido de

uma construção mais formal do retrato, a disposição irregular dos retratados e a

variedade de expressões nos seus rostos dão vitalidade à imagem. O olhar que os mira

carrega uma dupla interação, ao mesmo tempo, que enxerga ali uma representação de

tipos “estranhos” ao seu repertório, busca também recuperar um pouco das histórias, das

subjetividades dos indivíduos.

A busca pela representação e perpetuação da auto-imagem através da arte vem

desde, pelo menos, a Antigüidade. No entanto, a noção de retrato, como gênero, tem sua

origem comumente identificada com a pintura a óleo, conjunto de técnicas que surge no

começo do século XV e se estabelece por volta de 1500. O retrato é historicamente uma

arte por encomenda. Francastel comenta que “na época de Van Eyck, em que se

trabalhava por encomenda, não se pintava pelo prazer de pintar. Tudo tinha uma

significação previamente determinada”177

.

Em 1952, Flieg tem uma encomenda para fotografar um grupo de artistas para

uma campanha da Kolynos. Chegam ao seu estúdio Hebe Camargo, Isaura Garcia, Vera

Nunes e Homero Silva. Ao fotografar uma das moças, que Flieg não se recorda

177

FRANCATEL, Pierre; FRANCASTEL, Galienne. El retrato. Madrid: Cátedra, 1995. p. 77. Apud

EGUIZÁBAL, Raúl. Fotografía publicitaria. Madrid: Cátedra, 2001.

Page 155: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

155

claramente se Hebe Camargo ou Vera Nunes, ele estava com sua Leica apontada,

conversando com a modelo, observando e disparando a máquina e “ela como se fosse

um peixe chegando até a isca, chegando, chegando, se abrindo”. Num determinado

momento, ao que se ouviu o clic e moça o encara desarmada: “Você, hein?”178

.

O retrato é um campo da confrontação da qual participam, no mínimo, o

retratado e o fotógrafo179

. Flieg declara sua posição de “ataque” ao descrever um

episódio de família que foi fotografar: “eu estou lá com a máquina na mão, caçando o

momento, caçando um sorriso, caçando um gesto típico de um, de outro e

indiscutivelmente conseguindo o momento”180

. Susan Sontag, ao analisar a obra de

Diane Arbus, usa a comparação que a fotógrafa faz entre a guerra e o exercício de

fotografar pessoas: “‘Estou certa de que há vítimas’, escreveu Arbus. ‘Só Deus sabe,

mas quando as tropas começam a avançar em cima da gente, tem-se a sensação de que

se está acuado e de que se pode morrer a qualquer momento’”181

. Tradicionalmente, a

pintura e fotografia criaram técnicas e expedientes para compor retratos e, com isso

constituíram um código e um repertório que visavam abrandar o combate.

Starobinski, ao comentar os retratos setecentistas de Quentin de La Tour,

adverte: “O rosto visível, o que se oferece à imitação, está maculado de artifício.

Copiá-lo fielmente significa deixar-se prender na armadilha da mentira”182

. Pierre

Bordieu ressalta sobre os retratos fotográficos populares:

(...) essa estética identifica rigorosamente a norma estética e a

norma social, ou melhor, não reconhece, propriamente

falando, nada além das normas de convívio social e de boas

maneiras, o que não exclui, de maneira alguma, a experiência

e a expressão da beleza (...). As fotografias apresentam

geralmente os personagens de frente, no centro da imagem, de

pé, podemos dizer que a uma distância respeitável, imóveis em

uma atitude digna. De fato, colocar-se em pose é submeter-se à

apreciação em uma postura que não é e nem é percebida como

“natural”. Com a preocupação de corrigir a atitude, vestem

suas melhores roupas na recusa de se deixar surpreender em

trajes ordinários ou em uma ocupação cotidiana, é a mesma

178

Depoimento de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Fred Jordan, Paulo A.

Nascimento, Eduardo Castanho . Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981. 179

A esta batalha pode ter mais que dois lados em disputa, quando, por exemplo, existe um contratante do

retrato que não é o retratado. Um exemplo são retratos publicitários. 180

Depoimento de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Fred Jordan, Paulo A.

Nascimento, Eduardo Castanho. Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981. 181

SONTAG, Susan. Op. cit. p. 39. 182

STAROBINSKI, Jean. Op. cit. p. 154.

Page 156: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

156

intenção que se manifesta. Colocar-se em pose é respeitar-se e

exigir respeito.183

O retrato é uma forma de legitimar publicamente uma auto-imagem que o

modelo tinha ou queria ter de si. Além de legitimar, o retrato também eterniza esta

ficção sobre o modelo. Associado primeiro à aristocracia, o retrato foi imediatamente

assimilado pela burguesia. Ter traços de sua fisionomia fixados em uma tela era um

índice de poder e prestígio.

A partir do século XIX, a fotografia assume o papel de dar forma aos retratos. O

entusiasmo inicial gerado pela fotografia vem, inclusive, do fato de permitir à burguesia

em ascensão ser eternizada em retrato. Os fotógrafos, cujos ateliês se proliferam nos

centros urbanos a partir de meados do século, tinham como missão “conseguir tornar

agradável, mediante alguns artifícios, mesmo a pessoa mais feia”184

. Os retratistas

oitocentistas lançaram mão de muitas técnicas para construir a imagem que os seus

clientes aspiram obter: retoques, tons difusos, iluminação dramática, cenários, adereços,

indumentárias e poses. Um dos empreendimentos mais notáveis, do ponto de vista

comercial, foi o francês André-Adolph-Eugène Disdéri, que, além de lançar em 1854 o

formato carte-de-visite185

que barateou consideravelmente o custo dos retratos, tornado-

os acessível à pequena-burguesia, fincou as bases de composição do portrait mais

comercialmente praticado no século XIX, principalmente através da padronização dos

adereços e da ambientação de cena.

Conforme se adentra no século XX, as poses e cenários estandardizados ainda

são praticados, mas principalmente após a década de 1920, há uma busca de maior

naturalismo na composição dos retratos, até chegar ao quase abandono dos estúdios para

a produção de retratos de família. Uma das encomendas mais corriqueiras que Flieg

recebia eram justamente os retratados particulares. Quando estava em fase de

estabelecer como autônomo por volta de 1945, esta era sua principal fonte de renda. Os

clientes vinham todos por indicação ou recomendação de familiares, amigos, vizinhos e

outros clientes. Flieg trabalhou com retratos particulares até, mais ou menos, fim da

183

BOURDIEU, Pierre. La définition sociale de la photographie. In: ______. Un art moyen: essai sur les

usages sociaux de la photographie. Paris: Minuit, 1965. pp. 116-117. 184

FREUND, Gisèle. Fotografia e sociedade. Lisboa: Veja, 1995.p. 72. 185

Retrato em papel colado sobre um cartão que media cerca de 10 x 7,5 cm. Usava negativo em chapa de

vidro, substituindo as de metal, e o pequeno formato permitiu a utilização de um sistema de máscaras

através do qual podia-se realizar até oito exposições em cada clichê. NEWHALL, Beaumont. Historia

de la fotografía. Barcelona: Gustavo Gili, 2002. pp. 64-65.

Page 157: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

157

década de 1950, a partir daí, com uma clientela já muito bem formada no campo

industrial e publicitário, acabou abandonando este ramo de atuação profissional.

Flieg descreve a atividade de retratar como um ato de paciência e de busca,

envolve desenvoltura do fotógrafo para dar espaço de, ao mesmo tempo, envolver o

modelo de modo que este lhe permita o acesso, é quase uma relação de psicanalista com

paciente. Assim, em termos práticos, retratar é gastar filme. Flieg que sempre foi muito

conscencioso ao planejar seus trabalhos, o que não gerava muito material excedente

além do que se ia efetivamente utilizar. Nas reportagens industriais, por exemplo, não

chegava a atingir a média de duas imagens para cada uma encomendada. O primeiro

trabalho que teve profissionalmente já com estúdio próprio foi o de fotografar a família

de Oscar Ladmann, lembra-se que seu pai não se conformava por ele ter gasto um filme

de 36 poses quando a encomenda era de uma ou duas fotos.

(...) [meus retratos] eram fotos não muito

convencionais, eram fotos muito soltas, fotos muito vivas. Eu

diria que a minha forma de trabalhar em retrato tinha o

seguinte: se fotógrafos como Steichen, os clássicos, tiravam

com chapas 18 x 24, maiores, e tinham de fazer o portrait

muito bem estudado e muito calmo, muito bem iluminado,

muito expressivo. Talvez, eu já fui formado pela máquina de 35

mm que me permitia experimentar um pouco mais da

personalidade (...). Para mim sempre foi algo de fascinante ver

as possibilidades que um rosto poderia oferecer. Então, eu me

lembro que com menos do que 36 fotos eu não tiraria de um

retrato.186

Flieg utilizou, até o início da década de 1950, com muita freqüência para retratos

equipamento a Leica, acoplada em tripé, com teleobjetiva 135 mm, o que dava certa

distância do retratado e caixa Telyt, equipamento reflex que permite ao fotógrafo olhar

por cima da câmera, como em uma Rolleiflex, não encarando o modelo. A principal

tática que Flieg utilizava para fotografar era a deixar a “vítima” à vontade, quando

estivesse segura e descontraída, ela baixaria as guardas e o fotógrafo poderia “dar o

bote”.

Lembro do nosso alfaiate, Fredo, que muitos anos

mais tarde me dizia “olha, eu nunca tirei um retrato como o

que tirei com você”. O que eu fazia? Deixava a pessoa à

vontade. Uma cadeira, não de estúdio, pelo amor de Deus, eu

186

Depoimento de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Fred Jordan, Paulo A.

Nascimento, Eduardo Castanho. Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981.

Page 158: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

158

não tinha nem estúdio (...) naquela casa, no andar superior187

,

eu usava o antigo dormitório com uma cadeira confortável,

luzes e uma mesinha com um copo de Cinzano, se fosse o caso,

uns cigarros e um papo. Acho que o papo era o mais

importante nisso tudo. O cara que tinha vindo com um certo

receio de fotógrafo, porque fotógrafo metia medo, acho que

ainda hoje mete medo.

(...) quando eu retratava pessoas, pessoas sentadas

confortavelmente numa poltrona, debaixo de luzes e lá

esperando para o momento que a pessoa se abrisse. Então,

isso é estar pronto para o momento. Aí é preciso a gente

ajudar e chegar a um instante de um sorriso, a um instante de

um movimento típico, a um instante da pessoa se dar. Isto

talvez seja um momento de amor.188

A sensibilidade para captar e compor estes “momentos de amor” pode ser

conferida em retratos como o de Agi Profili (fig. 2.4.2). De origem austríaca, nascida

Agathe von Aursperg, Agi era casada com Arturo Profili, redator do jornal Fanfulla,

com quem Flieg teve muito contato por ocasião da I Bienal de Artes. Este retrato é uma

representação visual para a expressão “mulher de fibra”.

Agi Profili. São Paulo, s/d.

Fig. 2.4.2

Agi é fotografada em uma pose frontal, levemente reclinada para frente e um

pouco descentralizada. O posicionamento frontal coloca o retrato encarando quem o

187

Flieg refere-se à casa da rua Maria Antônia onde manteve seu estúdio de 1946 a 1952. 188

Depoimento de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Fred Jordan, Paulo A.

Nascimento, Eduardo Castanho. Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981.

Page 159: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

159

olha, é a pose de quem está totalmente à mostra, aparentemente sem artifícios. Agi

Profili está com o corpo um pouco reclinado sobre a mesa o que a coloca mais próxima

do observador, ela não o teme. O corpo reclinado apoiado sobre a mão também é uma

pose arquetípica do sujeito reflexivo, eternizada na escultura de Rodin. Assim, a

retratada mostra-se aberta, mas com uma introspecção que lhe garante a distinção. A

segurança indicada pela pose é reforçada pelos “acessórios” de cena, o cigarro e as

cartas de baralho. Não são objetos que fazem parte do universo de uma dona de casa ou

que se associe à noção de fragilidade. Pelo contrário, o cigarro e o baralho indicam uma

mulher de muita personalidade que não se deixa envolver por estereótipos tradicionais

de comportamento feminino. E há o olhar de Agi, que ganha força com a iluminação

suave, quase natural. É o elemento de maior expressividade no conjunto da imagem, a

ressonância do brio da mulher que parece contar uma história de sofrimento e

superação, reforçada pelo sorriso doce, mas não alegre.

Uma pose totalmente frontal também aparece em um outro grande retrato que

Flieg executou, em 1949, do médico russo Dr. Kandauroff. (fig. 2.4.3), pai de um

assistente de Flieg, Serge Kandauroff. O médico tinha feições que impressionavam o

fotógrafo, tanto que o enquadrou quase em close, de maneira bem central e frontal para

valorizar bastante as formas da cabeça e da face. O fundo neutro escuro ajuda a

delimitar os contornos da pela clara, cabelos grisalhos e roupa branca. A iluminação

divide o rosto ao meio em claro e escuro para conferir dramaticidade. O rosto fino traz

marcas que poderiam remeter a uma história de muitos feitos e provações. Os óculos em

formato circular completam um conjunto facial bastante expressivo, servindo como

moldura ao olhar que mesmo por detrás da pesada armação consegue encarar e penetrar

na câmera fotográfica. As vestes brancas transparecem certificando a profissão do

retratado.

Outra mulher, Dra. Margarida van der Reis, também médica, teve um retrato que

Flieg custou a solucionar (Fig. 2.4.4). O rosto muito redondo não dava um bom

resultado frontal ou mesmo em três quartos, então Flieg optou por um perfil. Com a face

voltada para uma janela, em um ambiente sem iluminação, o retrato tem uma superfície

toda escura e concentra a luminosidade suave na parte da frente do rosto e na faixa de

roupa branca. A pose e a iluminação, além de abrandar a feição grave, criam um

ambiente de mistério a envolver a retratada e dão a ela uma reserva, não a expõe

abertamente à apreciação. Ela contempla a luz, com aparência séria. Como nas outra

Page 160: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

160

duas imagens, há um uma idéia de sofrimento, das marcas de um passado que não se

cicatrizaram totalmente.

Fig. 2.4.3 Fig. 2.4.4

Dr. Kandauroff. São Paulo, 1949; Margarida van der Reis. São Paulo, s/d.

Os três retratos enquadram três imigrantes que por caminhos vários chegaram ao

Brasil. Há assim uma identificação do fotógrafo com os retratados. Nos três, Flieg

valoriza os sinais de sofrimentos passados -- através da intensificação de algumas

marcas nos rostos e/ou com iluminação dramática -- mesclados à distinção de suas

figuras no presente da foto. O fotógrafo admira aquelas três personagens, talvez por

enxergar nelas um pouco de si. Assim, cria representações que poetizam suas histórias –

dos três retratados e do próprio retratista -- e atribuem valor ao fato de sobreviverem

íntegros ao desenraizamento.

Vida familiar

As encomendas de retratos particulares eram, na maior parte das vezes, pedidos

para fotografar famílias. Casais, esposas, crianças, animais, festas e acontecimentos

marcantes na trajetória familiar mereciam registro. Flieg costumava fotografar na casa

Page 161: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

161

dos retratados, para assegurar maior naturalidade e integração entre modelo e cenário.

Apesar de nos anos 40 – período que Flieg começa a trabalhar como retratista – a

prática da fotografia amadora já estar razoavelmente disseminada, a figura do fotógrafo

profissional ainda era muito requisitada por famílias mais abastadas ou, no caso da

classe média, reservada a momentos ritualísticos da vida familiar.

Fig. 2.4.5 Fig. 2.4.6

Esposa e filha de Italo Eboli. São Paulo, 1947; Peter Bork. São Paulo, 1945.

Pierre Bourdieu revela que os retratos são a celebração da unidade familiar, pois

as fotografias eternizam certos sentimentos que as famílias e a sociedade constroem

como ideais. A imagem da mãe zelosa com os filhos é um destes ideais e talvez seja

uma das representações mais corriqueiras nos trabalhos de fotógrafos que tenham se

dedicado ao retrato particular, como na foto que Flieg fez da esposa do publicitário Italo

Eboli alimentando a filha (fig. 2.4.5). Um capítulo a parte são os retratos infantis, que

Flieg fez muito. Um dos expedientes que o fotógrafo utilizava e que ia ao encontro das

expectativas dos pais era colocar a criança em uma atividade que atribuía algum talento

ou vocação ao pequeno retratado, como o garoto Peter Bork que aparece em posição de

estudo, com caneta à mão e livro aberto sobre a mesa (fig. 2.4.6).

Em 1949, ao fotografar Babi, (fig. 2.4.7) filha de Arturo e Agi Profili, Flieg

explorou a delicadeza da menina, através da pose muito natural, do destaque que dá às

mãozinhas trançadas - movimento tipicamente infantil, que dá muita espontaneidade ao

Page 162: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

162

retrato – e a colocação “singela” de duas pequenas margaridas entre os braços da

menina, que estão apoiados no sofá. Há, assim, uma identificação evidente entre a

retratada de aparência meiga e as florzinhas. Para realizar as fotos de uma outra garota,

Flieg escolheu como cenário a Praça Buenos Aires no bairro de Higienópolis. Deste

trabalho, existe uma série de três fotos que trazem uma poética como pouco se viu nos

retratos de crianças que Flieg realizou (fig. 2.4.8). Nestas fotos, trabalhou com foco na

menina e atrás desfocado, utilizado filtro suavizador que dá a aparência um pouco turva

à imagem, e com isso, o fundo adquire uma textura de pintura. Este efeito dá um ar de

certa irrealidade à foto, cria a idéia de uma visualidade onírica, etérea, que se descola do

modo “natural” de ver. As poses da garota reforçam uma imagem introspectiva, o que

não é uma característica tradicionalmente ressaltada nos retratos de crianças. A

introspecção não é associada à alegria, pelo contrário, carrega sempre um certo tom de

melancolia. A tristeza infantil é um tema nada palatável, então fica a interrogação de

porque Flieg retratou a menina de forma tão melancólica. São imagens belas e cheias de

lirismo, mas incomodam.

As festas e celebrações são os grandes momentos do retrato familiar. Sobre isso,

Bordieu comenta:

Se admitimos (...) que a festa tem por função

revitalizar e recriar o grupo, compreendemos que a fotografia

se encontra aí associada, já que ela fornece o meio de

solenizar estes momentos culminantes da vida social onde o

grupo reafirma solenemente sua unidade.189

As crianças eram -- e ainda são -- fotografadas na primeira comunhão (fig.

2.4.9), no caso católico, e no Bar Mitzva (fig. 2.4.10), para os judeus. Os dois

representam dentro das respectivas religiões os ritos de passagem da infância para a

adolescência, ou seja, é um dos “momentos culminantes” na vida dos futuros jovens e

registrá-los em imagem faz parte da solenização da própria vida social do retratado e da

família.

Uma das maiores instituições do retrato familiar é, sem dúvida, o casamento.

Flieg fotografou alguns casamentos, embora esta não tenha sido uma atividade muito

freqüente em sua carreira. No geral, estes trabalhos eram reservados a pedidos de

amigos e conhecidos. É curioso notar nos arquivos de provas de Flieg que, os poucos

casamentos que aparecem não são da burguesia que geralmente povoa os retratos

189

BOURDIEU, Pierre. Culte de l’unité et différences cultivées. In: _______. Op. cit. p. 41.

Page 163: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

163

particulares do fotógrafo. Isto é um indício de que Flieg realmente realizava este tipo de

cobertura mais por questões de relacionamento pessoal com os envolvidos na festa, do

que por encomendas comerciais. Há, por exemplo, um casamento na vila da rua Pedro

Taques e outro de um conhecido de Flieg, apelidado de “Leão” (fig. 2.4.11). O retrato

do casamento inter-racial do italiano Leão com a esposa negra toca num dos aspectos

que Flieg mais exalta em sua visão sobre o Brasil que é a questão da miscigenação e do

multiculturalismo.

Fig. 2.4.7 Fig. 2.4.8

Babi Profili. São Paulo, 1949; garota fotografada na praça Buenos Aires. São Paulo, s/d.

Uma das maiores instituições do retrato familiar é, sem dúvida, o

casamento. Flieg fotografou alguns casamentos, embora esta não tenha sido uma

atividade muito freqüente em sua carreira. No geral, estes trabalhos eram reservados a

pedidos de amigos e conhecidos. É curioso notar nos arquivos de provas de Flieg que,

os poucos casamentos que aparecem não são da burguesia que geralmente povoa os

retratos particulares do fotógrafo. Isto é um indício de que Flieg realmente realizava este

tipo de cobertura mais por questões de relacionamento pessoal com os envolvidos na

festa, do que por encomendas comerciais. Há, por exemplo, um casamento na vila da

rua Pedro Taques e outro de um conhecido de Flieg, apelidado de “Leão” (fig. 2.4.11).

O retrato do casamento inter-racial do italiano Leão com a esposa negra toca num dos

Page 164: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

164

aspectos que Flieg mais exalta em sua visão sobre o Brasil que é a questão da

miscigenação e do multiculturalismo.

Fig. 2.4.9 Fig. 2.4.10

Menina em dia de primeira comunhão. São Paulo, s/d; garoto vestido para Bar Mitzva. São Paulo, s/d.

Fig. 2.4.11 Fig. 2.4.12

Casamento do italiano “Leão”. São Paulo, s/d; Severo Niccolini e esposa durante comemorações das

bodas de ouro do casal. São Paulo, década de 1940.

Várias outras ocasiões culminantes da vida familiar foram retratadas por Flieg.

Há, por exemplo, as fotos que fez das bodas de ouro de Severo Niccolini, patriarca da

família dos patrões do fotógrafo na época (fig. 2.4.12). O casal, elegantemente trajado,

posa em um jardim, de modo que as flores e plantas lhe sirvam de moldura. A mulher

tem expressão um pouco dura, apesar da flor que tem nas mãos tentar suavizar-lhe a

Page 165: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

165

figura. O homem posa como um típico burguês, em posição três quartos, o bigode

aparado, o terno bem cortado e o charuto no meio de seus dedos onde se vê um

portentoso anel de ouro.

Uma mulher pedira, certa vez, indicações sobre fotógrafo nas redondezas da rua

Pedro Taques. Foi a Flieg e pediu que fotografasse o filho falecido (fig. 2.4.13). Ele fez

um retrato mortuário valorizando os tons claros do terno do rapaz e do forro do caixão,

o que dava um ar de serenidade ao tema tão carregado.

Retrato mortuário. São Paulo, s/d.

Fig. 2.4.13

Na vila da rua Pedro Taques, certa vez, Flieg fez a fotografia de um outro rito de

passagem na vida social, que é a formatura (fig. 2.4.14). Havia lá o professor Ovídio

Pereira dos Santos que mantinha em sua pequena casa uma escola destinada à

comunidade. O empenho de Ovídio para manter o espaço de instrução para jovens e

crianças que provavelmente estavam à margem do sistema educacional da região central

da cidade, habitada pela elite branca, tocou muito o fotógrafo e despertou sua

admiração. Este é um caso curioso de uma fotografia de interesse da vida íntima de um

grupo, que adquire um sentido social muito amplo ao expor a exclusão, ou ainda, a

constituição de uma quase “cidade dentro da cidade” pela pequena comunidade negra e

pobre que se via alijada de serviços essenciais, como a educação, e do próprio convívio

com a vizinhança.

Page 166: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

166

Grupo de formando da escola de Ovídio Pereira dos Santos, na vila da rua Pedro Taques. São Paulo,

s/d.

Fora dos momentos de festas e celebrações, era comum fotografar além das

crianças, as mulheres. Ricas esposas eram tradicionalmente mostradas como senhoras

do lar. Um recurso que Flieg utilizou algumas vezes para retratar mulheres foi a de

colocá-las de frente a um espelho, geralmente, sobre o toucador, como no retrato da

senhora Stahel-Moser, cujo marido era cônsul suíço em São Paulo (fig. 2.4.15). A

imagem além de permitir uma dupla visão da retratada – trabalhada com iluminação –

incorpora um estereótipo de feminilidade, associado à vaidade.

Fig. 2.4.15 Fig. 2.4.16

Esposa do cônsul suíço no Brasil, Stahel-Moser. São Paulo, s/d; contador da Gráfica Niccolini com seu

cão em terreno no bairro da Bela Vista. São Paulo, s/d.

