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Fourier: por um novo mundo amoroso Bruno Roman Marques “Nosso erro não é, como se acredita, o de desejar demais; é o de desejar muito pouco.” Charles Fourier 1. Introdução François Marie Charles Fourier (1772-1837) está inserido, ao lado de Henri de Saint-Simon (1760-1825) e Robert Owen (1771-1859), no grupo dos chamados

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Fourier: por um novo mundo amoroso

Bruno Roman Marques

“Nosso erro não é, como se acredita, o de desejar demais; é o

de desejar muito pouco.”

Charles Fourier

1. Introdução

François Marie Charles Fourier (1772-1837) está inserido, ao lado de Henri de

Saint-Simon (1760-1825) e Robert Owen (1771-1859), no grupo dos chamados

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Socialistas Utópicos. Em comum, apresentam críticas à forma como o capitalismo

industrial se desenvolvia na Europa no final do século XVIII e início do século XIX.

O termo “socialista” passou a ser utilizado na década de 1830, já na velhice de

Fourier, que nunca se afirmou como tal. Já a “utopia”, sugerindo a impossibilidade da

aplicação de seu modelo, seria o avesso de como o autor enxergava sua obra, que

descrevia e explicava detalhadamente como deveriam ser construídos, organizados e

conduzidos os seus “falanstérios”.

Embora estejam neste mesmo grupo, cada autor possui peculiaridades em sua

forma de pensar e articular suas propostas de transformação da sociedade. No caso de

Charles Fourier, tais peculiaridades se configuram mesmo em divergências e críticas às

vias para as quais Saint-Simon e Owen pensavam seus projetos de sociedade,

chegando a escrever um panfleto em 1831, que possui um título auto-explicativo no

que diz respeito à forma como Fourier se posicionava diante das idéias de ambos,

chamado “Armadilhas e charlatanismo das seitas de Saint-Simon e Owen”.

Em 1877, Friedrich Engels terminava de escrever seu livro “Do socialismo

utópico ao socialismo científico”, onde, ainda que colocasse os socialistas utópicos e

suas idéias como superadas pelo seu socialismo científico, em palavras do autor:

“Esses novos sistemas sociais nasciam condenados a mover-se no reino da utopia;

quanto mais detalhados e minuciosos fossem, mais tinham que degenerar em puras

fantasias”, não negava a importância de suas críticas, dizia: “Quanto a nós, admiramos

os germes geniais de idéias e as idéias geniais que brotam por toda parte sob essa

envoltura de fantasia que os filisteus são incapazes de ver”.

Engels, neste mesmo livro, dedica alguns parágrafos a Fourier e escreve: “Seu

espírito sempre jovial faz dele um satírico, um dos maiores satíricos de todos os

tempos”. Ressalta ainda que Fourier é “o primeiro a proclamar que o grau de

emancipação da mulher é o barômetro natural pelo qual se mede a emancipação

geral”. Mas, segundo Engels, o que mais se destaca em Fourier é a forma como este

dividiu a História.

Fourier dividiu a História anterior em cinco fases, etapas de desenvolvimento: o

edênico (ou primitivo), o selvagem (ou de inércia), patriarcal (ou de pequena

indústria), o bárbaro (média indústria), até a civilização (ou de grande indústria).

A civilização seria o período em que escrevia, a sociedade burguesa da época,

sobre a qual se concentraram suas críticas. Para Fourier, “a ordem civilizada eleva a

uma forma complexa, ambígua, equívoca e hipócrita todos aqueles vícios que a

barbárie praticava em meio à maior simplicidade”, “move-se num ‘círculo vicioso’,

num ciclo de contradições, que reproduz constantemente sem poder superá-las,

conseguindo sempre precisamente o contrário do que deseja ou alega querer

conseguir”. Sobre esta etapa ainda escreveu: “Na civilização, a pobreza brota da

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abundância”, frase que levou Engels a dizer: “Como se vê, Fourier maneja a dialética

com a mesma mestria de seu contemporâneo Hegel. Diante dos que enchem a boca

falando da ilimitada capacidade humana de perfeição, põe em relevo, com igual

dialética, que toda fase histórica tem sua vertente ascensional, mas também sua

ladeira descendente”.

Fourier, ao longo de sua vida, se dedicou a criticar e pensar as vias a serem

tomadas para a superação desta civilização.

