Fotografia e Literatura

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Fotografia e literatura: o mundo dentro da retina Maria Adélia Menegazzo – UFMS “(...) só a língua descreve, pois é um evento no tempo.” Susan Sontag Olhando de maneira mais atenta para o título desta minha apresentação, é possível de imediato fazer uma aproximação entre fotografia e literatura pela noção de enquadramento. Sem dúvida um elemento facilitador que, no entanto, traz implicações de vária ordem e que há muito vem suscitando reflexões em ambos os campos teóricos. A presença da fotografia no texto literário já foi apontada como um elemento que ao mesmo tempo em que desestabiliza o que é narrado, impõe-se como estratégia autoral. Dito de outro modo, a expectativa de leitura diante do texto literário não prevê sua autenticidade ou verdade, mas abre- se de modo a ampliar a relação do leitor para com o mundo. Esta expectativa será tanto mais desestabilizada quanto maior for a necessidade de atestar a correspondência entre aquilo que já se conhece e aquilo que é dado ficcionalmente. Como se sabe, num dos primeiros romances surrealistas, Nadja (1928), André Breton utilizou um grande número de fotografias a fim de construir uma estratégia autoral. No entanto, valeu-se deste recurso “documental” para criar uma atmosfera insólita, onde não há correspondência entre o que é enunciado verbalmente e as imagens (retratos, fotografias de ruas, de edifícios, de obras de arte, desenhos, recortes

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Fotografia e literatura: o mundo dentro da retina

Maria Adélia Menegazzo – UFMS

“(...) só a língua descreve, pois é um evento no tempo.”Susan Sontag

Olhando de maneira mais atenta para o título desta minha apresentação, é possível de

imediato fazer uma aproximação entre fotografia e literatura pela noção de

enquadramento. Sem dúvida um elemento facilitador que, no entanto, traz

implicações de vária ordem e que há muito vem suscitando reflexões em ambos os

campos teóricos.

A presença da fotografia no texto literário já foi apontada como um elemento que ao

mesmo tempo em que desestabiliza o que é narrado, impõe-se como estratégia

autoral. Dito de outro modo, a expectativa de leitura diante do texto literário não

prevê sua autenticidade ou verdade, mas abre-se de modo a ampliar a relação do

leitor para com o mundo. Esta expectativa será tanto mais desestabilizada quanto

maior for a necessidade de atestar a correspondência entre aquilo que já se conhece e

aquilo que é dado ficcionalmente.

Como se sabe, num dos primeiros romances surrealistas, Nadja (1928), André Breton

utilizou um grande número de fotografias a fim de construir uma estratégia autoral.

No entanto, valeu-se deste recurso “documental” para criar uma atmosfera insólita,

onde não há correspondência entre o que é enunciado verbalmente e as imagens

(retratos, fotografias de ruas, de edifícios, de obras de arte, desenhos, recortes de

jornais, propagandas, textos manuscritos) que, segundo o narrador serviriam para

evitar a descrição. A ruptura se deve, em parte, pela narrativa descontínua e pela

utilização da escrita automática. É interessante lembrar, aqui, a presença de

fotografias realizadas por Man Ray, um dos integrantes do grupo surrealista, na obra

de Breton. São apenas três retratos: de Paul Éluard, de Benjamin Péret e de Robert

Desnos, também personagens de Nadja. Ao invés de serem descritos pelo narrador,

são inscritos fotograficamente. Man Ray, no entanto, já tinha como uma prática

essencial de sua arte, a manipulação fotográfica, recusando, portanto, a submissão ao

mundo exterior. Para Jacques Leenhardt, com Man Ray, “A fotografia inventava o

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mundo, dobrando-se à verossimilhança e ao mesmo tempo se lhe escapando

(LEENHARDT, 2006, p. 3)”. Referindo-se à My Last Picture, afirma que se trata de um

convite para pensar a prática da arte como uma relação dialética com o mundo –

relação de registro e de manipulação, de mímesis e de invenção, cujo horizonte

instransponível e hiperbólico é a ausência da imagem como imagem. (voltar a ela com

Ruffatto) Além disso, a fotomontagem dadaísta já era utilizada abundantemente por

fotógrafos e poetas. Neste sentido, não podemos nos esquecer do autorretrato,

realizado pelo próprio Breton, associando a escrita automática a “uma verdadeira

fotografia do pensamento” (KRAUSS, 2002, p.116).

