FRANCESA - editora.globo.comeditora.globo.com/premios/assets/vogue_revolucaoafrancesa_agosto... ·...

2
C om um vestido preto básico, cabelos molhados e nenhuma maquiagem, visual bem diferente do qual aparece nas recepções diplomáticas, mas igualmente elegante,Alexandra Baldeh Loras me recebe pela manhã na residência oficial onde vive há quatro anos com o marido, o cônsul-geral da França no Brasil, Damien Loras, no Jardim Europa, em São Paulo. Com um sorriso escancarado, logo quebra o gelo. “Quer um chá?”, pergunta, apontando para os saquinhos de uma marca importada sobre uma das mesas da enorme varanda com vista para a piscina. “A única coisa que nunca consegui gostar no Brasil foi de mate”, diz às gargalhadas, descontraindo o clima antes de engatarmos uma conversa de duas horas.Prestes a se despedirem de suas fun- ções (o novo cônsul-geral chega ao País em setembro),Alexandra e Damien não pretendem deixar o Brasil.O casal planeja ficar de vez por aqui trabalhando por conta própria fora do serviço diplomá- tico. Ele como consultor, ela como palestrante – requisitadíssima, por sinal. “Como disse Tom Jobim, o Brasil não é para amadores. Demorei a entender suas contradições, mas entrei em total sin- tonia com o País”, diz a consulesa, em português fluente, que aprendeu com uma professora e assistindo às novelas da Globo. Desde que desembarcou na cidade,em outubro de 2012,Alexan- dra,39 anos,nunca se contentou com o papel secundário de mulher de diplomata. E logo chamou a atenção com sua personalidade exuberante nos eventos sociais na casa que vive com o marido e o filho de 4 anos. Recebeu artistas, empresários, ex-presidentes da República e festeiros em geral (em média 6.000 convidados por ano), em happenings que iam da comemoração do 14 de julho a jantares em torno de personalidades das mais diferentes áreas, entre elas o ex-presidente Nicolas Sarkozy, Luiza Brunet e os irmãos Campa- na. Envolveu-se em múltiplas atividades culturais. Deu palestras voltadas para o empoderamento da mulher negra e trabalhou com refugiados haitianos no bairro da Liberdade.Incansável,ativa e mul- tifacetada,sua história pessoal não permitiria uma postura diferente. Única negra de uma prole de cinco, Alexandra é filha de uma francesa branca,de família aristocrática (seu bisavô foi um grande industrial), e um africano de uma aldeia em Gâmbia até hoje sem eletricidade. A mãe, professora de ioga e considerada a anarquista da família,teve os cinco filhos com quatro maridos diferentes (a pri- mogênita é loira de olhos verdes,e os caçulas,ruivos de olhos azuis). Com o pai, que sonhava morar na França e imigrou para o país nos anos 60, Alexandra conviveu pouco depois que ele e a mãe se sepa- raram quando ela ainda era criança – o casal havia se conhecido num jantar na casa de vizinhos,época em que ele trabalhava numa empresa de manutenção de helicópteros.Morador de rua no fim da vida,morreu alcoólatra quando a filha tinha 15 anos.“A atuação com os refugiados foi também um exercício que fiz comigo mesma, de fazer as pazes com esse passado.Meu pai foi um imigrante que nun- ca teve esse tipo de oportunidade. Ensino desde cuidados básicos de higiene a como ingressar no mercado de trabalho.” Ainda na infância,Alexandra percebeu que o tom de pele po- deria ter papel determinante em sua trajetória. Quando menina, ela insistia em perguntar à mãe quando ficaria igual à irmã mais velha. “Eu me sentia o patinho feio da família”, lembra. Mas se recusou a abraçar a posição de vítima e arregaçou as mangas. Morou em vários países, onde fez um pouco de tudo. Foi au pair na Há quatro anos, Alexandra Baldeh Loras chegou a São Paulo com o marido, cônsul-geral da França no Brasil, e encontrou o terreno ideal para exercer sua militância contra o racismo. Aqui, faz um protesto irreverente ao lado da amiga Paola de Orleans e Bragança e conta por que decidiu morar de vez no País POR LETÍCIA PIMENTA FOTOS TINKO CZETWERTYNSKI FRANCESA REVOLUÇÃO À ˜ Com a amiga Paola de Orleans e Bragança ao fundo, Alexandra Loras (no centro) posa no sofá cercada pelas jornalistas Karine Amancio e Joyce Ribeiro (à sua esquerda), pela atriz Dani Ornellas e a modelo Samira Carvalho 238 VOGUE BRASIL `

Transcript of FRANCESA - editora.globo.comeditora.globo.com/premios/assets/vogue_revolucaoafrancesa_agosto... ·...