Page 167: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

167

Uma encomenda recorrente neste campo dos retratos particulares de família era

a de fotos de animais. Eram fotos do bicho apenas ou deste com o seu dono. Um dos

casos narrados refere-se a retratos encomendados pelo contador da Gráfica Niccolini,

dele e da esposa com os cães do casal. O cliente morava na Bela Vista, ou seja, na

região central de São Paulo. Próximo à residência do casal havia um terreno e foi lá que

Flieg fez várias fotos do contador com os cães. Numa delas, o homem sentado na relva

olha para o pastor alemão também sentado (fig. 2.4.16), com uma paisagem ao fundo. A

ambientação “campestre”, o cão pastor e pose do retratado sobre a grama simulam uma

ambientação montanhesca, típica do hemisfério norte. Segundo Flieg relata, ele tinha

referências claras dos cenários das montanhas da Silésia de sua infância, quando

realizou esta foto, que brinca com a ambientação e escancara a questão do artifício do

retrato.

No mundo do trabalho

Se as grandes “estrelas” do retrato familiar são as mulheres e as crianças, a

representação mais usual para os homens tem, desde a pintura a óleo, relação com o

universo do trabalho. Os retratados geralmente aparecem sentados à mesa de trabalho –

os trabalhadores braçais geralmente trabalham em pé, logo a pose aí delimita também

um status social. Sobre a mesa e eventualmente ao fundo objetos que remetem à

atividade profissional – papéis, livros, máquinas de escrever ou calcular, caneta,

telefone, mais recentemente computadores etc.

O médico Victor van der Reis. São Paulo, s/d.

Page 168: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

168

Fig. 2.4.17

O médico Victor van der Reis foi fotografado por Flieg sentado à mesa de

trabalho onde se encontra um grosso livro aberto e alguns papéis (Fig. 2.4.17). Ele está

em pose três quartos e olha diretamente para a câmera que mantém uma certa distância

do modelo, apóia os braços sobre a mesa, sendo que em uma mão segura os óculos, que

supostamente teria retirado no momento da foto e a outra aponta o indicador para uma

das páginas do livro. Esta construção dá a idéia que o médico estava trabalhando em seu

gabinete, quando parou por um instante, tirou os óculos e fixou a câmera. Após o

disparo, o homem colocaria novamente os óculos e continuaria a leitura do livro a partir

de onde parou, conforme indica o dedo da mão direita. Com este artifício, a foto conta

uma história do que teria acontecido antes do disparo e permite antever que aconteceria

depois dele. Flieg fotografou na mesma ocasião a esposa de Victor van der Reis, no

entanto, enquanto o homem foi representado em situação de trabalho, a senhora

Margarida, também médica, teve um retrato que, apesar de não haver qualquer

identificação do cenário, a cena da mulher contemplando uma luz, provavelmente uma

janela, remete mais ao um ambiente íntimo, doméstico, do que ao espaço do trabalho.

Este retrato joga deliberadamente com as noções primordiais que regem os

retratos tradicionais, segundo Philippe Bruneau190

: a pausa e a pose. A pose transforma

o retratado em modelo, ou seja, opera no campo ficcional. A pausa refere-se à extração

do indivíduo fotografado do fluxo do tempo normal que encadeia a sua existência.

Assim, para Bruneau, a pauta dos retratos não é o sujeito, mas a pessoa, a representação

social do corpo através de uma série de artifícios.

Os ambientes de trabalho, com códigos muito rígidos, exigiram de Flieg um

tratamento mais esquemático do retrato. No entanto, oposto ao que acontecia com os

retratos familiares, quando o cliente estava no estúdio, conseguia resultados de maior

naturalidade, com o “método” poltrona-Cinzano-cigarro-papo. Certo dia, em 1952, José

Niccolini, que na época era vereador, telefonou a Flieg perguntando se ele “não

gostaria de fotografar o futuro pres... prefeito de São Paulo”191

. Proposta aceita,

Niccolini chega ao estúdio do fotógrafo com o também então vereador Jânio Quadros,

que deveria ser fotografado para a produção de um cartaz para as eleições municipais.

190

BRUNEAU, Philippe. Le portrait. Paris: R.A.M.A.G.E., 1982. 191

Depoimento de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Fred Jordan, Paulo A.

Nascimento, Eduardo Castanho . Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981.

Page 169: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

169

Eu tive de dizer a ele na época que, como fotógrafo de

propaganda, eu sugeria que os produtos fossem fotografados

na melhor embalagem possível e talvez a idéia fosse marcar

um encontro para o dia seguinte. O que foi feito e foi feito com

bom resultado, eu diria, (...).192

Fig. 2.4.18 Fig. 2.4.19

Trecho de cópia contato com retratos de Jânio Quadros. São Paulo, 1952; Darcy Penteado 1) Darcy

Penteado e seus irmão posando com fantoches. São Paulo, 1945.

-Flieg acomodou o futuro prefeito na poltrona do estúdio. Jânio estava um pouco

“duro”, pensando na pose, então o fotógrafo disse-lhe que ficasse mais à vontade,

acendesse um cigarro – “Ah, pode fumar? Sim, pode fumar ”. Assim, enquanto o

candidato fumava e conversava com José Niccolini, Flieg fez uma série de retratos da

qual foi selecionada uma imagem, a de número 35 do filme, para a produção do cartaz

de campanha. Este é um bom exemplo da curiosidade do retratista em explorar “as

possibilidades que um rosto tem”, como é possível verificar no contato do filme com os

retratos de Jânio Quadros, Flieg trabalha com uma variedade de expressões que evocam

diferentes “estados de espírito”. Sem fazer modificações na iluminação e com

enquadramentos sem muita variação, ele registra sorrisos, olhares, fisionomias mais

introspectivas, movimentos de cabeça e posicionamento das mãos (fig. 2.4.18).

192

Idem.

Page 170: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

170

Fig. 2.4.20

Apresentação de alunos do Estúdio Lírico, do maestro Hermann Frischler, no Clube Germânia. São Paulo, 1945/46.

O mundo do trabalho, embora comumente associado ao ambiente dos

escritórios, aparece representado nos retratos de Flieg em outros campos de atividade

profissional. Fotografou artistas de teatro, música, cinema, fotografia, dança, artes

plásticas em pose típicas que remetem aos respectivos trabalhos. Bruno Giorgi foi

retrato, em 1953, no ateliê do escultor, com instrumentos de trabalho em punho. Darcy

Penteado, amigo de Flieg, que confeccionava bonecos, foi retratado, de cachimbo na

boca, controlando um fantoche em cada mão, com seus dois irmãos mais novos abaixo a

segurar as figuras, criando um bonito desenho triangular para o retrato (fig. 2.4.19). Da

época em que Flieg ocupou o porão do maestro Hermann Frischler, na avenida

Angélica, entre 1945 e 1946, fotografou alguns alunos do Estúdio Lírico e uma

apresentação de ópera no Clube Germânia (fig. 2.4.20). Também fotografou as alunas

do curso de ballet de Liesel Frischler.

Rostos na multidão

Flieg fotografou pessoas fora do âmbito das encomendas de retratos particulares.

Existem alguns trabalhos que mostram rostos anônimos flagrados por Flieg e que

despertaram sua atenção. Sobre esta questão do flagrante, o artista gráfico Fred Jordan

comentou durante uma sessão de depoimento do fotógrafo no Museu da Imagem e do

Som de São Paulo que “têm muitos fotógrafos que andam com a câmera, que vivenciam

as coisas com a câmera na mão” e que o amigo Flieg, apesar de ser um “registrador”,

Page 171: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

171

ele nunca tinha visto com a máquina na mão fora do estúdio. O fotógrafo responde que

isso ocorreu basicamente nas viagens:

“eu andava sim, não só com máquina, como com

equipamento e deixava me surpreender pelas coisas,

fotografava a coisa como ela vinha (...). Há necessidade da

gente estar completamente livre de preocupações, de

compromissos para poder estar completamente aberto para o

que acontece, para o que vem”.193

Assim, os registros destes rostos anônimos acontecem basicamente na ocasião

das viagens. Dificilmente, Flieg fotografava sem que o fotografado estivesse ciente da

existência da presença do fotógrafo.

Casal na praia. São Vicente, 1944.

Fig. 2.4.21

Um destes raros casos aconteceu em 1944, durante umas férias em São Vicente,

quando Flieg fotografou um casal que estava deitado sobre as rochas da praia (fig.

2.4.21). Nesta foto, não se vê suas faces, suas fisionomias, mas a disposição dos corpos

transmite um estado de tranqüilidade e alegria, é quase a narrativa de uma história de

amor. A moça aponta o dedo da outra mão num movimento que parece quem está

193

Depoimento de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Fred Jordan, Paulo A.

Nascimento, Eduardo Castanho. Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981.

Page 172: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

172

mostrando ao rapaz, pode ser uma aliança de casamento recém-colocada, seria aquilo

uma cena de lua-de-mel? Pode não existir a aliança, mas sim os planos... Há uma grande

valorização do cenário, no primeiro plano o colchão de pedra onde está o casal, depois

uma parede de rochas funciona como uma cerca com mar, que vem na seqüência, com

águas calmas, a areia da praia e, ao fundo, as construções e um automóvel. Há uma idéia

de isolamento, os dois amantes vivem um momento que não permite intrusos. O

fotógrafo que se infiltra neste território exclusivo, ao fotografar a cena, procura tornar

sua presença imperceptível na imagem, através da tomada por trás dos fotografados e da

ênfase no ambiente.

Fig. 2.4.22 Fig. 2.4.23

Moça no mercado. Jacareí, 1974; moça “flagrada” na sede da Escola de Samba Mocidade Alegre. São Paulo, 1970.

Outros dois casos que destaco aqui são as fotos de duas moças, uma num

mercado em Jacareí, em 1974 (fig. 2.4.22), outra na sede da Escola de Samba Mocidade

Alegre, em São Paulo, em 1970 (fig. 2.4.23). Em Jacareí, a moça em primeiro plano

apóia-se na banca vazia, logo atrás uma mureta de azulejos e, ao fundo, vislumbra-se

pessoas conversando, animais em gaiolas. Na escola de samba, o ambiente agitado de

festa, pessoas conversam, passam, observam e interagem entre si e com o cenário do

galpão com mesas com garrafas de cerveja. As duas moças são os focos das respectivas

imagens, são destacadas dos conjuntos que transmitem a idéia de movimento e barulho.

Ambas têm o olhar absorto, olham no sentido extracampo das fotos. A negra enxuga o

Page 173: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

173

rosto, indicando a alta temperatura no ambiente. Flieg enxerga nestes dois casos,

também como na foto do casal na praia, momentos de isolamento. Há inúmeras

especulações que poderíamos fazer sobre as histórias destes olhares. No entanto, aqui o

que interessa é observar que Flieg se colocou na inusual posição de voyeur para

representar a idéia do isolamento, da existência de mundos individuais que convivem

em meio à vida moderna. É o espaço do indivíduo no qual o fotógrafo adentra e tenta

fazer sua presença não-notada, para, com isso, não aniquilar o sentido, pois, afinal, o

próprio ato de fotografar já não quebraria a idéia de mundo particular?

Em algum momento entre 1943 e 1944, Flieg viajou à Fazenda Itaúna, de

propriedade da família Niccolini, como já foi dito anteriormente. Este foi o primeiro

contato do fotógrafo com o interior do Brasil, além da paisagem, impressionaram-lhe

sobre tudo os tipos caboclos com que teve contato lá. O colono com arma, bolsa e um

cachorro prepara-se para caçar (fig. 2.4.24) e o garoto sorri para câmera ao posar junto a

um cacho de bananas e a bananeira (fig. 2.4.25). São retratos de muita plasticidade,

claros, que exploram as tonalidades de cinzas para registrar com detalhes texturas da

vegetação circundante.

Fig. 2.4.24 Fig. 2.4.25

Colono preparado para caça, e garoto com cacho de bananas, Fazenda Itaúna. Descalvado, 1943/44

Na viagem a Parati, em 1965, uma foto que não foi publicada no calendário da

Brown Boveri, mas posteriormente aproveitada no da RUF, mostra um agricultor

posando com uma pilha de abóboras expostas para venda em uma estrada de terra (fig.

2.4.26). A pose do homem indicaria que ele estava posicionado de costas para a câmera

Page 174: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

174

e rotacionou com um movimento de cintura de modo que o rosto olha no sentido do

observador e o corpo em perfil com uma abóbora partida nas mãos. As pernas afastadas

formam um desenho triangular que acompanha um pouco o formato da pilha de frutas.

No fundo, cerca e uma área de cultivo e depois montanhas e vegetação.

Fig. 2.4.26 Fig. 2.4.27

Agricultor vendendo abóboras. Parati, 1965; Grupo de congada. Caminho entre Belo Horizonte e Lagoa Santa,

1966. (Fotos do calendário da RUF)

Na primeira viagem a Minas Gerais, estava a caminho de Lagoa Santa, quando

viu um grupo de congada. Parou e pediu para fotografar (fig. 2.4.27). Em

agradecimento, Flieg ofereceu aos músicos uma garrafa de cachaça e estes últimos em

retribuição convidaram Flieg para almoçar na casa de um deles. Como manda a tradição

local, os convidados deveriam comer primeiro. Ao final da refeição, que Flieg descreve

como uma “recepção bíblica”, pediram que o fotógrafo dissesse algo e ele então

agradeceu e declarou que nunca recebera em parte alguma, nem no país em que nasceu,

uma acolhida tão afetuosa e autêntica como aquela.

Em todos estes retratos da fazenda, de Parati e de Minas Gerais, há um olhar um

pouco etnográfico, de quem faz um registro meticuloso dos hábitos, características

físicas, vestuário, relação com o ambiente, práticas sociais e culturais. Assim, o que

permeia estas fotos não é uma busca pelos sujeitos, mas a identificação de tipos. Não há

um projeto unificador nestas fotos, logo não podemos falar em uma estética linear da

construção das imagens. Enquanto uns posam mais deliberadamente, olhando para a

câmera, como o colhedor de bananas e o vendedor de abóboras, dando a idéia de pausa

e pose, nos outros, transparece a noção do tempo em suspensão, de um instante extraído

Page 175: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

175

do fluxo contínuo das atividades dos retratados. Em todos, há a preocupação em mostrar

o ambiente e objetos o que reforça esta idéia do registro cultural.

Fig. 2.4.28 Fig. 2.4.29

Família do motorista que acompanhou Flieg. Bagé, 1977.

Na viagem a Bagé, em 1977, o motorista que conduziu Flieg da usina até a

cidade, ao final convidou-o para almoçar em sua casa. Na casa simples em madeira, ele

fez dois retratos, um da família (fig. 2.4.28) – motorista, esposa e quatro filhas – e outro

de uma mulher idosa (fig. 2.4.29). Na foto da família, Flieg explora uma verticalidade

inusual em retratos de família, é composto em quatro linhas verticais paralelas: uma

formada pelas duas meninas à esquerda; no centro, pelo homem e a menina menor com

a boneca e as outras duas são a esposa e a filha mais velha que estão em pé. Esta

composição é valorizada pelos biotipos magros e alongados dos retratados. Do

ambiente, transparece apenas um pouco da parede e do piso em madeira, indicando um

tipo de construção muito comum na região Sul do país. O outro retrato traz a mulher no

primeiro plano sentada lateralmente em uma cadeira, ao fundo, um pouco desfocado,

uma mesa com utensílios de cozinha e as paredes de madeira da casinha. Nesta foto, há

Page 176: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

176

um maior destaque do ambiente e objetos em relação à da família. A mulher está

sentada com as mãos cruzadas colocadas sobre as pernas, tendo um bonito contraste

com o vestido preto. Esta pose também muito tradicional, desde os retratos da pintura,

tipicamente feminina, atribui uma dignidade incrível à retratada. Há nesta foto também

um jogo de diagonais que dá muito equilíbrio ao retrato, do encosto da cadeira que faz

uma paralela com a parede ao fundo e a posição da mulher no sentido oposto.

Estas imagens mostram, sem dúvida, tipos brasileiros, são colonos do Sul, há

dados sobre suas residências, traços que indicam alguma ascendência européia, as

roupas, os objetos e os rostos marcados pelo trabalho mostram sua situação econômica.

No entanto, diferente dos retratos da fazenda, de Parati e Minas Gerais, referenciados

acima, estas fotos vão além do interesse cultural, Flieg coloca aqui, novamente, seus

personagens como sujeitos. No retrato da família, cada membro mostra um “estado de

espírito”, um interesse particular, há expressão nos olhares, nas poses, nas roupas. A

mulher em sua dignidade conta com seu olhar cansado, mas atento, muitas histórias para

quem estiver disposto a ouvi-las. Eles não foram flagrados por aí, o fotógrafo adentrou

na casa, conviveu um pouco com eles e depois os fotografou. Assim, os interesses que

moveram estes retratos e as fotos de tipos populares são diversos.

Nos trabalhos sob encomenda particular, Flieg conjuga uma necessidade de

atender aos interesses e desejos dos clientes e, ao mesmo tempo, impor um padrão de

qualidade estética. Como cometa Sergio Miceli, ao analisar os retratos encomendados

de Portinari:

O sucesso da fórmula portinaresca se deveu sobretudo

ao fato de o artista ter sabido atender às expectativas de

representação simbólica nutridas por setores de elite que

acabaram convertendo a encomenda dessas obras numa marca

excepcional de requinte e prestígio. O elemento de base dessa

linguagem plástica empregada nos retratos de Portinari

encontra-se ao mesmo tempo dentro e fora das telas

propriamente ditas.194

Isso, no entanto, não significa que o fotógrafo não se interessava pelos sujeitos

que retratava. Em grande parte de seus trabalhos sob encomenda, é notável a

aproximação que o olhar de Flieg estabelece com os retratados. Da mesma forma, nos

registros de rostos que ele destacou em meio à multidão, há uma vontade de inventariar

os dados sobre cultura do povo brasileiro, o que fica bastante evidente na fotografia de

194

MICELI, Sergio. Imagens negociadas: retratos da elite brasileira (1920-40). São Paulo: Companhia

das Letras, 1996. p. 118.

Page 177: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

177

tipos. Mas, neste caso também, há momentos em que ele se propõe a adentrar no terreno

das subjetividades. Comumente se diz que ver o outro é olhar a si próprio. O que Flieg

talvez visse nos rostos, nos biotipos, nos olhares, nas expressões, nas roupas, ambientes

etc. era sua própria predisposição em descobrir o outro. Este era um dos caminhos para

que ele próprio, o exilado radicado no país, se situasse dentro deste amplo contexto.

Page 178: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

178

Page 179: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

179

Capítulo 3

Um olhar moderno

Coluna da Vitória. Berlim, 1939.

Page 180: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

180

Page 181: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

181

Karl Flieg ao olhar esta fotografia que abre o capítulo achou-a muito estranha.

Por que o filho teria feito uma fotografia em ângulo e enquadramento tão bizarros? A

coluna de 67 metros de altura – tema central da imagem – é avistada de baixo para cima,

quebrando a proporção, não está tão centralizada, nem parece tão reta assim. Outros

elementos, o trecho de um muro entra na cena e ocupa tanto espaço com suas linhas

oblíquas, um pouco de parede branca aparece do lado esquerdo.

O rapaz tirou esta foto em 1939, época em que cursava as aulas de Grete

Karplus. Esta imagem fazia parte de um exercício de rua, usando a sua Leica novinha

em folha. Já tinha fotografado os jardins do Palácio de Sanssouci e passeava pelas ruas

de Berlim atrás de motivos – o Portão de Brandemburgo, o movimento nas ruas,

esquilos no Tiergarten, telhados da Kantstrasse e outros mais. A Coluna da Vitória

(Siegessäule) é um dos principais símbolos urbanos de Berlim, foi erguida em 1873

como marco da vitória prussiana sobre os dinamarqueses, austríacos e franceses, com a

deusa dourada bem ao alto que aponta sua coroa de louros em direção a Paris.

Karl Flieg devia se perguntar como o filho fotografara com tamanha

“displicência” um símbolo de tanta imponência no imaginário alemão. O estranhamento

vem do fato da imagem quebrar com a organização do espaço visual tradicional que é

toda baseada no padrão de perspectiva clássica. Flieg exercitava nesta foto tendências

modernas que estavam em curso desde, pelo menos, a década de 1920 na Alemanha e

que tinham expressões variadas em outras partes da Europa e nos Estados Unidos. A

idéia era liberar o olhar e começar a buscar novos ângulos para fotografar, ângulos que

efetivamente faziam parte da nossa forma de enxergar o mundo, mas que a arte clássica

havia estandardizado em uma única visão, que se transformou no padrão de

representação do real.

Estes olhares surgidos no bojo das transformações culturais dos anos 20 ajudaram

a construir novas visualidades que serviram de modelos para as gerações de fotógrafos

posteriores, como o caso de Flieg. É, assim, por meio de um olhar moderno que ele mira

o país, ajudando a forjar a própria idéia de modernidade nos trópicos.

Page 182: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

182

3.1. Modernidade e fotografia

A expressão fotografia moderna, comumente empregada, carece, acredito eu, de

algumas delimitações dentro do âmbito deste trabalho. A modernidade aparece como

um fenômeno fugidio no campo conceitual, pois tem sua existência vinculada ao que é

antagônico à sua natureza.

Marshall Berman195

identifica como fontes da modernidade as descobertas e os

avanços no campo científico; o emprego da tecnologia nos processos produtivos,

levando ao surto de industrialização; crescimento demográfico “descomunal”;

aceleração da urbanização; implementação de sistemas de comunicação de massa;

reafirmação do poder dos Estados nacionais; movimentos sociais de diversas naturezas

no seio dos grandes centros e expansão do mercado capitalista.

Quanto à datação do fenômeno, Berman o divide em três períodos: do início do

século XVI ao fim do XVIII, que se caracteriza por uma espécie de ensaio da vida

moderna, em que as pessoas não têm “idéia do que as atingiu”; depois, do final do

século XVIII ao XIX, estágio intermediário em que se vive a dicotomia da modernidade

que guarda reminiscências de um mundo anterior ainda não aniquilado, e, por fim, o

século XX, com a expansão “virtualmente planetária” do processo de modernização,

que acaba por fragmentar a experiência perdendo, assim, a consciência de sua gênese.

No segundo período, é que se toma noção da idéia da modernidade com

formulações acerca da natureza da experiência e o novo homem que daí surge. A

relação do homem moderno com a cidade é ontológica e a encarnação da metrópole

moderna oitocentista é Paris. O ritmo das cidades marca o passo da “aventura

moderna”, era um ritmo “marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado e

desorientador do que as fases anteriores da cultura humana”196

, que afetaria para

sempre a percepção sensorial do novo homem.

A modernidade do século XIX, tem Paris como referência urbana e Charles

Baudelaire como principal porta-voz de seu projeto artístico. Baudelaire caracterizou o

moderno no artigo O pintor da vida moderna (1863), como o que marca a diferença

195

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo:

Companhia das Letras, 1986. 196

SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: CHARNEY,

Leo e SCHWARTZ, Vanessa R. (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac &

Naify, 2001. p. 116.

Page 183: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

183

entre o presente, historicamente definido, e o passado, é a atitude diante da atual que

rivaliza e ao mesmo tempo se nutre do repertório histórico. Dentro do espectro da

produção artística, ele definiu: “por ‘modernidade’ entendo o transitório ou passageiro,

por um lado, e o eterno pelo outro – eram dois lados de uma dualidade”.197

Ou seja, a

obra de arte moderna mantém vivo um diálogo entre antigo e novo. Esta dualidade na

arte moderna também foi ressaltada por Perry Anderson:

Sem o adversário comum do academicismo oficial, o

grande arco das novas práticas estéticas tem pouca ou

nenhuma utilidade: sua tensão com os cânones estabelecidos

ou consagrados que encontram pela frente é constitutiva de

sua definição enquanto tal.198

Baudelaire também exalta as qualidades de uma arte moderna concatenada aos

avanços e transformações de sua época e que visa se “embrenhar nas multidões”, as

quais se referia como “um imenso reservatório de energia elétrica”. Berman destaca a

visão artística do poeta e ensaísta francês: “Energia elétrica, caleidoscópio, explosão:

a arte moderna deve recriar para si, as prodigiosas transformações de matéria e

energia que a ciência e a tecnologia modernas – física, óptica, química, engenharia –

haviam promovido”199

. No entanto, esta incorporação da tecnologia na arte é comedida,

pois estas técnicas, como a fotografia, deveriam sempre ocupar um lugar subalterno no

panteão artístico, onde a pintura reinava magnanimamente.

