Foucault e a análise do discurso em edcuação

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    197Cadernos de Pesquisa, n. 114, novembro/ 2001Cadernos de Pesquisa, n. 114, p. 197-223, novembro/ 2001

    FOUCAULT E A ANLISE DO DISCURSO

    EM EDUCAOROSA MARIA BUENO FISCHER

    Faculdade de Educao e Programa de Ps-Graduao em Educaoda Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    [email protected]

    RESUMO

    Neste artigo so apresentados e discutidos alguns importantes conceitos da teoria do discurso

    de Michel Foucault, especialmente os conceitos de enunciado, prtica discursiva, sujeito e

    heterogeneidade do discurso. A partir do referencial foucaultiano, explicita-se a ntima relao

    entre discurso e poder, bem como as vrias e complexas formas de investigar as coisas ditas.

    O objetivo mostrar a produtiva contribuio desse referencial terico e metodolgico para as

    pesquisas em educao, nas quais que se pretende analisar discursos.

    FOUCAULT, M. PESQUISA EDUCACIONAL DISCURSO

    ABSTRACTFOUCAULT AND ANALYSIS OF DISCOURSE ON EDUCATIONAL RESEARCHES. In

    this paper, I present and discuss some important concepts from Michel Foucaults theory of

    discourse, specially the concepts of statement, discoursive practice, subject and discoursive

    heterogeneity. From this theoretical reference, I explain the intimate relation between

    discourse and power, as well as several and complex forms to investigate expressed things.

    The aim is to indicate productive contribution of this theoretical and methodological reference

    to educacional researches which intend to analyze discourses.

    Este texto, com as devidas adaptaes, contm parte da discusso terica elaborada para tesede doutorado (Fischer, 1996).

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    O objetivo deste artigo oferecer elementos para uma discusso terica emetodolgica sobre o conceito de discurso em Michel Foucault e a respectivacontribuio para as investigaes no campo educacional. Tal empreitada se justifi-ca, medida que proliferam nesta rea pesquisas que se propem a analisar

    discursos de professores e professoras, de alunos de diferentes nveis, de insti- tuies ligadas educao, de textos oficiais sobre polticas educacionais, entreoutros. Apresento aqui os principais conceitos relacionados teoria foucaultianado discurso enunciado, prtica discursiva, sujeito do discurso, heterogeneidadediscursiva , tecendo comentrios sobre as ricas possibilidades que essa propostaoferece em termos tericos e metodolgicos. Para melhor entendimento da teo-ria, utilizo ora exemplos genricos do campo da educao, ora exemplos especfi-cos de uma pesquisa1 sobre as relaes entre mdia e adolescncia.

    A CONSTRUO DISCURSIVA DO SOCIAL

    Para analisar os discursos, segundo a perspectiva de Foucault, precisamosantes de tudo recusar as explicaes unvocas, as fceis interpretaes e igualmen-te a busca insistente do sentido ltimo ou do sentido oculto das coisas prticasbastante comuns quando se fala em fazer o estudo de um discurso. Para Michel

    Foucault, preciso ficar (ou tentar ficar) simplesmente no nvel de existncia daspalavras, das coisas ditas. Isso significa que preciso trabalhar arduamente com oprprio discurso, deixando-o aparecer na complexidade que lhe peculiar. E aprimeira tarefa para chegar a isso tentar desprender-se de um longo e eficazaprendizado que ainda nos faz olhar os discursos apenas como um conjunto designos, como significantes que se referem a determinados contedos, carregandotal ou qual significado, quase sempre oculto, dissimulado, distorcido, intencional-mente deturpado, cheio de reais intenes, contedos e representaes, es-condidos nos e pelos textos, no imediatamente visveis. como se no interior decada discurso, ou num tempo anterior a ele, se pudesse encontrar, intocada, averdade, desperta ento pelo estudioso.

    Para Foucault, nada h por trs das cortinas, nem sob o cho que pisamos.H enunciados e relaes, que o prprio discurso pe em funcionamento. Anali-sar o discurso seria dar conta exatamente disso: de relaes histricas, de prticas

    1. Refiro-me tese de doutorado (Fischer, 1996), na qual analisei produtos da mdia como arevista Capricho, a srie de TVConfisses de Adolescente, o caderno Folhateen, da Folha deS. Paulo, e o Programa Livre, do SBT.

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    muito concretas, que esto vivas nos discursos. Por exemplo: analisar textosoficiais sobre educao infantil, nessa perspectiva, significar antes de tudo tentarescapar da fcil interpretao daquilo que estaria por trs dos documentos, pro-curando explorar ao mximo os materiais, na medida em que eles so uma produ-

    o histrica, poltica; na medida em que as palavras so tambm construes; namedida em que a linguagem tambm constitutiva de prticas.

    Ento declara-se nesse caso a completa autonomia do discurso, o reinoabsoluto e independente das palavras? O discurso organizaria a si mesmo, inclusiveas prticas sociais? Talvez as obras foucaultianas da dcada de 60 As Palavras e ascoisase A Arqueologia do saber, como registra David Couzens Hoy (1988),sugerissem essa concepo idealista e estruturalista da linguagem, o que inclusivefoi admitido por Foucault. Porm, a idia de categorias universalmente constitutivas,prprias do estruturalismo e do idealismo filosfico, jamais se ajustou ao projetomaior do filsofo. Segundo Dreyfus e Rabinow (1984), ele desejava demonstrarexatamente o contrrio, ou seja, a inexistncia de estruturas permanentes, res-ponsveis pela constituio da realidade. A conceituao de discurso como prticasocial j exposta emA Arqueologia, mas que se torna bem clara em Vigiar e punire na clebre aulaA Ordem do discurso sublinha a idia de que o discurso sem-pre se produziria em razo de relaes de poder. E, mais tarde, nos trs volumes

    de sua Histria da sexualidade, o pensador mostra explicitamente que h duplo emtuo condicionamento entre as prticas discursivas e as prticas no discursivas,embora permanea a idia de que o discurso seria constitutivo da realidade eproduziria, como o poder, inmeros saberes. Na verdade, ele falou disso desde oincio de suas investigaes; emA Arqueologia do sabero mesmo assunto aparecesob a forma de reflexo sobre o trabalho realizado e sobre projetos futuros:

    ...gostaria de mostrar que o discurso no uma estreita superfcie de contato, ou deconfronto, entre uma realidade e uma lngua, o intrincamento entre um lxico e umaexperincia; gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando osprprios discursos, vemos se desfazerem os laos aparentemente to fortes entre aspalavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, prprias da prtica discursiva.(...) no mais tratar os discursos como conjunto de signos (elementos significantesque remetem a contedos ou a representaes), mas como prticas que formamsistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos so feitos designos; mas o que fazem mais que utilizar esses signos para designar coisas. esse

    maisque os torna irredutveis lngua e ao ato da fala. esse mais que precisofazer aparecer e que preciso descrever. (Foucault, 1986, p.56)

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    Na verdade, tudo prtica em Foucault. E tudo est imerso em relaes depoder e saber, que se implicam mutuamente, ou seja, enunciados e visibilidades,textos e instituies, falar e ver constituem prticas sociais por definio permanen-temente presas, amarradas s relaes de poder, que as supem e as atualizam.

    Nesse sentido, o discurso ultrapassa a simples referncia a coisas, existe paraalm da mera utilizao de letras, palavras e frases, no pode ser entendido comoum fenmeno de mera expresso de algo: apresenta regularidades intrnsecas asi mesmo, atravs das quais possvel definir uma rede conceitual que lhe pr-pria. a esse mais que o autor se refere, sugerindo que seja descrito e apanhadoa partir do prprio discurso, at porque as regras de formao dos conceitos,segundo Foucault, no residem na mentalidade nem na conscincia dos indivduos;pelo contrrio, elas esto no prprio discurso e se impem a todos aqueles quefalam ou tentam falar dentro de um determinado campo discursivo (Foucault, 1986,p.70).

    O terico Ernesto Laclau explicita muito bem esse conceito de discurso,pelo qual os atos de linguagem constituem uma trama que ultrapassa o meramentelingstico. Para ele, o discurso seria uma instncia limtrofe com o social. Porquecada ato social tem um significado, e constitudo na forma de seqncias discur-sivas que articulam elementos lingsticos e extralingsticos (Laclau, 1991, p.137).