Naquele momento, o do surrealismo, já se questionava o fato de que o ato de

fotografar implicava escolha e organização (do objeto, do ângulo, da luz, da distância,

do enquadramento), como também já se sabia que ao mesmo tempo em que se

poderia identificar o referente, não se poderia determinar de antemão o seu sentido.

Estavam postas as bases para se considerar o espaço fotográfico como espaço de

enunciação e, neste sentido, também um espaço passível de ser lido, analisado e

interpretado.

Trata-se de os três momentos distintos do percurso histórico do ato fotográfico

relacionados por Philippe Dubois (1993, p. 45) a respeito da relação entre fotografia e

realidade: 1)a fotografia como espelho do real (o procedimento técnico propicia a

mimese do objeto); 2) a fotografia como transformação do real (a imagem fotográfica

é construída segundo um código); 3) a fotografia como traço de um real (releva seu

caráter indicial e a pregnância do real na fotografia). Este último, nada mais é do que

um dado do processo fotográfico, concorrendo com outros procedimentos e gestos

interpostos a escolhas e decisões humanas, ou seja, culturais.

Há que se mencionar, ainda, os debates sobre a capacidade de enunciação da

fotografia em relação à literatura1. Entre outras discussões, a leitura do artigo de Paul

Valéry, escrito em 1929, “O centenário da fotografia”, feita por Susan Sontag, fornece

1 Uma boa mostra deste debate pode ser encontrada no artigo de François Soulages, Littérature et Photographie, onde há um levantamento das principais concordâncias e objeções a esta relação. Em: Neohelicon, v. 35, Issue 1, p. 85-95, 2008-06

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uma visão a esse respeito. Embora a nota seja bastante longa, ressaltamos as

seguintes afirmações da autora:

“Valéry afirmou que a fotografia prestou o mesmo serviço [que havia prestado à pintura] à escrita, ao por a nu a pretensão ilusória da língua de “comunicar a ideia de um objeto visual com algum grau de precisão”. Mas os escritores não deviam temer que a fotografia “pudesse, em última instância, restringir a importância da arte da escrita e agir como seu substituto”, diz Valéry, (...). “Se a fotografia nos desestimula a descrever, somos assim lembrados dos limites da língua e advertidos, como escritores, a dar a nossos instrumentos um uso mais adequado à sua verdadeira natureza (...)”. A argumentação de Valéry não é convincente. Embora se possa dizer que uma foto registra ou mostra o presente, ela nem sempre “descreve”, propriamente falando; só a língua descreve, pois é um evento no tempo. Valéry sugere, como “prova” da sua tese, abrir um passaporte: “a descrição aí anotada não resiste a uma comparação com a foto grampeada a seu lado”. Mas isso é usar a descrição em seu sentido mais degradado, empobrecido; há trechos em Dickens e Nabokov que descrevem um rosto ou uma parte do corpo melhor do que qualquer foto. A tese do poder descritivo inferior da literatura não se demonstra tampouco ao se dizer, como faz Valéry, que “o escritor que retrata uma paisagem ou um rosto, por mais hábil que seja seu ofício, sugerirá tantas visões diferentes quantos forem os seus leitores”. O mesmo vale para uma foto (SONTAG, 2004, p. 161)

Estabelecidos minimamente estes limites, passaremos a trazer alguns exemplos de

como a fotografia e a literatura concorrem para um processo vantajoso de construção

de sentido, sem que haja nesta proximidade uma relação hierárquica.

Fotografia e poesia

O poema pode ser considerado um instantâneo, na medida em que tem a capacidade

de concentrar em seus versos um máximo de tensão verbal da qual deriva a imagem

poética. Quanto maior a tensão, maior o poder de apreensão do poético. Numa certa

medida, o procedimento de singularização do objeto articulado poeticamente pode ser

estendido às outras artes, à fotografia, inclusive. Isto posto, temos observado, com

frequência significativa, um estreitamento das relações intersemióticas nos mais

diferentes objetos e de imediato vamos procurar demonstrar sua presença em dois

poemas.