Conforme se adentra ao século XX, novas propostas de arte começam a exigir

uma experiência moderna mais radical. Não era criar uma nova forma de pintar, mas

gerar uma arte que rompesse de vez com a organização de mundo, com o modo de ver

que vigorava desde, pelo menos, a Renascença, uma arte que exigisse novas posturas

dos artistas e o meio para isso era a incorporação definitiva da tecnologia. Estes

movimentos, chamados de vanguardas históricas, desenvolveram-se principalmente na

Europa e nos EUA. Andreas Huyssen chamou o momento do surgimento destas novas

propostas de o “Grande Divisor”, marco da passagem da alta cultura, representada por

um modelo de modernismo oitocentista que pregava um descolamento total entre arte e

197

BAUDELAIRE, Charles Apud FRANSCINA, Francis et al. Modernidade e modernismo: A Pintura

francesa no século XIX. São Paulo: Cosac & Naify, 1998. p. 9. 198

ANDERSON, Perry. Modernidade e Revolução. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 14, pp. 2-

15, fev. 1986.p. 9. 199

BERMAN, Marshall. Op. cit. p. 141.

Page 184: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

184

cultura de massa, para a tendência das vanguardas que buscavam uma arte infiltrada nas

tramas do tecido social, uma “cultura vernacular e popular, que se transformou cada

vez mais na moderna cultura de massa comercial”200

.

Para Huyssen, o principal elemento que influenciou as vanguardas foi a

tecnologia, fato que pode ser mais bem compreendido nas práticas como colagem,

montagem, fotomontagem, que acarretaram a valorização da fotografia e do cinema. A

experiência tecnológica na virada dos séculos XIX para XX gerou, segundo Huyssen,

duas posturas, uma de “estetização da técnica a partir do final do século XIX”,

representada pelas exposições industriais, novos modelos de cidades modernas

preconcebidas etc., e outra de horror à tecnologia, com forte inspiração nietzchiana. A

polarização quanto à questão técnica deu subsídios às formulações artísticas das

vanguardas que buscaram integrar a tecnologia e o fazer da arte.

Walter Benjamin chamou atenção para a mudança de estatuto da arte com a

incorporação tecnológica. O valor de culto tradicionalmente agregava valor aos objetos

artísticos, mas “à medida que as obras de arte se emanciparam do seu uso ritual,

aumentaram as ocasiões para que elas sejam expostas”201

. Assim, o valor de exposição

passou a ser almejado e a obra abandonou a existência única por uma existência serial.

Com esta mudança primordial, o fazer artístico precisaria ser pensado em novos termos.

“A arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais se orientar em função da

reprodutibilidade e, portanto, quanto menos colocar em seu centro a obra original”202

.

O temor tecnológico é ressaltado pelo historiador da arte alemão Wolfgang Born

em seu artigo “Uma concepção fotográfica do mundo”, publicado em 1929, afirma que

“a técnica até o presente destruiu mais possibilidades de felicidade do que ela jamais

criou com suas conquistas civilizatórias”.203

No entanto, continua Born, era necessário

recuperar a sensibilidade e os valores estéticos aniquilados pelo mundo mecanizado, o

que não seria mais possível nos moldes românticos. Era preciso buscar novas formas

que tivessem “o objetivo de espiritualizar a matéria”, tirando dos produtos técnicos a

matéria da obra de arte.

200

HUYSSEN, Andreas. Memórias do Modernismo. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. p. 11. 201

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1935/1936). In: ______.

Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense,

1993. (Obras Escolhidas, 1). p. 173. 202

Ibid. p. 180. 203

BORN, Wolfgang et al. Definitions de l’oeil moderne. In: LUGON, Oliver (org.). La Photographie

en Allemagne: Anthologie de textes (1919-1939). Nîmes: Jacqueline Chambon, 1997. p. 56.

Page 185: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

185

Born identifica a fotografia como o meio por excelência da nova arte, pois tem

como missão descobrir a realidade, na verdade, a expressão da realidade, que não está

na aparência, mas nas estruturas. “Este novo realismo que encontra sua satisfação na

hiperprecisão do detalhe é a expressão de uma mentalidade racional atual”204

. A obra

de arte moderna exigiria transparência e precisão, qualidades oferecidas com bastante

eficiência pela fotografia. Em nosso redor, o mundo industrial, urbano oferece os

motivos, o artista faz uso de várias técnicas fotográficas para daí extrair a beleza. Born

afirma, assim, que “com este programa, a fotografia se insere nas correntes produtivas

da cultura contemporânea”205

.

O artigo de Wolfgang Born, apesar de muito ligado ao contexto particular

alemão, principalmente às propostas da Nova Objetividade, expressa um sentimento,

presente também no texto de Benjamin, mais ou menos geral dos artistas e teóricos

simpáticos às vanguardas, em relação à fotografia e aos meios técnicos de forma geral.

Era preciso romper definitivamente com a arte tradicional, o que significa neste caso,

tirar a fotografia da cola da pintura. A fotografia integrada ao projeto moderno das

vanguardas tem seu próprio caminho, condizente com a natureza da própria técnica.

Molly Nesbit organizou a história da fotografia das vanguardas a partir de dois

pontos: a necessidade de agrupamento de alguns fotógrafos e artistas plásticos para o

desenvolvimento de um campo experimental para a fotografia e a configuração de uma

modernização nos meios de representação visual através da incorporação e a atribuição

de significação estética à ciência e à indústria206

.

Aos futuristas italianos, juntaram-se os irmãos Anton Bruno e Arturo Bragaglia

em 1913, que trabalhavam com a cronofotografia, ou seja, incorporaram uma imagem

“oferecida pela ciência” na pesquisa, que já vinha sendo desenvolvida pelos pintores e

escultores do movimento, sobre a decomposição do movimento. “Era a primeira vez

que eles [fotógrafos, pintores e escultores], na qualidade de artistas, estudavam o

mesmo problema plástico, sobre as mesmas bases e em pé de igualdade”207

.

204

Ibid. p. 57. 205

Ibid. p. 60. 206

NESBIT, Molly. Photographie, art et modernité (1910-1930). In:

LEMAGNY, Jean-Claude; ROUILLÉ, André (org.). Histoire de la photographie.

Paris: Larousse/Bordas, 1998. pp. 104-123. 207

Ibid. p. 106.

Page 186: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

186

Nos Estados Unidos, a vanguarda foi organizada em torno do fotógrafo e

agitador cultural Alfred Stieglitz. Oriundo do pictorialismo, Stieglitz tornou-se um dos

maiores incentivadores da “fotografia direta”, ou seja, sem manipulações óptico-

químicas e em que expedientes “puramente fotográficos”, como enquadramentos,

ângulos e close-ups, dão a substância estética e significativa. O lema do grupo que

renovou a fotografia norte-americana nas décadas de 1910-20 era, conforme, disse o

próprio Stieglitz “um máximo de detalhes com um máximo de simplificação”.208

Outros

fotógrafos fundamentais no desenvolvimento da vanguarda nos Estados Unidos foram

Paul Strand e Edward Weston.

Na França, o principal movimento a incorporar a fotografia em suas pesquisas

foi o Surrealismo. Susan Sontag chega a enxergar o triunfo do movimento na realização

fotográfica. Os fotógrafos próximos ao grupo tinham o objetivo de captar o acidental,

encontros visuais casuais, tal qual na frase do escritor Lautréamont que serviu de mote

aos surrealistas: “belo como o encontro fortuito, sobre uma mesa de dissecação, de

uma máquina de escrever e um guarda-chuva!”209

. Além disso, abusaram de

montagens, sobreposições, fotogramas, solarizações, distorções e outras técnicas que

para a configuração das “imagens oníricas”. O principal nome do grupo é Man Ray,

além de aproximações com os húngaros André Kertész e Brassaï.

Na União Soviética, a fotografia encontrou espaço no Construtivismo,

principalmente, com Aleksandr Rodchenko. O grande meio de circulação eram os

cartazes que serviam de propaganda do governo revolucionário.

A Alemanha foi um dos principais centros de desenvolvimento e irradiação da

fotografia moderna. O dadaísmo alemão teve destaque no campo fotográfico através,

principalmente, das fotomontagens que “visando a destruição revolucionária da cultura

burguesa” satirizam a linguagem da grande imprensa. Os dois principais nomes são

John Heartfield e Raoul Hausmann. No campo da Nova Objetividade, destaca-se o

trabalho de Albert Renger-Patzsch, que em 1928 lançou o livro O mundo é belo (Die

Welt ist schön) com imagens de animais, plantas, construções históricas ou industriais e

objetos industrializados fotografados de maneira direta, clara e com formas bem

definidas. Na Bauhaus, o principal nome a desenvolver pesquisas na área fotográfica foi

o pintor e gravurista Laszlo Moholy-Nagy. Ele “situa a fotografia da Bauhaus dentro

208

Ibid. p. 109. 209

ADES, Dawn. Op. cit. p. 19.

Page 187: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

187

de uma problemática mais ampla, aquela do lugar da imagem na cultura industrial

moderna”210

. Moholy-Nagy foi um dos formuladores do conceito de Nova Visão, que

condensa as principais propostas de renovação visual através de uma fotografia direta e

que se transformou em uma tendência internacional no campo fotográfico a partir do

período do entreguerras.

No pós-Segunda Guerra, as “técnicas de choque das vanguardas” entraram em

obsolescência, pois sua produção não chegou a encontrar de fato um amplo espaço de

circulação social, desprovendo sua motivação básica de uma “arte da vida”, da arte

infiltrada no cotidiano. No entanto, suas propostas estéticas -- não políticas -- foram

prontamente absorvidas pela indústria cultural que arrastava seus tentáculos pelo mundo

à fora. A cultura midiatizada, bancada pela indústria e outras instituições relacionadas

ao grande capital, encontrou nos projetos da arte moderna do século XX o repositório

artístico necessário para o seu desenvolvimento.

Ironicamente, foi a tecnologia que propiciou à obra

de arte a sua ruptura radical com a tradição, porém

desprovendo-a de seu espaço vital necessário no cotidiano. Foi

a indústria cultural e não a vanguarda, que conseguiu

transformar o cotidiano do século XX. 211

No caso específico da fotografia, o visual cristalino apregoado pela Nova Visão e

a valorização de temas correlatos com a indústria e o ambiente urbano colocaram a

imagem fotográfica como elemento de ponta na constituição das novas linguagens do

jornalismo e da publicidade.

Na verdade, no próprio processo de constituição dos modelos estéticos, que

surgiram no bojo dos movimentos de vanguarda, já havia uma intensa integração entre

arte e indústria cultural. Vale citar alguns casos como o de Moholy-Nagy que utilizava

em suas aulas na Bauhaus anúncios de publicidade norte-americanos como exemplos de

composição. No sentido contrário, o brilhante exercício de André Kertesz, O garfo (La

fourchette), de 1928, foi utilizado posteriormente na publicidade de uma marca de

talheres. Man Ray, paralelamente às suas pesquisas junto aos dadaístas e surrealistas,

fez retratos de moda e atuou em propaganda, campo que rendeu alguns dos trabalhos

mais célebres do fotógrafo como a campanha para a Companhia Parisiense de

Distribuição de Eletricidade, em que empregou técnicas de fotograma e

210

NESBIT, Molly. Op. cit. p. 115. 211

HUYSSEN, Andreas. Op. cit. p. 37.

Page 188: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

188

sobreposições212

. Nos Estados Unidos, Edward Steichen e Paul Outbridge levaram ao

campo publicitário as propostas de Stieglitz, Strand e Weston. Marchel Duchamp teve,

durante anos, pendurado em seu estúdio o anúncio com a célebre foto de um colarinho

de camisa de Outbridge.213

Também é de se mencionar a imprensa na Alemanha, responsável por uma grande

revolução no que se refere à utilização da fotografia nos periódicos. A imagem

fotográfica passou a funcionar, não mais como ilustração ao texto, mas adquiriu vida

própria dentro da publicação. A edição de fotografia passou a ter um papel crucial nas

revistas alemãs, a escolha das imagens e a disposição nas páginas deveriam compor um

conjunto harmonioso, as imagens precisariam se inter-relacionar. Outra marca do

fotojornalismo alemão deste período foi a experimentação com as montagens e

colagens. As técnicas desenvolvidas pelos artistas de vanguarda, principalmente

vinculados ao dadaísmo, encontraram nas publicações periódicas ligadas ao movimento

operário e às esquerdas um meio eficaz para dotar sua arte de uso revolucionário,

atingindo, assim, o objetivo dos movimentos artísticos de produzir arte para as pessoas

comuns214

.

A indústria, que foi tomada como um dos temas principais das vanguardas,

adquiriu fotogenia através das lentes dos fotógrafos modernos. “Fábricas, componentes

de máquinas, linhas de montagem, galpões e veículos mecanizados (...) atraíram

fotógrafos que acreditavam que a câmera era um meio eminentemente apropriado para

lidar com suas formas e texturas”215

. Albert Renger-Patzsch deu magnitude aos altos

fornos, guindastes navais e detalhes mecânicos. Paul Wolff propunha novos olhares ao

ambiente industrial através do uso da câmera de pequeno formato. Nos Estados Unidos,

Paul Strand explorou as formas e as sutilezas tonais e de brilho de um torno mecânico,

Charles Sheeler obteve formas surpreendentes ao fotografar a fábrica da Ford e

Margareth Bourke-White notabilizou-se com suas fotos da barragem de Fort Peck, que

lhe rendeu a capa do primeiro número da revista Life. Estas e várias outras experiências

estetizaram o espaço industrial o que atraiu a atenção de publicitários e executivos de

212

EGUIZÁBAL, Raúl. Fotografía publicitaria. Madrid: Catedra, 2001. pp. 14-15; 50-51. 213

SOBIESZEK, Robert. The art of persuasion: a history of advertising photography. New York: Harry

N. Abrams, Inc., 1988. p. 32. 214

WILLETT, John. Heartfield contre Hitler. Paris: Éditions Hazans, 1997; FABRIS, Annateresa. A

fotomontagem como visão política. Folha de S. Paulo, São Paulo, 23 out. 1987. Folhetim, pp. B3-B4. 215

ROSENBLUM, Naomi. A world history of photography. New York: Abbeville, 1997. p. 454.

Page 189: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

189

grandes empresas, que prontamente absorveram este padrão de visualidade em sua

comunicação promocional.

Assim, falar em fotografia moderna é falar em uma linguagem integrada aos

meios da indústria cultural . No caso brasileiro, esta modernidade ligada ao mercado de

bens simbólicos só pode ser identificada a partir da década de 1940, mas ainda de forma

incipiente. Segundo Renato Ortiz, a sociedade de massa no Brasil se inicia nos anos 40

do século XX “porque se consolida neste momento o que os sociólogos denominaram

como sociedade urbano-industrial”216

. Ortiz afirma que estes primeiros passos da

cultura de massa perduram até início da década de 1960, quando se começa a firmar

uma indústria cultural mais estruturada e integrada no país.

No campo fotográfico brasileiro, é justamente a partir dos anos 1940 que se

verifica a constituição de uma fotografia moderna pós-vanguardas, pois foi o momento

de uma convergência de fatores: o processo de constituição de uma indústria cultural, a

vinda dos refugiados da Guerra e do nazismo, que trazem experiência técnica e/ou

repertório da modernidade européia e a necessidade econômica destes imigrantes que os

obriga a se integrar rapidamente ao mercado.

Flieg no campo da experimentação

Como já foi dito anteriormente, Flieg consumiu em sua infância e juventude a

modernidade artística européia. Mesmo quando chegou ao Brasil, continuou a se inteirar

do que acontecia no hemisfério norte. Tinha contato através de livros e, principalmente,

através de revistas especializadas e da Life. Ele assinou a revista norte-americana por

muitos anos, que lhe serviu de manancial sobre a fotografia moderna empregada no

jornalismo e na publicidade, que chegava a ocupar cerca de trinta por cento do espaço

da publicação.

Além dos trabalhos comerciais, que se destacam nos campos da arquitetura,

indústria e publicidade, como veremos a seguir, existem algumas experiências

concatenadas esteticamente às propostas das vanguardas que valeriam ser mostradas.

Em 1946, foi convidado a colaborar em vários números da revista humorística Bom

Humor, da qual participava Darcy Penteado. Ele ficou responsável por duas seções

fotográficas: As grandes mentiras e Surrealismo, em que assinava como PUM. Para a

216

ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: Cultura Brasileira e Indústria Cultural. São Paulo:

Brasiliense, 1991. p. 38.

Page 190: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

190

primeira coluna produziu as fotos “Pão de trigo” (imagem de um pão fatiado)217

,

“Secretária” (fig. 3.1.1), “Jogo proibido” (foto de letreiro de uma casa lotérica) e

“Hora certa” (relógio de pulso). Na seção Surrealismo, foram publicadas “Discussão”

(imagem de um taxímetro), “Purê de batata” (fig. 3.1.2), “Esposa... Amante...” (num

quadro um tamanco e um escovão, no outro, jóias e cetim), “Esposa...” (pau de

macarrão), “Pecado original” (maçã mordida) e “Viúvo” (retrato de homem

sorridente). Vale notar como Flieg fez muito uso de composições com objetos

aproximando-se, assim, das propostas dos surrealistas nos “encontros casuais”, que têm

os componentes de humor reforçados pelo texto (título da foto).

Fig. 3.1.1 Fig.3.1.2

Secretária e Purê de Batata, fotos para a revista Bom Humor. São Paulo, 1946.

Com o amigo e artista gráfico Fred Jordan, Flieg fez uma experiência: num

quarto escuro, apontaram uma câmera para um farolete de mão que estava preso ao teto

com um fio de náilon, abriam o obturador da máquina e começaram a dar toques no

farolete de modo que este fizesse movimentos circulares, depois de algum tempo, o

obturador era fechado.

217

O contexto desta foto é logo após o fim da Segunda Guerra, as exportações de alguns produtos como a

farinha de trigo estavam seriamente comprometidos. Assim, houve a substituição do trigo por outros

ingredientes na produção dos chamados “pães de guerra”, que causaram uma certa comoção por

“aproximar” a Guerra do cotidiano popular. CYTRYNOWICZ, Roney. Guerra sem guerra: a

mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Geração/Edusp,

2000. pp.51-66.

Page 191: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

191

Fig. 3.1.3

Desenho luminoso, realizado com Fred Jordan. São Paulo, s/d.

O resultado era o registro das impressões luminosas circulares sobre uma

superfície preta (fig. 3.1.3). Não há noção de profundidade, é uma imagem gráfica

chapada, contendo inclusive a idéia do padrão da curva de Moebius. Há, assim, um

aporte científico na experimentação. Esta técnica foi muito utilizada por Moholy-Nagy

para compor escrituras ou desenhos luminosos em suas pesquisas sobre formações

dinâmicas.

Fig. 3.1.4 Fig. 3.1.5

70 Extra, nu. São Paulo, s/d; macacos-aranha,fotomontagem. São Paulo, 1959.

Durante uma seção de fotos para uma campanha de lingerie, Flieg realizou um

nu, que posteriormente foi intitulado de 70 Extra (fig. 3.1.4). Trabalhou com o corpo

fracionado, um dos principais expedientes utilizados nos nus modernos, mas enquadrou

o torso e usou filtro suavizador para texturizar a imagem, o que remete à arte clássica, às

esculturas gregas em mármore.

Page 192: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

190

No campo das montagens, fez algumas fotos de um casal de macacos-aranha do

Jardim Zoológico de São Paulo, durante um passeio em 1959, depois montou três destas

cenas sobre um fundo de superfície de um mar ou rio (fig. 3.1.5). Há assim uma

narrativa, o encontro e a separação dos dois macaquinhos, ou seja, existem vários

tempos na mesma imagem e um espaço irreal criado pela sobreposição. Esta quebra na

noção de tempo e espaço foi elemento fundamental nas propostas das colagens

realizadas por dadaístas e surrealistas.

Além disso, as experiências com novos ângulos e perspectivas, aparecem com

muita freqüência dentro de sua obra, tanto nos trabalhos encomendados, como nos

paralelos a eles. Por exemplo, durante a cobertura nas usinas do rio Juquiá, em 1975,

fotografou uma árvore bem por baixo, de modo que os ramos de folhagens nos galhos

assumem um desenho gráfico, sob o céu totalmente chapado em branco (fig. 3.1.6). É

impossível não compará-la com a foto Conífera, de 1926, de Rodchenko (fig. 3.1.7), em

que as perspectivas e os efeitos visuais são muito similares nas duas imagens. Talvez,

Flieg nem conhecesse esta imagem de Rodchenko, mas isso demonstra que havia

introjetado em seu trabalho os princípios da nova visão de décadas antes, que via na

fotografia, conforme o as palavras do próprio fotógrafo soviético, “o meio perfeito de

descobrir o mundo da ciência, o da técnica, assim como o ambiente material da

humanidade contemporânea”218

.

Fig. 3.1.6 Fig. 3.1.7

Árvore fotografada próximo à usina Fumaça. Vale do rio Juquiá, 1975; A. Rodchenko.Imagem da

seqüência fotográfica Floresta de Pouchkino, publicada na revista Novyi Lef, 1928.

218

Apud SARTORTI, Rosalind. La photograhie et L’Etat dans l’entre-deux-

guerres: L’Union Soviétique. In: LEMAGNY, Jean-Claude; ROUILLÉ, André (orgs.).

Op. Cit. p. 128.

Page 193: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

191

3.2. Uma nova perspectiva na fotografia de arquitetura

Na visita à capela do Sítio Santo Antônio, em São Roque, em 1967, Flieg

acompanhava a artista Diana Danon, que fazia desenhos de arquitetura. Enquanto,

Danon desenhava, o fotógrafo ia também produzindo suas imagens com o foco voltado

para o registro dos detalhes arquitetônicos da capelinha seiscentista. Numa destas

imagens, a partir do púlpito, Flieg fotografou a parede de fundo do pequeno templo (fig.

3.2.1), toda em madeira, com superfícies vazadas -- treliças, ripas paralelas com espaço

entre elas e a balaustrada da galeria. As duas folhas da porta estavam totalmente abertas.

Como a foto é feita de dentro para fora, ou seja à contraluz, há muita claridade entrando,

carregando o contraste. Formou-se uma imagem muito gráfica, que lembra quase um

alto-contraste. Perdeu-se a consistência da madeira, não há marcas, nem rugosidade,

tudo liso. Não há referência de cores, não sabemos pela foto se a madeira é pintada, qual

é a tonalidade ou se há mais de uma.

Capela do Sítio Santo Antônio. São Roque, 1967.

Fig. 3.2.1

Assim, a imagem valoriza as formas mais gerais, a estrutura do conjunto

representado, sem os detalhes mais táteis. Ou seja, Flieg selecionou um aspecto – o

estrutural – para enfocar. A foto destaca a simplicidade da solução dos elementos

vazados que permite a entrada de luz que deverá em momentos do dia refletir no altar,

tal qual as rosáceas góticas, criando a atmosfera de elevação espiritual que a arquitetura

de igrejas tradicionalmente visou.

Page 194: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

192

A representação de estruturas arquitetônicas teve sua configuração mais precisa

a partir da pintura por volta do século XVI. Caracteriza-se pelo enfoque no arranjo

arquitetônico, em que “as figuras não se subordinam à arquitetura” de modo a

“acentuar a beleza e a forma das construções”219

. Na pintura holandesa, desenvolveu-se

nas vistas de cidades e nos interiores, principalmente, de igrejas. Chamadas também de

“perspectivas”, estas imagens tinham como objetivo principal fazer uma descrição o

mais completa possível de um edifício real ou imaginário, ou seja, buscavam abarcar o

todo, mostrando o máximo possível e com riqueza de detalhes. Nos interiores de igreja,

por exemplo, era comum aos artistas trabalharem com um ângulo de visão que cerca de

90°.

No século XIX, já nos primeiros tempos da fotografia, a arquitetura toma a cena.

Se, nos passos iniciais da técnica, os longos tempos de exposição limitavam a escolha

de motivos para se colocar perante à câmera, os edifícios e monumentos aliavam a

estaticidade ao interesse cultural que podiam expressar. Foram muito exploradas, em

princípio, dentro do âmbito das fotografias de “viagem”, publicadas em álbuns,

vendidas avulsamente e, mais tarde, na forma de postais. Logo, as administrações

públicas começaram a encomendar trabalhos de acompanhamento fotográfico do

andamento de obras, bem como, as tomadas de vistas e construções com finalidades

documentais e promocionais.