2. Esboço Biográfico

Charles Fourier

Nascido em Besançon, na França, uma cidade atrasada e conservadora, fechada

à entrada das idéias iluministas ao longo do século XVIII. Trabalhou como comerciante

durante boa parte de sua vida, profissão diante da qual sempre manifestou desagrado,

mas acabou por exercê-la, assim como seu pai, que também fora comerciante e

falecera antes que Fourier completasse dez anos.

Antes de se dedicar ao comércio, tentara estudar engenharia na Escola Militar

de Mézières, onde não fora aceito por ser uma instituição apenas para descendentes

de nobres. Com a herança de seu pai, acabou por exercer a profissão de comerciante,

comprando mercadorias para revendê-las.

Em 1793, enquanto comerciante, em viagem à cidade de Lyon, viu eclodir uma

rebelião contra o governo republicano. Aos 21 anos de idade, Fourier foi recrutado

compulsoriamente para servir junto ao exército rebelde, liderado pelo general

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monarquista Précy, além de perder suas mercadorias (café, algodão, arroz e açúcar),

que foram confiscadas e utilizadas nos hospitais.

Alguns meses depois, o exército rebelde foi derrotado e Fourier preso.

Conseguiu, pouco depois, sua liberdade alegando que havia sido recrutado contra sua

vontade. Ainda assim, permaneceu sob vigilância, sujeito à perseguição policial,

suspeito por traição.

No ano seguinte voltou a ser recrutado. Desta vez, para servir na campanha

militar do exército republicano na Alemanha. Por problemas de saúde, retorna em

1795 à França.

Ao seu retorno, se vê impossibilitado de dar continuidade aos seus negócios,

pois, além da perda de suas mercadorias em Lyon, sofrera outra perda em um

naufrágio na Itália.

Como solução, foi trabalhar como caixeiro-viajante para o comerciante

Bousquet. Emprego este que lhe possibilitou viajar e conhecer muitas pessoas,

experiência esta muito valorizada pelo autor, que chegou a escrever: “Se tive êxito no

estudo da atração, devo isso em parte ao cuidado com que observei as pessoas

comuns, ao fato de ter me colocado em lugares onde podia ouvir as conversas delas”.

Ao início da Revolução Francesa, Charles Fourier simpatizara com as ações

populares e o movimento que derruba a monarquia em seu país. Porém, seu

desenrolar fez com que o autor reavaliasse o processo revolucionário. Para ele, havia

ocorrido um equívoco na condução do processo que, por fim, acabou por não mudar

coisa alguma.

Fourier se tornou descrente em relação à luta política e a forma como ela era

praticada, iniciando sua busca a fim de descobrir o caminho para a mudança da

sociedade.

Em 1799, Fourier faz sua descoberta. Após um almoço, constata que o valor da

maçã cobrada pelo restaurante, equivalia a quase cem vezes mais que o valor de uma

maçã em sua cidade. Nosso autor, neste momento, disse ter se dado conta da

“desordem fundamental do mecanismo industrial”, comparando a sua maçã à maçã de

Newton “pelos serviços que prestaram à ciência”.

A partir daí, passa a propagar suas idéias às pessoas com quem convivia em

suas viagens, despertando nada além de curiosidade de quem as ouvia, sem conquistar

discípulos ou seguidores.

Em 1803, começou a publicar artigos em alguns jornais, onde expunha aspectos

de sua descoberta. Com estes artigos, o autor começou a ser chamado de louco por

alguns críticos, que não levavam a sério as idéias expostas pelo autor.

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Em 1807, publicou seu primeiro livro, “A teoria dos quatro movimentos”. A

vendagem foi baixíssima e a crítica, mais uma vez, o tratou como louco, chegando a

dizer que o livro havia sido escrito de dentro de um hospício.

Embora a crítica tenha sido hostil ao livro é graças ele que Fourier conquista

seu primeiro discípulo: Just Muiron, que lera e ficara fascinado com as idéias propostas

por nosso autor.

O autor ficou alguns anos sem publicar e se muda para a região onde moravam

suas irmãs após o falecimento de sua mãe. Neste período, o autor intensifica seus

estudos e prepara as bases para a fundamentação de suas futuras obras.

Em 1822, publicou o “Tratado da Associação Doméstica-Agrícola”, reeditado

com o título “Teoria da Unidade Universal”. Mais uma vez, a crítica não recebe bem as

idéias de Fourier, exaltando suas extravagâncias, o tratando como satírico. Resolveu

ele próprio cuidar da divulgação de seu livro.

