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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 4317
FRACASSO ESCOLAR NA REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS PEDAGÓGICOS: UMA ANÁLISE A PARTIR DOS CONCEITOS DE ESPAÇO
DE EXPERIÊNCIA E HORIZONTE DE EXPECTATIVA1
Natália de Lacerda Gil2
Tamara Santos da Rosa3
Introdução
No presente trabalho analisamos o debate acerca do “fracasso escolar” na Revista
Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP) em artigos publicados entre 1944 e 1964. Essa
revista foi editada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (INEP), importante representante do discurso pedagógico brasileiro no período em
análise. Semelhante exame foi realizado no conhecido estudo de Maria Helena Souza Patto, A
produção do fracasso escolar, publicado nos anos 1980, que se firmou como referência no
estudo da temática. A intenção aqui, no entanto, é revisitar o periódico buscando
compreender, não as causas do fracasso escolar a partir das análises desses discursos e a
história do tema a partir do materialismo histórico (o que foi feito de modo amplo e
competente por Patto), mas a própria formulação do conceito de “fracasso escolar”.
O estudo mobiliza as referências conceituais propostas por Reinhart Koselleck,
buscando investigar a partir de qual “espaço de experiência” e diante de qual “horizonte de
expectativas” o “fracasso escolar” se circunscreve como conceito. Segundo ele,
experiência e expectativa são duas categorias adequadas para nos ocuparmos com o tempo histórico, pois elas entrelaçam passado e futuro. São adequadas também para tentar descobrir o tempo histórico, pois enriquecidas em seu conteúdo, elas dirigem as ações concretas no movimento social e político (KOSELLECK, 2006, p.308).
Para esse autor, as noções de “experiência” e “expectativa” devem ser articuladas na análise
histórica e, ainda, é preciso compreender os conceitos mobilizados em sua inevitável
polissemia. Interessou, portanto, investigar a capacidade semântica do “fracasso escolar”,
1 Este trabalho filia-se ao projeto interinstitucional (UFRGS, UNICAMP, USP) “A escola obrigatória e seus alunos: acesso, permanência e desempenhos (1870-1970)”, financiado pelo CNPq (processo nº 454937/2014-8).
2 Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e no Programa de Pós-Graduação em Educação/UFRGS. E-Mail: [email protected]
3 Pedagoga pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi bolsista de Iniciação Científica pelo CNPq entre março de 2015 e agosto de 2016. E-Mail: [email protected]
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como conceito, para além das palavras comumente utilizadas (tais como reprovação,
repetência, atraso na aprendizagem, evasão etc.).
Iniciamos o exame do periódico em 1944 (ano da publicação de seu primeiro número)
e encerramos em 1964 (quando Anísio Teixeira deixa a diretoria do INEP), englobando duas
décadas de debates. A revista encontra-se atualmente disponibilizada no site do INEP, em
formato PDF, o que possibilitou, através do uso de um conjunto de palavras definidas em
consonância com a opção metodológica, o levantamento de artigos referentes ao tema. Esse
procedimento resultou na localização de 119 artigos pertinentes ao assunto, os quais foram
analisados e permitiram observar o processo discursivo que constrói o “fracasso escolar”
como problema educacional brasileiro. No exame dos artigos pretendemos tanto identificar
quais eram as expectativas dos autores de artigos da Revista Brasileira de Estudos
Pedagógicos acerca do atendimento escolar da população infantil e de suas capacidades para
aprender, assim como apontar quais concepções orientavam a compreensão dos autores
desses artigos acerca da questão, tendo em vista seu campo de experiência.
A Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos - RBEP
Com a criação do Ministério de Educação e Saúde, em 1931, as questões educacionais
assumem posição destacada entre as preocupações do novo governo4. Era forte naquele
momento a convicção de que através da educação se daria novo rumo ao Brasil, extinguindo a
miséria, as doenças e o analfabetismo, industrializando a economia, garantindo o progresso e
consolidando a identidade nacional. Em 1936, Gustavo Capanema é nomeado para o
Ministério e reestrutura seu quadro administrativo. O novo ministro defende, então, a
necessidade e a existência de condições para criação de um “aparelho central destinado a
inquéritos, estudos, pesquisas e demonstrações, sobre os problemas do ensino, nos seus
diferentes aspectos” (apud LOURENÇO FILHO, 1964, p.11). Foi, assim, concebido o Instituto
Nacional de Pedagogia, em 1937, cuja efetiva instalação ocorreu em 1938, com a
denominação de Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP)5.