Em 1851, na França, a Comissão de Monumentos Históricos organizou a Missão

heliográfica com o intuito de produzir um censo visual do patrimônio arquitetônico

francês. Integraram o grupo os fotógrafos Edouard Denis Baldus, Hippolyte Bayard, Le

Gray, Henri Le Secq e O. Mestral. Embora a missão não tenha chegado a realizar um

inventário do patrimônio francês e as cerca de 300 imagens produzidas não tenham sido

publicadas, parte delas auxiliou nos trabalhos de recuperação e restauro de muitos bens

arquitetônicos coordenados pelo arquiteto Emmanuel Viollet-le-Duc220

. O inglês Henry

Delamotte acompanhou, semanalmente, entre 1851 e 1854, as obras de reconstrução do

Palácio de Cristal em Sydenham221

. A partir de 1864, os fotógrafos Louis-Emille

219

SLIVE, Seymour. Pintura holandesa 1600-1800. São Paulo: Cosac & Naify, 1998. p. 262. 220

ROSENBLUM, Naomi. Op. cit. pp. 99-100. 221

Ibid. p. 156.

Page 195: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

193

Durandelle e Hyacinthe-César Delmaët foram incumbidos de acompanharam as etapas

da construção da Opéra de Paris, por cerca de dez anos222

.

De forma geral, a fotografia de arquitetura do século XIX privilegiou os

enquadramentos em perspectiva plana que “permitissem a compreensão mais global do

volume arquitetônico fotografado”223

, as escalas e proporções não deveriam ser

distorcidas, as fragmentações evitadas. No entanto, nos conjuntos de fotografias do

Palácio de Cristal e da Opéra, os fotógrafos buscaram o detalhe:

Essas fotografias de acompanhamento de obras, de

registro de detalhes, abandonaram, enquanto composição, a

pretensão de abarcar a obra inteira. São enquadramentos que

buscam o detalhe, o singular, o específico. Resultam

fotografias que prenunciam algumas composições abstratas do

século XX. Os detalhes das estruturas de ferro, o paralelismo

das vigas, os cortes, os jogos de luz e sombra, as

transparências, são efeitos visuais novos que o tema sugere ao

sistema de representação.224

No século XX, com a renovação no pensamento arquitetônico225

e as novas

propostas no campo fotográfico, a maneira de fotografar a arquitetura, obviamente,

também se modificou. O espaço construído passou a ser pensado não mais a partir de

um único ponto de vista, mas com a idéia de dinamismo. Walter Gropius recomendava

que “uma construção só irá suscitar efeito intenso depois de satisfeitas, para todas as

distâncias possíveis e todos os aspectos, todas as condições da escala humana”226

.

Nesta concepção, o relativismo e os efeitos ilusórios regem a visão. Gropius chega a

utilizar pesquisas sobre percepção realizadas por Earl C. Kelley, da Universidade de

Wayne (EUA), no campo oftalmologia para basear seu trabalho, do qual cita do

seguinte trecho:

222

ROUILLÉ, André. L’essor de la photographie (1851-1870). In: LEMAGNY,

Jean-Claude; ROUILLÉ, André (orgs.). Op. cit. p. 46. 223

CARVALHO, Maria Cristina Wolff de; WOLFF, Silvia Ferreira Santos. Arquitetura e fotografia no

século XIX. In: FABRIS, Annateresa (org.). Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo:

Edusp, 1998. p. 145. 224

Ibid. p. 155. 225

Argan identifica como os principais núcleos de irradiação das propostas da arquitetura moderna: na

França, encabeçado por Le Corbusier; na Alemanha, vinculado à Bauhaus, com Walter Gropius à frente;

na União Soviética, com o Construtivismo; na Holanda, com o Neoplasticismo, e nos países

escandinavos, com a figura central de A. Aalto. ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo:

Companhia das Letras, 1992. p. 264. 226

GROPIUS, Walter. Bauhaus: Novarquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1977. p. 67.

Page 196: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

194

Nossas impressões sensoriais não nos vêm das coisas

que nos cercam mas procedem de nós mesmos. Como não

provêm do meio-ambiente imediato e, obviamente, tampouco

do futuro, eles devem vir do passado. Mas se provêm do

passado, só podem estar baseadas em experiências

precedentes.227

Desta forma, a arquitetura deveria trabalhar com este dado. A fotografia, por seu

lado, passou a explorar possibilidades de ver o mundo sob vários ângulos. Assim, ao

fotografar motivos arquitetônicos, os fotógrafos abandonaram o ponto de vista mais

distante e começaram a se infiltrar nos edifícios, rotacionaram o olhar para todos os

lados, buscando sensações óticas e simbólicas que dessem nova dimensão à

representação espacial. Ver a arquitetura passa a ser vê-la em suas variantes de

distância, luz e ângulo/enquadramento, na evidência das relações de tempo e espaço, na

relatividade de proporções, cores e volumes.

Retornando à imagem inicial da capelinha em São Roque, não há nela uma

apresentação globalizante e descritiva da construção como havia nas pinturas

arquitetônicas e nas fotografias do século XIX. Há, como já foi dito, uma seleção do

aspecto estrutural que remete a uma sensação (a elevação espiritual) e a um referencial

histórico (a arquitetura de igrejas no geral e a da capela especificamente) concretizados

numa composição visual harmônica e gráfica.

Embora, Flieg não seja usualmente classificado como fotógrafo de arquitetura,

ele produziu, nesta área, um material, que não é dos mais volumosos dentro do seu

acervo de imagens, mas não deixa de ser bastante expressivo. Neste item não estou

considerando as vistas de cidades, mas as imagens onde o interesse central é

propriamente a arquitetura. A finalidade principal destas fotos era o uso promocional de

empreendimentos imobiliários – principalmente a partir do boom da década de 1950 --

fábricas, lojas e outros, ou seja, dentro do campo da propaganda, como também de

documentação promocional para as empresas. Flieg também atendeu alguns arquitetos,

principalmente, para fotografar desenhos e maquetes. Existem os trabalhos de interesse

histórico, como o da capela do Sítio Santo Antônio, que tinham motivações

exclusivamente pessoais, sem nenhuma aplicação comercial iminente.

Seja como for, a arquitetura sempre foi, sem dúvida, uma das áreas de muito

interesse do fotógrafo. Isto possivelmente se relaciona com a própria formação dentro

da família, com o cultivo pelo gosto a tudo que fosse relacionado às artes e ao

227

Ibid. p. 47.

Page 197: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

195

artesanato, e do ambiente de Chemnitz que propiciavam um certo contato com vários

tipos de arquiteturas, de estilos medievais ao que de mais moderno se estava produzindo

na época. No Brasil, isto foi se consolidado através de leitura e da convivência dentro de

círculos de amizades, como a própria Diana Danon, em que a arquitetura,

provavelmente, foi tema constante de conversas. Assim, sua fotografia arquitetônica

apresenta um olhar atento, muita elaboração técnica e uma grande sensibilidade aos

aspectos primordiais dos espaços fotografados.

Maquetes e obras

A fotografia de arquitetura não se resume às construções acabadas, mas também

ao projeto, maquetes e acompanhamento de obras. Flieg realizou trabalhos, por

exemplo, para o arquiteto Benedito Calixto de Jesus Netto, especialista no projeto de

igrejas. Para ele, Flieg fotografou desenhos da Igreja Matriz de Andradina e projetos e a

maquete da Basílica de Nossa Senhora Aparecida, de Aparecida do Norte.

Entre vários trabalhos neste campo, destaco dois. Primeiro, uma foto da maquete,

que ficava exposta na rodoviária de São Paulo, do planejamento da área da Marginal

Pinheiros (fig. 3.2.2). A outra é extraída de um trabalho em que Flieg fez algumas

fotografias da maquete da residência de Olívio Gomes, com projeto de Rino Levi,

construída em São José dos Campos (fig. 3.2.3).

Fig . 3.2.2 Fig. 3.2.3

Maquetes do planejamento da Marginal Pinheiros e da residência de Olívio Gomes. São Paulo, s/d.

Há uma clara preocupação em representar estes esboços tridimensionais de

projetos arquitetônicos de forma que o observador da imagem seja colocado na mesma

escala da maquete, ou seja, que a imagem produza a sensação de se estar olhando para

as construções já executadas. Assim, o ponto de vista assumido é primordial para

Page 198: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

196

garantir este efeito. Na maquete da Marginal Pinheiros, que representa uma extensa área

urbana e não um edifício isolado, a foto foi feita de cima, obliquamente, dando a idéia

do conjunto e na perspectiva similar de uma “vista aérea” da região. A maquete da

residência de Olívio Gomes trabalha com a idéia do observador colocado dentro das

áreas construídas. Não há aí a preocupação em se registrar o conjunto todo, mas uma

visão relativizada por um ponto de vista. Flieg chegou, em alguns casos, como na foto

do projeto do Clube Atlético Paulistano a colocar sua Leica dentro da maquete para

conseguir o efeito, sem causar distorções.

Para a divulgação do edifício Verdemar em Santos, em 1954, foram fotografados

a maquete e o local onde o prédio seria erguido. Então, Flieg montou a imagem do

modelo sobre a paisagem (fig. 3.2.4). Para o projeto de Lina Bo Bardi do Museu na

Praia, Flieg ambientou a maquete da arquiteta num cenário beira-mar (fig. 3.2.5). Nos

dois casos, houve o cuidado de fotografar as maquetes na mesma perspectiva e com luz

similar aos das vistas dos terrenos. Na foto da maquete do edifício de Santos, observa-se

que ele criou o efeito de sombras incidindo sobre Verdemar e “produzidas por ele”,

sobre o edifício ao lado.

Page 199: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

197

Fig. 3.2.4

Fig. 3.2.5

Fotomontagens: Sobreposição da imagem da maquete de edifício Verdemar ao terreno numa vista do

local. Encomenda da Monções Construtora Imobiliária, através da agência Fábio Teixeira de

Carvalho. Santos, 1954; imagem da maquete de projeto de museu de Lina Bo Bardi montada sobre

um cenário de praia. São Paulo, s/d.

A técnica da fotomontagem permite a aproximação de elementos distantes e

de escalas diferentes para um mesmo espaço. Como destaca Dawn Ades, “a

fotomontagem permite múltiplas estruturações de espaço, o que lhe confere

irracionalidade pela aproximação de objetos sem medidas comuns”228

. Nas imagens

de Flieg, as pequenas dimensões das maquetes são transportadas para ambientes de

grandes proporções e adulteram-se as escalas para permitir a convivência dos

elementos díspares. A “irracionalidade” destas montagens está no fato de elas, ao

mexerem com a noção de espaço, interferem na linha temporal. Duas imagens do

tempo presente – paisagem e maquete – sobrepostas geram uma representação do

futuro – do espaço ocupado pelas construções. Vale notar que, se nas imagens dos

dois edifícios residenciais, há uma preocupação em criar espaços ideais e plausíveis

para a publicidade imobiliária, a fotomontagem do museu adentra no campo do

fantástico.

228

ADES, Dawn,. Photomontage. Paris: Chêne, 1976. p. 21.

Page 200: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

198

Quanto à fotografia de obras em construção, Flieg não chegou propriamente

a realizar um trabalho de acompanhamento, sendo o mais próximo disto, a

reportagem da I Bienal, em que ele fotografa a preparação para demolição e depois o

pavilhão já pronto (vide capítulo 2, no item sobre São Paulo). No entanto, ele

realizou muitas fotos isoladas da construção de prédios, como as para a encomenda

da STIG (Sociedade Técnica de Instalações Gerais), em 1949, com as obras dos

edifícios CBI-Esplanada (fig. 2.2.9-15), do Banco do Brasil (fig. 2.2.16), entre

outros. São, no geral, vistas externas dos esqueletos das obras, em tomadas mais

abrangentes.

Exteriores

Na viagem a Minas Gerais em 1966, Flieg também exercitou a fotografia de

arquitetura, no registro dos edifícios barrocos. Fez uma foto da fachada do Museu da

Inconfidência, em Ouro Preto (fig. 3.2.6), numa tomada frontal. O ponto de vista é

centralizado, a imagem simétrica, as proporções do edifício são mantidas na

representação. As vistas frontais, habituais na fotografia de arquitetura do século

XIX,

ressaltam, mais que a espacialidade

tridimensional dos edifícios, os planos de uma única face,

da fachada ao detalhe arquitetônico. Essas vistas

intencionavam proporcionar a leitura exata e cuidadosa

do que era retratado, induzindo ao reconhecimento do

caráter fidedigno e até científico da reprodução.229

Fachada do Museu da Inconfidência. Ouro Preto, 1966.

F Fig. 3.2.6

229

CARVALHO, Maria Cristina Wolff de; WOLFF, Silvia Ferreira Santos. Op. cit. p. 144.

Page 201: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

199

As duas pessoas sentadas, no canto inferior direito da imagem, funcionam

como escala. Ao mesmo tempo, elas quebram um pouco o caráter esquemático da

composição, porque, além de desequilibrar levemente a simetria, dão a noção de uso

do espaço, logo de temporalidade. A dimensão temporal também fica marcada pela

luz forte incidente e a produção de sombras, que ocultam alguns detalhes da

construção, mas evidenciam a idéia de um período do dia.

Estes dois elementos, a presença de figura humana e a luz natural, são

destacados por Walter Gropius como referenciais para relacionamento visual do

observador com as obras arquitetônicas. O arquiteto afirma que “nosso corpo é a

escala, que nos permite edificar um sistema tridimensional finito de relações dentro

do espaço finito”230

e que “o objeto, que vemos na variação viva da luz do dia,

oferece a toda hora outra impressão”231

. A idéia é a construção de um espaço, ou de

uma noção de espaço, que transmita dinamismo, assim, também a integração com as

áreas circundantes à construção também é fundamental, além de permitir a

apreciação dos volumes

Do trabalho com luz natural e sombras, valeria destacar uma foto, de 1953, do

prédio projetado por Oscar Niemeyer para a fábrica da Duchen-Peixe (fig. 3.2.7). A

alternância de áreas claras e escuras e o destaque das linhas curvas dão dinâmica ao

espaço e integra quase de forma orgânica as construções com o exterior.

Fig. 3.2.7 Fig. 3.2.8

230

GROPIUS, Walter. Op. cit. p. 65. 231

Ibid. p. 75.

Page 202: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

200

Fábrica da Duchen-Peixe, projetada por Oscar Niemeyer. Encomendada pela Duche-Peixe, através

da agência Standard. Guarulhos, 1953;vista do edifício Verdemar. Encomenda da Monções

Construtura Imobiliária, através da agência Fábio Teixeira de Carvalho. Santos, 1954.

Quando foi fotografar o edifício Verdemar, em Santos, desta vez, já pronto

(fig. 3.2.8), Flieg novamente colocou a forma amebóide quase como uma moldura

na parte superior da imagem, o edifício está ao fundo, ladeado por outros prédios e,

no primeiro plano, o gramado com pessoas recostadas, sentadas no banco ou

caminhando. Como na imagem anterior, a forma curva funciona como elemento que

integra todo o espaço dando unidade orgânica. As figuras humanas – as moças em

destaque são modelos – não servem aí como escala, já que a distância que elas estão

do edifício causa distorções. Há, sim, a apresentação de um espaço com vida, com

interação entre as várias áreas e construções, o que garante à imagem de divulgação

imobiliária a idéia de um local aprazível para se viver.

Fig. 3.2.9

Pousada da Maioridade. Estrada d Santos. 1978.

Num outro passeio acompanhando Diana Danon, em 1978, Flieg foi à antiga

e abandonada Pousada da Maioridade, projetada por Victor Dubugras, na estrada

velha de Santos. Mais uma vez, Danon ficou desenhando enquanto o fotógrafo

disparava sua câmera, registrando detalhes da arquitetura do local. Destaco aqui a

foto em que a construção é mostrada por inteira (fig. 3.2.9), a partir de um ponto de

vista mais distante e a um nível mais baixo. Assim, olha-se o prédio de baixo para

cima, o que dá imponência, mas, mais do que isso, mostra uma vista geral, com

detalhes à mostra, como o uso de pedra, enfatiza o volume e a sua inserção

harmônica no espaço de serra e vegetação espessa.

Um dos trabalhos de arquitetura em que Flieg mais experimentou novos

ângulos e perspectivas foi a reportagem que fez do então novo prédio da sede das

Page 203: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

201

Monções Pirelli, na década de 1950, na rua Barão de Piracicaba, em São Paulo. A

fachada principal, ele fotografa primeiro de baixo para cima (fig. 3.2.10) e, depois,

de cima para baixo (fig. 3.2.11). Ao olharmos muito para cima, tendemos a perder o

eixo, a desequilibrar. Assim, a primeira imagem trabalha com isso, há a quebra

acentuada de proporções em que o prédio parece se afunilar e a composição enfatiza

a configuração não simétrica da fachada. Na segunda foto, o ângulo deixa a

princípio o observador desnorteado, demoramos um pouco a situar o ponto de vista

no alto de uma janela do edifício. Quando entendemos o posicionamento, que deixa

a perspectiva levemente achatada e valoriza a estampa do calçamento, vem a

vertigem. Ou seja, é pura sensação!

Fig. 3.2.10 Fig. 3.2.11

Ângulos da fachada do edifício das Monções Pirelli, na rua Barão de Piracicaba. São Paulo, década

de 1950

Fig. 3.2.12

Tomada da face anterior do edifício das Monções Pirelli, na rua Barão de Piracicaba. São Paulo,

década de 1950.

Page 204: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

202

Interiores e detalhes

Na mesma série da Pirelli, Flieg enfoca um puxador de uma porta de vidro no

interior do prédio (fig. 3.2.13). O que seria uma foto de um detalhe mostra, na

verdade um espaço de grande fruição. Aí o elemento principal é a transparência do

vidro que integra os espaços e transmite a idéia de movimento.

O movimento no espaço ou na ilusão de um

movimento no espaço pela magia do artista tornou-se um

fator influente nas obras de arte da moderna arquitetura,

escultura e pintura. Preferimos hoje na arquitetura uma

transparência que é alcançada por grandes superfícies de

vidro, por secções salientes e abertas na obra

arquitetônica. Essa transparência tenta produzir a

impressão de um contínuo espacial fluente. A construção

parece pairar no ar e o espaço parece fluir através dela.

(...) O próprio espaço parece movimentar-se.232

Fig. 3.2.13 Fig. 3.2.14

Puxador e hall do edifício das Monções Pirelli, na rua Barão de Piracicaba. São Paulo, década de

1950; lojas Kirsch. Foto encomendada pelo arquiteto Henri Maluf. São Paulo, s/d.

A transparência também é explorada na fotografia da Loja Kirsch de

persianas (fig. 3.2.14), fotografada para documentação do arquiteto Henri Maluf. A

partir de uma tomada realizada do lado de fora da loja, tem-se a visão de todo o

conjunto, porque novamente o que está em foco é a transparência, que permite não

só a visualização como transmite a idéia de espaços integrados.

232

GROPIUS, Walter. Op. cit. p. 76.

Page 205: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

203

Fig. 3.2.15

Interior da loja da Eletro-Radiobraz, na rua Celso Garcia. São Paulo, início da década de 1950.

Ao adentrar nos edifícios de arquitetura moderna, esta integração espacial é o

eixo fundamental da fotografia de Flieg. Uma imagem (fig. 3.2.15) que compõe a

reportagem que o fotógrafo produziu da então recém-inaugurada loja da Eletro-

Radiobraz, na rua Celso Garcia, no início da década de 1950, é tomada de cima e

tem-se a noção dos níveis interligados, inclusive as rampas e a escada tem destaque

e função evidenciada na composição. Na foto, os espaços não são tratados como

unidades autônomas, mas contínuas.

Os detalhes arquitetônicos são o outro foco da fotografia de arquitetura. Esta

categoria de imagem busca mostrar elementos que se diluem nos conjuntos e, ao

ganharem representação particularizada, alguns de seus atributos estéticos ou

técnicos são ressaltados. Cito, como exemplo, a foto de um pequeno detalhe do

relevo em madeira (fig. 3.2.16), fotografado por Flieg durante a visita à capela do

Sítio Santo Antônio. Pela imagem, não conseguimos saber onde está localizado o

relevo, não há referência de escala, o que fica em evidência é a acuidade do trabalho

artesanal, ou seja, o foco do olhar de Flieg à capela é o humano e não o tecnológico.

Quando fotografou o Monumento do Ipiranga em 1971 para o calendário da

Brown Boveri, Flieg fez também várias imagens, que não foram publicadas, de

detalhes da construção. Posteriormente, ele produziu cópias em alto-contraste deste

material, novamente optando pelo efeito gráfico que destaca, como no caso da foto

da cornija de um pedestal (fig. 3.2.17), o desenho das molduras e a textura da pedra.

Da mesma forma que na foto anterior, não há referências da localização deste

Page 206: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

204

detalhe dentro do conjunto escultórico, nem de escala. Aqui, o que fica em

evidência é o grafismo das formas esculpidas.

Fig. 3.2.16 Fig. 3.2.17

Entalhe em madeira na capela do Sítio Santo Antônio. São Roque, 1967; detalhe em alto-contraste do relevo na cornija de um

pedestal do Monumento do Ipiranga. São Paulo, 1971.

O trabalho de Flieg no campo da fotografia de arquitetura é nitidamente

pautado por uma visão moderna, ou seja, concatenada às novas propostas, tanto

arquitetônicas quanto fotográficas, que surgiram na Europa a partir dos anos de

1920. O fotógrafo utilizou expedientes e técnicas valorizadas no bojo dos

modernismos como montagem, angulações inusuais, distorções de perspectiva,

inversão de escalas, entre outros. No entanto, ele nunca tomou estes modelos como

um receituário, recorrendo também, quando necessário, a enquadramentos e outros

recursos de composição bastante tradicionais, tanto da fotografia do século XIX,

como da pintura, acrescentando talvez um pouco de vitalidade.

A maioria destes trabalhos de Flieg fazia parte de encomendas comerciais,

tinham desde sua concepção uma aplicação preestabelecida. Assim, o

experimentalismo não era o objetivo em si, o essencial era produzir uma

comunicação adequada, em cada caso, a uma finalidade. O fotógrafo pôs-se a

perpassar por estilos, modelos e concepções variados, conforme a necessidade de

cada serviço. Não consigo identificar fórmulas nestas imagens de arquitetura, há, me

parece, uma busca por “formas autênticas” a partir das condições dadas e não,

propriamente, ideais.

Os espaços retratados estão no domínio privado, seguem a lógica da

ocupação e comercialização imobiliária capitalista. A integração interna da

construção ou desta com o ambiente circundante, a visualidade renovada que, em

certos casos, quase chega à abstração (como no caso da Pirelli) ou ao irreal (como

nas maquetes e montagens) cumprem a função de inserir o edifício na dinâmica da

Page 207: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

205

modernidade, para atribuir, assim, valor simbólico e/ou monetário. No caso dos

trabalhos com motivação “histórica”, que não foram produzidos com intuito

promocional, o destaque aos materiais e ao trabalho artesanal opera no sentido de

também valorizar estes monumentos simbolicamente, mas extraem a noção

mercantil.

3.3. A beleza da máquina: reportagens sobre indústria

Em outubro de 1954, Flieg trabalhava numa reportagem para a Willys-

Overland do Brasil, em São Bernardo do Campo. Da série de oitenta fotografias

resultantes, há uma que mostra os jipes saídos da linha de montagem enfileirados ao

lado de uma roseira (fig. 3.3.1). A imagem trabalha com o paralelismo entre a fila de

veículos e a de roseiras. As mudas do jardim funcionam como o indício das flores

que deverão vir e os jipes, o prelúdio de uma indústria automobilística moderna no

Brasil. Esta foto expressa, mais do que um aspecto da fábrica, um discurso e um

pouco do momento histórico brasileiro de então, do processo de industrialização e de

modernização, ou seja, ela extrapola o sentido estritamente técnico que a reportagem

industrial sempre se arvorou.