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O primeiro, Fotografia de 11 de setembro, da poetisa polonesa Wislawa Szymborska2,

Prêmio Nobel de Literatura em 1996:

Atiraram-se dos andares em chamas.Um, dois, ainda alguns,mais acima, mais abaixo.

A fotografia deteve-os na vidae agora preserva-ossobre a terra rumo à terra.

Cada um ainda na íntegra,com rosto individuale sangue bem guardado.

Ainda há tempopara os cabelos esvoaçareme do bolso caíremchaves e alguns trocos.

Ainda estão ao alcance do ar,no âmbito dos lugresque acabaram de se abrir.

Só duas coisas posso por eles fazer:descrever este vooe não acrescentar a última frase. (2006, p. 70-71)

Trata-se de um poema ecfrástico, um poema que descreve uma fotografia, um

instante no espaço. Nesta descrição, no entanto, há um movimento de aproximação e

afastamento concomitantes que apenas a voz poética é capaz de operar. O poema

procura ir além da imagem, procura seus vestígios de humanidade. Como afirma

Sontag,

uma foto não é apenas uma imagem (...), uma interpretação do real; é também um vestígio, algo diretamente decalcado do real, como uma pegada ou uma máscara mortuária. (...) uma foto nunca é menos do que o registro de uma emanação (ondas de luz refletidas pelos objetos) – um vestígio material de seu tema, de um modo que nenhuma pintura pode ser. (2004, p.170).

A primeira estrofe do poema traz uma visão panorâmica dada pela fotografia, única

capaz de manter aqueles homens vivos, mas em direção à morte. Da segunda à quarta

estrofes, o poder da palavra poética redimensiona a crueza trágica da imagem

2 A poeta Wyslawa Szymborska nasceu em 1923 em Bnin, na Polônia. Faleceu em 1 de fevereiro de 2012, em Cracóvia, Polônia. No Brasil, há uma antologia publicada pela Companhia das Letras, com tradução de Regina Przybycien, 2011.

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conferindo-lhe uma leveza que permite àquelas pessoas ficarem por alguns instantes

“ao alcance do ar”. A última estrofe revela seu comprometimento diante da imagem:

“Só duas coisas posso por eles fazer:/descrever este voo/e não acrescentar a última

frase”. O poema pertence, não sem razão, ao livro intitulado Instante, e sobre ele

comenta Czeslaw Milosz:

“A dimensão da sua poesia é pessoal, a de alguém que reflete sobre a condição humana. É certo que tal atividade é acompanhada por uma extraordinária reticência; como se a poetisa se encontrasse de repente num palco decorado para uma velha peça de teatro, uma obra que transforma o indivíduo em nada, num número anódino e como se, nestas circunstâncias, falar de si não fosse o mais indicado”.

Como se pode observar, ao mesmo tempo em que há uma imagem, uma fotografia

expressa no título do poema, a chamada “teimosia do Referente em estar sempre

presente” de que fala Roland Barthes (1984, p.15), o poema tem a capacidade de

ampliar o seu sentido, descrevendo momentos imperceptíveis, eternizando-os, por

mais que tenhamos clara a presença da morte iminente e das consequências históricas

daquele acontecimento.

No poema Fotografia, da poetisa brasileira contemporânea, Ana Martins Marques3,

vamos verificar a mesma perspectiva e embora também se aproprie da imagem

instantânea, terá seu referente dado apenas pela descrição.