Entre as funções desse Instituto estava a organização da documentação relativa à
história das ideias pedagógicas, o estabelecimento de intercâmbio entre instituições do país e
do estrangeiro, a promoção de inquéritos e pesquisas, a realização de investigações sobre
psicologia aplicada à educação, a prestação de assistência técnica aos estados federados, aos
4 A partir de 1930 Getúlio Vargas torna-se presidente do Brasil, em um contexto de renovação política. 5 O órgão, que funciona até os dias atuais, passou ao longo dos anos por alterações de nomenclatura e hoje chama-
se Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.
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municípios e a particulares e a coordenação de questões relativas à seleção profissional. Seu
primeiro diretor6 foi Lourenço Filho que considerava o INEP um “órgão eminentemente
técnico, cujo princípio organizador pautava-se pela realização de estudos e pesquisas que
pudessem servir objetivamente à administração federal dos serviços de educação” (DANTAS,
2001, p.32). Silvia Maria Galliac Saavedra (1988, p.39) afirma que
nesses primeiros anos o INEP certamente reuniu todos os elementos necessários à ação do Ministério e se consolidou como o órgão de assessoria à tomada de decisão e à elaboração das políticas da área, mas também garantiu aos educadores elementos para sua reflexão e sua prática.
Em 1944 foi criada a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP), concebida
não apenas para tornar públicos os estudos e pesquisas realizados pelo INEP, mas também
como veículo de divulgação das ações de todo o Ministério da Educação e Saúde. Em seu
primeiro editorial (RBEP, n.1, 1944, p.5-6) ressaltava-se a favorável situação vigente na
educação brasileira devido ao aumento do número de matrículas no ensino e o
“fortalecimento do ponto de vista nacional na consideração dos mais complexos problemas
de organização pedagógica”. Destacava, em seguida, que “a esse fecundo movimento, vem
dando coordenação e expressão definida o Ministério da Educação, por seus trabalhos de
reforma, suas realizações e estudos, suas pesquisas e publicações” (RBEP, n.1, 1944, p.5-6).
Depois, ponderava que, no entanto, fazia falta uma publicação periódica voltada ao “livre
debate das grandes questões da educação nacional, esclarecimento oportuno das condições
de seu desenvolvimento, e registro de suas progressivas conquistas” (RBEP, n.1, 1944, p.5-6),
função que pretendia ser, portanto, assumida pela RBEP.
A Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos propunha-se a “congregar os estudiosos
na observação dos fatos educacionais, exame dos princípios e doutrinas, e cuidadosa análise
das mais importantes questões de aplicação” (RBEP, n.1, 1944, p.5-6). Pretendia publicar
artigos de colaboradores, de forma a proporcionar a exposição e o debate de diferentes
opiniões. A organização das seções da RBEP buscava cumprir com os propósitos
apresentados na inauguração, já que garantia espaço tanto para a colaboração de
especialistas da educação, com o intuito de ampliar o debate público sobre temas
educacionais, quanto publicava leis e atos da administração pública. Entretanto, cabe
ressaltar que apesar da intenção anunciada de apresentar o debate de diferentes concepções,
6 Em 1945 a direção do INEP foi entregue a Murilo Braga de Carvalho, que respondeu pelos trabalhos deste Instituto até 1952. Carvalho vinha trabalhando com Lourenço Filho, neste órgão desde 1939, como diretor técnico da seção de Orientação e Seleção Profissional. Entre 1952 e 1964, Anísio Teixeira assume a direção do INEP dando andamento a trabalhos mais voltados às pesquisas de feição sociológica.
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o que se destacava na revista era a divulgação do ideário oficial, a propaganda laudatória das
ações de governo e o relato dos trabalhos produzidos pelo INEP. Ou seja, “muitos dos artigos
apresentados ao debate de ideias serviam de fato primordialmente à difusão das concepções e
iniciativas governamentais” (GIL, 2002, p.24).
É, portanto, em função da centralidade do INEP na orientação das políticas
educacionais e pelo papel atribuído à RBEP como espaço de debate sobre as questões
pujantes da educação brasileira que assumimos aqui esse periódico como fonte de pesquisa.
A historiografia da educação vem ressaltando, desde há algumas décadas, a imprensa
periódica especializada como um dos espaços onde são construídos e divulgados discursos
sobre a educação, o que permite tomá-la como fonte de investigação histórica. O estudo a
partir das revistas especializadas permite localizar conhecimentos produzidos por
professores, intelectuais e gestores acerca das políticas e práticas educativas. Ou seja,
as revistas especializadas em educação, no Brasil e em outros países, de modo geral, constituem uma instância privilegiada para a apreensão dos modos de funcionamento do campo educacional enquanto fazem circular informações sobre o trabalho pedagógico e o aperfeiçoamento das práticas docentes, o ensino específico das disciplinas, a organização dos sistemas, as reivindicações da categoria do magistério e outros temas que emergem do campo profissional (CATANI, 1994, p.60).