Fig. 3.3.1

Fábrica da Willys-Overland do Brasil. São Bernardo do Campo, 1954

Desde meados do século XIX, a indústria é motivo para a fotografia. A era da

mecanização precisava registrar seus feitos e a fotografia como produto também

deste processo seria o meio ideal. Desta forma, alguns fotógrafos oitocentistas

Page 208: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

206

atuaram nesta área, produzindo imagens que serviriam como documentação às

indústrias. O principal interesse neste momento eram as obras de engenharia que

“tinham um apelo especial aos fotógrafos chamados a documentar a construção

de pontes e ferrovias”233

.

Edouard Denis Baldus, por exemplo, que havia integrado a Missão heliográfica,

foi contratado, em 1855, pelo barão James de Rothschild, proprietário da

Companhia de Estradas de Ferro do Norte, para acompanhar a implantação da

linha férrea entre Boulogne e Paris. Hyppolyte Auguste Collard trabalhou entre

1867 e 1868 para a Administração de Pontes e Calçamentos de Paris. Em 1857,

Robert Howllet realizou uma série sobre a construção do navio Great Eastern, na

Inglaterra, incluindo fotos de forjas com trabalhadores no local234

. Há vários

outros exemplos de trabalhos de acompanhamento fotográfico na área de

engenharia no século XIX, mas a autoria da maior parte destas imagens não foi

registrada, assim como os particulares sobre sua produção.

O principal destino destas imagens eram as exposições universais, mas também

havia a produção de álbuns de pequenas tiragens, como o que foi montado com

cinqüenta imagens de Baldus sobre a construção da ferrovia para presentear a

rainha Vitória. Eventualmente, eram publicadas na imprensa e também serviam

como base para ilustradores produzirem material gráfico para publicidade. Outro

uso da fotografia que começou a se disseminar na segunda metade do século foi

na ilustração dos álbuns e anuários comerciais. Nestas publicações, a partir da

década de 1870, começaram a ser mostradas imagens de produtos, como também

de algumas etapas de sua produção. Um dos principais produtores destes

materiais nos Estados Unidos foi Isaiah W. Taber, cujo View Album and

Business Guide, of San Francisco Illustrated, de cerca de 1884, “é um dos

primeiros exemplos de um trabalho de fotografia e publicidade que foi precursor

da fusão entre arte e comércio”235

. Taber, que detinha os direitos autorais dos

álbuns, assinava como fotógrafo e “presumivelmente como diretor de arte”.

Havia muitas inovações nas imagens de Taber, como ilustrar um anúncio de uma

fábrica de serrotes com

233

ROSENBLUM, Noemi. Op. cit. p. 158. 234

ROUILLÉ, André. Op. cit. p. 46. 235

SOBIESZEK, Robert. Op. cit. p. 17.

Page 209: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

207

(...) uma inusual composição de lâminas circulares,

produtos de área de metalurgia para locomotivas, com uma

montagem de vistas no interior da fábrica (...) e os artigos

de uma gráfica, pela sobreposição de uma cópia

albuminada mostrando o interior da planta sobre um vista

litográfica da fachada. 236

-No Brasil, existe algum material avulso ou em pequenos álbuns de

fotografia de indústrias no século XIX, mas a maior parte encontra-se muito dispersa

e sem nenhuma informação de autoria e produção. Há uma fotografia, de cerca de

1865, do ateliê de Georges Leuzinger mostrando um dique na Ilha das Cobras, no

Rio de Janeiro, que valoriza os aspectos da engenharia da obra237

. Um álbum de

1893, da Repartição de Águas e Esgotos da Cidade de São Paulo, assinado pelo

fotógrafo P. Doumet, traz imagens da construção de represas na Serra da

Cantareira238

.

Algumas reportagens sobre indústria começaram a ser publicadas nas revistas

ilustradas, principalmente, a partir do final da primeira década do século XX. A

revista A Cigarra, que circulou a partir de 1914, por exemplo, publicava com

freqüência “extensas coberturas fotográficas de Exposições Industriais de São

Paulo, bem como, grandes reportagens com fotos e textos que traçavam a história

de muitas indústrias e casas comerciais, como a Companhia Melhoramentos,

Leiteria Silva, Casas Pernambucanas e Companhia Antarctica”239

. Estas coberturas

que aparecem em outras publicações, apesar de serem apresentadas como parte do

conteúdo editorial das revistas, não escondem seu caráter promocional. Estas

imagens geralmente mostram vistas externas das fábricas ou estabelecimentos

comerciais, algumas internas com funcionários em pose e, eventualmente,

solenidades como a de inauguração das novas instalações da Companhia

Melhoramentos.

Há, no número 6 da revista paulistana A Lua, de fevereiro de 1910, um

exemplo de uma cobertura fotográfica, de caráter igualmente promocional, da

236

Ibid. p. 18. 237

Foto que faz parte da Coleção do Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro. Reproduzida em

KOSSOY, Boris. Dicionário histórico-fotográfico brasileiro. São Paulo: Instituto Moreira Salles,

2002. p. 205. 238

Exemplar deste álbum encontra-se no Arquivo do Estado de São Paulo. Segundo referência de

Boris Kossoy no Dicionário histórico-fotográfico brasileiro (p. 123), há trabalhos de Doumet no

Museu Paulista/USP, no Instituto Moreira Salles e na Coleção Livio Spiegler. 239

CRUZ, Heloisa de Faria (org.). São Paulo em revista: catálogo de publicações da imprensa

cultural e de variedades paulistana. São Paulo: Arquivo do Estado, 1997. p. 91.

Page 210: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

208

Cervejaria Germania, em que é possível identificar uma maior estruturação

narrativa, com oito fotos que mostram a fachada e o interior, representado cada etapa

da produção em imagens das máquinas, tonéis, instalações gerais e, em algumas,

operários posando.

Foi no final da década de 1930 e início de 40 que começou a haver uma

especialização de alguns fotógrafos na cobertura industrial, a maior parte deles

composta de imigrantes recém-chegados. O trabalho destes profissionais começou a

trazer referências claras da valorização do ambiente e dos objetos industriais no

âmbito dos movimentos de vanguarda que aconteceu quase duas décadas antes,

principalmente, na Europa e nos Estados Unidos, conforme já descrito no primeiro

item deste capítulo. Na Alemanha em particular, a técnica foi um dos temas centrais

da Nova Objetividade. Este categoria de imagem que trabalha com motivos

industriais e de engenharia também é chamada de “fotografia técnica”, referência

tanto à natureza dos assuntos fotografados, quanto por estabelecer uma relação

supostamente “objetiva” com o referente.

A Alemanha, em geral, conhece ao curso dos anos

vinte um certo entusiasmo, econômico, mais do que

estético, pela máquina, euforia vinda com a onda de

americanismo, na qual o modelo americano e a

mecanização se confundiam. Mais que qualquer outra

arte, a fotografia vai evidentemente se beneficiar deste

interesse, o qual vai a permitir de transformar o antigo

desvio limitador em seu maior trunfo: a própria natureza

mecânica.240

Um exemplo desta euforia é o artigo de Oskar Schürer, intitulado

Industrialização e fotografia, publicado em 1926, na revista Der Satrap:

A fotografia é, por sua natureza específica, convocada a

reproduzir a dinâmica interior da estrutura industrial. Sua

objetividade imanente encontra correspondência na

objetividade que funda a indústria.241

Flieg começou a formar sua clientela industrial logo que saiu da Gráfica

Niccolini, em 1945, para se estabelecer como fotógrafo autônomo. Chegou a

fotografar algumas fábricas a pedido da Ventiladores Zauli que fornecia

240

LUGON, Olivier (org.). La Photographie en Allemagne: Anthologie de textes (1919-1939).

Nîmes: Jacqueline Chambon, 1997. p. 161. 241

SCHÜRER, Oskar. Industrialisation et photographie. In: LUGON, Olivier. Op. cit. p. 163.

Page 211: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

209

equipamento de refrigeração para indústria. No começo de suas atividades, não tinha

equipamento de grande formato e fazia as reportagens com a Leica.

Em 1948, foi chamado pelo publicitário Fritz Lessin, da agência Standard,

para fazer o calendário da Pirelli para o ano de 1949. Lessin puxou o livro Arbeit

(Trabalho), de Paul Wolff e disse a Flieg que ali estava o “espírito” do que eles

estavam pretendendo. De Wolff, Flieg já conhecia o livro Meine Erfahrungen mit

der Leica (Minhas experiências com a Leica), espécie de manual de incentivo ao uso

das câmeras de pequeno formato, voltado a amadores e profissionais, no sentido de

obter imagens segundo os princípios estéticos da Nova Objetividade e de forte apelo

promocional.242

O livro Arbeit vai no mesmo sentido, mas volta-se exclusivamente a

fotografias que tenham como tema o trabalho com foco na área industrial.

Fig. 3.3.2 Fig. 3.3.3

Páginas do calendário da Pirelli para 1949. Guarulhos, 1948.

Assim, Flieg realizou um de seus trabalhos de indústria mais marcados pela

moderna fotografia industrial que vinha sendo praticada na Europa desde os anos de

1920. Era também uma proposta bastante nova para os termos do que vinha sendo

242

Tributário à Nova Objetividade, Wolff destacou-se como fotógrafo industrial na Alemanha, deu

cursos e escreveu livros. Foi defensor fervoroso dos pequenos formatos. Após 1933, tornou-se

fotógrafo oficial do Terceiro Reich, conseguindo que o Ministério da Propaganda nazista baixasse

um decreto em que “os repórteres fotográficos que não compreendem que a valorização e a

promoção da fotografia moderna de pequeno formato são um dever inerente à sua missão deviam

Page 212: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

210

praticado no Brasil até então. Das doze fotos editadas para o calendário, apenas a do

mês de agosto não foi feita com a Leica (fig. 3.3.2), que é justamente a que carrega

uma visualidade mais distinta do conjunto. Há nela uma incrível gradação de cor,

com tonalidades suaves, é tão texturizada, que chega a ter um visual pictórico. A

perspectiva é mais tradicional, com as proporções mantidas. As outras fotos

trabalham com contrates maiores, superfícies lisas e contornos definidos. São

explorados ângulos, escalas, grandes profundidades, perspectivas variadas e

materiais. Há vidros, com brilhos, metálicas, transparências, incandescência etc. As

composições são muito variadas, a foto do mês de dezembro, por exemplo, quase

chega à abstração (fig. 3.3.3). É um espetáculo de formas, texturas e efeitos. Cada

imagem mostra seções e etapas de trabalhos diferentes, o que lhe garante um caráter

“documental”, de reportagem. É fotografia de nova visão no sentido mais puro da

expressão.

Grandes pequenas indústrias

Na década de 1950, Flieg consolidou sua clientela na área industrial. Este é o

momento da retomada da política industrialista iniciada na Era Vargas, com o

retorno de Getúlio ao governo em 1951, e do desenvolvimentismo de Juscelino

Kubitschek a partir de 1956243

. Durante o segundo governo de Vargas, em 1952, é

criado o primeiro banco público destinado a financiar o desenvolvimento industrial –

o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) – e a Petrobrás em

1953. Além da criação de novas estatais articuladas ao processo de industrialização,

foram estabelecidas metas para ampliar a produção de empresas públicas já

existentes. A Companhia Vale do Rio Doce – criada em 1942 – tinha como meta

duplicar sua capacidade de extração de ferro e a Companhia Siderúrgica Nacional

deveria ampliar em 50% a produção siderúrgica. Estas medidas deram condições

infraestruturais para a instalação das indústrias de bens duráveis durante o governo

JK. Sobre a participação do setor automobilístico no Plano de Metas afirma Sonia

Mendonça:

perder sua braçadeira de repórter fotográfico oficial”. Apud SACHSSE, Rolf. L’Allemagne: le IIIe

Reich. In: : LEMAGNY, Jean-Claude; ROUILLÉ, André (orgs.). Op. cit. p. 154. 243

As informações referentes à industrialização brasileira nos anos 50 foram obtidas em: DRAIBE,

Sônia. Rumos e metamorfoses: Estado e industrialização no Brasil: 1930/1960. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1985; MENDONÇA, Sonia Ribeiro. Estado e economia no Brasil: opções de

desenvolvimento. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1986.

Page 213: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

211

A produção interna de aço ou combustíveis, ainda

que originada de um esforço de investimento do Estado,

beneficiava, sobremaneira, o departamento de bens de

consumo duráveis, de propriedade do capital estrangeiro.

Empresas como a Volkswagen, Mercedes Benz ou General

Motors, por exemplo, foram responsáveis pela larga

margem de superação da meta prevista de 100 mil veículos

em 1960 para 321.150, sendo 90% de seus acessórios

produzidos no Brasil.244

Entre as empresas que Flieg atendeu neste período estavam a Mercedes Benz

(Daimler-Benz) e a Willys-Overland. Paulo A. Nascimento, durante o depoimento

de Flieg no MIS, contou que em 1954 foi chamado por um de seus clientes, a

Agromotor, para fotografar a Willys-Overland do Brasil, em São Bernardo do

Campo. A representação brasileira tinha a marca dos veículos norte-americanos no

país e uma linha de montagem com uma produção irrisória. Segundo o publicitário,

a fábrica chegou a funcionar com apenas catorze funcionários. Os norte-americanos

já haviam começado as negociações para instalação de sua indústria no país.

Solicitaram, assim, à agência P.A. Nascimento uma cobertura fotográfica das

instalações para mandar para os Estados Unidos. Fritz Lessin indicou Flieg a

Nascimento.

Lá foi o Flieg (...) eu me lembro que era ele e um auxiliar

para fazer a cobertura. Eu sei que eu fiquei irritadíssimo,

porque depois de uma semana eu telefonei “mas eu não

comecei, eu estou estudando o negócio”, uma semana, três

semanas, quatro semanas. (...) Em quatro semanas, ele me

entregou o trabalho e realmente foi uma coisa (...). O

homem viu o que ninguém viu. Era simplesmente

maravilhoso. E não era uma mentira, era aquela fábrica.

(...) Tem uma produção de 4 mil veículos? Não é verdade,

tinha vinte e tantos. Não tinha uma ponte rolante, tinha uma

monovia feita pelo Villares, aquela que era uma gruazinha,

(...) mas aquela monovia era igualzinha a uma indústria

automobilística em Detroit! (...) A qualidade, a precisão, o

índice de tolerância não existia (...). O que este homem deve

ter feito sozinho para preparar essas fotos, eu não posso

entender. Se demorasse doze meses era pouco tempo. O que

(...) deve ter varrido, pintado, costurado, mexido, quebrado,

não era possível, era uma fábrica perfeita. Ele construiu a

fábrica para fotografar! (...) Deviam ser oitenta fotos, que eu

244

MENDONÇA, Sonia Ribeiro. Op. cit. p. 54

Page 214: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

212

pensei que não dava para fotografar nem vinte. Toda a

Willys era apenas um salão. Ele me deixou oitenta fotos.

Não tinha nada de uma parecida com a outra.245

O entusiasmo do publicitário no depoimento expressa o efeito que tinha este

processo de embelezamento que consistia a fotografia industrial de Flieg. Ao olhar

uma tomada do salão da fábrica da Willys (fig. 3.3.4), dificilmente veremos ali

algum índice de pequenez. Talvez aquele seja quase que o espaço todo interno da

planta, mas é tratado na imagem como uma ala, temos a sensação que as instalações

eram muito maiores. Há uma grande concentração de elementos no local, há muitos

operários (possivelmente boa parte do quadro de empregados da empresa estava

mobilizada nesta foto), eles estão em atividades variadas, há movimento,

dinamismo. Tudo isso reverbera e ocupa o espaço, o amplia.

Fig. 3.3.4

Fábrica da Willys-Overland do Brasil. São Bernardo do Campo, 1954.

Esta foto exemplifica a meticulosidade de Flieg. Tudo na imagem tem um

lugar pensado e definido. Há claramente uma preparação. Ele conta que certa vez

algum funcionário da Mercedes Benz teria comentado: “o Flieg é aquele que

quando chega na fábrica a gente tem de parar a produção”. Flieg visitava os

espaços antes de fotografar, procurava entender o funcionamento das coisas,

245

Paulo A. Nascimento durante depoimento de Flieg no Museu da Imagem e do Som. São Paulo,

Page 215: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

213

conversava com engenheiros, técnicos, operários e quem mais fosse necessário.

Cada detalhe era checado, iluminação, equipamento. “Os senhores querem oitenta

fotos, pode ser que eu tire 85. Mas, não pode chutar, realmente não se pode chutar.

Cada pose deve ser pensada, antes deve ser montada”. Tudo deveria estar em

perfeita ordem, sem bitucas de cigarro, pedia que limpassem e se jogavam água

deixando o “chão, que devia ser uniforme, (...) com manchas d’água”, ele depois

“podia retocar esse chão de fábrica jogando pó ou varredura”. Os funcionários que

fossem aparecer nas fotos deveriam estar barbeados, o uniforme limpo “e que não

seja passado demais, se não, não fica natural” 246

.

Paulo Nascimento ainda conta que, em 1956, quando a Willys norte-

americana veio para efetivamente se instalar no Brasil, ele recebeu um telefonema

de Walter Loch que solicitava as fotos que haviam que haviam sido feitas, porque o

todo-poderoso Hickman Price Jr. gostaria de vê-las. Até então, a publicidade da

montadora deveria ficar a cargo de uma agência norte-americana. Nascimento fez

questão de levar pessoalmente as imagens até ao executivo:

Lá vou eu com as fotos (...). O homem abriu, caiu

duro e me deu a chance de vender o meu peixe. (...) O

homem gostou tanto das fotos dele que eu peguei a conta e

a Willys virou a maior conta do Brasil e foi pro brejo o

meu sonho de uma agência pequena.247

A P.A. Nascimento criou campanhas ontológicas para a Willys. Em uma

delas, idealizada por Fritz Lessin e fotografada por Flieg, o processo de

nacionalização da produção automobilística, componente central do discurso

institucional das multinacionais no Brasil, deveria ser mostrado visualmente. Assim,

todas as peças utilizadas em um Jeep, que segundo Paulo Nascimento eram 3.860, e

iam de um parafuso a uma carroceria, foram organizadas em um galpão e cada uma

delas pintada em uma cor que indicaria o prazo para sua nacionalização, conforme

assinalado numa legenda ao lado da foto.

Em 1960 Flieg fez um trabalho para a Peterco Comércio e Indústria de

Eletricidade Ltda., que ficava na rua Pelotas, na Vila Mariana. A reportagem foi

1981. 246

Depoimento de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Fred Jordan, Paulo A.

Nascimento, Eduardo Castanho. Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981. 247

Idem.

Page 216: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

214

encomendada com a finalidade de ser anexada a um relatório que serviria para pedir

um financiamento na Alemanha para a construção de uma nova fábrica. As

instalações da rua Pelotas eram muito simples e novamente caberia a Flieg

“modernizar” um pouco aquilo lá. A série de fotos procura valorizar o trabalho, no

geral, mostram muitos funcionários concentrados (fig. 3.3.5) e uma diversidade de

atividades. Embora alguns espaços tenham sido “ampliados”, como na imagem aqui

reproduzida, em muitos, transparece as dimensões não muito amplas, em alguns

casos, improvisações com tapumes. Isso era muito pertinente à finalidade das fotos,

mostrar o trabalho valorizado, moderno, num espaço que não é mais condizente, por

isso a importância do investimento para um novo prédio. As imagens surtiram efeito

nos alemães que concederam o financiamento à Peterco248

. Uns dois anos mais

tarde, Flieg foi chamado para fotografar as atividades da nova fábrica em Santo

Amaro.

Fábrica da Peterco, na rua Pelotas. São Paulo, 1960.

Fig. 3.3.5

Na reportagem da pequena indústria química QEEL, Flieg também colocou o

foco no trabalho. Há uma panorâmica de um laboratório (fig. 3.3.6), numa bonita

perspectiva, que cria uma noção de amplitude incrível. Todas as poses estão bastante

orquestradas de forma a ocupar bem o espaço. Inclusive, o rapaz no primeiro plano

não era funcionário da empresa, era o assistente de Flieg colocado ali para preencher

a composição idealizada pelo fotógrafo.

248

Um dos proprietários da Peterco haveria comentado, tempo depois, que os alemães teriam ficado

muito impressionados com a qualidade das fotos e isso abriu um grande caminho para as

negociações.

Page 217: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

215

Fig. 3.3.6. Laboratório da indústria química QEEL. São Paulo, [década de 1950].

Operário em destaque

Nas reportagens industriais, uma constate são as cenas que colocam em foco

um ou mais trabalhadores. Na cobertura da Willys, há uma imagem de quatro

operários trabalhando na montagem de um jipe (fig. 3.3.7). Cada um cumpre uma

função, evidenciando a especialização do trabalho na linha de montagem. Pouco se

vê de suas expressões. Como ressaltam Vânia Carneiro de Carvalho e Solange

Ferraz de Lima em suas análises de fotos que seguem o mesmo esquema, nos

álbuns comemorativos do IV Centenário de São Paulo, “o corpo suplanta o rosto e

acoplado a ele assumem importância o instrumento de uso profissional, os

uniformes, o gesto indicativo de profissão, ou seja, tudo aquilo que indique

atividade, melhor dizendo trabalho”249

.

Fig. 3.3.7. Fábrica da Willys-Overland do Brasil. São Bernardo do Campo, 1954

249

LIMA, Solange Ferraz de; CARVALHO, Vânia Carneiro de. Fotografia e cidade: da razão

urbana à lógica de consumo – Álbuns de São Paulo (1887-1954). Campinas: Mercado de Letras; São

Paulo: Fapesp, 1997. p. 186.

Page 218: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

216

Há, assim, uma tipificação do trabalhador que passa a cumprir na imagem o

papel de elemento que compõe a força de produção e não de sujeito. As poses

respondem a um determinado arranjo que visa a composição. O tratamento

tipológico não confere aos retratados, vida fora da representação, eles só se

materializam como imagem. Homem e máquina são componentes de um mesmo

mecanismo. Isto fica muito evidente na foto do mês de dezembro do calendário da

Pirelli (fig. 3.3.3). Efetua-se, assim, uma estetização do trabalho alienante como

maneira do capital industrial adicionar um tempero humano em sua auto-imagem,

sem expor as contradições sociais.

Em algumas coberturas industriais, de áreas de menor automatização, o

trabalho artesanal impera e é valorizado. Um exemplo é a foto para a indústria de

calçado Clark. Flieg enquadrou apenas as mãos de um trabalhador que, com auxílio

de um molde, cortam o couro no processo de produção de um sapato (fig. 3.3.8). A

fragmentação do corpo, que na imagem fica reduzido às mãos, despersonaliza o

artesão e novamente o tipifica. As mãos funcionam como instrumentos para o

desenvolvimento de uma habilidade e não como expressão da personalidade.250

Fig. 3.3.8 Fig. 3.3.9

Cenas de trabalho: Fábrica de calçado Clark e Cristaleria Luzitana. São Paulo, s/d.

250

Gostaria de ressaltar aqui que a fragmentação do corpo opera uma despersonalização do sujeito

neste caso específico analisado, dentro deste contexto particular. Isso não deve ser tratado como uma

lei. Existem trabalhos que enfocam partes do corpo e as dotam de grande expressividade e

subjetividade, como é o caso, por exemplo, do trabalho de Tina Modotti, Hands of the puppeteer, de

1929.

Page 219: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

217

Flieg atendia com freqüência indústrias de vidro e cristal como a Nadir

Figueiredo, Cristais Prado e a Cristaleria Luzitana. Ele conheceu bem o processo de

produção de vidro e fez trabalhos bastante inspirados neste campo. Um deles foi a

cobertura das etapas de feitura de objetos de vidro na Cristaleria Luzitana. Numa

destas imagens, é mostrada uma das etapas finais da produção, em que um

funcionário segura a cana com a peça pronta mas ainda incandescente, outro gira,

com uma vara, uma jarra para esfriá-la e um terceiro funcionário que aguarda

segurando também uma vara (fig. 3.3.9). A cena tem cores e vitalidade incríveis, o

movimento das peças, o brilho do vidro, o tom levemente alaranjado da peça ainda

quente combina com a iluminação que entra pela pequena janela ao fundo e trabalha

contrastes bastante equilibrados de áreas muito escuras e muito claras. Como nas

outras imagem, a dimensão subjetiva dos operários inexiste, o que ficam reveladas

são suas habilidades manuais.

As três imagens operam com a tipificação do trabalhador, no entanto, na

indústria automobilística, o foco é no processo automatizado, na tecnologia,

enquanto, nas outras duas, no aspecto artesanal, das habilidades humanas.