Page 1: FRANCESA - editora.globo.comeditora.globo.com/premios/assets/vogue_revolucaoafrancesa_agosto... · palestrante motivacional Tony Robbins, resolveu levantar a ban - deira da diversidade

Com um vestido preto básico, cabelos molhados e nenhuma maquiagem, visual bem diferente do qual aparece nas recepções diplomáticas, mas igualmente elegante, Alexandra Baldeh Loras me recebe pela manhã na residência oficial onde vive há quatro anos com o marido, o cônsul-geral da

França no Brasil, Damien Loras, no Jardim Europa, em São Paulo. Com um sorriso escancarado, logo quebra o gelo. “Quer um chá?”, pergunta, apontando para os saquinhos de uma marca importada sobre uma das mesas da enorme varanda com vista para a piscina. “A única coisa que nunca consegui gostar no Brasil foi de mate”, diz às gargalhadas, descontraindo o clima antes de engatarmos uma conversa de duas horas. Prestes a se despedirem de suas fun-ções (o novo cônsul-geral chega ao País em setembro), Alexandra e Damien não pretendem deixar o Brasil. O casal planeja ficar de vez por aqui trabalhando por conta própria fora do serviço diplomá-tico. Ele como consultor, ela como palestrante – requisitadíssima, por sinal. “Como disse Tom Jobim, o Brasil não é para amadores. Demorei a entender suas contradições, mas entrei em total sin-tonia com o País”, diz a consulesa, em português fluente, que aprendeu com uma professora e assistindo às novelas da Globo.

Desde que desembarcou na cidade, em outubro de 2012, Alexan-dra, 39 anos, nunca se contentou com o papel secundário de mulher de diplomata. E logo chamou a atenção com sua personalidade exuberante nos eventos sociais na casa que vive com o marido e o filho de 4 anos. Recebeu artistas, empresários, ex-presidentes da República e festeiros em geral (em média 6.000 convidados por ano), em happenings que iam da comemoração do 14 de julho a jantares

em torno de personalidades das mais diferentes áreas, entre elas o ex-presidente Nicolas Sarkozy, Luiza Brunet e os irmãos Campa-na. Envolveu-se em múltiplas atividades culturais. Deu palestras voltadas para o empoderamento da mulher negra e trabalhou com refugiados haitianos no bairro da Liberdade. Incansável, ativa e mul-tifacetada, sua história pessoal não permitiria uma postura diferente.

Única negra de uma prole de cinco, Alexandra é filha de uma francesa branca, de família aristocrática (seu bisavô foi um grande industrial), e um africano de uma aldeia em Gâmbia até hoje sem eletricidade. A mãe, professora de ioga e considerada a anarquista da família, teve os cinco filhos com quatro maridos diferentes (a pri-mogênita é loira de olhos verdes, e os caçulas, ruivos de olhos azuis). Com o pai, que sonhava morar na França e imigrou para o país nos anos 60, Alexandra conviveu pouco depois que ele e a mãe se sepa-raram quando ela ainda era criança – o casal havia se conhecido num jantar na casa de vizinhos, época em que ele trabalhava numa empresa de manutenção de helicópteros. Morador de rua no fim da vida, morreu alcoólatra quando a filha tinha 15 anos. “A atuação com os refugiados foi também um exercício que fiz comigo mesma, de fazer as pazes com esse passado. Meu pai foi um imigrante que nun-ca teve esse tipo de oportunidade. Ensino desde cuidados básicos de higiene a como ingressar no mercado de trabalho.”