Muda-se para Paris em 1823, e retoma a profissão de comerciante. Recebe

ajuda de algumas pessoas, como seu discípulo Muiron e seu antigo patrão Bousquet.

Pouco depois consegue emprego como redator de cartas comerciais na filial parisiense

de uma firma dos EUA.

Em 1829, atendendo ao pedido de amigos, publicou o que a princípio seria

apenas um resumo de suas idéias, mas que acabou por se tornar um livro intitulado de

“O novo mundo industrial”.

A crítica não assimila, novamente, os escritos de Fourier. Uma resenha anônima

publicada na Revue Française é a que mais irrita nosso autor. Nela, seu autor compara

Fourier à Saint-Simon e Owen, diferenciando-o apenas pelo seu estilo “grotesco”.

Ainda que a crítica seguisse no movimento contrário às suas proposições,

pouco a pouco Fourier foi atraindo leitores e admiradores. Recebe de Victor

Considérant sua primeira crítica favorável. Algumas mulheres se aproximavam devido

à forma como o autor ressaltava a importância da participação das mulheres de forma

equivalente a dos homens.

Formou-se um núcleo de “fourieristas”, que se dedicou à publicação de um

semanário (“O Falanstério”), e que recebia em seu início a contribuição do próprio

Fourier. Seus discípulos, porém, não concordavam com sua forma de escrever, além

das duras críticas aos saint-simonianos, o levando a romper com o grupo.

Cada vez mais, Fourier acreditava na necessidade de pôr à prova seu modelo.

Segundo ele, a partir deste exemplo, a sociedade iria perceber como esta forma de

organização seria melhor que a forma atual como viviam, se dedicando a tentar

convencer discípulos ao redor do mundo para financiarem a fundação de seus

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falanstérios ou falanges experimentais. Houve algumas tentativas fracassadas na

França e na Romênia.

Em 1837 morria Charles Fourier. Após sua morte, ocorreram várias outras

tentativas de falanges experimentais ao redor do mundo, chegando até o Brasil, em

1841, com a fundação do Falanstério do Saí, em Santa Catarina.

3. Principais aspectos da obra de Charles Fourier

A chave para a compreensão do pensamento de Fourier está na sua Lei de

Atração Passional. Segundo ela, o universo, a natureza, os seres humanos, tudo é

movido de acordo com esta relação de atração. Porém, a ‘civilização’, e seus

mecanismos de afirmação, impediam que este impulso natural, que precede a razão,

ocorresse na vida social. A felicidade dos homens só poderia ocorrer quando esta

etapa, a ‘civilização’, fosse superada, quando os homens se dedicassem a atender seus

desejos e paixões.

Para Fourier, os seres humanos possuíam doze paixões radicais. Nenhuma

destas paixões deve ser impedida de ser satisfeita. Disse: “Toda paixão estrangulada

produz uma contrapaixão tão maléfica quanto a natural seria benéfica”. Estas doze

paixões se dividem em três grupos.

No primeiro grupo, encontram-se cinco paixões correspondentes aos sentidos:

Visão, audição, olfato, tato e paladar. É a relação dos seres humanos com as coisas. Na

‘civilização’, o homem era impedido de satisfazer estas paixões em sua plenitude,

obrigado a trabalhar em ambientes barulhentos, condições insalubres, cidades feias e

desorganizadas, etc. Deriva deste grupo, a importância dada pelo autor à Gastronomia,

que deveria ser ampliada a todos que vivessem segundo seu modelo. Não só a

gastronomia deveria ser ampliada a todos. Segundo ele, “se não é geral, a liberdade é

ilusória”, todos devem ter direito ao exercício pleno de suas paixões, livres do egoísmo

reproduzido no interior da ‘civilização’.

No segundo grupo estão quatro paixões ligadas à relação entre as pessoas. A

amizade, o amor, a ambição e o “familismo”.

O terceiro grupo é o das chamadas paixões distributivas. A “compósita” é

aquela que faz com que nos entreguemos a um ideal, é a paixão do entusiasmo, algo

que colocamos para além de nossa conveniência pessoal. Em contrapeso à

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“compósita” está a “borboleta”, que é a necessidade de variar, de ir “de flor em flor”.

Existe mais uma, é a paixão que faz com que nos assumamos como individuais em

meio ao coletivo. É a “cabalista”. Desta derivam as divergências e tensões entre

indivíduos, essenciais para a dinâmica da comunidade.