Coloquei no quadrouma fotografia suanesta mesma sala:sentado na poltronavermelhavocê levanta os olhos do livrofingindo ter sido surpreendido

A uma certa hora do dia,quando a luz se inclinae as corescaem para dentrode si mesmasvocê se parececonsigo. (2011, p.52)

O primeiro procedimento adotado pela voz poética é o da ecfrase. Na primeira estrofe

temos o enquadramento de fato da imagem: coloquei no quadro uma fotografia. O

3 Ana Martins Marques, nasceu em Belo Horizonte, é doutora em Literatura Comparada pela UFMG, com a tese Paisagem com figuras: a fotografia, 2013. É autora dos livros de poemas: A vida submarina (Scriptum, 2009); Da arte das armadilhas (Companhia das Letras, 2011) e O livro das semelhanças (Companhia das Letras, 2015).

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espaço também é descrito familiarmente e a ação de fotografar é dada no presente:

você levanta os olhos/fingindo ter sido surpreendido. A presença do verbo “fingir”, no

gerúndio implica continuidade, o que nos leva a considerar que naquela atmosfera

familiar nada surpreende, nem mesmo o desejo e a possibilidade de captar um

instante. Daí a necessidade de fazer uma “pose”. A imagem está posta no mesmo

espaço em que foi tirada, eternizando tanto o espaço quanto o fingimento. Em estudo

sobre o retrato fotográfico, Annateresa Fabris (2004) afirma que a pose assume o

caráter intrínseco do simulacro: “Graças a ela o sujeito torna-se um modelo; deixa-se

captar como uma forma entre outras formas, ao interagir com um cenário que lhe

confere uma identidade retórica quando não fictícia, fruto de uma ideia de composição

plástica e social ao mesmo tempo (p.58)”.

A ideia de simulacro é, então, reforçada na segunda estrofe do poema quando o

sujeito e a imagem encontram uma semelhança. Nesta estrofe enquanto a disposição

das palavras concorre para um movimento descendente, reforçando a luz que se

inclina e as cores que caem para dentro de si mesmas, a camada fônica se encarrega

de eternizar a imagem, através das sibilantes /s/ - você se parece consigo. A

ambiguidade dessa semelhança – afinal qual traço fisionômico deve ser levado em

consideração? – fica por conta da luz e das cores de uma certa hora do dia que, no

entanto, não é especificada. Releve-se, ainda, a ausência de ponto final em ambas as

estrofes. Por outro lado, também podemos compreender a semelhança entre a

surpresa fingida do sujeito e a fotografia pelo conceito de punctum, de Barthes: “esse

acaso que, nela [a foto], me punge (mas também me mortifica, me fere) (1984, p. 46)”.

Fotografia e paratexto

Outro aspecto a ser considerado é a utilização da fotografia em textos literários nos

moldes de Nadja, de André Breton, conforme demonstramos inicialmente. É provável

que a baixa utilização de fotografias em textos literários tenha sua explicação na visão

comum de que a fotografia nada mais é do que a comprovação de que algo existiu, ou

de que uma situação ocorreu. É tratada sempre como prova. Ou pelo menos era até o

início da era digital. Esta restrição está interessada no modo de apreensão da

fotografia pelo homem ordinário. Mesmo que as técnicas de manipulação da imagem

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sempre tenham existido, apenas hoje sua difusão pelas redes digitais chegou ao

conhecimento de todos, afastando a possibilidade de um rigor da prova.

Por outro lado, percebe-se um investimento na paratextualidade, isto é, naqueles

elementos que podem corroborar o sentido da obra para além dela. É o caso, por

exemplo, do uso da fotografia nas capas dos livros. No romance Stella Manhattan, de

Silviano Santiago, edição de 1985, um autorretrato de Mapplethorp sobrepõe-se a

uma fotografia panorâmica de Nova York, provocando uma identificação da

personagem principal, Eduardo da Costa e Silva, também conhecido como Stella

Manhattan, com o autorretrato. Narrado por uma voz que está fora da história, o

autorretrato opera como um descritor.

O mesmo ocorre no romance Mongólia, de Bernardo Carvalho, cujas fotografias de

capa, contracapa e orelha remetem ao próprio autor, estreitando as relações entre o

narrador e o relato, provocando o leitor com a possibilidade de estar diante de um

romance de viagem autobiográfico. Mongólia estrutura-se como um "diálogo" entre o

diário de um fotógrafo desaparecido nos montes Altai e as anotações do diplomata

brasileiro encarregado de encontrá-lo. Trata-se de uma narrativa em que três discursos

estão entrelaçados – o do narrador embaixador apresentado em Times New Roman; o

do Ocidental, em itálico; e o do fotógrafo desaparecido, em verdana.