    Segue da uma nova conceituao de objetividade (as prticas sociais se constitui-riam discursivamente), bem como um modo novo de conceber as identidadessociais ou subjetivas, mergulhadas num relativismo bastante radical, dado por esse jogo permanente dos sentidos. Para Laclau, a sociedade seria assim entendidacomo um vasto tecido argumentativo no qual a humanidade constri sua prpriarealidade (idem, p.146).

    Afirmar que os discursos formam os objetos de que tratam ou, como Laclau,

    que no se pode falar em realidade objetiva sem entender que esta se constripor dentro de uma trama discursiva, pode primeira vista significar uma opoidealista, conforme mencionamos anteriormente. No entanto, alm de o conjuntoda obra de Foucault demonstrar o contrrio dessa opo, pode-se dizer dapositividade desse suposto radicalismo que o leva a quase afirmar a completaautonomia dos discursos: sua insistncia em negar teorias totalizantes de explica-o da realidade social, bem como de negar uma viso de progresso cientfico ouprogresso da razo, de superioridade do presente em relao ao passado, fazcom que Foucault revolucione a histria, como diz Paul Veyne. Ele se definecomo um historiador do presente, por inquietar-se profundamente com o que

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    nos sucede hoje, e se entrega a perscrutar a genealogia dos grandes temas cons-tituintes do homem ocidental, atravs da descrio minuciosa de prticas sociaisem sua descontinuidade histrica mergulhadas em relaes de poder, produzi-das discursivamente e ao mesmo tempo produtoras de discursos e de saberes.

    Basicamente, tais temas dizem respeito fixao em saber a verdade do sujeito,em constituir os sujeitos como o lugar da verdade, em construir para todos e cadaum de ns discursos verdadeiros.

    O ENUNCIADO: UMA FUNO QUE ATRAVESSA A LINGUAGEM

    Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados que se apiem namesma formao discursiva (Foucault, 1986, p.135). Essa uma das inmeras

    definies de discurso, presentes na obraA Arqueologia do sabere, como todasas demais, no pode ser compreendida isoladamente. Tudo na obra do filsofotem conexes que precisam ser explicitadas, caso contrrio permanece-se no rei-no das tautologias e das definies circulares. Tomarei como ponto de partida aexplicitao do conceito de enunciado, para chegar posteriormente discussodos conceitos de prtica discursiva e no-discursiva, formao discursiva einterdiscursividade, j que o conceito de enunciado parece ser o que sintetiza

    melhor a elaborao do autor sobre uma possvel teoria do discurso.Em quase todas as formulaes sobre discurso, Foucault refere-se ao enun-

    ciado. Discurso como nmero limitado de enunciados para os quais podemosdefinir um conjunto de condies de existncia, ou como domnio geral de to-dos os enunciados, grupo individualizvel de enunciados, prtica regulamenta-da dando conta de um certo nmero de enunciados so algumas delas (1986,p.90 e 135). A idia contida nas expresses condies de existncia, domnio,grupo individualizvel e prtica regulamentada, usadas nas definies anterio-res, bsica para entendermos a definio de enunciado como funo de exis-tncia, a qual se exerce sobre unidades como a frase, a proposio ou o ato delinguagem. O enunciado em si no constituiria tambm uma unidade, pois ele seencontra na transversalidade de frases, proposies e atos de linguagem: ele sempre um acontecimento, que nem a lngua nem o sentido podem esgotarinteiramente (p. 32); trata-se de uma funo que cruza um domnio de estruturase de unidades possveis e que faz com que [estas] apaream, com contedos

    concretos, no tempo e no espao (p. 99).No h enunciado que no esteja apoiado em um conjunto de signos, mas

    o que importa o fato de essa funo caracterizar-se por quatro elementos

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    bsicos: um referente (ou seja, um princpio de diferenciao), um sujeito (nosentido de posio a ser ocupada), um campo associado (isto , coexistir comoutros enunciados) e uma materialidade especfica por tratar de coisas efetiva-mente ditas, escritas, gravadas em algum tipo de material, passveis de repetio

    ou reproduo, ativadas atravs de tcnicas, prticas e relaes sociais (idem, p. 133e ss.). Um enunciado como este o professor antes de tudo algum que sedoa, que ama as crianas, que acredita na sua nobre misso de ensinar certa-mente feito de signos, de palavras. Mas, para Foucault, interessa a sua condiomesma de enunciado, em seus quatro elementos bsicos:

    1. a referncia a algo que identificamos (o referente, no caso, a figura de

    mestre associada a doao e amor);2. o fato de ter um sujeito, algum que pode efetivamente afirmar aquilo(muitos professores e professoras ocupam o lugar de sujeito desse enun-ciado, e o interessante neste caso seria, por exemplo, descrever quemso os indivduos que ainda esto nessa condio; mesmo pessoas queno so professores, os voluntrios da educao, tambm se reconhe-cem nesse discurso, como tantas vezes vemos em reportagens de jor-nais e na televiso);

    3. o fato de o enunciado no existir isolado, mas sempre em associao ecorrelao com outros enunciados, do mesmo discurso (no caso, o dis-curso pedaggico) ou de outros discursos (por exemplo, o discurso re-ligioso, missionrio, ou mesmo o discurso sobre a mulher, a maternida-de, e assim por diante);

    4. finalmente, a materialidade do enunciado, as formas muito concretascom que ele aparece, nas enunciaes que aparecem em textos peda-

    ggicos, em falas de professores, nas mais diferentes situaes, em dife-rentes pocas (veja-se como a mdia se apropria desse discurso e omultiplica em inmeras reportagens sobre pessoas que voluntariamentepassam a dedicar-se ao trabalho de educadores).

    Descrever um enunciado, portanto, dar conta dessas especificidades, apreend-lo como acontecimento, como algo que irrompe num certo tempo,

    num certo lugar. O que permitir situar um emaranhado de enunciados numacerta organizao justamente o fato de eles pertencerem a uma certa formaodiscursiva.

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    Se, ao demarcar uma formao discursiva,revelamos algo dos enunciados,quando descrevemos enunciados procedemos individualizao de uma forma-o discursiva. Portanto, como escreve Foucault, a anlise do enunciado e daformao discursiva so estabelecidas correlativamente, porque a lei dos enun-

    ciados e o fato de pertencerem formao discursiva constituem uma nica emesma coisa (idem, p.135). Mas o que uma formao discursiva? Por formaodiscursiva ou sistema de formao compreende-se:

    ...um feixe complexo de relaes que funcionam como regra: ele prescreve o quedeve ser correlacionado em uma prtica discursiva, para que esta se refira a tal ouqual objeto, para que empregue tal ou qual enunciao, para que utilize tal concei-to, para que organize tal ou qual estratgia. Definir em sua individualidade singular

    um sistema de formao , assim, caracterizar um discurso ou um grupo de enun-ciados pela regularidade de uma prtica. (Idem, p.82)

    Quais os limites entre uma disciplina e o que Foucault define como forma-o discursiva? Segundo Maingueneau, as formaes discursivas devem ser vistassempre dentro de um espao discursivo ou de um campo discursivo, ou seja, elasesto sempre em relao como determinados campos de saber. Assim, quandofalamos em discurso publicitrio, econmico, poltico, feminista, psiquitrico, m-

    dico ou pedaggico, estamos afirmando que cada um deles compreende um con-junto de enunciados, apoiados num determinado sistema de formao ou forma-o discursiva: da economia, da cincia poltica, da medicina, da pedagogia, dapsiquiatria. Isso, porm, no significa definir essas formaes como disciplinas oucomo sistemas fechados em si mesmos2 . No caso dos discursos feminista e publi-citrio, mesmo que no se possa falar na tradio de uma rea especfica, comoocorre nos outros exemplos, pode-se dizer que seus enunciados tm fora deconjunto e se situam como novos campos de saber, os quais tangenciam mais deuma formao. A formao discursiva deve ser vista, antes de qualquer coisa,como o princpio de disperso e de repartio dos enunciados (idem, p.124),segundo o qual se sabe o que pode e o que deve ser dito, dentro de determina-do campo e de acordo com certa posio que se ocupa nesse campo. Ela funcio-

    2. Foucault deixa claro: a arqueologia no descreve disciplinas. Estas, no mximo, em seu des-

    dobramento manifesto, podem servir de isca para a descrio das positividades; mas no lhefixam os limites: no lhe impem recortes definitivos; no se encontram inalteradas no fim daanlise; no se pode estabelecer relao biunvoca entre as disciplinas institudas e as forma-es discursivas (Foucault, 1986, p. 202).