Ainda na infância, Alexandra percebeu que o tom de pele po-deria ter papel determinante em sua trajetória. Quando menina, ela insistia em perguntar à mãe quando ficaria igual à irmã mais velha. “Eu me sentia o patinho feio da família”, lembra. Mas se recusou a abraçar a posição de vítima e arregaçou as mangas. Morou em vários países, onde fez um pouco de tudo. Foi au pair na

Há quatro anos, Alexandra Baldeh Loras chegou a São Paulo com o marido, cônsul-geral da França no Brasil, e encontrou o terreno ideal

para exercer sua militância contra o racismo. Aqui, faz um protesto irreverente ao lado da amiga

Paola de Orleans e Bragança e conta por que decidiu morar de vez no País

POR LETÍCIA PIMENTA FOTOS TINKO CZETWERTYNSKI

FRANCESAREVOLUÇÃO À˜

Com a amiga Paola de Orleans e Bragança ao fundo, Alexandra

Loras (no centro) posa no sofá cercada pelas

jornalistas Karine Amancio e Joyce Ribeiro

(à sua esquerda), pela atriz Dani Ornellas

e a modelo Samira Carvalho

238 VOGUE BRASIL

`

Page 2: FRANCESA - editora.globo.comeditora.globo.com/premios/assets/vogue_revolucaoafrancesa_agosto... · palestrante motivacional Tony Robbins, resolveu levantar a ban - deira da diversidade

Alemanha e na Inglaterra, professora de francês e webdesigner nos Estados Unidos, Espanha e México.

Formada em gestão de mídias pela prestigiada Sciences Po em Paris, ela trabalhou em grandes empresas de TI e comuni-cação. Depois de fazer um curso na Inglaterra com o escritor e palestrante motivacional Tony Robbins, resolveu levantar a ban-deira da diversidade e se encontrou em frente às câmeras de TV. “Em vez de me queixar, fui atrás de uma oportunidade.” Jornalis-ta autodidata, virou âncora de um programa de política. Depois que se casou com Damien, há oito anos, deixou o emprego para não haver conflito de interesses. Os dois se conheceram numa festa na época em que ele integrava o corpo diplomático do então presidente Nicolas Sarkozy e hoje são pais do loiríssimo Raphael.

As diferenças evidentes entre mãe e filho (Raphael tinha 5 meses quando chegou ao Brasil) acentuaram ainda mais os episódios de racismo. Alexandra já foi confundida com uma babá e barrada na portaria do clube que frequenta em São Paulo por não estar vestida de branco (e sim de Pucci). O segurança de um supermercado tam-bém a seguiu enquanto escolhia produtos importados carregando o menino no colo. Em suas próprias recepções, na hora dos cumpri-mentos na entrada de casa, muitos convidados passavam direto por ela achando que se tratava de uma governanta do cônsul.

Sem deixar se abater, resolveu estudar a fundo a questão do preconceito e virou palestrante ativa, falando em escolas públicas, universidades, ONGs e empresas como o Google. No mês passado, coordenou o primeiro TED-X para mulheres negras no Hotel Uni-que, em São Paulo. Em junho, lançou em parceria com o historiador Carlos Eduardo Dias Machado o livro Gênios da Humanidade: Ciência, Tecnologia e Inovação Africana e Afrodescendente. “O racismo me pa-ralisa, mas nunca vou para o embate. Minha forma de combatê--lo é diante de uma plateia, debatendo o assunto”, afirma ela, que convidou a amiga Paola de Orleans e Bragança para participar das fotos que ilustram esta reportagem. A trineta da princesa Isabel,

responsável pela assinatura da Lei Áurea em 1888, posou como uma governanta, ideia de Alexandra. “Não se trata de racismo invertido ou revanchismo. Quis propor uma reflexão para mostrar que precisamos evoluir. Paola foi muito corajosa.”

Pelos muitos episódios de preconceito que enfrentou, Alexan-dra nunca compartilhou do senso comum de que o Brasil é o país que lida melhor com sua miscigenação. E essa crítica vem de longa data. Desde que um de seus irmãos se casou com uma brasileira há 20 anos e se mudou para a Bahia, a consulesa passou a vir para cá com frequência. Numa das visitas, chegou a ser barrada num hotel de luxo. Em outra ocasião, em Paraty, foi discriminada ao entrar num barco. Ao saber que o marido seria designado para o posto de cônsul-geral por aqui, ela lamentou. O plano inicial era ir para a Tailândia, seu país preferido. Mas quando François Hollande assumiu a presidência da França, Damien foi realocado para cá.