A poetisa Ana Martins Marques, já apresentada aqui, faz um estudo aprofundado

acerca dos usos da fotografia neste romance em sua tese de doutoramento, intitulada

Paisagem com figuras: fotografia na literatura contemporânea, onde se pode ler:

Há muitas menções à fotografia em Mongólia, não só a imagens fotográficas (...); os cartazes com fotos de paisagens e de crianças, uma recorrência na decoração das casas e das iurtas mongóis; a foto do desaparecido que o Ocidental vê num painel (...); as fotografias em preto e branco dos parentes desse mesmo nômade (...), mas também ao próprio ato de tirar fotografias. O desaparecimento do rapaz, (...) é motivado pelo desejo de fotografar um lugar, segundo o guia com a pretensão de fazer ‘um livro com uma série de fotos de paisagens’ (2013, p.233).

O fato de o personagem ter o desejo de fotografar para um livro de paisagens é

envolto pelo mistério de seu desaparecimento e de uma anotação no diário que

afirma: “A paisagem não se entrega. O que você vê não se fotografa (CARVALHO, 2003,

p.148)”.

Para além do questionamento acerca do que é real e do que parece real, podemos ler

no diário do Ocidental: “Nada prova nada, e ainda assim seguimos em frente. O

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desaparecido atrás do manuscrito, e agora eu atrás dele. É como se todos mentissem e

as mentiras fossem complementares (CARVALHO, 2003, p. 148)”.

É ainda Sontag que pode explicar o resultado da experiência de fotografar e de utilizar

a fotografia, neste caso, como objeto e pista para uma determinada busca – a do

fotógrafo desaparecido:

As fotos fazem mais do que redefinir a natureza da experiência comum (gente, coisas, fatos, tudo o que vemos – embora de forma diferente e, não raro, desatenta – a visão natural) e acrescentar uma vasta quantidade de materiais que nunca chegamos a ver. A realidade tal como é redefinida – como uma peça para exposição, como um registro para ser examinado, como um alvo para ser vigiado. A exploração e a duplicação fotográficas do mundo fragmentam continuidades e distribuem os pedaços em um dossiê interminável, propiciando dessa forma possibilidades de controle que não poderiam sequer ser sonhadas sob o anterior sistema de registro de informações: a escrita (2004, p.173)

No entanto, o romance termina sem que se possa ter uma resposta para o que é

buscado, mas reforça a tese de que se trata de um romance de viagem.

Fotografia e narrativa

Em 2014, o escritor angolano Valter Hugo Mãe publicou o romance A desumanização,

tendo como personagem principal uma menina chamada Halla. No final do mesmo

ano, publica O paraíso são os outros e traz como narradora, novamente, uma menina.

Esta decisão é apresentada pelo próprio autor como nota no segundo livro. A

explicação para a mudança da expressão sartreana – inferno/paraíso vem com uma

citação de A desumanização:

O inferno não são os outros, pequena Halla. Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes. Dura pelo engenho que tiver e perece como um atributo indiferenciado do planeta. Perece como uma coisa qualquer (MÃE, 2014, p. 15).

O paraíso são os outros, como texto narrativo, nasceu do encontro do autor com o

artista plástico Nino Cais, a partir da série “Falsos brilhantes”, constituída de

fotografias de casamento compradas em um antiquário. Ao se apropriar destas

fotografias, o artista cola sobre os rostos dos fotografados peças de plástico utilizadas

para fazer brincos e colares, de modo que não se possa identificá-los. No entanto,

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estas fotografias trazem dedicatórias e estão, originalmente, coladas em um encarte

de papelão e recobertas de papel de seda, muito usados até algumas décadas, para

presentear familiares e amigos. Assim, mesmo que não se possa identificar as pessoas

fotografadas, é possível saber-lhes o nome pela dedicatória, bem como a data e o local

do casamento. Há também, em algumas delas, um selo do estúdio fotográfico em que

foram realizadas. Neste caso, o trabalho de apropriação investe na chamada economia

das imagens, recurso utilizado com frequência por Rosângela Rennó, por exemplo.