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    naria como matriz de sentido, e os falantes nela se reconheceriam, porque assignificaes ali lhes parecem bvias, naturais.

    Considerando nossos atos ilocutrios atos enunciativos, atos de fala ,podemos dizer que esses se inscrevem no interior de algumas formaes discursi-

    vas e de acordo com um certo regime de verdade, o que significa que estamossempre obedecendo a um conjunto de regras, dadas historicamente, e afirmandoverdades de um tempo. As coisas ditas, portanto, so radicalmente amarradas sdinmicas de poder e saber de seu tempo. Da que o conceito de prtica discursiva,para Foucault, no se confunde com a mera expresso de idias, pensamentos ouformulao de frases. Exercer uma prtica discursiva significa falar segundo deter-minadas regras, e expor as relaes que se do dentro de um discurso. Quando ateleviso, por exemplo, se apropria do discurso missionrio do professor, fala e fazfalar esse discurso, fala e faz falar um discurso segundo algumas de suas regras quefixaram enunciados sobre a figura da professoramedoadora. Para o autor, por-tanto, o conceito de prtica discursiva vincula-se diretamente a:

    ...um conjunto de regras annimas, histricas, sempre determinadas no tempo eno espao, que definiram, em uma dada poca e para uma determinada reasocial, econmica, geogrfica ou lingstica, as condies de exerccio da funoenunciativa. (Idem, p.136)

    Nesse caso faz-se necessrio ressaltar que o enunciado, diferentementedos atos de fala e mesmo das palavras, frases ou proposies, no imediatamen- te visvel nem est inteiramente oculto. Pode ocorrer de uma frase ou um atoilocutrio serem confundidos com certo enunciado, mas isso no quer dizer queso a mesma coisa. Assim, por exemplo, quando uma menina adolescente diz na televiso que s deixar de ser virgem quando encontrar a pessoa certa, sua frase, em tal cena enunciativa, est investida de muito mais do que supe umasimples coisa dita: ela pe em jogo um conjunto de elementos, referentes s pos-sibilidades de aparecimento e delimitao daquele discurso. Enunciados dispersoscomo esse, extrados e organizados a partir da anlise de textos da mdia brasileirasobre o mundo adolescente, esto inscritos no dispositivo da sexualidade de nossapoca, repartem-se segundo enunciados de determinadas formaes discursivas sobretudo as relacionadas aos campos da medicina, da psicologia e da publicida-de e polemizam com enunciados de tantos outros discursos, como o discurso

    feminista, construdo sobretudo a partir da dcada de 60. Diz-se um modo deexistncia sexual, fala-se um modo de ser mulher na juventude. Deixar de servirgem com a pessoa certa mais do que uma frase, mais do que um desejo,

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    mais do que a promessa da menina diante das cmeras. Como descrever essemais, o enunciado e suas inmeras relaes, sem querer buscar algo que quemsabe por uma maldade dos poderosos, por mecanismos de represso e coao ,teria sido intencionalmente escondido?

    Ora, por mais que o enunciado no seja oculto, nem por isso visvel; ele no seoferece percepo como portador manifesto de seus limites e caracteres. ne-cessria uma certa converso do olhar e da atitude para poder reconhec-lo econsider-lo em si mesmo. (Idem, p.126)

    Trata-se de um esforo de interrogar a linguagem o que efetivamente foidito sem a intencionalidade de procurar referentes ou de fazer interpretaesreveladoras de verdades e sentidos reprimidos. Simplesmente, perguntar de que

    modo a linguagem produzida e o que determina a existncia daquele enunciadosingular e limitado. Deixar-se ficar nos espaos brancos, sem interioridade nempromessa, como escreve Foucault. No caso do exemplo citado, trata-se de mapearos ditos sobre a sexualidade jovem, nas diferentes cenas enunciativas, multipli-cando as relaes a sugeridas. Ao invs de buscar explicaes lineares de causa eefeito ou mesmo interpretaes ideolgicas simplistas, ambas reducionistas eharmonizadoras de uma realidade bem mais complexa, aceitar que a realidade se

    caracteriza antes de tudo por ser belicosa, atravessada por lutas em torno daimposio de sentidos (Foucault, 1992). Multiplicar relaes significa situar as coi-sas ditas em campos discursivos, extrair delas alguns enunciados e coloc-los emrelao a outros, do mesmo campo ou de campos distintos. operar sobre osdocumentos, desde seu interior, ordenando e identificando elementos, construin-do unidades arquitetnicas, fazendo-os verdadeiros monumentos. perguntar:por que isso dito aqui, deste modo, nesta situao, e no em outro tempo elugar, de forma diferente? investigar sobre as posies necessrias ao falante,para que ele efetivamente possa ser sujeito daquele enunciado: por exemplo, apessoa certa seria uma necessidade s de meninas e de meninas virgens? Comoelas so incitadas a emitir esse enunciado ou a nele se reconhecerem plenamente?Os adolescentes do sexo masculino tambm se fazem sujeito dessa frase? Multipli-car relaes, em contrapartida, proceder a um levantamento da memria des-se enunciado, acompanh-lo como irrupo, como descontinuidade e como trans-formao. tratar os enunciados na sua disperso e na sua pobreza, uma vez

    que poucas coisas so realmente ditas nesse grande murmrio annimo do ser dalinguagem. o a parlede Foucault, o diz-se que, segundo Deleuze, assumedeterminada dimenso conforme o corpusconsiderado.

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    Estamos, ento, capacitados a extrair das palavras, frases e proposies osenunciados, que no se confundem com elas. Os enunciados no so as palavras, frases ou proposies, mas formaes que apenas se destacam de seus corpusquando os sujeitos da frase, os objetos da proposio, os significados das palavrasmudam de natureza, tomando lugar no diz-se, distribuindo-se, dispersando-se

    na espessura da linguagem. (Deleuze, 1991, p.29)

    EM QUE CONSISTE A HETEROGENEIDADE DISCURSIVA?

    Pluridiscursividade, heterogeneidade discursiva, interdiscurso so algumaspalavras ou expresses que se referem, basicamente, disperso dos enunciadose, portanto, dos discursos; referem-se idia de que eles so, antes de mais nada,

    acontecimentos. O trabalho do pesquisador ser constituir unidades a partir dessadisperso, mostrar como determinados enunciados aparecem e como se distri-buem no interior de um certo conjunto, sabendo, em primeiro lugar, que a unida-de no dada pelo objeto de anlise. Na pesquisa sobre mdia e adolescncia,aqui citada, identifico que o elemento unificador dos discursos no o objetoadolescncia; pelo contrrio, percebo que um modo de ser adolescente foi cons-trudo pelo que se disse da adolescncia, por meio de um conjunto de formula-

    es bem datadas e localizadas; sendo assim, vou ater-me a documentos produzi-dos pelos meios de comunicao e a partir deles criar alguns conjuntosarquitetnicos considerando que se constitui em nossos tempos um campo de-nominado, na falta de um vocabulrio mais preciso, discurso miditico, no qual ocorpo jovem, especialmente o corpo da mulher jovem, adquire visvel centralidade.

    Construir unidades, porm, longe de significar uma operao de simplifica-o e assepsia de enunciados desorganizados, contaminados e por demais vivos, um trabalho, como j dissemos, de multiplicao dessa realidade da coisa dita que,segundo Foucault, existe em sua pobreza, como situao estreita e singular, quese torna sempre outra, pelo simples fato de alguma vez ter sido falada. Diria, numesforo de sntese, que o discurso, para o analista, o lugar da multiplicao dosdiscursos, bem como o lugar da multiplicao dos sujeitos. dessa dupla multipli-cao que trataremos nos dois tpicos a seguir.