Partindo do estudo dos periódicos educacionais é possível identificar práticas e saberes
vinculados à escola e ao ensino, apreendendo a multiplicidade da área educativa. Ao assumir
as revistas especializadas como fonte, é possível observar, não apenas os grandes fatos ou a
versão divulgada oficialmente, como também a pluralidade de opiniões e considerações dos
profissionais envolvidos com a questão. Nesse sentido, Pierre Caspard (1981, p.8) acrescenta
que
a imprensa constitui um elo indispensável no conhecimento do que tem sido (...) o sistema de ensino, já que ela representa o espaço onde se desdobra e o ponto no qual se concentra todo um conjunto de teorias e práticas educativas de origem tanto oficial quanto privada.
Tais escritos explicitam variadas reações dos sujeitos em face da realidade vivida, das ideias
postas em circulação, das determinações legais vigentes, das decisões políticas. António
Nóvoa (1993, p.XXXII) considera que
a feitura de um periódico apela sempre a debates e discussões, a polémicas e conflitos; mesmo quando é fruto de uma vontade individual, a controvérsia não deixa de estar presente, no diálogo com os leitores, nas reivindicações junto dos poderes públicos ou nos editoriais de abertura.
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É a partir dessa perspectiva e considerando as potencialidades das revistas, conforme acima
mencionado, que elegemos a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos como documentação
privilegiada nesta pesquisa, cujo foco é a compreensão das concepções e expectativas sobre as
chances de democratização da escola primária, a possibilidade de que os alunos pudessem
chegar a ter (ou não) bons desempenhos escolares e a melhor maneira de organizar o sistema
de ensino visando àqueles objetivos.
(In)frequência, reprovação e evasão escolar: como a experiência de fracasso da escola democrática aparece nos debates que circularam na RBEP
Fracasso escolar é um conceito que passa a ser mencionado nominalmente nos
discursos educacionais a partir da década de 1980, quando então as questões relacionadas às
distorções de trajetória escolar (tais como reprovação, evasão e abandono dos estudos) e as
dificuldades de aprendizagem dos alunos são evocadas recorrendo-se frequentemente àquela
expressão. No período aqui em análise o termo ainda não aparece. Em alguns momentos a
ideia de fracasso aparece relacionada à escola na medida em que se considera que o indivíduo
que não segue adequadamente o percurso escolar tem mais chances de “fracassar” na vida. A
partir do referencial teórico escolhido para a análise, procuramos compreender como vai se
definindo, entre os anos 1940 e 1960, o campo semântico mobilizado nos debates sobre
educação de modo a criar as condições de possibilidade para o uso da expressão “fracasso
escolar” com a significação que é perceptível no final do século XX. Desse modo, analisamos
na RBEP, entre 1944 e 1964, os artigos onde aparecem discussões sobre rendimento do
ensino, reprovação, repetência, exames, testes, dificuldade de aprendizagem, (in)frequência
dos alunos, função da escola, entre outros termos associados.
No período em análise, o espaço de experiência é marcado pela restrita abrangência da
escola brasileira no período anterior aos anos 1930. A seletividade era constitutiva da
educação formal no Império. Por um lado, poucas eram as escolas existentes, o que de
antemão restringia as possibilidades de acesso apenas àqueles que habitavam numa
localidade onde houvesse escola. Como as instituições eram separadas por gênero – e como
havia em menor número escolas femininas -, às meninas era ainda mais difícil o acesso à
educação. Por outro lado, a escolaridade era em regra muito breve, ficando as crianças
matriculadas em geral apenas um ou dois anos, ou o tempo suficiente para a aprendizagem
dos rudimentos de leitura e cálculo (GIL; HAWAT, 2015). Daí certa naturalização do
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abandono dos estudos, o que não era ainda percebido como distorção de percurso e sim como
seleção esperada daqueles poucos que tinham condições de dar continuidade aos estudos7.
Os exames, que atestam no século XIX (e também no início do XX) a finalização dos
estudos, são rituais pouco frequentes na experiência dos (poucos) sujeitos que chegam à
escola (JINZENJI, 2010; HAWAT, 2015; SILVA, 2014). Isso porque nem todos os que
frequentavam as aulas, chegavam a ser considerados, por docentes e inspetores, como
preparados para prestarem os exames. Desse modo, muitos alunos que vão à escola, que
aprendem ao menos parte dos conteúdos escolares, não chegam a prestar os exames e não
recebem nunca, portanto, o resultado de “aprovado” ou “reprovado”. Com a proposição, na
República, de que a educação fosse acessível a todos, ganha relevância a racionalização que,
progressivamente, vai impondo os mesmos processos, ritmos e tempos a todos os alunos. É
nesse quadro que se amplia consideravelmente a abrangência dos exames – visto que cada
vez mais se espera que todos os alunos matriculados em cada uma das séries escolares
prestem no encerramento do ano letivo os exames finais, que atestavam a promoção à série
seguinte. Aumenta, portanto, a ocorrência de “reprovação” nos exames, pelo simples fato de
se aumentarem os sujeitos submetidos a exame (GIL, 2015).