O monumental

Os ambientes industriais remetem a um ideal de grandeza espacial. Como já

foi dito, as indústrias em implantação da década de 1950 tiveram de ser

redimensionadas nas fotografias para terem sua área ampliadas ilusoriamente.

Agora, o que dirá das plantas que eram realmente grandes obras de engenharia,

como por exemplo, as usinas.

Na década 1970, Flieg fez vários trabalhos de cobertura de usinas

hidroelétricas e termoelétricas, que começaram a ser construídas e postas em

funcionamento neste período, como parte da lógica econômica da ditadura militar e

de seu projeto de “Brasil Potência”. A ampliação do parque industrial no sudeste do

país – o “milagre econômico” – havia resultado no aumento de demanda por energia

elétrica.

Além das obras energéticas do governo militar, a Companhia Brasileira de

Alumínio (CBA), de José Ermírio de Moraes, construiu um complexo de usinas no

vale do rio Juquiá no interior do estado de São Paulo. Flieg, que fizera a coberta da

Page 220: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

218

CBA, quando esta foi inaugurada, em 1955, foi chamado para fotografar as

hidroelétricas em 1975. Uma amostra da noção de monumentalidade construída nas

imagens destas obras pode ser observada em uma vista geral da barragem da usina

França (fig. 3.3.10). Fotografada do alto, dá um panorama com a barragem em

primeiro plano, na seqüência vem o rio com mata às margens. A composição oblíqua

permite que se visualize melhor a barragem com o rio em perspectiva, reforça a idéia

da obra de contenção de águas, logo de próprio domínio da natureza pelo homem

através da engenharia moderna. Esta noção não aparece apenas nesta imagem, na

mesma reportagem, várias fotos privilegiam o ambiente circundante às usinas com

matas, o rio e as construções se impondo em meio à natureza hostil ou em cenas

também das águas jorrando com a abertura das comportas. Tudo isso é mostrado

explorando ângulos, fotografou as barragens de baixo para cima, de cima para baixo,

explorou detalhes de maquinário, formas curvas e retas, estruturas metálicas etc.

Fig. 3.3.10

Barragem da usina França. Vale do rio Juquiá, 1975.

Em 1972, Flieg havia fotografado a recém-inaugurada usina de Jupiá. As

fotos da reportagem são vistas aéreas do local, detalhes dos equipamentos, sala de

Page 221: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

219

comando, subestação e vila de funcionários. O conjunto procura destacar os vários

aspectos do complexo, mas sempre realçando a monumentalidade da obra de

engenharia. Há um foto do interior da enorme construção onde ficam as turbinas

(fig. 3.3.11). Flieg fotografou de um nível alto com a objetiva paralela ao chão. Há

uma grande profundidade, os elementos em repetição – vigas nas paredes, turbinas

etc. -- reforçam a amplificação do espaço simétrico que se afunila ao fundo. Existem

duas pessoas no centro do galpão, que poderia servir de escala, mas são pontos,

quase se desintegram na imensidão do local.

Fig. 3.3.11 Fig. 3.3.12

Usina de Jupiá e barragens da usina de Ilha Solteira sendo erguida, 1972.

Nesta mesma viagem, o fotógrafo foi também fotografar a usina de Ilha

Solteira que estava em construção. Nesta hidroelétrica, Flieg realizou o

acompanhamento de obra mais sistemático que já havia feito. De 1972 a 1975,

quando foi posta em funcionamento, ele cobriu anualmente os estágios das obras.

Em 1972, há uma foto das barragens sendo erguidas (fig. 3.3.12). Há operários no

chão em primeiro plano, aos pés das barragens e nos andaimes, a escala humana é,

assim, escamoteada uma vez que há alteração nas proporções devido às várias

colocações dos trabalhadores que aparecem na imagem. O uso de grande-angular

para permitir a tomada de baixo para cima a uma distância relativamente curta

também causa deformações, mas acentua a perspectiva. Desta forma, a

monumentalidade é valorizada, mesmo com a desproporção de escalas.

Na reportagem de 1975, com a planta já em funcionamento, Flieg fotografou,

a partir do interior da sala de comando, através da extensa série de vidraças, um

Page 222: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

220

panorama da usina (fig. 3.3.13). A parte interna foi totalmente escurecida, inclusive

as duas figuras humanas, que se tornaram vultos, carregando o contraste com o

exterior. O aspecto monumental é acentuado numa composição bastante criativa que

valoriza a horizontalidade.

Fig. 3.3.13

Usina de Ilha Solteira, 1975.

Muitas formas

Andaimes, gruas, torres, vigas, coifas, grades, pontes, tubulações, guindastes

etc. O metal, principal material do ambiente industrial, ganha formas das mais

variadas. As estruturas metálicas são o emblema da indústria e da engenharia. A

fotografia valorizou, como nenhum outro meio de representação, estes componentes

e os elevaram à condição de ícones da modernidade, ou melhor, do espaço moderno

das fábricas. Germaine Krull, em seu texto que acompanhava algumas fotos

publicadas na revista Photographie für alles, em 1926, apresenta-as como “minha

sensibilidade e meu olhar diante destas estruturas metálicas características de

nossa época”.251

Nas reportagens industriais de Flieg, as estruturas em metal são fartamente

enfocadas. Composições que enfatizam as qualidades abstratas e formais em termos

das imagens faziam parte do repertório do fotógrafo, como pode ser observado na

foto da torre da caixa d’água da Willys, tomada a partir do topo da própria estrutura

251

KRULL, Germaine. Les voies de la photographie moderne. In: LUGON, Olivier (org.). Op. cit. p.

165.

Page 223: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

221

(fig. 3.3.14). O desenho de formas curvas e retas mistura-se com as sombras, há

contraste que uniformiza os tons escuros e claros, o que reforça a abstração. O

intuito de Flieg, provavelmente, passava pelo desejo de experimentar composições,

mas que, dentro do trabalho comercial encomendado, responde também à construção

de imagens que celebram simbolicamente o industrialismo, ao transformar suas

formas em expressão de um ideal estético.

Fig. 3.3.14 Fig. 3.3.15

Torre da Willys-Overland do Brasil. São Bernardo do Campo, 1954; cobertura do Ginásio do Ibirapuera. Foto

encomendada pela Companhia Brasileira de Alumínio. São Paulo, 1956.

Em 1956, a Companhia Brasileira de Alumínio pediu que Flieg fotografasse

a obra de cobertura do ginásio do Ibirapuera. Numa das fotos resultantes deste

trabalho (fig. 3.3.15), a estrutura circular tem tratamento apoteótico com o espaço

monumental, a enorme cobertura em metal, ainda não toda forrada, que permite a

passagem e luz em graus diferentes em cada trecho, formando um espetáculo de

sombras no centro do ginásio e nas arquibancadas. Pela fina armação, que passa

pelo orifício central da cobertura, sobem alguns trabalhadores, um bem ao alto. Eles

são fundamentais como escala, já que os que estão no solo, quase se perdem em

meio à estampa de sombras. A imagem é uma exaltação da engenharia e do uso do

metal nas grandes obras.

Page 224: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

222

Sobre as estruturas metálicas, gostaria também de apresentar um foto que

Flieg fez de um forno de incineração de lixo em São Paulo (fig. 3.3.16). Numa área

interna estreita e com pé-direito alto, ele deu força, numa composição muito

simétrica, ao desenho das estruturas e trabalhou com tonalidades mais claras o que

conferiu uma suavidade impensável a um conjunto tão carregado de elementos em

metal pesado. Nesta reportagem, que tinha como objeto um local que lidava com

lixo, Flieg quis construir um ideal de limpeza. Assim, esta foto, além de valorizar as

formas estruturais, apresenta um ambiente de assepsia total.

Fig. 3.3.16

Interior de prédio onde funcionava um incinerador de lixo. São Paulo,

Outra marca da fotografia industrial é o fogo, nas caldeiras e soldas. Há um

exemplo do uso de materiais incandescentes numa foto da Pirelli, publicada no

calendário de 1949 (fig. 3.3.17). O metal em brasa tem forma de serpentina que

contrasta o chão mais escuro. Há um equilíbrio luminoso muito grande na imagem.

Na fábrica de cimento Votorantin, Flieg fotografou a partir de uma pequena janela, o

interior de um alto-forno (fig. 3.3.18). Há em destaque às chamas do fogo que

aquecem o forno, bem ao centro da imagem. A foto tem consistência turva e, nas

paredes do forno, os blocos de tijolos parecem totalmente desalinhados e tortos. Este

efeito foi causado pelas ondas de calor dentro da construção cilíndrica. Flieg

conseguiu, assim, não apenas fotografar o fogo, como o próprio calor, elemento

fundamental no processo de produção industrial. Esta é uma imagem que carrega

com clareza múltiplos enfoques: o científico, caracterizado pelo efeito ótico gerado

Page 225: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

223

pelo calor; a experimentação artística, do ponto de vista da composição e das formas

autênticas, e promocional, pois valoriza a tecnologia industrial.

Fig. 3.3.17 Fig. 3.3.18

Fábrica da Pirelli, 1948; interior de um alto-forno na fábrica de cimento Votorantin, s/d.

Por fim, a representação da eletricidade que tem uma de suas concretização

em imagem dentro da visualidade da fotografia moderna, através dos componentes

de rede elétrica. Flieg fotografou muito estes materiais nas usinas e em vários

trabalhos de clientes como a Brown Boveri e a GIE que atuavam justamente na

produção destes equipamentos. Em Jupiá, por exemplo, há uma foto de um trecho de

uma subestação de retransmissão elétrica (fig. 3.3.19) em que ele explora a estampa

formada pela repetição de elementos sobrepostos.

Page 226: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

224

Subestação na usina de Jupiá, 1972.

Fig. 3.3.19

Todos esses expedientes serviam para a constituição de imagens-símbolo do

processo industrial. A exploração de formas, texturas, enquadramentos, ângulos e

outros componentes técnicos da fotografia visavam atingir resultados esteticamente

elaborados. Estas representações que idealizam o universo urbano-industrial, têm

suas raízes já no século XIX, encontram um caminho de desenvolvimento no século

XX, a partir de algumas experiências vinculadas à Nova Objetividade alemã e à

Nova Visão, desde a década de 1920. Este repertório visual que começou a ser

criado foi logo absorvido pela própria indústria, que estava na gênese do processo.

No Brasil, o desenvolvimento de uma fotografia industrial nos termos

modernos começou efetivamente a partir da década de 1940 e Flieg logo se destacou

como um dos principais profissionais a atuar neste campo. Suas fotos apresentam

uma grande idealização do espaço da indústria. Exemplos como o da colocação de

um “modelo” na fotografia do laboratório, dos rostos barbeados e os macacões

limpos denunciam o artifício e expõem o limite tênue entre realidade e ficção nessas

fotografias. Benjamin cita uma passagem de Bertold Brecht:

Nunca a simples reprodução da realidade

consegue dizer algo sobre a realidade. Uma fotografia das

fábricas Krupp ou da AEG não diz quase nada sobre essas

instituições. A verdadeira realidade transformou-se na

realidade funcional. As relações humanas, reitificadas –

numa fábrica, por exemplo --, não mais se manifestam. É

Page 227: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

225

preciso, pois, construir alguma coisa, algo de artificial, de

fabricado.252

As fotos mascaram o aspecto rudimentar da indústria nascente dos anos 50 e

projetam o desejo de uma auto-imagem de modernização. Fazem o elogio da

monumentalidade das obras do “Brasil Potência” e aparam as arestas do conflito

social na representação homogênea do trabalho e do trabalhador. São imagens

encomendadas e logo concebidas como bandeiras dos interesses do capital

industrial.

No entanto, o valor destas imagens olhadas na perspectiva de hoje extrapola

os limites de seu caráter promocional. Elas são a consolidação estética de um ideal

de modernidade que foi adaptado para o Brasil em alguns momentos da história do

século XX. Além disso, ao apresentarem o artifício, nos denunciam sua própria

condição de discurso. São idealizadas e operam no campo da ideologia, como

imagens de outras naturezas também o são. Mas, nem por isso, ficam

descredenciadas para servir como referencial documental sobre as épocas retratadas.

Muito pelo contrário, são a expressão muito privilegiada da industrialização

brasileira, tanto do ponto de vista técnico, que mesmo com toda idealização, aparece

registrado ali, como da simbologia que se buscou se construir em torno dela,

transparecendo inclusive as contradições inerentes ao processo histórico particular a

que se referem.

3.4. Fotografia e publicidade: a celebração dos objetos

Certa vez, Heinz Kamnitzer, amigo de Flieg e proprietário da fábrica

Ferramentas para Indústrias Heinz, disse ao fotógrafo que precisava produzir uma

foto com algumas peças, mas achava o custo de produção muito alto. Flieg explicou

que se gastasse mais para se obter uma fotografia limpa, muito bem definida, isso

eliminaria o retoque americano, que seria mais dispendioso, além das peças não

perderem, desta forma, sua naturalidade. Heinz concordou e Flieg fez a foto (fig.

3.4.1). As oito peças foram colocadas sobre uma superfície de vidro e com um fundo

252

Bertold Brecht apud BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotgrafia. In:______. Op. cit. p.

106.

Page 228: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

226

liso. Na foto resultante, toda uma gama de tons claros e escuros sobrepõe-se

definindo as formas, volumes e contornos, o brilho dá a consistência do metal. Todo

este trabalho de meticulosidade técnica para fotografar atento às características

formais dos objetos e materiais valorizara os produtos, permitindo que a foto fosse

impressa diretamente no folheto de propaganda da empresa, com um resultado bem

razoável.

Peças Heinz. São Paulo, s/d .

Fig. 3.4.1

Isto aconteceu na década de 1940, o uso do retoque americano ainda era uma

constante. A fotografia que começava a ser incorporada ao fazer publicitário no

Brasil, ainda era vista com certo desconforto por boa parte dos profissionais da área

e dos anunciantes. O paradigma da precisão técnica ainda era o desenho, por isso

recorriam ao retoque americano que aproximava a imagem fotográfica do traço,

como a gravura havia feito durante muitas décadas.

A impressão direta de fotografia era possível desde 1880, quando apareceu o

processo de impressão do meio-tom (halftone). No entanto, a utilização da fotografia

pela publicidade não aconteceu na seqüência. A recusa à fotografia pelos

publicitários se dava nas duas pontas: se por um lado, ela era técnica demais para

alcançar a fruição artística do desenho253

, por outro, não tinha a precisão do traço

253

A principal referência de estilo utilizada pela publicidade do século XIX foi o Art-Nouveau.

Page 229: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

227

para a reprodução dos detalhes técnicos na impressão. Assim, o uso da fotografia na

publicidade do século XIX foi bastante irrisório.

Ao se adentrar no século XX, a imagem fotográfica ganhou um pequeno

espaço na publicidade, mas tinha um caráter meramente ilustrativo e um padrão de

qualidade, no geral, muito baixo. O primeiro gênero fotográfico a ser incorporado de

maneira mais sistemática à propaganda foi o retrato. Na chamada publicidade

testemunhal, que consistia na utilização de uma personalidade – que muitas vezes

era o próprio dono da empresa que estava anunciando – para recomendar o uso do

produto, uma imagem do “depoente” era impressa junto ao texto.

Raúl Éguizabal ressalta que “os escassos exemplos fotográficos na

publicidade norte-americana, durante os primeiros anos do século XX, continuavam

a seguir as regras da estética mais ortodoxa, quando não da vulgaridade”254

. A

partir da década de 1910, o Art-Nouveau foi abandonado pelos publicitários que

começaram a voltar o foco para os atributos do produto que até então “permanecia

escondido entre ornamentos”255

. Nos anos 20, com as experiências de vanguarda no

campo fotográfico iriam apontar o caminho pelo qual a publicidade posteriormente

seguiria.

(...) os fotógrafos mais vanguardistas descobriram

o valor documental em suas imagens, não à maneira de um

realismo social carregado de intenções críticas, e sim como

valor objetivo, como documento desnudo. Os anunciantes

apreciaram o valor de exibição deste tipo de fotografia e a

submeteram a seus interesse publicitários. Ao fim e a

cabo, o que se apreciava na imagem publicitária era seu

valor documental e sua originalidade e a nova fotografia

estava em condições de oferecer ambos.256

No Brasil, o domínio absoluto da ilustração a traço deu-se, pelo menos, até a

década de 1930, época em que as agências estrangeiras começaram a chegar ao país,

principalmente em São Paulo257

. Segundo Chico Albuquerque, até este momento, a

fotografia publicitária era “limitada a fotos de objetos e produtos”258

. Os trabalhos

254

ÉGUIZABAL, Raúl. Op. cit. p. 13. 255

NESBIT, Molly. Op. cit. p. 112. 256

ÉGUIZABAL, Raúl. Op. cit. p. 13. 257

A J. Walter Thompson foi instalada no Brasil em 1929; a N. W. Ayer-Son, em 1931; a McCann-

Erickson, em 1935; a Lintas, em 1937, e a Grant, em 1939. REIS, Fernando. São Paulo e Rio: a

longa caminhada. In: BRANCO, Renato Castelo; MARTENSEN, Rodolfo Lima; REIS, Fernando

(orgs.). História da propaganda no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz, 1990. p. 308. 258

ALBUQUERQUE, Francisco. A fotografia publicitária. In: BRANCO, Renato Castelo;

MARTENSEN, Rodolfo Lima; REIS, Fernando (orgs.). Op. cit. 168.

Page 230: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

228

eram realizados, em geral, por fotógrafos que atuavam em vários campos, não havia

a especialização. Quando intencionavam utilizar fotografias, as agências geralmente

recorriam a imagens compradas nos Estados Unidos, com modelos norte-

americanas. Ricardo Ramos narra, inclusive, um caso anedótico a esse respeito,

acontecido nos anos 1930:

Em São Paulo, nos começos da Ayer, somente se

usava desenho como ilustração de anúncio. Cansado de

arte a traço, Charles Dulley passou a comprar fotos em

Nova York. Na maioria, os modelos das fotografias que

vinham eram mulheres bonitas, sem dúvida, mas quase

todas louras. E havia uma necessidade óbvia de morenas.

Então foi posto um anúncio no Estado, em sua nascente

página de classificados. “Jovens bonitas, morenas, para

trabalho fácil e bem pago.” Dia seguinte, dois “secretas”

visitaram a agência: queriam saber qual era aquele trabalho

fácil.259

O incremento do uso da fotografia na propaganda brasileira é creditada à

Thompson. Segundo Fernando Reis, o primeiro fotógrafo que passou a prestar

serviços à agência foi Henrique Becherini, que é apontado por Albuquerque, como

também por Flieg, como um dos primeiros a realmente se especializar no campo

publicitário.

Em pouco tempo, clientes como a General

Motors, a Goodrich, a Atlantic, a Blue Star Lines e a

Refinações de Milho Brasil passaram a ostentar fotografias

de Becherini em seus anúncios. A primeira campanha teria

sido feita para a GM, com testemunhais de altas

personalidades brasileiras. E o cachê de cada um teria sido

um Chevrolet...260

No entanto, foi realmente na década de 1940 que começou a haver um

espaço um pouco mais consolidado para a fotografia no campo da propaganda, e

fotógrafos como Chico Albuquerque, Peter Scheier e Hans Gunter Flieg, além do

próprio Becherini e talvez uns poucos mais, firmaram-se na área.261

A qualidade de

impressão nas revistas e jornais da época, de modo geral, não era boa. Dos diários,

o que tinha um padrão um pouco melhor era A Gazeta. Entra as revistas ilustradas, o

principal veículo era O Cruzeiro. O semanário, rodado em rotogravura, tinha a

259

RAMOS, Ricardo. Do reclame à comunicação: pequena história da propaganda no Brasil. São

Paulo: Atual, 1985. p. 43. 260

REIS, Fernando. Op. cit. p. 311. 261

ALBUQUERQUE, Chico. Op. cit. p. 168.

Page 231: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

229

grande inovação de imprimir anúncios em cores, mas o inconveniente de não

imprimir preto, a cor básica era o sépia.

Os anos 1940 e 1950 são apontados por Renato Ortiz como momento da

configuração, ainda que incipiente, de uma indústria cultural no Brasil. Incipiente

porque, segundo Ortiz, o conceito de indústria cultural introduzido por Adorno e

Horkheimer não poderia ser integralmente aplicado aqui. Faltava à indústria

brasileira neste momento um elemento fundamental dentro do conceito

frankfurtiano, o chamado caráter integrador, que é na verdade a idéia da indústria

cultural como um centro em torno do qual a produção cultural estaria articulada. A

padronização que a produção cultural poderia operar seria possível somente se

apoiada a um “conjunto de mudanças sociais que estendem as fronteiras da

racionalidade capitalista para a sociedade moderna num mesmo sistema”262

. O

Brasil de então, apesar da centralização marcada do Estado Novo, não teria ainda

rompido com uma política de localismo. Assim, “a idéia de um centro onde se

agrupam as instituições legítimas (...) fundamental para que se possa falar de uma

sociedade de massa no interior da qual operam as indústrias culturais”263

encontrava-se debilitada no caso brasileiro.

A falta de integração nos vários ramos da indústria cultural e de uma

estrutura empresarial própria estaria na raiz da idéia de rudimentaridade e

improvisação comumente referida nos depoimentos de profissionais da época, que

normalmente creditam esta característica ao caráter de “pioneirismo” das

experiências. Flieg narra, que no caso dos modelos, não existia, de modo geral, nas

décadas de 1940 e parte de 1950, pagamentos fixos de cachês, contratos de uso de

imagem, com prazos de validade. Havia algum pagamento combinado “de boca”,

sem maiores formalizações. O recrutamento também, na maior parte das vezes,

dava-se entre conhecidos do fotógrafo ou de algum funcionário da agência ou da

empresa anunciante.

Há um caso, por exemplo, de um trabalho em que Flieg precisava de uma

modelo para um folheto dos colchões Probel. Ele estava com dificuldades para

conseguir uma moça para a foto e comentou isso com um conhecido que era, na

época, diretor da Nestlé. Então, o amigo disse para que Flieg fosse um dia no seu

escritório porque tinha algumas secretárias bonitas que talvez pudessem aceitar o

262

ORTIZ, Renato. Op. cit. p. 49. 263

Ibid.

Page 232: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

230

trabalho. Do lado de fora do prédio, debaixo de chuva, o fotógrafo foi lá para olhar

pela janela, ver se estava de acordo, sem que as moças percebessem, evitando

abordagens diretas que poderiam ser mal recebidas. Também para fotos das malhas

Nitco, o anunciante disse a Flieg e Carlos Prósperi da McCann-Erickson que fossem

até a fábrica e escolhessem uma das operárias como modelo.264

Nestes primeiros tempos de sua atuação na área publicitária, o fotógrafo

também conta que não se falava em produção. Os modelos, no geral, não eram

maquiados, o que muitas vezes obrigava o uso de retoques. Objetos, móveis e outros

acessórios de cena também eram conseguidos domesticamente. Nesta mesma foto da

Probel, levou uma cama de sua casa para o estúdio. Num trabalho com misturas para

pudim da Oetker, as fotos foram feitas em 35 mm na casa de Gerhard Wilda, da P.

A. Nascimento, com os alimentos preparados pela esposa do publicitário.

São várias as histórias como estas. Renato Ortiz diz que estes “casos”, muitos

de natureza anedótica, são tão freqüentes nos relatos de profissionais da época que

não podem ser tratados como fatos ocasionais, nem apenas como recurso narrativo

dos depoentes.

Nessa fase de pioneirismo, onde as coisas ainda

estão por construir, a iniciativa individual é fundamental,

ela é parte integrante das estruturas que “funcionam mal”.

A improvisação é nesse sentido uma exigência da época.

As anedotas denotam essa incongruência entre “ter que

funcionar” e “funcionar bem”, tornando cômica a tensão

entre as duas forças que em princípio deveriam fazer parte

da mesma unidade.265

É, assim, nestes primeiros passos da modernidade brasileira, que a fotografia

publicitária floresceu, absorvendo modelos vindos de fora e os adaptando às

contingências locais, que exigiam uma criatividade particular266

.

Com relação aos tipos de trabalho em publicidade, Eguizábal divide a

fotografia publicitária em três gêneros mais recorrentes: retrato, paisagem e still-life.