    Sobre o sujeito dos discursos

    A teoria do discurso est intimamente ligada questo da constituio do sujeitosocial. Se o social significado, os indivduos envolvidos no processo de significao

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    tambm o so e isto resulta em uma considerao fundamental: os sujeitos sociaisno so causas, no so origem do discurso, mas so efeitos discursivos. (Pinto,1989, p.25)Descrever uma formulao enquanto enunciado no consiste em analisar as rela-es entre o autor e o que ele disse (ou quis dizer, ou disse sem querer); mas em

    determinar qual a posio que pode e deve ocupar todo indivduo para ser seusujeito. (Foucault, 1986, p.109)

    Ao analisar um discurso mesmo que o documento considerado seja areproduo de um simples ato de fala individual , no estamos diante da manifes-tao de umsujeito, mas sim nos defrontamos com um lugar de sua disperso ede sua descontinuidade, j que o sujeito da linguagem no um sujeito em si,idealizado, essencial, origem inarredvel do sentido: ele ao mesmo tempo falan-te e falado, porque atravs dele outros ditos se dizem. Esse carter contraditriodo sujeito rompe com uma tradio, cara no somente ao idealismo de algumas teorias da linguagem, como a desenvolvida por Benveniste, mas ainda quelasconcepes segundo as quais o euseria absolutamente determinado de fora, do-minado por um Outroque o constitui. Essa bipolaridade, como sabemos, domi-nou durante muito tempo as Cincias Humanas e dela se encontram vestgios athoje em alguns discursos, como o da pedagogia, da sociologia e especialmente da

    militncia poltica. O homem sujeito da prpria histria, capaz de transformar omundo a partir da tomada de conscincia, rene essas duas concepes: tudo sepassaria como se, percebendo a dominao, a fora do outro, o sujeito pudesselutar e chegar, talvez um dia, condio paradisaca (e originria) de sujeito uno,pleno de poder.

    Bem distinta dessa formulao, e fundada principalmente na idia do confli-to, da pluralidade de vozes que se enfrentam nos textos, a concepo pela qual

    se introduz a presena do Outrono discurso. Mesmo que inicialmente ela tenhaprivilegiado certo determinismo, de fora para dentro, na verdade postula algo que,depois de Marx, no nos atrevemos a questionar: o homem inconcebvel foradas relaes sociais que o constituem. Quando a filosofia da linguagem, de inspira-o marxista, fez a traduo desse postulado, de modo especial com Bakhtin, queoutros conceitos trouxe? Basicamente, uma teoria da polifonia, do dilogo, na qualfica entendido que h inmeras vozes falando num mesmo discurso, seja porque odestinatrio est ali tambm presente, seja porque aquele discurso est referido amuitos outros. Esse duplo cruzamento constituiria, nesse caso, a polifonia discursiva.Certamente essa descentrao do sujeito, implcita na teoria marxista, pertence

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    mesma epistme3, dentro da qual se desenvolveu a psicanlise: o discurso dosujeito, para Freud, estaria sempre marcado pelo seu avesso, no caso, o incons-ciente. Dividido, quebrado, descentrado, o sujeito se definiria por um inevitvelembate com o outro que o habita. E, permanentemente, viveria a busca ilusria

    de tornar-se um. A linguagem seria a manifestao dessa busca, lugar em que ohomem imagina constituir e expor sua prpria unidade.

    Ao contemplar a tenso entre o Eu e o Outro, nos discursos, Foucault traaum caminho bem diferente para a compreenso do sujeito: afasta-se desse espaoem que se relacionam sujeitos individuais e invade o espao de uma relao maisampla, baseada na noo de disperso do sujeito. A heterogeneidade discursivaest diretamente ligada a essa disperso, j que nos discursos sempre se fala dealgum lugar, o qual no permanece idntico: falo e, ao mesmo tempo, sou falado;enuncio individualmente, de forma concreta, constituindo-me provisoriamente um,ambicionando jamais cindir-me, porm a cada fala minha posiciono-me distintamen-te, porque estou falando ora de um lugar, ora de outro, e nesses lugares h interdi-tos, lutas, modos de existir, dentro dos quais me situo, deixando-me ser falado e, aomesmo tempo, afirmando de alguma forma minha integridade. Alis, sem essa afir-mao, meu texto se perderia na desordem e na ausncia de fronteiras.

    Foucault multiplica o sujeito. A pergunta quem fala? desdobra-se em mui-

    tas outras: qual o statusdo enunciador? Qual a sua competncia? Em que campode saber se insere? Qual seu lugar institucional? Como seu papel se constitui juridi-camente? Como se relaciona hierarquicamente com outros poderes alm do seu?Como realizada sua relao com outros indivduos no espao ocupado por ele.Tambm cabe indagar sobre o lugar de onde fala, o lugar especfico no interiorde uma dada instituio, a fonte do discurso daquele falante, e sobre a sua efetivaposio de sujeito suas aes concretas, basicamente como sujeito incitador e

    produtor de saberes. assim que se destri a idia de discurso como expressode algo, traduo de alguma coisa que estaria em outro lugar, talvez em um sujeito,algo que preexiste prpria palavra.

    Imagino que os sujeitos adolescentes que falam ou so falados na mdiadispersam-se de inmeras formas: de maneira geral, sua multiplicao se faz pormeio das diversas modalidades enunciativas do discurso da televiso, das revistas e

    3. Entendo esse conceito como Foucault o formulou emA Arqueologia do saber: como o con-junto das relaes que permitem compreender o jogo das coaes e das limitaes que, emum momento determinado, se impem ao discurso (Foucault, 1986, p. 217)

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    dos jornais. Cartas, depoimentos, testes, questionrios, entrevistas, crnicas, re-portagens, fotos, textos de fico gravados em pginas impressas ou em fitasmagnticas de vdeo e reproduzidos para veiculao massiva constituem umabase material sobre a qual e a partir da qual se dispersam inmeras adolescn-

    cias: de um lado, meninas quase annimas que perguntam sobre o incompreen-svel mundo do sexo, meninas-modelo que revelam o dia-a-dia exercitado e con- trolado da manuteno de um corpo esguio, astros precoces do espetculobiografados na limitada trajetria de suas vidas, meninos que respondem a entre-vistas sobre a namorada ideal, meninas trabalhadoras desde a infncia que deixamregistrados seus sonhos em reportagens sociais, adolescentes de ambos os se-xos, marginais do trfico de drogas, do roubo e do assassinato; de outro, o corodas vozes adultas que, afinadas ou dissonantes, so tambm sujeitos de um discur-so da adolescncia, por indag-la, ouvi-la, faz-la falar e a ela devolver um discursoem geral normalizador e sempre constitutivo o coro dos locutores, apresentado-res de TV, colunistas de jornais e revistas, sexlogos, mdicos, psiquiatras e psiclo-gos, os peritos da sade fsica e mental, os especialistas do amor e da beleza.

    Fala-se uma adolescncia de diferentes maneiras, e h discursos que nopodem ser assinados por todos igualmente: o depoimento da atriz e modelo desucesso sobre sua gravidez precoce reveste-se de uma permissividade que ne-

    gada menina de subrbio cuja voz captada pela reportagem especial dogrande dirio , e a quem se dirige o discurso do demgrafo, da sociloga e dapsicloga, atento ao controle da sexualidade e da reproduo humana nas cama-das populares. Da mesma forma, h uma espcie de lei de propriedade dosdiscursos: s alguns tm o direito de falar com autoridade sobre a sexualidade dosadolescentes; no so todos que tm competncia para compreender os enuncia-dos mdicos, por exemplo, nas respostas s cartas dos leitores de jornais e revis-

    tas; um restrito grupo tem capacidade para investir o discurso do aperfeioamentodo corpo em prticas correspondentes. Mas, como veremos mais adiante, seestamos ocupados com os discursos produzidos e veiculados pelos meios de co-municao, temos um problema especfico a tratar: independentemente do en-tendimento imediato dos textos por segmentos do pblico e da maior ou menordecodificao de frases ou imagens, o mais importante compreender esses dis-cursos no limite de seus efeitos, os quais podero relacionar-se inclusive ao res-peito, por exemplo, em relao ao especialista, produzido sobre o espectadorque no entendeu certa formulao. A idia inicial do sujeito como efeito discursivoreafirma-se aqui uma vez mais.