É, portanto, tendo presente essa experiência que os artigos publicados na RBEP, nos
anos 1940, 1950 e 1960, vão criticar a rigidez dos exames, sua inadequação à escola ou ao
alunado brasileiro. Um primeiro aspecto discutido em alguns artigos diz respeito à variação
dos critérios de promoção nas diferentes regiões do país. Como cada unidade da federação
estabelecia seus programas do ensino e conduzia, a partir deles, a realização dos exames,
cujos resultados eram compilados nacionalmente como índices de “aprovação” e
“reprovação”, na política centralizadora assumida pelo governo Vargas essa variação tende a
aparecer como inadequada. Em editorial de 1944, faz-se menção à necessidade “do
estabelecimento de critérios absolutamente uniformes para todo o país. Urge, porém, que em
cada unidade federada se ponham em prática os mesmos processos para verificação do
rendimento escolar” (Ao findar o ano, dez 1944, v.2, n.6, p.338).
No ano seguinte a revista publica uma matéria intitulada “São necessários os exames
escolares?” (v.4, n.10, abr. 1945, p.51-54). A essa pergunta Lourenço Filho responde que sim
e Armando Hildebrad afirma que não. A divergência é contudo apenas aparente, porque os
autores mobilizam em sua argumentação significados diferentes para a palavra exame.
Hildebrad considera que os exames escolares não são necessários pensando nas provas, orais
7 Nesse aspecto, vale ressaltar a necessidade de mais estudos que permitam compreender quais os critérios e as condições objetivas que, até os anos 1930, respondem pelas trajetórias escolares mais longas.
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ou escritas, realizadas “exclusivamente para verificação do que aprenderam [os alunos], nas
várias disciplinas do curso e, como consequência do aproveitamento demonstrado, para
promoção à série seguinte, ou inabilitação” (p.52). Arrola, então, um conjunto de
inconvenientes desse processo de verificação do rendimento escolar – entre os quais estão o
fator sorte no ponto sorteado para inquirição dos alunos, a existência de docentes mais
severos e outros cujo critério é mais brando, o indesejável interesse dos professores em
prepararem seus alunos para o exame ao invés de se concentrarem no ensino. O autor conclui
afirmando que os exames deveriam ser substituídos por outras formas de avaliação: “A
observação das atividades do aluno no correr do ano; as notas mensais e de exercícios de
classe; a apreciação global do aproveitamento dos educandos, tudo cuidadosamente anotado,
em fichas ou cadernetas de toda a vida escolar, e mais as provas objetivas” (p.54). Lourenço
Filho, por sua vez, assume o termo exame considerando seu significado mais alargado, como
recurso de avaliação do processo de ensino e não apenas de verificação final dos resultados:
“São necessários os exames, primeiramente, para diagnóstico das capacidades dos alunos e
dos níveis de desenvolvimento que hajam atingido. [...] São necessários, depois, e
seguidamente, para verificação da eficácia dos meios empregados na aprendizagem. [...] São,
por fim, necessários os exames para verificação dos esforços de todo um ano letivo, de todo
um curso” (51-52). Lourenço Filho sublinha, nesse ponto, algo que vai aparecer de modo
recorrente associado às questões aqui em análise. Para ele, o exame (nesse caso, mais
frequentemente nomeado teste) é também um instrumento de diagnóstico, de verificação das
capacidades, da maturidade, do desenvolvimento infantil.
Os aportes da Psicologia para racionalização das práticas educativas são processo
amplamente conhecido na História da Educação (MONARCHA, 2009; LIMA; VIVIANI,
2015). No horizonte de expectativa dos educadores daquele período estava a crença de que
pela racionalidade característica dos procedimentos científicos, seria possível obter melhor
rendimento do ensino, permitindo alcançar os objetivos de democratização da educação.
Essa era temática recorrente também nos artigos da RBEP. Nutre-se, com grande otimismo,
a convicção de que a organização de classes homogêneas, divididos os alunos cada qual na
série condizente ao seu nível de desempenho, garantiria maior eficiência ao ensino (SOUZA,
1998). Operava-se, então, por oposição ao trabalho realizado pelo mestre-escola do século
XIX – que geria com parcos resultados salas compostas por alunos de idade e níveis muito
variados –, com a compreensão de que o diagnóstico realizado a partir dos recursos
fornecidos pela ciência permitiria a oferta de ensino adequada às diferenças individuais. Daí
o entusiasmo pelo desenvolvimento dos testes psicológicos, de maturidade, de escolaridade.