Unindo todas elas está o “uniteísmo”, uma paixão que faz com que todas as

outras coexistam em um mesmo ser. Na ’civilização’, algumas paixões sobressaem em

relação a outras, podendo se configurar em aberrações. A “compósita” resultando em

fanatismo e intolerância é um exemplo de como uma paixão desequilibrada pode

acarretar em uma paixão deformada. Com a superação da ‘civilização’, o homem

poderá desenvolver e liberar todas as suas paixões de forma equilibrada. Na

‘civilização’, nossos prazeres derivados de nossas paixões, segundo Fourier, também

são distorcidos. “Os prazeres, desde que não sejam nocivos ou vexatórios para outra

pessoa, serão úteis e proveitosos”, “nosso erro não é, como se acredita, o de desejar

de mais; é o de desejar muito pouco”.

4. O Falanstério

Ao longo deste artigo, por algumas vezes o termo “falanstério” ou “falange

experimental” foi utilizado. Dedico-me a uma breve explicação do mesmo.

O termo foi utilizado pela primeira vez em 1829, no livro “O novo mundo

industrial”, do próprio Fourier, e denominava o edifício onde seria construída e

organizada a nova sociedade. O autor dedica-se a explicar minuciosamente cada

aspecto da construção, pois ela seria, acima de tudo, exemplar para a humanidade

que, ao tomar ciência do funcionamento da falange, certamente o adotaria junto à sua

comunidade.

No falanstério morariam 1620 pessoas: 415 homens adultos, 395 mulheres

adultas e 810 crianças. Era importante que houvesse a variedade de idades, formação,

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conhecimentos, pois, para Fourier, “quanto mais variedade nas paixões e nas

faculdades, mais fácil será harmonizá-los em pouco tempo”.

Cada falange possuiria um conselho superior que zelaria pelo bom

funcionamento das atividades, sempre respeitando a liberdade, sem o uso de qualquer

método de coerção.

Fourier se dedica também a uma descrição arquitetônica minuciosa e

detalhada da estrutura do falanstério, explicando onde e como deveriam ser

construídas estas falanges.

*Ruas Interiores.

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Nos falanstérios, nem a propriedade privada, nem as práticas de mercado e

nem o dinheiro seriam extintos, pois nos falanstérios predominaria a dimensão

comunitária, propiciando outro tipo de relação. Sentindo-se seguros e livres, os

homens não sentiriam a necessidade de competir de forma destrutiva, como ocorre na

“civilização”.

Traduzir as legendas. Rues intérieures devem tornar-se ruas interiores

A educação nas falanges experimentais é cuidadosamente explicitada por

Fourier. Ela seria responsável pela formação da geração que superaria a vivida nos

falanstérios, a “Harmonia”, ou seja, o estado de plenitude da sociedade. Os

educadores seriam as crianças mais velhas, que através do exemplo, estimulariam os

mais novos.

Fourier criticou a educação na civilizada apontando que esta obriga que os

jovens são obrigados a estudar sem que seja colocados para eles a aplicação concreta,

prática, do que estudam. Fazem o caminho inverso, onde em primeiro lugar colocam a

teoria.

A educação obedece cada fase de desenvolvimento da criança, conferindo a

cada fase uma característica específica de aprendizagem. Em certo momento são

estimulados com brincadeiras que apontem talentos ou que despertem o desejo para

a realização de todo tipo de atividade produtiva. Cada indivíduo será estimulado a ter

diversas habilidades, uma vez que cada tarefa não deve ultrapassar o período de duas

horas, respeitando a paixão da “borboleta”, o desejo de mudança, desta forma, todo

trabalho adquire um caráter de prazer.

Além disso, enquanto crianças (dos 35 a 54 meses), não haveria a distinção

entre os sexos para a realização de qualquer tarefa. Mesmo em tarefas em que

necessitem de maior força física, é estimulada a participação feminina.

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No falanstério, a educação entra em seu período final aos 16 anos, onde

começariam a serem abordadas as questões referentes ao amor e ao sexo. Para

Fourier, até então, os jovens seriam “assexuados”. Chegada essa idade, seriam

estimulados a seguirem numa castidade voluntária, o “vestalado”, embora tivessem a

opção de iniciarem sua vida sexual e amorosa. Ressalta que a primeira experiência não

deve ser banalizada e estimula que aconteça entre o jovem e uma pessoa mais

madura.