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    Diversas posies e formas de subjetividade, portanto, podem ser lidascomo efeitos de um campo enunciativo, a partir apenas do critrio das modalida-des, como referimos, desde que se descrevam as regularidades, as freqncias, adistribuio dos elementos, em torno da pergunta sobre esse lugar vazio dos

    discursos, que o sujeito dos enunciados.O discurso, assim concebido, no a manifestao, majestosamente desenvolvida,de um sujeito que pensa, que conhece, e que o diz: , ao contrrio, um conjuntoem que podem ser determinadas a disperso do sujeito e sua descontinuidade emrelao a si mesmo. um espao de exterioridade em que se desenvolve umarede de lugares distintos. (Foucault, 1986, p.61-2)

    Cruzamento de identidades e diferenas: o interdiscurso

    Espao de dissenses e oposies mltiplas, a formao discursiva faz-se deasperezas e estridncias, mais do que de harmonias e superfcies lisas. Inteiramen-te vivo, o campo enunciativo acolhe novidades e imitaes, blocos homogneosde enunciados bem como conjuntos dspares, mudanas e continuidades. Tudonele se cruza, estabelece relaes, promove interdependncias. O que dissonante tambm produtivo, o que semeia a dvida tambm positividade crtica. Mero

    jogo de palavras? Talvez no. Quando Foucault diz que os enunciados so povoa-dos, em suas margens, de tantos outros enunciados, afirma a ao do interdiscurso,da complementaridade e da luta dos diferentes campos de poder-saber, afirma aimportncia da anlise arqueolgica, segundo a qual se despreza a solenidade dacincia, para privilegiar textos e gestos nem to inditos assim, enunciados mimticos,banais e discretos, ao lado das grandes e luminosas originalidades.

    Talvez uma das operaes mais ricas e fundamentais, sugerida por Foucault

    para a anlise dos enunciados, seja a de complexific-los no sentido de indagar arespeito de seus espaos colaterais. Em que consiste essa operao? Tomandooutra vez o exemplo da virgindade e da pessoa certa, poderamos dizer que oenunciado a considerado se situa em relao a uma constelao de formulaes.Esse enunciado se inscreve, por exemplo, no interior das modalidades enunciativasdos diferentes meios de comunicao (a novela das oito ou as cartas sexlogado jornal, entre tantas outras) , ou seja, diferencia-se conforme o meio e a moda-

    lidade enunciativa; tambm se situa entre os enunciados sobre comportamentosexual jovem, produzidos e em circulao entre campos como o da psicologia, damedicina e da educao sexual; tem uma positividade especfica, na medida de sua

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    repercusso, de seu alcance, das possibilidades de aceitao ou questionamento a afirmao da opo pela virgindade, num programa de TV ao vivo, tem conse-qncias quase imediatas; finalmente, marcado tambm pelo conjunto de for-mulaes que lhe conferem algum status, seja porque tem respaldo cientfico,

    seja porque a posio do sujeito enunciativo assim o constitui. Tudo isso povoa oenunciado e deve ser descrito, justamente porque

    ...[no h] enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma srie ou de um conjunto, desempenhando um papel nomeio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo: ele se integra sempreem um jogo enunciativo, onde tem sua participao, por ligeira e nfima que seja.[...] No h enunciado que no suponha outros; no h nenhum que no tenha,em torno de si, um campo de coexistncias. (Foucault, 1986, p.114)

    Buscar a configurao interdiscursiva, portanto, no remete quela tentativade tudo explicar, de dar conta do amplo sistema de pensamento de uma poca.Longe disso, remete a um rico e duro trabalho de multiplicao dos discursos ou,simplesmente, de complexificao do conhecimento, no mesmo sentido definidopor Edgar Morin, sobretudo em sua conhecida obra La mthode4 . SegundoFoucault, cada formao discursiva entra simultaneamente em diversos campos de

    relaes, e em cada lugar a posio que ocupa diferente, dependendo do jogode poderes em questo. Guardadas as propores, o mesmo movimento das

    4. Em O problema epistemolgico da complexidade, livro que reproduz um debate de professo-res universitrios portugueses com o pensador francs Edgar Morin, realizado em Lisboa noano de 1983, o autor de La mthode(obra em quatro volumes: ver Morin, 1977, 1980,1986, 1991) analisa a crise atual dos fundamentos do conhecimento cientfico a crise da

    objetividade dos enunciados cientficos e da coerncia lgica das teorias correspondentes , argumentando a favor da idia de complexidade do pensamento. Segundo Morin, comple-xidade no se confunde com complicao; aponta, antes, uma exigncia poltica e social denossos tempos, em que se questiona a mutilao do pensamento e se busca uma nova

    forma de lidar com a dificuldade da palavra que quer agarrar o inconcebvel e o silncio,uma nova forma de compreender a relao entre o todo e as partes, que na realidadesempre se implicam mutuamente. Enfim, complexificar significa aceitar a prpria dificuldadede pensar, porque o pensamento um combate com e contra a lgica. Tanto quantoBachelard, Canguilhem e Foucault, Morin pensa sobretudo a descontinuidade do homem,dos fatos e da histria. Ele diz: necessrio ver no s o tecido determinista mas tambm

    as falhas, os buracos, as zonas de turbulncia, os caches da cultura onde, efectivamente,brota o novo (Morin, s.d., p. 28). E mais: A vida alimenta-se das impurezas, ou melhor, arealidade e o desenvolvimento da cincia, da lgica, do pensamento tm necessidade destasimpurezas (p. 34).

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    posies do sujeito discursivo, como vimos anteriormente. Adentrar esse emara-nhado de interpositividades a proposta que o filsofo e pesquisador nos faz, nosentido de, atravs de uma anlise comparativa, repartirmos em figuras diferentesa diversidade dos enunciados e dos discursos (Foucault, 1986, p.183).

    Em outras palavras, considerar a interdiscursividade significa deixar queaflorem as contradies, as diferenas, inclusive os apagamentos, os esquecimen-tos; enfim, significa deixar aflorar a heterogeneidade que subjaz a todo discurso.Maingueneau chega a radicalizar: para a anlise do discurso, segundo ele, haveriaquase um primado do interdiscurso sobre o discurso, j que a unidade a ser ana-lisada consistiria exatamente num espao de trocas entre vrios discursos. Pensoque, ao assumir tambm esse ponto de vista como bsico nas investigaes sobremdia e educao usadas neste trabalho para exemplificar a teoria do discurso emFoucault , tenho condies de apanhar mais consistentemente os discursos sobreos quais me debruo, at porque investigo materiais bastante ricos no que serefere s lutas entre os vrios campos lutas que tomam forma em uma infinidadede produtos como seriados de TV, entrevistas, reportagens, documentrios, clips,debates ao vivo, cartas, peas publicitrias.

    Ora, a mdia, ao mesmo tempo que um lugar de onde vrias instituies esujeitos falam como veculo de divulgao e circulao dos discursos considera-

    dos verdadeiros em nossa sociedade , tambm se impe como criadora de umdiscurso prprio. Porm, pode-se dizer que, nela, talvez mais do que em outroscampos, a marca da heterogeneidade, alm de ser bastante acentuada, quasedefinidora da formao discursiva em que se insere. Poderamos dizer que hojepraticamente todos os discursos sofrem uma mediao ou um reprocessamentoatravs dos meios de comunicao. Basta lembrar o discurso poltico na poca deeleies: nenhum candidato, nenhum partido prescinde, em nossos dias, do com-

    plexo mundo da imagem, do marketing, da necessidade de ser notcia. Isso vlido para outros tantos campos: o mdico, o religioso, e assim por diante, sem falar daqueles que praticamente vivem dos media a moda e a msica, porexemplo. Est em jogo, nessa pluridiscursividade do social, luta pela imposio desentido, a luta entre vrios discursos, na conquista de novos sujeitos. Um doscampos que mais explicitamente expe a luta entre discursos o da publicidade, e nele que se torna bem visvel a importncia da multiplicao tanto de sujeitosquanto de discursos. Na busca permanente da adeso de novos sujeitos, o discur-so publicitrio reprocessa enunciados de fontes variadas; porm, como os indiv-duos podem ser sujeitos de vrios discursos, produz-se a fragilidade de cada um

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    desses campos, considerados isoladamente. Da a necessidade da luta interpelatriaconstante (Pinto, 1989, p.38)5 .