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Teixeira de Freitas, no artigo “Novos objetivos para a educação no Brasil” (v.IV, n.12,
jun. 1945, p. 346-360), argumentava que era preciso que a educação se organizasse em torno
de três princípios: justiça, ordem e eficiência. Segundo ele, “para ser justa, a educação deve
ser extensiva a todos os cidadãos, sem privilégio algum, a não ser dos dons naturais de
receptividade pessoal” (p.348). Da educação espera-se que seja capaz de
remover, utilizando recursos sociais e econômicos, todos os fatores negativos superáveis – miséria, doença, temperamento difícil, desassistência familiar e necessidade prematura de ocupação doméstica ou remunerada – permitindo, assim, que a Nação aproveite, integral e adequadamente, todos os valores intelectuais e morais que lhe trouxer cada geração (p.348-349).
A ordem viria da adoção de um sistema orgânico que, garantindo a liberdade de cada cidadão
escolher sua profissão, permitisse uma harmônica preparação e adequada distribuição do
conjunto da comunidade social de acordo com as aptidões intelectuais de cada um. Por fim, a
eficiência dependeria do estabelecimento de objetivos, métodos e processos que atendessem
às necessidades da nação. Ou seja, a defesa da escola para todos não compreendia o mesmo
percurso escolar para todos os alunos. A continuidade dos estudos, para além do nível
primário elementar, deveria pautar-se nas “qualidades de inteligência, gosto e aplicação” dos
postulantes. Nesse sentido, os testes baseados nos conhecimentos da Psicologia orientariam a
distribuição de cada um tendo em vista suas capacidades supostamente inatas e os exames
escolares fariam a verificação das possibilidades de continuidade a cada etapa da
escolaridade. Em consonância com essa compreensão da função da escola, Germano Jardim,
do Serviço de Estatística de Educação e Saúde do Ministério da Educação e Saúde, ressaltava
a importância dos testes/exames/provas para a organização do ensino:
Na classificação inicial para os agrupamentos de classe e aplicação dos programas de ensino, etc., e nas avaliações periódicas do processo íntimo do trabalho educacional e de seus efeitos práticos, considerando a extensão e a composição desses programas, além de outras provas objetivas são adotados os testes mentais e os testes pedagógicos ou de escolaridade, aqueles para a verificação e medida das qualidades mentais estes para a verificação do aproveitamento dos alunos nas diversas disciplinas. Aplicam-se ainda testes psicológicos, como elemento de orientação profissional, na verificação das tendências dos alunos, individual e coletivamente observados na escola primária (A coleta da estatística educacional IV, v. VII, n.21, mar.-abr. 1946, p.452-463; p.460).
Compreende-se, portanto, que o caráter seletivo e excludente dos exames escolares é uma
contradição apenas aparente na “escola para todos”, conforme esta foi proposta pelos
intelectuais liberais. Maria Helena Souza Patto (1993, p.87), analisando os artigos da mesma
revista, afirmava que entre os autores destaca-se a forte unidade ideológica: “todos se
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movimentam nos limites do ideário liberal e invariavelmente partem da crença de que a
universalização e a diversificação do ensino promovem a igualdade de oportunidades e são a
garantia de um regime democrático”.
No que se refere ao baixo rendimento escolar dos alunos, vários são os fatores
indicados nos artigos da RBEP. Dentre os mais destacados, ao lado da possível baixa
capacidade intelectual, está a intermitente e insuficiente frequência às aulas. As expectativas
dos liberais republicanos, que conceberam a escola primária como destinada a toda a
população infantil, era de que com o acesso das crianças à escola – pela ampliação das vagas
nas instituições já existentes, pela construção de novos prédios e regularização do fluxo dos
alunos pelas séries – as funções destinadas à educação da população nacional estariam
garantidas. Assim, incialmente, faziam a crítica ao governo imperial que não teria sido capaz
de expandir a rede de escolas e consideravam que a ampliação da matrícula nas estatísticas
era indicativa de democratização da educação. No entanto, a partir dos anos 1930, conforme
a expansão da matrícula torna-se uma realidade empírica e quantificável, vai se impondo a
revisão da concepção inicial, já que o analfabetismo diminuía muito lentamente e o nível de
escolaridade geral da população aumentava pouco8. Teixeira de Freitas (1946, p.210-211), em
análise onde busca compreender a incongruência percebida no cotejo da estatística
educacional e nos resultados do censo, argumenta que tais números demonstram
que a ineficiência da escola, ou a situação negativa do discipulado – o que afinal significa a mesma coisa – está acarretando matrículas nominais, principalmente na 1ª série. Matrículas que exprimirão inscrições reais, mas sem a consequente frequência; ou inscrições feitas ex-officio pelos professores, procurando abranger a população em idade escolar ao alcance da escola, mas sem que isso traduza qualquer coisa parecida com a obra educativa.