Transitar com desenvoltura entre mundos tão diferentes não foi um aprendizado da noite para o dia, mas Alexandra contou com uma ótima professora em Paris: uma amiga muçulmana lhe deu “a” lição definitiva para se sentir segura. “Ela me levou numa festa chiquérrima e eu queria sumir dali”, lembra. Vendo a amiga circular entre os convidados esbanjando carisma e con-fiança, perguntou: “Como você faz para se sentir tão à vontade?”. A resposta: “Eu ajo como se fosse a dona do lugar”. “Aquele comen-tário mudou minha vida”, conta Alexandra, que dali em diante começou a fazer o mesmo, transitando com naturalidade entre o jet set, a mídia, o universo da moda e da arte contemporânea.

Apesar de não ter ficado exatamente feliz quando soube que o Brasil seria sua nova casa, hoje ela não pensa em morar em outro lugar. “Vocês estão ancorados fortemente na emoção, como o africano”, resume. “São conectados com o afeto e o otimismo. Enquanto o europeu tem uma narrativa heroica, bélica, vocês são muito doces. Por essas e outras razões é o melhor país para criar filhos. Quero que meu menino cresça aqui.”

STYL

ING

: RAQ

UE

L K

AVAT

I B

ELE

ZA: V

ALE

SAI

G C

OM

PR

OD

UTO

S M

AC C

OSM

ETI

CS

E S

CH

WAR

ZKO

PF

ASSI

STE

NTE

DE

BE

LEZA

: CLA

USS

FR

EIT

AS, A

DR

IAN

A FE

RR

I E G

IOVA

NN

A LE

DO

MAD

O P

RO

DU

ÇÃO

DE

MO

DA:

RO

GE

RIO

AR

ED

ES

ASS

ISTE

NTE

D

E F

OTO

GR

AFIA

: STE

FAN

O M

ACC

HAR

INE

AG

RAD

EC

IME

NTO

S: Z

ARA,

RAL

PH

LAU

RE

N, A

PAR

TAM

EN

TO 0

3, T

ALIE

NK,

SAI

NT

LAU

RE

NT,

DIO

R, A

RM

ANI C

OLL

EZI

ON

I, TU

FI D

UE

K, L

OFT

, TIF

FAN

Y &

CO

., R

OG

ER

IO A

RE

DE

S, L

UP

O E

CO

RE

LLO

Paola de Orleans e Bragança revê o legado da princesa Isabel 128 anos depois de sua trisavó assinar a Lei Áurea

I sabel de Orleans e Bragança, que os brasileiros conhe-cem como princesa Isabel, estava longe de ser uma no-vata na luta em favor da libertação dos escravos quando assinou a Lei Áurea, em maio de 1888. Muitos anos

antes desse gesto histórico, ela já se envolvia secretamente no combate à escravidão, apoiando movimentos de resis-tência, como o Quilombo do Leblon, mais conhecido como o Quilombo das Camélias – o primeiro abolicionista do País, assim chamado porque seus integrantes e apoiadores portavam essa flor na lapela (camélias também enfeitavam a mesa de trabalho da princesa).

Cento e vinte e oito anos depois, se por um milagre ela ainda fosse viva, minha trisavó provavelmente enfrentaria melancolia tão profunda quanto a que viveu em seu exílio na França, para onde foi após a chegada da República. Ela lamentaria ao confrontar a distância de seu desejo huma-nitário e libertador à realidade atual.

A abolição da escravidão, infelizmente, não acabou com a desigualdade no Brasil. Há muitas gerações, vivemos em uma sociedade em que há, sim, um preconceito latente, na qual o negro ainda é marginalizado. A história é muito recente, e as poucas medidas tomadas pelo governo, como as leis que estabelecem cotas nas universidades, só agora estão surtindo efeito. Somos um povo riquíssimo, de várias misturas. Respeitar as comunidades indígenas e as culturas africanas é apenas o começo para criar uma sociedade com orgulho de ser brasileira.

As fotos que ilustram esta reportagem são um protesto glamoroso. Um protesto que escancara a necessidade de não nos dobrarmos à conveniência de um passado sombrio. Foi feito para lembrar que todos nós podemos ser seres de nobreza ativa, independentemente de cor ou posição social. Não existe democracia sem igualdade de gêneros, sem igual-dade racial. A liberdade é um processo contínuo.

A LUTA CONTINUA

VOGUE BRASIL 241