    Se dentro da mesma formao coexistem enunciaes heterogneas comovemos ocorrer com o discurso psiquitrico, no exemplo dado por Foucault (1978)

    em Histria da loucura , imagine-se ento no discurso da mdia, que no se fundamenta em apenas uma disciplina, mas em vrias (ligadas ao jornalismo, publicidade, s artes plsticas, ao cinema, s tecnologias de informao, teoria dacomunicao e assim por diante). Mais ainda se multiplicam nela os discursos, ascriaes, recriaes, transformaes, analogias e adaptaes de enunciados distin- tos, em direo a um novo discurso com caractersticas prprias. Eu diria queatingimos um tempo em que cada vez mais essa discursividade toma corpo, defi-ne-se, impe-se como bsica ao funcionamento geral da sociedade contempor-nea. Talvez o que esteja faltando descrever os limites, a configurao desse dis-curso, suas regularidades, que hoje se mostram bem mais visveis.

    Imagino que as reflexes geradas pela anlise feita na investigao aqui usadacomo exemplificao amplie a compreenso no s de como funciona o campoespecfico dos meios de comunicao, mas principalmente de como se operam,no nvel dos enunciados, as inter-relaes discursivas. Vejamos. O espao discursivo6

    por mim delimitado na pesquisa em questo genericamente, o que a mdia fala

    sobre adolescncia foi selecionado do interior do campo discursivo dos meiosde comunicao social, com o fim de atingir um objetivo central: descrever osenunciados que nossa sociedade, nesses ltimos anos, tem construdo sobre aadolescncia. A suposio que haveria uma espcie de fuso entre os valoresentronizados pela mdia (o sucesso individual, certo tipo de beleza fsica, um modode vida baseado na cultura do corpo e no consumo permanente de bens mate-

    5. Na primeira parte do livro Com a palavra o Senhor Presidente Sarney, Cli Regina Jardim Pintoapresenta o conceito de discurso articuladamente s questes do poder e da constituio desujeitos sociais, desenvolvendo reflexes fundamentais para este trabalho, particularmente noque se refere a uma compreenso mais ampla da discursividade da mdia e da publicidade naproduo de subjetividades.

    6. Meu recorte, cabe referir aqui, feito segundo a classificao proposta por Maingueneau,quanto amplitude dos conjuntos discursivos: o autor distingue universo discursivo corres-pondente a todas as formulaes discursivas que circulam numa dada conjuntura; campo

    discursivo o grupo das formaes discursivas em luta e espao discursivo o subconjunto dedeterminado campo discursivo, no qual possvel registrar presena de pelo menos duas for-maes, cujo embate fundamental para a eficcia (e compreenso) dos discursos considera-dos (Maingueneau, 1993, p. 116-7).

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    riais, entre tantos outros) e aqueles pelos quais se passa a definir o que seria umadolescente ideal para a classe mdia, ou seja, haveria uma importante intersecoentre mdia e adolescncia. Mas, o mais importante a destacar que, se cadadiscurso remetido por ele mesmo a tantos outros, os discursos incorporados

    pela mdia, a partir de outros campos mormente os da medicina, da pedagogia,da psicologia, da psicanlise , tambm eles, ao entrarem na cena miditica, aotomarem forma dentro desse campo especfico da comunicao social, sofrem umtratamento que os retira de seu habitate que, ao mesmo tempo, refora a autori-dade prpria de cada um, pela importncia que tm numa determinada formaosocial. Finalmente, caberia ainda dizer que o prprio recorte feito pelo pesquisa-dor tambm um fato de discurso e, como tal, introduz mais um dado queamplia e dinamiza o que por definio j heterogneo.

    O tratamento segundo o qual os discursos so transformados e incorpora-dos no deve ser visto de modo compacto, como se estivssemos em busca deuma totalidade bem-acabada, definidora de uma dada discursividade; pelo contr-rio, preciso considerar os diferentes momentos de enunciao e analis-los cri-ticamente como objetos vivos, pois haveria uma real impossibilidade de separar ainterao dos discursos (interdiscursividade) do funcionamento intradiscursivo (isto, a dinmica dos enunciados dentro da mesma formao), o que, segundo

    Maingueneau, est diretamente relacionado ao carter de dilogo, permanente-mente vivo em qualquer enunciado7 .

    A TEMPORALIDADE DOS ENUNCIADOS

    Foucault um dos pensadores que mais soube tratar teoria e prtica semcoloc-las em campos separados. E ele o faz duplamente: de um lado, talvez poruma necessidade vital, afirma a precariedade do seu prprio discurso, vive-o comoprocesso, como possibilidade de transformao, como desejo de distanciar-se desi mesmo e empreender um esforo de pensar diferente do que pensa; de outro,no tratamento dos dados e no trabalho sobre os documentos, Foucault aplica

    7. Alis, cabe salientar que a anlise do discurso confere a dilogoum sentido mais amplo do queaquele comumente atribudo a essa palavra. Tal sentido, referido pela primeira vez na obra deBakhtin, como vimos anteriormente, leva a considerar que, do ponto de vista discursivo, noh enunciado desprovido da dimenso dialgica, pois qualquer enunciado sobre um objeto serelaciona com enunciados anteriores produzidos sobre este objeto. Assim, todo discurso

    fundamentalmente dialgico (Brando, 1993, p. 89).

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    esse mesmo modelo, mostrando que h antes possibilidades de discursos e queos enunciados so sempre histricos, no s em relao s suas condies deemergncia como s funes por eles exercidas no interior de prticas no discur-sivas.

    O discurso no tem apenas um sentido ou uma verdade, mas uma hist-ria, escreve Foucault (1986, p.146). Ora, dizer que o discurso sobretudo hist-rico implica necessariamente falar na relao entre o discursivo e o no-discursivo,na impossibilidade de separar o lado de dentro do lado de fora dos enunciados,significa falar na economia dos discursos em sua produtividade visvel , enfim,na relao entre pensamento e vida, poder e saber, continuidade e descontinuida-de da histria, temas to caros ao autor de As Palavras e as coisas. Vejamos umadas definies de discurso em que Foucault consegue reunir todos os elementosaqui referidos, principalmente a intrincada relao entre teoria e prtica, discurso epoder, enunciado e histria assuntos deste artigo. Numa das brilhantes passa-gens deA Arqueologia do saber, o autor situa discurso como

    ...um bem finito, limitado, desejvel, til que tem suas regras de aparecimentoe tambm suas condies de apropriao e de utilizao; um bem que coloca, porconseguinte, desde sua existncia (e no simplesmente em suas aplicaes prti-cas) a questo do poder; um bem que , por natureza, o objeto de uma luta, e deuma luta poltica. (p. 139)

    Mais uma vez, preciso que se diga: Foucault escreve essa definio dediscursobaseado num anterior e meticuloso trabalho de pesquisa; o que a estdito ele o demonstrou em cada pgina de sua vasta obra. EmA Histria da loucu-ra, por exemplo, a anlise do discurso do sculo XVIII sobre a loucura permitiu-lheassinalar a descontinuidade entre a poca clssica e a modernidade: ele descobriu

    a grande ruptura que ento se estabeleceu, referida no s ao discursivo (o conhe-cimento sistemtico sobre a loucura) como ao no-discursivo (as prticas mdicascorrespondentes). Atravs da anlise de inmeros documentos, Foucault descre-ve as transformaes do discurso sobre a loucura, a emergncia de um conceitocomo doena mental inexistente at antes da Revoluo Francesa e a relaoentre uma srie de prticas ligadas ao enclausuramento do louco e instauraode uma nova ordem social. Descobre, enfim, como diz Roberto Machado8 , uma

    8. Os comentrios deste pargrafo sobre Histria da loucurasintetizam algumas das idias desen-volvidas por Roberto Machado (1995).