Começa, portanto, a ganhar destaque no debate o fato de que muitas das crianças
matriculadas na escola primária não chegavam a frequentar as aulas, sendo assim impossível
obter, a partir dessas matrículas, bons resultados em termos de aproveitamento escolar.
Nesse sentido, Germano Jardim (mar.-abr. 1946, p.458) explicava:
A frequência é determinada pelo comparecimento do aluno à escola e sua presença durante todo o tempo de aula. [...] O aproveitamento dos alunos decorre da assiduidade às aulas e dos resultados dos processos educativos, aferidos estes pelas notas dos trabalhos realizados, exames, testes, provas ecléticas, segundo os regimes didático e disciplinar que os regulamentos
8 Os números sobre educação coligidos pelo recenseamento de 1940 (que começaram a circular a partir de 1945 e 1946) davam pouca margem ao otimismo que havia caracterizado o debate educacional nos anos 1920 e 1930. Para o aprofundamento da questão, ver FERRARO, 2009.
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estabelecem em função da organização escolar, programa, critérios e métodos, para as promoções periódicas e as aprovações finais.
O que chama a atenção nesse trecho é a necessidade de explicitar a definição do que seja
frequência, o que permite pensar que não era algo consensual ou conhecido por todos os
envolvidos na atividade educativa ou, ainda, que se tratava de uma definição em disputa no
período.
Sobre a baixa frequência dos alunos às aulas, vários artigos vão trazer considerações.
Se os alunos não vão à escola, não parece viável resolver o problema do analfabetismo e do
baixo nível educacional da população. Uma primeira tônica na explicação para a situação é o
descaso dos pais que não mandam seus filhos à escola. Em estudo sobre o ensino no Vale do
São Francisco, por exemplo, afirma-se que a baixa a frequência às aulas deve-se à
“necessidade que têm muitos pais de alunos de utilizá-los em certos períodos do ano, por
ocasião do plantio e da colheita, ou em certos dias da semana, noutras atividades
econômicas” (PIERSON et all, 1952, p.27). Depois, contudo, começa a aparecer também a
responsabilidade da escola nesse quadro. Nesse sentido, Frank Bonilla (1962, p.49-50), em
Conferência proferida na Califórnia em 1962 e transcrita na RBEP, fala do “insucesso das
escolas em chegar até os alunos e retê-los” e afirma que
não seria, aliás, realístico esperar altos níveis de motivação para atender a escolas que oferecem tão pouco. Na realidade, a escola seleciona e rejeita; estimula a evasão. A situação social de muitos alunos é tal que estimula a falta de frequência, a deserção escolar prematura, a frustração e o desencorajamento diante da incapacidade de atender às exigências rígidas dos exames.
Por fim, passa a ser recorrente a relação causal estabelecida entre reprovação e infrequência.
O argumento opera nos dois sentidos: tanto se afirma que a baixa frequência dos alunos às
aulas teria como resultado o baixo rendimento e, portanto, a reprovação; como se diz que por
experimentar baixo rendimento nas atividades escolares, os alunos ficavam desmotivados de
frequentar as aulas, acabando por reprovar ao final do ano. Nesse sentido, a reprovação vai
também ser responsabilizada pelos altos índices de evasão escolar.
Em 1956, a RBEP publica entrevista coletiva concedida pelo Ministro da Educação
Clovis Salgado que afirma:
A falha fundamental da nossa escola reside no seu aspecto qualitativo [...] incluindo-se entre essas [deficiências] a do critério seletivo que ela adota [...] critério esse patente no processo de promoções que, entre nós, tem o fim de permitir apenas o progresso dos meninos que aprendem mais depressa, que assimilam melhor. Esta, entre outras causas de ordem econômica, seja a maior responsável pelo abandono da escola primária antes de concluídos os quatro anos do curso; opera como fator de desânimo, levando os alunos
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pobres, que são a maioria, a abandonar os bancos escolares (v.26, n.63, jul.-set. 1956, p.202-221; p.208).
Também em artigo publicado em 1961, resultado de estudo feito por professores de Recife,
afirma-se que, no Brasil, a “escola primária é insuficiente e insatisfatória [...] elimina, de ano
a ano, uma parte considerável de seus alunos, mediante critério desencorajante de
reprovações em massa” (Ensino primário complementar, iniciação profissional, v.35, n.81,
jan.-mar. 1961, p.136-140; p.137). A gravidade expressa nos números de evasão escolar já
tinha sido publicada pela revista em estudo de Moysés Kessel em 1954. Na nota preliminar a
esse estudo, Anísio Teixeira afirma que “em todo o país, de cada 10.000 alunos que
ingressam em determinada época na 1ª série primária, apenas 1.500 são aprovados na quarta
série, isto é, 15%” (v.XXII, n.56, out.-dez. 1954, p.53- ; p.53). Segundo ele, o intuito do estudo
era
demonstrar os malefícios econômicos e didáticos do regime de “graduação” rígida e inadequada da nossa escola primária, como se esta escola fosse ainda a escola “seletiva” dos primórdios de sua instituição.