No caso dos retratos, como já tratei no capítulo 2 da prática retratista de Flieg de

maneira geral, não entrarei aqui no mérito publicitário deste gênero. Com relação às

paisagens, vale a mesma observação, além do fato de não ser identificável uma

produção significativa de vistas destinadas à publicidade comercial convencional, ou

264

Depoimento de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Fred Jordan, Paulo A.

Nascimento, Eduardo Castanho. Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981. 265

ORTIZ, Renato. Op. cit. p. 97. 266

Não entrarei aqui no mérito da discussão teórica sobre o conceito da criatividade. Isso pode ser

encontrado em: ORTIZ, Renato. Op. cit. pp. 97-110.

Page 233: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

231

seja, associada a um produto. Assim, o objeto com trabalharei neste item é still-life

publicitário.

Still-life é uma composição com um ou mais objetos de uso cotidiano, de

pequeno porte, como alimentos, utensílios de cozinha, relógios, produtos de

perfumaria, objetos decorativos, flores, livros, garrafas de bebidas, eletroeletrônicos

portáteis, ferramentas diversas, peças de vestuário, jóias e mais toda sorte de artigos

inumeráveis. Em português, o termo encontra correspondência na natureza-morta.

No entanto, na terminologia fotográfica, opta-se pelo uso da expressão em inglês,

enquanto a natureza-morta refere ao gênero na pintura.

Apesar de alguma referência na Antigüidade, a natureza-morta tem origem

no Renascimento. Até final do século XIX, foi considerada como um gênero menor

dentro do panteão da pintura, que tinham no retrato e na paisagem suas mais nobres

representações. Mesmo assim, muitos artistas notabilizaram-se pintando motivos

inanimados, enquanto outros notáveis, em algum momento, experimentaram estas

composições267

. O país que mais produziu naturezas-mortas foi a Holanda no século

XVII, como também “nenhum outro ramo da pintura revela mais claramente a

devoção dos holandeses ao visível”268

. Os motivos mais recorrentes nestas pinturas

eram os alimentos, utensílios de mesa e cozinha e os vasos de flores. As imagens

celebravam a abundância da burguesia dos Países Baixos, desfilando uma enorme

variedade de texturas que remetem a uma infinidade de materiais (metal, cristal,

veludo, seda, tapeçaria, porcelana, madeira etc), sabores, cheiros, cores, ou seja,

avivavam os cinco sentidos do espectador, ao mesmo tempo, que afirmavam “a

riqueza do proprietário e seu habitual estilo de vida”269

e, desta forma, criavam um

ideal baseado na posse de objetos, que eram um estímulo ao consumo.

Cézanne e depois o Cubismo trabalharam as questões formais na natureza-

morta, rompendo com a simbologia do desejo. A fotografia dos anos 20 recupera o

gênero através principalmente da corrente da Nova Objetividade e da fotografia

direta norte-americana. A publicidade tem papel fundamental nesta renovação da

fotografia da década de 1920. Na Alemanha, por exemplo, “uma ala da burguesia

industrial, organizada no Deutscher Weerkbund, apoiou a mentalidade inventiva da

267

É possível que a primeira natureza-morta pintada por artista de reputação tenha sido a Cesta de

frutas, de Caravaggio, de 1595-1600. EGUIZÁBAL, Raúl . Op. cit. p. 179. 268

SLIVE, Seymor. Op. cit. p. 277. 269

BERGER, John. Modos de ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 101.

Page 234: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

232

vanguarda para revolucionar a publicidade estacionada no nível do século XIX”.270

Fotógrafos como Albert Renger-Patzsch, Hans Finsley, Aenne Biermann, Umbo,

entre outros, trabalharam a fotogenia dos objetos cotidianos da sociedade industrial,

em fotografias extremamente bem cuidadas do ponto de vista técnico e de

composição. Nos Estados Unidos, um pouco mais desvinculado da publicidade, Paul

Strand explorou a geometria, bem como os brilhos metálicos, de objetos produzidos

industrialmente. Edward Weston ressaltou formas, volumes e texturas de verduras e

de um vaso sanitário.

Iluminação cuidada para cada tipo de objeto, fundos em geral neutros,

pesquisa de materiais e muitas técnicas e expedientes eram preocupações essenciais

desses fotógrafos. Assim, esta fotografia dos anos 20 voltou-se ao cuidado artesanal

na produção que visava primordialmente obter a beleza a partir da precisão e nitidez

das imagens. São fotos dotadas de um despojamento retórico que jogam todo o peso

nos aspectos sensoriais da representação. Instaurava-se o padrão que respondia às

necessidades fundamentais da publicidade, na qual a fotografia de objetos tem

algum uso nos catálogos de venda, já desde o século XIX, e aparições esporádicas

em anuários e anúncios publicitários.271

O still-life publicitário produz-se em um plano de

simbolização muito baixo e de compreensibilidade muito

alto. Apesar de serem acompanhadas normalmente por

elementos verbais, a situação comunicativa não permite

com freqüência o detalhe da leitura, por isso a imagem

deve ser auto-suficiente e inteligível.272

Flieg, ainda nos tempos em que trabalhava na gráfica Niccolini, já começou a

praticar composições com produtos da área farmacêutica (fig. 3.4.2). Estas fotos

eram geralmente destinadas à produção de materiais gráficos de divulgação de

laboratórios, como catálogos, folhetos e mata-borrões distribuídos a médicos. Há

nestas imagens uma preocupação de composição e de tratamento dos objetos

fotografados, até então, ainda não muito comum no cotidiano da publicidade

brasileira.

270

INSTITUT FÜR AUSLANDSBEZIEHUNGEN. A Fotografia na República de Weimar:

catálogo. Bonn, 1979; São Paulo (Paço das Artes), 2000. p. 11. 271

SOBIESZEK, Robert. Op. cit. pp. 16-23. 272

EGUIZÁBAL, Raúl . Op. cit. p. 179.

Page 235: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

233

Fig. 3.4.2. .

Comer com olhos

A fotografia de alimentos é uma das principais vertentes dos still-lifes. Como

na natureza-morta pictórica objetivam “excitar nosso apetite, situando-nos em um

cenário complacente com a gula”. A abundância é um imperativo neste campo.

Refrigeradores devem sempre estar cheios, as mesas postas devem trazer variedade

de alimentos, carrinhos de supermercados repletos de compras. Como destaca

Eguizábal, a publicidade trabalha com a idéia de excesso, não só de objetos, como

de signos, se a felicidade está associada à acumulação, o vazio transforma-se em

uma zona perigosa, o horror vacui que as pinturas barrocas já pregavam.

Fig. 3.4.3

Chocolates Soksen. Foto para seção de Suzanne de Manet. São Paulo, 1956.

Page 236: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

234

Numa foto, de 1956, dos chocolates Soksen (fig. 3.4.3), para a coluna de

Suzanne de Manet, na revista Casa & Jardim273

, Flieg para apresentar os dois

produtos – chocolate em pó e em barra – colocou-os em meio a uma mesa posta, que

concentra vários elementos que preenchem a imagem. A toalha branca dá textura ao

fundo, sem comprometer a visualização dos elementos principais. Na xícara, as

variações tonais indicam o chocolate dissolvido em leite, biscoitos com rugosidade,

prato, embalagens em papel com a marca dos produtos, o brilho do papel metálico,

as barras, no canto superior esquerdo, aparece um pouco a peça em aço inox. Há,

assim, uma fartura de objetos, texturas, tonalidades, vários tipos de materiais, que ao

mesmo tempo em que preenchem os espaços da imagem, transmitem várias

impressões sensoriais. A tomada por cima permite a valorização destes elementos e

o enquadramento que fraciona alguns dos objetos dá a idéia de que há muito mais

coisa no extraquadro.

Uma campanha para o óleo Delícia, idealizada pela agência P. A.

Nascimento, trazia em um dos anúncios (fig. 3.4.4), uma foto de uma tábua de carne

repleta de legumes e uma faca colocada de maneira atravessada, novamente dando a

idéia de abundância. Há, neste caso, um trabalho intenso com as cores e suas

impressões visuais que reforçam a idéia de fartura. O trabalho de iluminação deixa

alguns legumes com bastante brilho. Este é outro expediente muito comum na

fotografia de alimentos, o lustre das cascas de frutas e legumes dá um aspecto

saudável, há também uma identificação com a limpeza. E aqui neste anúncio

trabalhou-se com a associação direta dos legumes com o óleo que tem sua lata

aparecendo logo à frente, relação que se apóia na idéia de “alimentos que fazem bem

à saúde”. Há outro anúncio desta campanha, com mesmo layout, no qual a imagem

mostra uma mesa posta, com um prato feito com vários tipos de alimento. Neste

caso, a imagem serve para aguçar o paladar, estabelecendo a relação do sabor

agradável da comida com o óleo.

273

Entre 1955 e 1956, Flieg realizou as fotos para a coluna de Suzanne de Manet, na revista Casa &

Jardim. Na seção, sua autora “recomendava” alguns produtos, dando uso publicitário a um espaço

apresentado como de conteúdo editorial.

Page 237: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

235

Fig. 3.4.4 Fig. 3.4.5

Anúncio do óleo Delícia. Agência P. A. Nascimento. São Paulo, s/d; Açúcar União. Foto para seção de Suzanne

de Manet, 1956.

Outra foto do açúcar União para a coluna de Suzanne de Manet (fig. 3.4.5)

traz um bolo, do qual já foi tirado um pedaço, os utensílios que teriam sido

utilizados para a sua feitura – vasilhas, xícara, batedor e colher de pau – e o pacote

de açúcar aberto. Novamente, a composição mostra uma preocupação com a

ocupação do espaço com materiais de variados aspectos. As sombras também

ajudam a preencher os vácuos, sem se imporem aos objetos e ajudando a dotar a

imagem de maior naturalidade.

Vale só lembrar que, nessas épocas, não havia a especialização que existe

hoje na fotografia de alimentos, com a produção de “mocapes” (modelos em resina

ou outro material para representar os alimentos na foto) e com o trabalho de

profissionais especializados na pesquisa e produção deste tipo de “culinária”,

voltada a acentuar as qualidades visuais. Flieg, como os outros fotógrafos da época,

trabalhavam em bases artesanais e domésticas, fotografam o alimento mesmo, sem

maiores subterfúgios ou tratamentos especiais de produção, qualquer eventual

interferência material no objeto a ser fotografado dava-se mais por “intuição” do

fotógrafo, na base da tentativa e erro, do que propriamente na existência de um

conhecimento sobre o assunto.

Page 238: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

236

The way of life

As cenas com o bolo do açúcar União e a tábua com legumes do óleo

Delícia, apresentadas acima, fazem referência ao preparo dos alimentos. Este tema

foi muito explorado pela publicidade dos anos 50 e remetia ao estereótipo da mulher

que se realizava nos afazeres doméstico, apregoado pelo conjunto de imagens

idealizadas sobre a felicidade de ser de classe média norte-americana que ficou

conhecido como o “american way of life”. Este conjunto de representações,

transformadas em valores morais, foi veiculado pelos meios de comunicação de

massa e se utilizava do choque entre a assepsia e prosperidade das residências dos

subúrbios nos Estados Unidos com o pauperismo desolado da Europa pós-guerra. O

modo de vida americano associava o consumo com uma vida bem sucedida – como

sempre foi feito na pintura – mas voltaram o foco para a classe média. Assim, os

principais ícones deste modelo foram os objetos de uso doméstico, principalmente

os eletrônicos, e o ideal feminino construído foi o da dona de casa, para quem estas

imagens da publicidade do açúcar e do óleo eram destinadas.

A imagem publicitária trabalha com a projeção de alguns modelos. A

utilização de determinados produtos é relacionada a certos estilos de vida. Desta

maneira, fumar o cigarro tal lhe permite uma vida de aventuras, usar determinado

relógio coloca o homem no centro do poder, a mulher que passa tal batom terá todos

os refletores voltados para ela e assim por diante. Além do uso de retratos para este

tipo de atribuição de status na publicidade, o still-life também é muito utilizado. O

expediente mais usual para isso é colocar o produto anunciado junto a outros

objetos que reforçam a idéia que se quer passar.

Numa imagem para uma campanha dos chapéus Ramenzoni (fig. 3.4.6),

Flieg colocou o produto em meio a objetos que remetem a pratica fotográfica – a

câmera (foi usada a Leica), filtros, objetiva, o fio de um disparador e fundos

coloridos. Este e os outros anúncios da campanha da Ramenzoni associavam cada

chapéu a um estilo, representado por uma caracterização profissional do homem que

os utilizaria. O modelo Panamá “para os dias de calor” era um dos produtos mais

informais da linha, logo foi relacionado a uma profissão condizente. Outro modelo

de feltro, por exemplo, foi colocado junto a uma mala de executivo em outra peça da

campanha.

Page 239: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

237

Fig. 3.4.6 Fig. 3.4.7

Anúncio do chapéu Ramnzoni. São Paulo, s/d; Cocktail Seagers. Foto para seção de Suzanne de Manet. São

Paulo, 1956.

No caso da foto do Cocktail Seagers para a seção de Suzanne de Manet (fig.

3.4.7), fazem parte da composição uma garrafa do produto, dois copos servidos com

a bebida, um sapato feminino de salto alto e uma rosa. Há um claro apelo à

sensualidade expressa pelo sapato, pela rosa e o par de copos. Mas estes elementos

também fazem parte do repertório de simbologia relacionada à sofisticação dentro da

sintaxe da fotografia publicitária. Os copos estão umedecidos, respondendo também

ao modelo de representação das bebidas no still-life publicitário.

Beber frio é também um luxo fundamental do

mundo moderno. Beber frio é beber civilizadamente e o

formato on the rocks de consumo americano das bebidas

impôs-se nitidamente aos antiquados copos aquecidos ou

ao gesto parcimonioso de saborear um bom conhaque ou

um rum. As bebidas frias se bebem mais rápido e isso é

também uma imposição da acelerada vida do homem pós-

industrial.274

Existe também um tipo de trabalho realizado por Flieg, que embora não se

enquadre na noção estrita de um still-life, deve ser destacado aqui. É a fotografia de

mobiliário residencial. Nos anos 50, o já referido boom imobiliário levou a classe

274

EGUIZÁBAL, Raúl. Op. cit. p. 185.

Page 240: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

238

média das casas para os apartamentos. A área menor dos novos espaços, bem como

a dificuldade em transportar os móveis pesados em madeira maciça pelas escadarias

por cinco, dez, quinze andares começou a exigir um novo padrão de movelaria. O

arquiteto José Zanini Caldas teve uma das primeiras iniciativas neste sentido no

Brasil, ao lançar em 1950 uma linha de móveis mais populares, feitos em madeira

compensada com algum revestimento em fórmica, lonita ou plástico. Os móveis

mais leves eram concebidos já tendo em mente os pequenos espaços das novas

residências.

Flieg teve contanto intenso com Zanini e fotografou grande parte de suas

peças para os anúncios e material gráfico como cartazes da marca. Fez fotos de

peças isoladas, como cadeiras, luminárias etc., e principalmente de ambientes

montados. Houve um caso, inclusive, que devido à dificuldade que estava tendo para

iluminar o cenário de uma sala de estar montada dentro do galpão da fábrica, em São

José dos Campos, Flieg não teve dúvida e mandou montar tudo ao ar livre. Assim,

fez a foto, utilizando luz natural275

.

Fig. 3.4.8

Móveis Zanini. São José dos Campos, década d 1950.

Essas composições de espaços traziam além dos móveis outros elementos

(fig. 3.4.8) como tapetes, pinturas nas “paredes”, eventualmente quadros, janela com

cortinas ou persianas, vasos e outros elementos decorativos, plantas etc. Além disso,

alguns objetos de uso cotidiano, sem funções propriamente de decoração, eram

275

“Tirando uma pequena sombra que se fez no canto da parede, o resultado ficou bem aceitável”.

Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 17 jul. 2002.

Page 241: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

239

colocados nos cenários. Nessa foto mostrada, há livros e discos na estante baixa,

revistas, copo, garrafa de uísque e cinzeiro com charuto na mesinha, e no chão um

par de sapatos, jornal e um cachorro de pelúcia. Estes elementos simulam um modo

de vida, constroem uma imagem de que estes móveis “modernos e práticos” podem

criar ambientes confortáveis, totalmente condizentes a um estilo sofisticado e

atualizado. Na configuração de cena, o único elemento que falta é o homem – os

objetos indicariam uma presença masculina - sentado, despertando, desta forma, um

desejo no observador em adentrar naquele espaço pronto para ser habitado. Há de

notar, que pelo menos aos nossos olhares de hoje, a cena soa um pouco fake, está um

pouco arranjada demais, reforçada ainda pela curiosa figura do cachorro de

brinquedo desempenhando o papel de um animal de verdade. A falta de escala

poderia até sugerir que se trata de uma casa de bonecas, por exemplo. Mas, talvez,

esta impressão esteja um pouco dentro do espírito e da lógica publicitária, uma vez,

que ela trabalha com a idéia de espaços ideais e não propriamente reais.

Materiais e fundos

Além de Zanini, Flieg teve outros clientes do setor moveleiro, como a Cimo,

Paraná, a Mobília Contemporânea e a Fortlit. Desta última, ele fotografou muito

para a seção de Suzanne de Manet. Em uma destas fotos (fig. 3.4.9) há uma cadeira

junto a uma mesa baixa sobre a qual está uma esfera de vidro. Em praticamente

todas as imagens dos móveis Fortit, Flieg trabalhou com enquadramentos que

fracionam os móveis como recurso que acentuava a idéia de linhas sofisticadas e

arrojadas. Nessa imagem mostrada, há um grande trabalho de valorização de

materiais, a pelagem do tapete, a madeira da estrutura da cadeira, o veludo do

assento, a palha trançada do encosto, o vidro da esfera, o mármore do tampo da

mesa e o laqueado do pé.

Page 242: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

240

Fig. 3.4.9

Móveis Fortlit. Foto para seção de Suzanne de Manet. São Paulo, 1956

Aqui, gostaria de fazer um paralelo com a análise que John Berger faz do

quadro Os Embaixadores, de 1533, de Hans Holbein:

Cada centímetro do quadrado da superfície desse

quadro, ainda que permanecendo puramente visual, faz um

apelo, como que recruta, o sentido do tato. O olho

movimenta-se do pêlo à seda, ao metal, à madeira, ao

veludo, ao mármore, ao papel, ao feltro, e, cada vez, o que

o olho percebe já se encontra traduzido, dentro da própria

pintura, na linguagem da sensação tátil. 276

Berger relaciona estas superfícies ao trabalho de tecelões, bordadeiras,

tapeceiros, ourives, marceneiros, entre outros. A pintura exalta as habilidades e com

isso dá ênfase ao delírio sensorial que o dinheiro pode comprar. Transpostas para o

universo industrial, e guardando às devidas condições históricas, estas considerações

fariam o mesmo sentido se aplicadas à fotografia dos móveis Fortlit. A valorização

visual e tátil dos objetos, obtida através de uma apurada e atenta preparação técnica,

transforma os materiais em existências autônomas que tem particularidades e

emprega trabalho especializado. O apuramento técnico e artesanal constrói a idéia de

refinamento a que os artigos de luxo estão sempre associados. Há prazer ali, prazer

em ver, prazer em tocar, prazer em possuir.

276

BERGER, John. Op. cit. p. 92.

Page 243: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

241

Fig. 3.4.10 Fig. 3.4.11

Pratas Spam. São Paulo, s/d; objetos em palha e vime. Jacareí, 1974.

Cada material tem suas particularidades, então para cada um existem

algumas qualidades a se destacar na fotografia. De modo geral, o brilho, a simetria e

a uniformidade nas superfícies dos materiais que compõem os objetos

industrializados são ressaltados (fig. 3.4.10). Em contraste, nos objetos artesanais, o

trabalho e as habilidades empregados ali devem ficar evidentes. Uso como exemplo,

que apesar de não ter sido produzido com intenções publicitárias é válido aqui, uma

composição com objetos de vime e palha que Flieg fotografou no mercado de

Jacareí, em 1974 (fig. 3.4.11). Os objetos têm aspecto rústico, a variedade de

subtons destaca isso, as formas têm um padrão, mas são irregulares, o aspecto

manufaturado é claro aí, dotando as cestas de uma aura de autenticidade.

Flieg tem trabalhos que se tornaram referências na fotografia de cristais. Sua

primeira encomenda foi para os Cristais Prado, em 1947. A cristaleria era proprie-

dade de Jorge da Silva Prado e da esposa Marjorie, que tinham também a

Publicidade Prado277

. O chefe de estúdio da agência era o jovem Fred Jordan. Certo

dia, Jordan telefonou a Flieg perguntando se ele estaria interessado em tentar umas

fotos de cristais para a Prado. O modelo para este trabalho eram uns catálogos da

sueca Orrefors, que eram referência neste campo. Além de Flieg, outros fotógrafos

importantes fizeram experiências com cristais e enviaram para a Prado, entre eles

277

Não encontrei referência sobre a Publicidade Prado na bibliografia sobre história da propaganda

brasileira. Segundo Flieg, a pequena agência atendia além dos Cristais Prado, a Móveis Prado que

surgiu um pouco mais tarde, a Alumínio Rochedo e chegou a ter a conta da Coca-Cola.

Page 244: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

242

Henrique Becherini, Gabriel Zellaui com Benedito Duarte e Gregori Warchavchik.

Flieg tinha muita familiaridade com o universo dos cristais, relativo à convivência

que teve na infância, e a possibilidade de trabalhar com este material lhe seduzira

muito. Assim, ele produziu uma foto composta com várias peças e “ganhou a

concorrência” da Prado, vindo a constituir fama de especialista na fotografia de

cristais.

Fig. 3.4.12

Cristais lapidados por Mario Seguso. São Paulo, 1964.

Uma de suas fotos mais famosas foi feita em 1964, com dez peças em cristal

lapidado por Mario Seguso, de Poços de Caldas (fig. 3.4.12). A imagem impressiona

por manter uma reprodução rica, com detalhes da lapidação bastante nítidos,

ressaltando o trabalho humano despendido ali e o aspecto artesanal dos objetos, isso

sem comprometer a transparência, atributo fundamental do cristal, de sua pureza e

refinamento. Para essa foto, Flieg colocou as peças sobre uma superfície de vidro,

técnica talvez introduzida por ele no Brasil, que não produz sombras e garante um

brilho translúcido ao conjunto da imagem, além de deixar o visual “leve”, com a

idéia de que as peças estão flutuando no ar. Flieg sempre foi muito cuidadoso no

tratamento dos tipos de material que fotografava. Se adquiriu certa especialização no

campo dos cristais, não descuidou dos tantos outros que lhe apareceram à frente nos

Page 245: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

243

mais de quarenta anos que esteve atuante. Em 1955, por exemplo, fotografou um

arranjo de fibra de vidro (fig. 3.4.13). Explorou a tonalidade do branco perolado que

ressalta o brilho e as formas arredondas na colocação das fibras. Mesmo objetos

mais ordinários, como, por exemplo, um frasco plástico de um hidratante solar

(fig.3.4.14), tinham textura, brilho e cores muito tratados e valorizados ao serem

fotografados.

Fig. 3.4.13 Fig. 3.4.14

Fibra de vidro e hidratante solar Tropi Tan. São Paulo, s/d.

Além do trabalho com materiais, outro elemento fundamental no still-life á a

colocação de fundos. O uso preferencial, não só nos trabalhos de Flieg, mas como na

fotografia publicitária, de modo geral, é dos fundos neutros, para que não haja risco

dos objetos perderem o destaque. No entanto, em alguns casos, o uso de um fundo

decorado estabelece ou reforça a significação que se busca construir em torno do

produto. O cadeado Arteb (fig. 3.4.15), por exemplo, que ele fotografou em 1956

para a coluna de Suzanne de Manet, está sobre um vidro com um fundo composto

por páginas de jornal em que lê manchetes sobre casos de roubos a residências e

estabelecimentos comerciais. A colocação do vidro permitiu que se marcasse uma

separação espacial entre o objeto e o fundo, de modo a “estampa” do jornal não

quebrasse o destaque no cadeado.

Page 246: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

244

Fig. 3.4.15 Fig. 3.4.16

Cadeado Arteb e Cinzano. Fotos para a seção de Suzanne de Manet. São Paulo, 1956.