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    crescente subordinao da loucura razo, isto , sua total dependncia em rela-o cincia mdica. Pelas prticas psiquitricas, a loucura medicalizada e passa apenetrar a intimidade da alma humana. a loucura tutelada pela razo. a cinciacorrigindo a vida nesse longo e interminvel processo de racionalizao que nos

    constitui como homem ocidental na modernidade. Foucault nos ensina, comCanguilhem, Bachelard, Koyr, que cincia relao, e que necessrio estaratento s rupturas operadas nos discursos e nas prticas; com Nietzsche, mostracomo no preciso partir das grandes verdades cientficas para fazer histria ecomo preciso questionar o conhecimento que cada vez mais tenta se apoderardo mago das vidas e do real. Tudo isso em nome de qu? Da saudao da belezatrgica da vida.

    Nessa sntese de Histria da loucura, tentamos reunir o mximo de ele-mentos de um projeto, ao mesmo tempo terico e prtico, intelectual e existen-cial, para exemplificar a questo da temporalidade na anlise dos discursos. Essatemporalidade, como se v, precisa ser entendida para alm da idia de que osdiscursos sempre so ditos num determinado tempo e num determinado lugar;para mergulhar nela, preciso v-la atravs dos documentos escolhidos, das pr-ticas a que os textos se referem, da formao social em questo, da trajetria dosconceitos envolvidos e ainda do prprio posicionamento do pesquisador. Para

    Foucault, a anlise arqueolgica deve principalmente dar conta de como se instau-ra certo discurso, quais suas condies de emergncia ou suas condies de pro-duo. E nesse sentido que essa anlise dever fazer aparecer os chamadosdomnios no discursivos a que os enunciados remetem e nos quais eles de certaforma vivem as instituies, os acontecimentos polticos, os processos econ-micos e culturais, toda a sorte de prticas a implicadas. Tais domnios, porm, nopodem ser vistos como expresso de um discurso, nem como seus determinan-

    tes, mas como algo que faz parte de suas condies de emergncia (Foucault,1986, p.187).

    Que isso quer dizer? Em primeiro lugar, que nessa relao to estreita entrediscurso e prticas no discursivas, h mtua implicao, jamais linearidade explicativa.Se hoje se produz toda uma discursividade, por exemplo, sobre a juventude damulher de 40 anos, isso no s remete ao fato de que ocorre uma transformaodo discurso feminista da dcada de 60, como deve levar-nos a ver como essediscurso est articulado a estratgias de poder, que se voltam para o corpo damulher e multiplicam tcnicas e procedimentos disciplinares, devidamente valida-dos pela suposio de atingvel padro de vida e beleza. Tal discurso certamente

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    no existe sem as revistas, sem a televiso, sem a publicidade; tambm no existesem as academias de ginstica, a indstria da moda, e est relacionado s lutas dasmulheres em torno de uma srie de conquistas: descriminalizao do aborto, exer-ccio de funes pblicas e polticas, e assim por diante, ou seja, nessa relao

    necessria entre o discursivo e o no-discursivo, o fato de algumas instncias se-rem vistas didaticamente como suportes de enunciados porque a mulher deveser bela e jovem, criam-se academias ou especialidades mdicas e, atravs destas,o projeto se realizaria precisa ser compreendido de modo mais complexo. Odiscurso ele mesmo est em constante transformao por exercitar-se nessesespaos todos, e tais lugares, por sua vez, no so sempre os mesmos, desde queos sujeitos e as instituies se reconhecem nesse discurso.

    Uma prtica discursiva, segundo Foucault, toma corpo em tcnicas e efei-tos (1986, p.220). E como se trata de uma via de mo dupla, pode-se dizer queas tcnicas, as prticas e as relaes sociais, em que esto investidos os enuncia-dos, constituem-se ou mesmo se modificam exatamente atravs da ao dessesmesmos enunciados. Com isso Foucault quer dizer que as coisas no tm omesmo modo de existncia, o mesmo sistema de relaes com o que as cerca, osmesmos esquemas de uso, as mesmas possibilidades de transformao depois deterem sido ditas (1986, p.143). No sendo as mesmas depois de ditas, as coisas

    tm uma existncia precria, escorregadia, uma dispersividade que o arqueologistas poder captar no momento em que se dispuser a descrever o conjunto dasrelaes postas em jogo num determinado discurso. Ele no vai encontrar, porbaixo dos textos, uma vida que fervilha, a vida ainda no capturada: vai deter-sena construo de um feixe de relaes, no desenho que articula enunciados eprticas, enunciados e tcnicas, sobre um dado objeto; o mapa certamente apon-tar para regies exteriores, para lugares maiores de aplicao de um discurso

    (as instituies, por exemplo). Todas essas relaes, porm, como lembra Foucault,por mais que se esforcem para no serem a prpria trama do texto, no so, pornatureza, estranhas ao discurso (1986, p.84). Em outras palavras, as prticas nodiscursivas so tambm parte do discurso, medida que identificam tipos e nveisde discurso, definindo regras que ele de algum modo atualiza.

    Eu acrescentaria neste trabalho mais uma idia para a compreenso do cru-zamento e da interdependncia de prticas discursivas e no discursivas: ela dizrespeito tambm positividade dos discursos na histria dos corpos. O que fomose o que somos, o que foram e o que disseram nossos ancestrais, tudo isso marcanossos corpos, penetra-os e os produz, para o bem ou para o mal. Herdeiro de

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    Nietzsche, Foucault ensina um modo de fazer histria, fundamentalmente ocupa-do com uma genealogia que se volta para a observao dos corpos, para a apreensodas descontinuidades como coisas vividas e inscritas nesse lugar nico e irredutveldos indivduos. Se os acontecimentos so apenas marcados pela linguagem e dis-

    solvidos pelas idias, h um lugar em que definitivamente se inscrevem: a superf-cie dos corpos. Assim, quando o arqueologista ressalta a dinmica dos lados dedentro e de fora dos discursos, de certo modo est afirmando sua vocao degenealogista: para ele, os sujeitos so efeitos de discursos, e esses efeitos produ-zidos no interior de inmeras e bem concretas relaes institucionais, sociais eeconmicas no existem seno nos corpos:

    ...sobre o corpo se encontra o estigma dos acontecimentos passados do mesmo

    modo que dele nascem os desejos, os desfalecimentos e os erros; nele tambmeles se atam e de repente se exprimem, mas nele tambm eles se desatam, en- tram em luta, se apagam uns aos outros e continuam seu insupervel conflito.(Foucault, 1992, p.22)

    Tornemos, no entanto, esse raciocnio mais complexo, voltando a discutir aimportncia dada por Foucault ao que ele chamou de prticas, sejam elas discur-sivas ou no discursivas. Na entrevista a Dreyfus e Rabinow (1995) publicada

    originalmente sob o ttulo propos de la gnalogie de lthique: un aperu dutravail en cours , Foucault, discorrendo sobre a milenar prtica da littrature dumoi(escrita de si),mais uma vez distingue discurso e sistemas simblicos, admi-tindo que estes, obviamente, sejam tambm ativos na produo do sujeito. Po-rm, mais uma vez afirma: embora seja verdade que o sujeito constitudo sim-bolicamente, ele sobretudo constitudo por prticas reais, historicamenteanalisveis. H toda uma tecnologia de produo do sujeito que atravessa, pertur-ba e at desestabiliza os sistemas simblicos, ao mesmo tempo que deles se serve(Dreyfus, Rabinow, 1984, p.344). Importa, portanto, deter-se sobre essas prti-cas discursivas e no discursivas , para compreender a rede diferenciada depoderes e saberes que nos produzem.

    Tomemos novamente o exemplo da jovem mulher de 40: esse discursono ser analisado nem como expresso de uma conjuntura nem idealmentecomo mera criao simblica. Associada a uma srie de conquistas sociais, essaproliferao de textos sobre a mulher convidada a ultrapassar a antiga posio

    romntica, a falar de seus desejos sexuais e seu prazer e a buscar uma maturidadecheia de beleza e atrativos deve ser analisada a partir das prticas a que essediscurso est associado. Tais prticas, por sua vez, expem uma srie de lutas, a

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    comear pela luta bsica relativa ao confronto de homens e mulheres e se tornamvisveis na superfcie dos corpos femininos. Sabendo-se que vrios campos, comoo da moda, da medicina esttica, ginecolgica e endocrinolgica, e da psicologia,entre outros, disputam a hegemonia de uma discursividade sobre essa mulher,

    trata-se de desenhar as margens dos enunciados a produzidos e fazer apareceremas diferenas, as congruncias e as comunicaes, ocupando-se principalmenteem descrever as prticas efetivas a que eles fazem referncia prticas que con-formam cotidianos, definem projetos de vida, moldam, transformam e desenhamos corpos. Se a mulher fala e falada, porque, como os homens infames deque nos fala Foucault, ela de algum modo se confronta com o poder. No umpoder que somente cerceia, desmantela, vigia, surpreende ou probe; mas umpoder que suscita, incita e produz; um poder que no apenas olho e ouvido,mas que sobretudo faz agir e falar, como diz o filsofo (1992a, p.123).