Desde que a escola primária se fez uma escola universal para todos, devia a mesma adaptar-se aos alunos e não forçar estes a se adaptarem aos seus padrões rígidos e uniformes e o problema de promoção ser resolvido pela classificação dos alunos em seus respectivos grupos e não por aprovação e reprovação.
A promoção dos alunos deve ser automática, classificados os alunos pela série cronológica dos seus estudos e no nível a que tiver atingido pela sua inteligência e pelos métodos e professor que possuir a escola (apud KESSEL, 1954, p.53).
Ou seja, considerando-se o preceito do direito de todos à educação eram inadmissíveis
índices de evasão tão expressivos. As estatísticas educacionais dos anos 19309 não diferem
muito daquelas apresentadas nos anos 1950, no que se refere aos índices de reprovação. Em
1932, 63,41%10 das crianças matriculadas na primeira série reprovavam, enquanto em 1957,
essa taxa era de 56%11. O que faz com que números tão semelhantes sejam, duas décadas
depois, assumidos como “grave problema” educacional é que se alterou o horizonte de
expectativa dos intelectuais, educadores e gestores da educação. Como os liberais haviam na
década de 1930 assumido a condução das questões afeitas à educação nacional, consolidou-se
a convicção de que seria possível democratizar a educação no Brasil. Tendo como expectativa
9 É a partir de 1931 que, no Brasil, tem-se a produção regular de estatísticas de educação. Para o aprofundamento da questão, ver SENRA, 2014.
10 Obtido em FREITAS, 1937, p.34. 11 Obtido em LOURENÇO FILHO, 1961, p.58.
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a democratização da educação a toda a população, números que expressam seletividade e
exclusão passam a ser vistos como indicativos de fracasso.
Em 1949, aparece publicado na RBEP um artigo intitulado “O problema da repetência
na escola primária”, de Ofélia Boisson Cardoso. Embora a referência aos problemas da
educação ou à educação como problema não seja temática nova, é a primeira vez que a
repetência aparece explicitamente referida como problema na revista. A tônica, no entanto, é
a compreensão do aluno repetente como problema e não exatamente a repetência como uma
questão a ser equacionada pela gestão educacional. Patto (1993) argumenta que esse artigo
representa o modo como a questão era compreendida naquele momento e, por ser um dos
primeiros textos a apresentar uma análise das causas da repetência, influenciou a
compreensão acerca do tema nas décadas seguintes. Ofélia Boisson Cardoso (1949, p,74,
itálicos originais) afirmava que “é dos mais graves o problema que os repetentes criam,
primeiro no pequeno grupo que é a escola e, com o passar dos tempos, naquele mais amplo e
complexo, que é a sociedade”. E seguia a argumentação:
Maior é a gravidade, quando se considera o problema que a escassez de vagas propõe à administração: escolher entre os repetentes e os alunos novos, uma vez que o número de escolas não é suficiente. O aluno novo surge como uma incógnita; oferece, sempre, campo ao desenvolvimento de esperanças: talvez seja forte de trabalho, elemento que se ajuste bem ao grupo, interessado nas atividades escolares, compensando os esforços dispendidos. O repetente é um fracassado – já se revelou, dele nada se espera. Valerá, realmente, a pena mantê-lo na escola, preenchendo uma vaga e impedindo, com sua presença, a admissão de outro aluno? (CARDOSO, 1949, p,74, itálicos originais).
Esse é um dilema novo para a política educacional brasileira e só se apresenta em vista do
novo horizonte de expectativas, onde a necessidade de que todas as crianças concluam o
ensino primário se impõe.
Durante a década de 1950, duas perspectivas de solução do problema da repetência
aparecem, com ênfase desigual, na RBEP. Na maioria dos artigos a tônica é o desajustamento
da escola às crianças. Mesmo Ofélia Boisson Cardoso, para quem a questão principal eram as
insuficiências do alunado, apontava a influência de fatores pedagógicos. Pautada no ideário
escolanovista, que circulou amplamente nos debates educativos desde os anos 1920, a autora
dizia:
É comum encontrar-se em agrupamentos de crianças, a quem se procura ensinar leitura e escrita, fisionomias reveladoras de tédio, do aborrecimento que as absorve; mantêm-se os pequenitos indiferentes, apáticos ou, em muitos casos, turbulentos, agressivos, inquietos e violentos. [...]
Ao professor, em grande parte, cabe a responsabilidade do insucesso [...]