5. Amor

Este é talvez o aspecto mais extravagante, que causou, e continua causando,

espanto aos leitores de Fourier: o amor. Para o autor, esta paixão radical é

especialmente deformada na “civilização”.

Na Harmonia, o amor se confunde com religião: “É na embriaguez do amor que

o ser humano acredita elevar-se ao céu e partilhar a felicidade de Deus. A ilusão não é

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tão nobre e tão religiosa nas outras paixões; elas não elevam tão alto o estado de

embriaguez dos sentidos e da alma; elas nos aproximam bem menos da felicidade

divina e são menos capazes de fornecer o embrião de uma religião da identificação

com Deus, uma religião que seja bem diferente das religiões civilizadas, já que estas

são cultos da esperança em Deus e não de associação à sua felicidade.”

Fourier acreditava que, na “civilização”, o amor assume inevitavelmente um

caráter subversivo devido à monogamia imposta. “Não tendo outro caminho para

satisfazer-se, o amor se torna um conspirador permanente, que trabalha de maneira

infatigável na desorganização da sociedade, desrespeitando todos os limites colocados

pela legislação”. A monogamia, por não ser natural ao ser humano, segundo Fourier, é

acompanhada da traição. O autor era um defensor das mulheres que traíam, para ele

“a felicidade do sexo masculino se estabelece na proporção de resistência das

mulheres aos preceitos da fidelidade conjugal”, “as mulheres, oprimidas, perseguidas

em todos os sentidos, não têm outra saída senão a falsidade; e a culpa disso cabe

inteiramente aos seus perseguidores e à civilização”.

Superada a etapa da “civilização”, a humanidade poderia gozar do amor em sua

plenitude máxima. Fourier divide esta paixão em duas, uma material e outra espiritual.

Na ‘civilização’, os homens sacrificam uma dessas duas dimensões.

Na Harmonia, a liberação de todas as paixões inerentes aos seres humanos

proporcionaria uma filantropia muito maior, as pessoas, em liberdade de se

entregarem à dimensão material do amor, amariam de forma plena na dimensão

espiritual.

Ao sentimento espiritual, Fourier chama “celadonismo”, e explica que na

Harmonia, as pessoas que se dedicarem a este amor receberão o título de “anjos”. As

escolhas pessoais de cada indivíduo serão sempre respeitadas, quanto mais plena for a

forma de amor “celadônica”, mais gozarão de sua liberdade. A mulher, “dispondo de

plena liberdade, contando com a assistência de uma boa variedade de atletas

materiais em orgias e bacanais, tanto simples como compostas, poderá encontrar em

sua alma uma ampla reserva para as ilusões sentimentais”.

Na “civilização”, Fourier afirma que as orgias são puramente materiais,

desprovidas de sentimentos, diferentemente do que ocorreria na Harmonia, onde o

bacanal e a orgia “serão enobrecidos como ato de unidade e função santa”.

Não existem limites para o amor. Para ele “o amor é a paixão da desrazão”, não

há limites para seu livre exercício. Homossexualismo, incesto, o amor entre pessoas de

idades diferentes, não há limites para a liberação dos desejos.

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6. Conclusão

De fato, não é de se estranhar que Charles Fourier tenha atraído tanto

discípulos quanto críticos. Suas idéias são revolucionárias mesmo para os dias de hoje,

aproximadamente 200 anos se passaram desde a publicação de seu primeiro livro.

Utópico ou não, suas críticas e crenças anteciparam as teorias de muitos pensadores,

bem como, possibilitaram que se repensasse a sociedade da época e, insisto, 200 anos

mais tarde, nos possibilita que repensemos o mundo que hoje vivemos, nossos

avanços, continuidades e retrocessos, por assim dizer, até o presente momento.

O quanto já se escreveu, o quanto já se viveu e morreu por um mundo menos

injusto? É triste ver que continuamos a viver e a morrer em meio à desigualdade e à

opressão. Lembremos de Fourier, pensemos na possibilidade de um novo mundo, na

possibilidade de um mundo sem desigualdades, na possibilidade de um mundo mais

amoroso.

7. Bibliografia

ENGELS, Friedrich. “Do Socialismo Utópico ao Socialismo

Científico”. São Paulo: Global, 1984.

KONDER, Leandro. “Fourier, o socialismo do prazer”. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.