    O que est em jogo no mtodo arqueolgico, quando se fala na ntima enecessria relao entre o discursivo e o no-discursivo, que ele se concentrasobre o domnio de coisas efetivamente ditas ou escritas, importando descreverjustamente de que modo elas se inscrevem no interior das formaes discursivas,isto , no sistema relativamente autnomo dos atos do discurso, em que soproduzidas essas coisas ditas (Dreyfus, Rabinow, 1984, p.78). Esse modo diz

    respeito a um processo permanente de transformao do sistema de relaes emque os textos analisados esto envolvidos. Como j se disse, os enunciados, de-pois de ditos, depois de instaurados numa determinada formao, sofrem semprenovos usos, tornam-se outros, exatamente porque eles constituem e modificamas prprias relaes sociais. Descrevendo, portanto, esse universo de diferen-as, damos conta da formao e da transformao dos discursos, que o objetivoprincipal da anlise.

    Por onde comear? O ponto de partida talvez seja a ateno ao presente, aateno a um diz-se, ao a parle de determinado campo de saber, aos mur-mrios de nossa poca, para s ento definir um corpusque permita apanhar ahistria de um determinado objeto. Se essa ateno me conduziu a investigar aevidente centralidade da figura adolescente nos textos da mdia, em nossa poca,tinha por sabido que esse discurso, como qualquer outro, tem tambm uma hist-ria. Sabia, por exemplo, que foi a partir do incio do sculo XX que se comeou afalar de adolescente como classe de idade, fase de transio entre a infncia e aidade adulta. Mas que enunciados foram registrados sobre essa categoria ado-lescncia , desde que foi criada? De que posies e de que lugares se falava nos

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    adolescentes, nas primeiras dcadas do sculo? Quais os momentos de transfor-mao do discurso que se ocupa do jovem, desde esse tempo at nossos dias?Que dizem os textos deste final de sculo, to ocupado com a adolescncia? Querupturas instauram? Que efeitos esse discurso vem operando sobre os corpos,

    especialmente nos nossos dias, em que no s os adolescentes mas amplas faixasda populao aceitam submeter-se ao discurso da eterna juventude, como se oenvelhecimento e a morte j no fossem fatos da vida, mas processos totalmen-te controlveis e at mesmo indesejveis?

    Baseado nos estudos de Canguilhem, Foucault ensina que os conceitos so-frem constantes deslocamentos e transformaes e que a trajetria de um concei-to na verdade a histria de seus diversos campos de constituio e de validade,das sucessivas regras de uso nos diferentes meios tericos em que ele foi elabora-do. Desse ponto de vista, no haveria nem conceitos nem categorias essenciaisou ideais quais portos de ancoragem, lugares de repouso para o pesquisador. E,sim, descontinuidades que nos compelem a ver e pensar a diferena, os afasta-mentos, as disperses, sem ter medo de pensar o outro no tempo do nossoprprio pensamento, como diz Foucault na clebre introduo deA Arqueologiado saber. Nesse sentido, o caminho no buscar, indefinidamente, um pontooriginrio e saber onde tudo comeou. As datas e locais que fixamos no significam

    pontos de partida nem dados definitivos; so, antes, referncias ligadas s condi-es de produo de um dado discurso, que se enuncia diferente, que outro emcada um desses lugares e instantes. No se trata, de forma alguma, de fazer umainterpretao cronolgica nem de ir situando os elementos, como se fosse poss-vel uma seqencialidade. Uma coisa tratar de domnios como os de atualidade,memria e antecipao; outra afirmar que h um antesagoradepois, dispos- to numa linearidade fundamental. Aqueles domnios, considerados e

    operacionalizados, permitiro caracterizar o que se repete, o que instaura ruptu-ras, o que se transforma, o que est nas fronteiras de um determinado tempo.

    Para o analista, importante observar, como anunciamos, que a modifica-o dos enunciados implica a existncia de um acmulo, de uma memria, de umconjunto de j-ditos. Dessa forma, qualquer seqncia discursiva da qual nos ocu-pemos poder conter informaes j enunciadas; haveria um processo dereatualizao do passado nos acontecimentos discursivos do presente. Essas redesde formulao o tecido constitudo pelo discurso de referncia e pelo j-enuncia-do permitiriam descrever efeitos de memria, ou seja, redefinies, transforma-es, esquecimentos, rupturas, negaes, e assim por diante. No se trata de

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    acionar uma memria psicolgica, nem de despertar os textos de seu sono,como diz Foucault. preciso levantar os temas relacionados aos esquecimentose mostrar qual o modo de existncia que caracteriza aqueles enunciados, os quaisesto, sempre, diretamente investidos em tcnicas e prticas, isto , em relaes

    sociais.

    CONCLUSO

    Procurei, neste artigo, expor a teoria de Foucault sobre o discurso, de-monstrando de que modo o autor ensina aos pesquisadores um modo de investi-gar no o que est por trs dos textos e documentos, nem o que se queriadizer com aquilo, mas sim descrever quais so as condies de existncia de um

    determinado discurso, enunciado ou conjunto de enunciados. Suspendendo con-tinuidades, acolhendo cada momento do discurso e tratando-o no jogo de rela-es em que est imerso, possvel levantar um conjunto de enunciados efetivos,em sua singularidade de acontecimentos raros, dispersos e dispersivos e indagar:afinal, por que essa singularidade acontece ali, naquele lugar, e no em outrascondies?

    Em sntese, partindo de que no se pode falar de qualquer coisa em qual-

    quer poca, o que afirmei, a partir de Foucault, que um determinado objeto(como o conjunto de enunciaes sobre a professora dadivosa ou a adolescentevirgem) existe sob condies positivas, na dinmica de um feixe de relaes, eque h condies de aparecimento histrico de um determinado discurso, relati- vas s formaes no discursivas (instituies, processos sociais e econmicos).Tudo isso pode ser aprendido e descrito a partir dos prprios textos; a partir deles, possvel destacar as regras pelas quais o jogo de relaes entre o discursivo e ono discursivo, em uma determinada poca, fazem aparecer aquele objeto, e nooutro, como objeto de poder e saber (o objeto virgindade adolescente, o objetoprofessora missionria, ou ainda o objeto mulher jovem de 40 anos, conforme osexemplos citados).

    A compreenso da temporalidade dos discursos, como vimos aqui, talvezpossa deixar um pouco mais clara a preocupao de Foucault com a raridade nos dos enunciados, mas dos prprios fatos humanos. Essa ateno ao que poderiaser outro bsica para o arqueologista. O historiador Paul Veyne explica que a

    afirmao de que os fatos humanos so raros significa, no pensamento foucaultiano,que eles:

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    ...no esto instalados na plenitude da razo, h um vazio em torno deles paraoutros fatos que o nosso saber nem imagina; pois o que poderia ser diferente; os fatos humanos so arbitrrios, no sentido de Mauss, no so bvios, no entantoparecem to evidentes aos olhos dos contemporneos e mesmo de seus historia-dores que nem uns nem outros sequer o percebem. (Veyne, 1982, p.152, grifos

    meus)

    O convite de Foucault que, atravs da investigao dos discursos, nosdefrontemos com nossa histria ou nosso passado, aceitando pensar de outraforma o agora que ns to evidente. Assim, libertamo-nos do presente e nosinstalamos quase num futuro, numa perspectiva de transformao de ns mes-mos. Ns e nossa vida, essa real possibilidade de sermos, quem sabe um dia,obras de arte.

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