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Situamos, do ponto de vista pedagógico, o problema máximo da 1ª série na ação do professor, de quem é lícito exigir não só a vocação como verdadeiro preparo profissional especializado (CARDOSO, 1949, p. 79 e 81, itálicos originais).
Anísio Teixeira, na apresentação do estudo de Kessel sobre a evasão escolar, citada
acima, também insistia na necessidade de que a escola se ajustasse ao alunado que recebia.
Na entrevista coletiva do Ministro Clovis Salgado, também já citada, o mesmo afirmava que
“o INEP vem trabalhando e os Estados do Rio Grande do Sul, Pernambuco e Goiás estão
colaborando estreitamente com o governo, dispostos a alterar o seu sistema de ensino
primário estadual, para evitar o excesso de reprovação e o abandono da escola” (Extensão da
escolaridade do ensino primário, 1956, v.26, n.63, p.220).
Mas, em alguns artigos, contudo, aparecem propostas de “ajustamento” dos alunos à
escola. Nesse caso, menos do que uma nova perspectiva, trata-se mais da readequação
daquilo que predominou nos discursos da psicologia da educação desde o final do século XIX
como compreensão acerca das dificuldades de aprendizagem dos alunos. A classificação dos
alunos, que permitia identifica os alunos-problemas, e sua distribuição por classes
organizadas de acordo com suas necessidades educativas, seguindo a proposta da escola sob
medida de Claparède, não chegou nunca a se efetivar no Brasil. A consequência da
identificação e classificação das diferenças individuais, assumidas como “dificuldades” de
aprendizagem, foi a exclusão sistemática de grande parte do alunado. Diante da
consolidação, no plano das ideias, da democratização escolar, os autores já não podiam mais
simplesmente ficar indiferentes à seletividade persistente da escola brasileira. Nesse sentido,
são postas em circulação soluções que não remetem mais apenas à identificação das
capacidades inatas (o que não deixa de figurar nos artigos da RBEP durante todo o período
aqui em análise), mas também visam ações que busquem preparar as crianças para as
exigências da escola, suprindo nelas aquilo que a escola insistia em ver como lacunas. É o
caso do artigo “Da influência do Jardim de Infância na promoção da primeira série”, de
Heloísa Marinho, publicado em 1959.
O que predomina, no entanto, durante toda a década de 1950, são as propostas de
promoção automática. Em 1953, vários artigos traziam análises e propostas acerca da “crise
da educação”. Neles, vale ressaltar, a ênfase ainda recaía fortemente sobre as provas e os
exames, buscando elencar as razões do mau desempenho dos alunos nessas avaliações – a
baixa frequência às aulas, a má alimentação, as eventuais injustiças dos professores no
julgamento das provas, a má influência dos pais, a carga excessiva de conteúdos. É em torno
da discussão sobre a evasão escolar que, em 1954, Anísio Teixeira (apud KESSEL, 1954, p.53-
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54) vai defender a promoção ou aprovação automática nas escolas primárias brasileiras. A
temática não era nova no debate educacional brasileiro, visto que nas décadas de 1910 e 1920
tinha sido proposta do Estado de São Paulo, suscitando muita discussão e fortes resistências.
Depois disso, no entanto, deixou de figurar no debate educacional, dando espaço para as
preocupações em torno da ampliação das matrículas e da construção de novos prédios
escolares. Em 1957, aparece na RBEP o artigo “Repetência ou promoção automática?”, de A.
Almeida Junior, transcrição de uma conferência proferida no I Congresso Estadual de
Educação, em Ribeirão Preto/SP, em 1956. Na ocasião o autor apresentava a recomendação
da UNESCO para que fosse revisto o sistema de promoções na escola primária em países
latino-americanos. O autor expressava seu receio de que
o preconício puro e simples da promoção automática, tal como a pratica a Inglaterra, produzisse no Brasil mais alarma do que o causado pela proclamação da República. Impunha-se preparar o espírito do nosso professorado e obter a sua adesão; impunha-se ainda mais criar nas escolas brasileiras as mesmas condições que, já alcançadas naquele país europeu, permitiram ali, sem prejuízo, a adoção da promoção automática” (ALMEIDA JUNIOR, 1957, p.3-4).
Seguido a esse, outros artigos vão discutir a temática, ponderando suas vantagens e
desvantagens e, de modo geral, sempre com alguma reticência acerca das reais possibilidades
de se realizar uma reforma escolar desse tipo no Brasil. Claudia de Oliveira Fernandes (2000,
p. 84), que se dedicou especificamente à análise desse debate na RBEP, destaca que “a
novidade em relação às propostas anteriores se inseria na análise de que a implantação da
promoção automática não deveria vir desacompanhada de uma série de outras medidas, não
só no nível das políticas educacionais, como também no nível intra-escolar”.
Referências
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