Em entrevistas, o autor do texto literário afirma que o concebeu após tomar

conhecimento da série “Falsos brilhantes” e é importante notar que a simplicidade das

poses desses casais vai ao encontro da ingenuidade delicada da narradora. Temos aqui

um caso raro de cocriação, unindo fotografia e literatura, nos termos de François

Soulages. Pode-se contra argumentar que há um processo de modificação das

fotografias o que poderia falsear o processo, mas não nos parece que seja o caso. A

intervenção do artista nas fotografias não lhes retira a atmosfera de domesticidade,

pelo contrário, só faz acentuá-la com a inclusão das joias de fantasia. O texto se divide

em 18 observações acerca de casais e acasalamentos, investindo no questionamento

mais do que em respostas.

No texto número 5 podemos ler:

Os casais são criados por causa do amor. Eu estou sempre à espera de entender melhor o que é. Sei que é algo como gostar tanto que dá vontade de grudar. Ficar agarrado, não fazer nada longe. Os casais são isso: gente muito perto. Quero dizer: acompanhando, porque mesmo em viagem não deixam de acompanhar, pensam o dia inteiro um no outro. Às vezes, falamos com alguém que pertence a um casal e essa pessoa nem ouve porque está a pensar em quem ama. Chega a ser bizarro. Quase mal-educado.

As fotografias solicitam esta proximidade relatada pelo texto. A mudança de estatuto

das fotografias reelaboradas por Nino Cais, de memórias afetivas e familiares para

obras de arte, aponta para a formalização sempre necessária para a constituição de

uma poética. Neste caso específico, uma dupla poética, a de Nino Cais e a de Valter

Hugo Mãe. A negação das fisionomias dos retratos acentua seu caráter melancólico, as

fotografias colocam em cheque não apenas suas identidades, mas lhes nega também a

identificação. Restam corpos sem as cabeças que os identificariam.

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A menina-narradora de O paraíso são os outros possui a ingenuidade necessária para

referendar esta negação porque desconhece, ainda, que a solidão é uma escolha. A

narrativa termina com a afirmação de que os casais se formam para serem o paraíso:

“O amor precisa ser uma solução, não um problema. Toda a gente me diz: o amor é um problema. Tudo bem. Posso dizer de outro modo: o amor é um problema mas a pessoa amada precisa ser uma solução”. Ou ainda: “Tenho muitas dúvidas. Quando me apaixonar, dizem-me, fico logo esclarecida. Aguardarei desconfiada. Não aceito as coisas às pressas. Preciso pensar”.

Conclusão

A partir dos exemplos apresentados ficam evidentes os muitos usos possíveis na

relação literatura e fotografia, relação que vai além do mero enquandrmento.

Destituída de seu estatuto documental – que ainda permanece bastante efetivo nas

biografias e fotobiografias – a fotografia tem se revelado um importante componente

estruturador de obras literárias provocando desvios autorais, como em Nadja, Stella

Manhattan e Mongólia; possibilitando a recriação e ressignificação de momentos

específicos, como nos poemas de Wyslawa Szymborka e Ana Martins Marques e,

finalmente, atuando como articulador do texto poético literário em Nino Cais e Valter

Hugo Mãe. Se a fotografia superexposta de Man Ray é a metáfora mais do que

apropriada para pensar a fotografia não como cópia do mundo real, mas como a

construção de um olhar.

BIBLIOGRAFIA

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“A última foto”. São Paulo: Galeria Vermelho, 2006.

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MÃE, Valter Hugo. O paraíso são os outros. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

MÃE, Valter Hugo. A desumanização. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

SOULAGES, François. La littérature et la photographie. Neohelicon, v. 35, Issue 1, p. 85-

95, 2008-06

Vídeo:

Lançamento do livro O paraíso são os outros com Nino Cais e Valter Hugo Mãe.

www.youtube.com/watch?v=y4YB9dp3Syw