Outro é exemplo é uma foto do Cinzano (fig. 3.4.16), em que Flieg utilizou

de fundo uma foto com praia e coqueiros, acrescentando ainda um pouco de areia e

conchas espalhadas próximas às garrafas da bebida, dando a idéia do produto

inserido no cenário, parte dele, diferente da distância estabelecida no still do

cadeado. Aqui, houve o recurso ao estereótipo da paisagem exótica identificada com

os cenários tropicais. É curioso notar como estas paisagens estereotipadas pelo “afã

de possessão, tão tipicamente europeu e caracteristicamente burguês”278

encontrem

eco no hemisfério sul, em países em que praias com coqueiros não são propriamente

cenários raros.

A associação do produto com uma paisagem acontece nos termos em que a

natureza apresentada sofre um processo de reificação, convertendo-se em um bem a

ser possuído como nos cartões-postais, onde o desejo se dá apenas sobre a

representação, o que remonta aos modelos pitorescos de inspiração romântica.

Assim, a colocação das garrafas do vermute em meio a um cenário serve para

reforçar o desejo de possessão (desejar a bebida é desejar uma experiência estética e

sensorial ligada ao exotismo).

O fundo, muitas vezes, tem a função mais compositiva do que propriamente

significativa. Há um bonito still-life que Flieg fez para a reportagem da indústria

química Qeel (fig. 3.4.17). Há um vidro de uma substância no primeiro plano focado

e, de fundo, Flieg usou outros objetos de laboratório e elementos químicos com

278

EGUIZÁBAL, Raúl. Op. cit. p. 218.

Page 247: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

245

menor nitidez, o que acaba por estabelecer uma distinção entre o objeto em foco e os

demais, que, assim, convertem-se em cenário. É claro que há uma carga significativa

na composição – a referência ao ambiente do laboratório, alusão à ciência que

valorizada no campo em que a empresa atuava etc. –, mas ela não é tão direta como

nos dois exemplos anteriores. O que se trabalhou aqui foi a imagem institucional da

indústria química e não propriamente a valorização de um produto específico, por

isso, Flieg usou um recurso que dá ênfase à elaboração em termos visuais e mantém

a significação um pouco mais difusa do que habitualmente se utiliza na fotografia

publicitária.

Fig. 3.4.17

Frascos de substâncias da indústria química Qeel. São Paulo, [década de 1950].

A publicidade trabalha com recursos retóricos bastante convencionados e

codificados. O meio para uma comunicação rápida seria o de recorrer a soluções que

o receptor já conhece, o que na arte já havia sido resolvido com os esquemas de

imagens parciais e estruturas simples, como definiu Jacques Aumont279

. Assim, o

principal referencial da fotografia publicitária é a arte, especialmente, a pintura.

Como Berger ressaltara, “a publicidade compreendeu, com efeito, a tradição da

pintura a óleo (...). Ela captou as implicações do relacionamento existente entre a

279

AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas: Papirus, 2000.

Page 248: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

246

obra de arte e seu espectador-proprietário e com eles tenta persuadir e adular o

espectador-comprador”.280

O alto grau de convenção da imagem publicitária criou a idéia de que os

fotógrafos desta área são profissionais de alto nível técnico, mas não exatamente

inventivos. Eles recebem, na maior parte das vezes, a concepção visual já pronta,

nos layouts produzidos pelos editores de arte. Seriam, assim, meros reprodutores de

idéias alheias. Não caberia aqui tentar examinar a natureza e os termos do

relacionamento entre o pessoal de criação das agências e fotógrafos. No entanto, no

que se refere à experiência de Flieg neste campo, tanto por seus depoimentos, quanto

pelas marcas deixadas nas imagens, o esquematismo não representou o afastamento

do fotógrafo dos motivos fotografados. Os objetos, formas, materiais e texturas

sempre exerceram grande fascínio em Flieg. Ele foi um exímio observador dos

produtos materiais do trabalho humano. Isso lhe deu uma sensibilidade ímpar para

compreender a natureza dos materiais. Não havia acasos, todos os efeitos eram

pensados e planejados, o que pode ser verificada no preciosismo de suas fotos. Desta

forma, por mais predefinidas que fossem as encomendas nesta área, a visão pessoal

do fotógrafo está presente, expresso na acuidade de seu modo artesanal de conceber

as imagens.

280

BERGER, John. Op. cit. p. 137.

Page 249: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

247

Considerações finais

A história da produção fotográfica está intimamente ligada ao confronto de

culturas. O correspondente, o turista ou o exilado: fotografia é desbravamento. O

fotógrafo Christian Simonpietri, em um depoimento para um programa de televisão,

fala sobre sua experiência ao retratar o massacre de rebeldes bengalis por militares

paquistaneses: “diante de tal atrocidade, a gente se refugia por trás da câmera

fotográfica que, nessas horas difíceis, vira uma espécie de escudo. A gente desliga

da vida, fica escondido e só vê com um olho, o outro fica fechado”.

Estas noções da câmera fotográfica como bússola e escudo fizeram da

fotografia a atividade dos viajantes. Ao mesmo tempo que protege, revela. Voltando

às palavras de Simonpietri (“a gente se refugia por trás da câmera fotográfica” ), o

ato de segurar um aparelho fotográfico é uma tentativa de se refugiar de uma

realidade a qual não conseguimos dominar. O fotógrafo é um refugiado, que retorna

ao exílio em cada clique.

Ao olhar o mundo pelo visor, tem-se a sensação de poder. Susan Sontag disse

que “fotografar é apropriar-se da coisa fotografada”281

. A imagem resultante é a

expressão da realidade que no momento da tomada só pertenceu ao fotógrafo, a mais

ninguém. “São múltiplas, pois, as realidades da fotografia”282

, tão múltiplas quanto

as experiências dos sujeitos. Um destes sujeitos, Hans Gunter Flieg, cruzou o

Atlântico para sobreviver e contribuiu técnica, estética, histórica e profissionalmente

para a construção da idéia do Brasil moderno através da fotografia.

Ele fotografou São Paulo em modernização, ora acompanhando sua lógica,

ora distanciando-se e questionando alguns aspectos do processo. Celebrou os

arranha-céus e, ao mesmo tempo, lançou olhares penalizados frente à destruição do

espaço público regida unicamente pela força do capital. Encontrou, no meio da

metrópole, reminiscências de um passado que sobrevivia ao turbilhão moderno.

Mostrou uma cidade, em que todas as suas contradições e tempos, davam-lhe

vitalidade.

Em suas viagens pelo Brasil, produziu imagens que traziam a latência de um

olhar eurocêntrico que se relacionava esteticamente com as paisagens tropicais de

acordo com o ideário ocidental formado aos moldes românticos e que permeou

281

SONTAG, Susan. Ensaios sobre fotografia. Rio de Janeiro: Arbor,1981. p.4. 282

KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê, 1999. p. 38.

Page 250: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

248

grande parte da iconografia dos viajantes que chegaram ao Brasil desde os tempos

coloniais. Mas, por outro lado, ultrapassou este limite, indo em busca de um

entendimento mais visceral do país. Quis ir às origens e o principal meio que

encontrou para isso foi através da história. Leu, viajou e fotografou aspectos da

história brasileira, uma história também vital, em que tempos diversos cruzam-se,

chocam-se e harmonizam-se.

Frente ao outro, aos habitantes dessa terra, Flieg captou estereótipos e

arquétipos criados pela cultura ocidental. Mas, novamente, não se restringiu a isso.

Foi além e se aproximou de seus retratados, fossem eles clientes da burguesia

paulistana, modelos publicitários ou rostos anônimos na multidão. Ao ver o outro,

identificou a riqueza da diversidade e isso foi primordial para sua própria inserção

no contexto brasileiro.

A experiência particular de Hans Gunter Flieg reafirma que não podemos

falar em um olhar eurocêntrico de mão única dentro da história das artes visuais no

Brasil. A bagagem européia vai para o mesmo tubo de ensaio das circunstâncias

históricas, das tradições e das transformações locais, criando uma nova visão de

mundo e reafirmando uma identidade cultural híbrida para o Brasil, fruto de variadas

misturas de culturas.

A maior parte da produção de Flieg estava vinculada ao mercado de bens

simbólicos. O fotógrafo destacou-se no campo da publicidade e da fotografia

industrial, iniciando sua atuação em meados da década de 1940. Nesse período,

começou a se estruturar uma indústria cultural no Brasil, o que acarretou uma

demanda por profissionais e propostas renovadas, em comparação ao que se

praticava no país até então. Os novos caminhos que passaram a ser trilhados pela

fotografia comercial no Brasil, neste momento, têm como modelo central as

propostas estéticas geradas em meio aos movimentos de vanguarda, a partir dos anos

1920, principalmente, na Europa e nos Estados Unidos.

Na fotografia de arquitetura, Flieg incorporou conceitos não apenas da Nova

Visão fotográfica, como também das propostas modernas de arquitetura da primeira

metade do século XX. Fotografou fachadas, interiores, maquetes, projetos e fez

montagens. A aplicação comercial das imagens que produziu exigia uma visualidade

atualizada, mas, ao mesmo tempo, eficaz do ponto de vista da comunicação

promocional. Assim, o fotógrafo trabalhou dentro de um amplo espectro de estilos e

Page 251: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

249

concepções, criando imagens que mesclam as idéias socializantes da arquitetura e da

fotografia modernas com os interesses do mercado imobiliário local.

Flieg foi um dos mais destacados fotógrafos de indústria no Brasil.

Novamente, o modelo eram as experiências praticadas neste campo, principalmente,

na Alemanha e nos Estados Unidos, a partir da década de 1920. Suas imagens eram

calcadas num preparo e tratamento técnico impecáveis, no sentido de “embelezar” o

ambiente industrial. O artifício, no entanto, denuncia a idéia que se buscou construir

do processo de industrialização brasileiro, marcado pela “maquiagem” dos aspectos

rudimentares da indústria nascente dos anos 1950 e da exaltação da

monumentalidade das grandes obras da década de 1970.

No campo publicitário, a valorização dos objetos pregada pelos fotógrafos

ligados à Nova Objetividade alemã e das vanguardas norte-americanas foi ao

encontro das necessidades da propaganda em exaltar as qualidades das mercadorias.

Flieg, cuidadoso e observador com relação aos materiais e às composições, produziu

still-lifes de grande qualidade técnica e estética, deixando assim sua marca pessoal

nas, geralmente, esquemáticas fotografias publicitárias.

A atividade da fotografia serviu a Hans Gunter Flieg como meio de

sobrevivência. O conhecimento prévio, uma certa sensibilidade visual e noção de

composição, aliado à questão da “universalidade da linguagem” e a emergência de

um mercado ávido por imagens, fizeram da fotografia uma atividade bastante

conveniente ao imigrante alemão recém-chegado. Esta função primordial da

fotografia como meio de sobrevivência que caracterizou não só a trajetória de Flieg

como de grande parte dos fotógrafos modernos abria muito o campo de atuação.

Então, verifico que Hans Gunter Flieg não foi ator isolado neste cenário, mas

sem dúvida teve um papel que merece ser destacado. Sua preocupação “artesanal”

com o preparo das produções talvez seja caso único na fotografia brasileira, pelo

menos, em tais proporções. Flieg ajudou a marcar uma nova postura no ambiente da

fotografia brasileira: fotografia não era atividade para aventureiros, era preciso ter

conhecimento, formação técnica e cultural.

Page 252: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

250

Bibliografia

Livros e teses:

ADES, Dawn. Photomontage. Paris: Chêne, 1976.

ALMEIDA, Lúcia Machado de. Passeio a Ouro Preto. Belo Horizonte: Itatiaia; São

Paulo: Universidade de São Paulo, 1980.

AMARAL, Aracy. Artes plásticas na Semana de 22. São Paulo: Perspectiva, 1972.

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

______. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes,

1998.

AUMONT, Jacques. A Imagem. Campinas: Papirus, 2000.

BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes. São Paulo: Metalivros,

1994. 3 v.

BERGER, John. Modos de ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: A aventura da

modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

BOURDIEU, Pierre (org.). Un art moyen: Essai sur les usages sociaux de la

photographie . Paris: Minuit, 1965.

BRANCO, Renato Castelo; MARTENSEN, Rodolfo Lima; REIS, Fernando (orgs.).

História da propaganda no Brasil. São Paulo: T.A. Queiroz, 1990.

BURGIN, Victor (org.). Thinking photography. London: Macmillan, 1994.

CAMARGO, Mônica J.; MENDES, R. Fotografia: cultura e fotografia paulistana

no século XX. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.

CAMPOS, Candido Malta. Os rumos da cidade: urbanismo e modernização em

São Paulo. São Paulo: Senac, 2002.

CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: Estratégias para entrar e sair da

modernidade. São Paulo: Edusp, 1997.

CARDINAL, Roger. O expressionismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Brasil, um refúgio nos trópicos: A trajetória dos

refugiados do nazi-fascismo. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.

______. O anti-semitismo na Era Vargas: fantasmas de uma geração (1930-1945).

São Paulo: Brasiliense, 1995.

______. KOSSOY, Boris. O olhar europeu: O Negro na Iconografia Brasileira do

Século XIX. São Paulo: Edusp, 1994.

COSTA, Helouise. Um olho que pensa: estética moderna e fotojornalismo, 1998.

Tese (Doutorado em Artes) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,

Universidade de São Paulo, São Paulo.

CRUZ, Heloisa de Faria (org.). São Paulo em revista: catálogo de publicações da

imprensa cultural e de variedades paulistana. São Paulo: Arquivo do Estado,

1997.

CYTRYNOWICZ, Roney. Guerra sem guerra: A mobilização e o cotidiano em

São Paulo durante a Segunda Guerra. São Paulo: Geração Editorial/Edusp,

2000.

DIÊGOLI, Leila Regina. Estado Novo – Nova Arquitetura em São Paulo, 1996.

Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências Sociais,

Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.

DRAIBE, Sônia. Rumos e metamorfoses: Estado e industrialização no Brasil:

1930/1960. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1994.

Page 253: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

251

DUPEAUX, I. História cultural da Alemanha. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1992.

EGUIZÁBAL, Raúl. Fotografía publicitaria. Madrid: Cátedra, 2001.

FABRIS, Annateresa. Fragmentos urbanos. São Paulo: Studio Nobel, 2000.

FERREZ, Gilberto. A fotografia no Brasil 1840-1920. Rio de Janeiro: Funarte,

1985.

FRANCASTEL, Pierre. A imagem, a visão e a imaginação. Lisboa: Edições 70,

1998.

______. A realidade figurativa. São Paulo; Perspectiva, 1993.

FRANSCINA, Francis et al. Modernidade e modernismo: A Pintura francesa no

século XIX. São Paulo: Cosac & Naify, 1998.

FREUND, Gisèle. Fotografia e sociedade. Lisboa: Vega, 1995.

GAY, Peter. A cultura de Weimar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

GOMBRICH, E.H. Norma e forma. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

______. The uses of images: Studies in the Social Function of Art and Visual

Communication. London: Phaidon, 2000.

GROPIUS, Walter. Bauhaus: Novarquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1977.

HUYSSEN, Andreas. Memórias do modernismo. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.

KEIM, Jean. La photographie et l’homme: Sociologie et psycologie de la

photographie. Paris: Casterman, 1971.

KOSSOY, Boris. Fotografia & história. São Paulo: Ateliê, 2001.

______. Origens e expansão da fotografia no Brasil. Rio de Janeiro: Funarte,

1980.

______. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê, 1999.

______. São Paulo, 1900. São Paulo: CBPO/Kosmos, 1988.

______. Dicionário histórico-fotográfico brasileiro. São Paulo: Instituto Moreira

Salles, 2002.

KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

LEMAGNY, Jean-Claude; ROUILLÉ, André (org.). Histoire de la photographie.

Paris: Larousse/Bordas, 1998.

LESSER, Jeffrey. O Brasil e a questão judaica: imigração, diplomacia e

preconceito. Rio de Janeiro: Imago, 1995.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras,

1996.

______. Saudades de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

LIMA, Solange Ferraz de; CARVALHO, Vânia Carneiro de. Fotografia e cidade:

Da razão urbana à lógica de consumo – Álbuns de São Paulo (1887-1954).

Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: Fapesp, 1997.

LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e

civilização na Viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Hucitec/Fapesp,

1997.

LUGON, Olivier. La photographie en Allemagne: anthologie de textes (1919-

1939). Nîmes: Jacqueline Chambon, 1997.

LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1982.

MACHADO, Arlindo. A ilusão especular: Introdução à fotografia. São Paulo:

Brasiliense, 1984.

MARABINI, Jean. Berlim no tempo de Hitler. São Paulo: Companhia das Letras,

1989.

Page 254: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

252

MASCARO, Cristiano Alckimin. Fotografia e arquitetura, 1994. Tese (Doutorado

em Arquitetura) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de

São Paulo, São Paulo.

MENDONÇA, Sonia Ribeiro. Estado e economia no Brasil: opções de

desenvolvimento. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1986.

MICELI, Sergio. Imagens negociadas: retratos da elite brasileira (1920-40). São

Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 118.

MORSE, Richard M. Formação histórica de São Paulo. São Paulo: Difusão

Européia do Livro, 1970.

MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (org.). Retratos quase inocentes. São

Paulo: Nobel, 1983.

NEGRO, Antonio Luigi. Ford Willys anos 60: Sistema auto de dominação e

metalúrgicos do ABC, 1994. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto

de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas,

Campinas.

NEWHALL, Beaumont. Historia de la fotografía. Barcelona: Gustavo Gili, 2002.

ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria

cultural. São Paulo: Brasiliense, 1991.

PALMIER, Jean-Michel. Weimar en exil: Le destin de l’émigration intellectuelle

allemande antinazie em Europe et aux États-Unis. Paris: Payot, 1990.

PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1979.

RAMOS, Ricardo. Do reclame à comunicação: pequena história da propaganda no

Brasil. São Paulo: Atual, 1985.

______. Contato imediato com propaganda. São Paulo: Global, 1987.

RETRATOS do imaginário paulista: retrato e imaginário. São Paulo: Formarte,

2001.

RICHARD, Lionel (org.). Berlim, 1919-1933: A encarnação extrema da

modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

______. A República de Weimar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

RODRIGUES, Renato; COSTA, Helouise. A fotografia moderna no Brasil. Rio de

Janeiro: UFRJ/Funarte, 1995.

ROSENBLUM, Naomi. A world history of photography. New York: Abbeville,

1997.

SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia

das Letras, 2003.

SALOMON-GOUDEAU, Abigail. Photography at the dock. Minneapolis: The

University of Minnesota, 1988.

SCHARF, Aaron. Arte y fotografía. Madrid: Alianza, 1994.

SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. São Paulo: Edusp, 1999.

SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e

cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

SLIVE, Seymour. Pintura holandesa 1600-1800. São Paulo: Cosac & Naify, 1998.

p. 262.

SOBIESZEK, Robert A. The art of persuassion: a history of advertising

photography. New York: Harry N. Abrams, Inc., 1988.

SOMEKH, Nadia; CAMPOS, Candido Malta (orgs.). A cidade não pode parar:

planos urbanísticos de São Paulo no século XX. São Paulo: Mackpesquisa,

2002.

SONTAG, Susan. Ensaios sobre fotografia. Rio de Janeiro: Arbor, 1981.

Page 255: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

253

STAROBINSKI, Jean. A invenção da liberdade: 1700-1789. São Paulo: Unesp,

1994.

THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos

meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995.

VASQUEZ, Pedro K. Fotógrafos alemães no Brasil do século XIX. São Paulo:

Metalivros, 2000.

VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1991.

WILLETT, John. Heartfield contre Hitler. Paris: Hazans, 1997.

Artigos e trechos de livros:

ADORNO, T.W. A indústria cultural. In: COHN, Gabriel (org.). Comunicação e

indústria cultural: leituras de análise dos meios de comunicação na

sociedade contemporânea e das manifestações da opinião pública, propaganda

e cultura de massa nessa sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz, 1987. pp. 287-

295.

ANDERSON, Perry. Modernidade e Revolução. Novos Estudos CEBRAP, São

Paulo, n. 14, pp. 2-15, fev. 1986.

BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia (1931). In: ______. Magia e

Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. São

Paulo: Brasiliense, 1993. (Obras Escolhidas, 1). pp. 91-107.

______. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1935/1936). In:

______. Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e história

da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1993. (Obras Escolhidas, 1). pp. 165-196.

CARDOSO, Sérgio. O olhar viajante (do etnólogo). In: NOVAES, Adauto (org.). O

olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 359.

CARVALHO, Maria Cristina Wolff de; WOLFF, Silvia Ferreira Santos.

Arquitetura e fotografia no século XIX. In: FABRIS, Annateresa (org.).

Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1998. pp. 131-

172.

BRIL, Stefania. A modéstia de quem sabe profundamente o seu ofício. O Estado de

S.Paulo, São Paulo, 17 set. 1981. p.29

______. Modestos panoramas da fotografia. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 25

ago. 1984. p. 19.

FABRIS, Annateresa. A fotomontagem como visão política. Folha de São Paulo,

São Paulo, 23 out. 1987. Folhetim, pp. B3-B4.

FAUSTO, Boris. Imigração: cortes e continuidades. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz

(org.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intim

idade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. pp. 13 -61.

KELLER, Alexandra. Disseminações da modernidade: representação e desejo do

consumidor nos primeiros catálogos de venda por correspondência. In:

CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa R. (orgs.). O cinema e a invenção

da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. pp. 222-257.

KOSSOY, Boris. Fotografia (1980). In: ZANINI, Walter (org). História Geral da

Arte no Brasil, v. 2.. São Paulo: Instituto Moreira Salles/Djalma Guimarães,

1983. pp. 869-912.

LIMA, Solange Ferraz de. O Circuito Social da Fotografia: Estudo de Caso – I. In:

FABRIS, Annateresa. Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo:

Edusp, 1998. pp. 59-82.

OLIVEIRA, Moracy R. de. Do lugar-comum às surpresas, uma cautelosa exposição

de fotos. Jornal da Tarde, São Paulo, 14 jul. 1984. Caderno Divirta-se.

Page 256: Fotografia: arte e sobrevivência - a trajetória de Hans Gunter Flieg

254

OLIVEIRA JR., Antonio Ribeiro de. O visível e o invisível: um fotógrafo e o Rio de

Janeiro no início do século XX. In: SAMAIN, Etienne. O fotográfico. São

Paulo: Hucitec, 1998. pp. 73-84.

PRINS, Gwyn. História Oral. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história:

Novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992. pp. 163-198.

SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular.

In: CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa R. (orgs.). O cinema e a

invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. pp. 115-148.

Catálogos e afins:

INSTITUT FÜR AUSLANDSBEZIEHUNGEN. A Fotografia na República de

Weimar: catálogo. Bonn, 1979; São Paulo (Paço das Artes), 2000.

INSTITUTO MOREIRA SALLES. Hildegard Rosenthal - Cenas Urbanas:

catálogo. São Paulo, 1999.

______. O Brasil de Marcel Gautherot: catálogo. São Paulo, 2001.

MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO. Coleção Pirelli de Fotografias, 3. São

Paulo: Masp, 1993.

SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Estado da Cultura. Comissão de Fotografia e

Artes Aplicadas. Arquivo Fotográfico Hans Gunter Flieg. São Paulo, 1980.

(Série Cadernos de Fotografia , 3)

Outras fontes:

DEPOIMENTO de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Fred

Jordan, Paulo A. Nascimento, Eduardo Castanho – Museu da Imagem e do

Som, São Paulo, 1981.

DEPOIMENTO de Hans Gunter Flieg a Daniela Palma – São Paulo, 2002.

DEPOIMENTO de Hildergard Rosenthal a Boris Kossoy, Hans Gunter Flieg,

Moracy de Oliveira e Eduardo Castanho – Museu da Imagem e do Som, São

Paulo, 1981.

DEPOIMENTO de Curt Schulze a Gery Schulze, Ricardo Lua e Ivan Negro Ísola –

Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1984.

ENTREVISTA de Hans Gunter Flieg a Gaby Beck e Paulina Faiguenboim –

Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, São Paulo, 1993.

INSTITUTO CULTURAL ITAÚ. Enciclopédia de Artes Visuais. São Paulo: ICI.

Disponível em: <http://www.itaucultural.org.Br/index.cfm?cd_pagina=162>.

Acesso em: 10 jun. 2002.

IRMÃOS de navio: Histórias da Imigração Judaica para o Brasil. Roteiro e direção:

Sergio Oksman. Texto: Roney Cytrynowicz.São Paulo: Videofato, 1994 . 1

fita de vídeo, VHS, son., color.