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Francisco Alvim POEMAS [1968-2000 ] COSACNAIFY

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Francisco Alvim

POEMAS

[1968-2000 ]

~LETRAS] COSACNAIFY

"9 PASSATEMPO 'i'

[1974]

LUZ

Em cima da cómoda

uma lata, dois jarros, alguns objetos

entre eles três antigas estampas

Na mesa duas toalhas dobradas

uma verde, outra azul

um lençol também dobrado livros chaveiro

Sob o braço esquerdo

um caderno de capa preta

Em frente uma cama

cuja cabeceira abriu-se numa grande fenda

Na parede alguns quadros

Um relógio, um copo

[243)

UM CORREDOR

Um corredor enorme

este que vejo todos caminhando

que todos me vêem caminhando

Um enorme enorme corredor enorme

este que tanta gente caminha

eu todos caminham

Um corredor que caminha

eu todos a gente

Um corredor se caminha

[244]

MUITO OBRIGADO

Ao entrar na sala

cumprimentei-o com três palavras

boa tarde senhor

Sentei-me defronte dele

(como me pediu que fizesse)

Bonita vista

pena que nunca a aviste

Colhendo meu sangue: a agulha

enfiada na ponta do dedo

vai procurar a veia quase no sovaco

Discutir o assunto

fume do meu cigarro

deixa experimentar o seu

(Quanto ganhará este sujeito?)

Blazer, roseta, o país voltando-lhe

no hábito do anel profissional

Afinal, meu velho, são trinta anos

hoje como ontem ao meio-dia

Uma cópia deste documento

que lhe confio em amizade

Sua experiência nos pode ser muito útil

não é incómodo algum

volte quando quiser

[2 45]

DIGO AO POVO QUE FICO

Este farol no meio da cidade pode bem querer guiar

a mim e a mais de um astronauta distraído

de volta para casa

Já me disseram que lá

as roldanas das ruas emperram dia a dia

e nas praias

não se joga mais tênis de praia

(Por trás de umas poucas treliças

sempre se morre de câncer

e em calçadas intranqüi:la~pedalam

psicanalistas)

Aqui é mais seguro

Na TV - é só ligar - a gente vê

outros peixes outros pássaros

numa revoada mais fantástica

de mordidas e bicadas

Gosto um bocado deste relógio

seu t1que-taque

me faz dormir logo

[246]

SESSÃO

Presidente

o senhor se lembra de algum precedente?

Sim, me recordo

Pena que esteja ligado

a tão triste acontecimento

A morte abrindo na mente

a mesma ferida que se alastra

começa a corroer o tapete

a sola de nossos sapatos

Era um homem notável

Inteiramente dedicado ao trabalho

esquecido de si

lembrado do próximo

Nós os vivos

olhos mastigando ouvidos

apalpando idéias como cheiros

Ninguém garante que atravessar na faixa

ele atravessou e foi atropelado

Não tinha seguro

três meses de hospital é um bom dinheiro

teve que pagar (depois de morto)

[247]

Ao lado do microfone

uma garrafa de água dois copos

A luz molhando um canto de vidraça

Em frente um rosto

Alguém precisa

cobrir os passos dele com outros os mesmos

passos

(248]

O RISO AMARELO DO MEDO

Brandindo um espadim

do melhor aço de Toledo

ele irrompeu pela Academia

Cabeças rolam por toda parte

é preciso defender o pão de nossos filhos

respeitar a autoridade

O atualíssimo evangelho dos discursos

diz que um deus nos fez desiguais

(249]

%

Cartas

chegando sempre com o mesmo jeito

pedindo resposta

Querido Querida

(a vida sendo ouvida vista

para ser contada)

O ausente

sucumbido sob a culpa de tanta ausência

tenta extrair-se num asstt-nto

Palavras que se escrevem balançam sua mão

[250]

MOÇA DE BICICLETA

O céu que é mais um mar sobre a cidade

os pés descolando-se do chão

mergulho de um corpo em cores que são ventos

relva relva verde verde

pneus rilhando o saibro úmido

amarelas margaridas brancas

sons que lavam o ar

(O corpo: um sino ouvindo

e repetindo a paisagem)

[251]

ENTREVISTA

Mandei a carta

sem muita esperança

Não sei direito o que pedir

Ela me disse que deixasse filosofia

(minha vida estava toda errada)

Me ofereci para fazer a limpeza do foyer

e me pegaram para organizar uma biblioteca

É disso que venho falar

Não da carta

que muito me surpreeodf_ tenham lido

O que eu queria é mais um conselho

Alguém que me ajude a sair de onde estou

A viagem foi uma boa coisa

me fez crescer tornou-me menos indeciso

Se não for possível uma bolsa em filosofia

em história serve

Se não for possível bolsa

talvez uma outra ajuda

Preciso voltar

meus pais já estão bastante velhos

[252 ]

JOB INSCRIPTION

6. I have been living with Marta Alves for the last six

years. My wife is married but has been legally separated

from her husband. ln view of the fact that no divorce

exists in Brazil, we cannot legally enter into matrimony,

but for all practical purposes we consider ourselves

married, and are so considered in Brazilian society. My

wife would, if possible, come with me to Britain.

[253 ]

POSTULANDO

A primeira providência

é ver se há um cargo

Se tiver, ele há de querer entrevistá-lo

Ao meio-dia o candidato estará aqui

o senhor querendo

ficarei também para recebê-lo

O telegrama dizia porque meu nome não fora aprovado

razões de segurança, denúncia de um amigo . .

que virou meu m1m1go

Foram corretos comigo _

deixaram-me ver o telegrama

Não entendi

Dois meses antes me haviam chamado de volta

para responder a inquérito

Saí limpo

Ainda comentaram

passou no exame, meu velho

É bom que você saiba

que tenho de fazer a consulta

Um dia desses por que não saímos?

(254]

TRAÍ MEU irmão três vezes

e nos momentos em que minha vida me deixa

[contemplá-la

sinto minha mente se apalpando em três lugares

como em três partes doentes de um corpo

Às vezes acho que não fui eu que traí

Terei sido instrumento da vontade de trair

[das circunstâncias

Mas que existir têm as circunstâncias?

Como tudo aquilo que me chega de fora num dia

[e lugar determinado

as circunstâncias

só existem porque existo

só existem através de mim

Traí sim

e estes três atos me cobrem de vergonha e solidão

(255]

N ÃO Posso pensar cada instante de minha vida

numa palavra

Não posso mas é o que gostaria de fazer

Sei que a vida não me vive para se ter escrita

me vive para me ter vivido

Sei disso mas é como se num lago muito calmo

onde a chuva caísse mansamente

e em cada círculo na água um outro (o mesmo) lago

onde chovesse

[256]

CONVERSA

Presidente

(um homem cortês e distante)

releve-me a indiscrição

porque Vossa Excelência

(num almoço de Embaixada)

O vôo de um rosto

num céu turvo de inverno

turvas nuvens sono turvo

contra um muro

atendendo unicamente ao sagrado direito de

[defender o seu governo

não tomou as medidas que se impunham

para debelar a conspiração de todos (menos dele)

[conhecida

Meu prezado Professor a 7 de setembro de

1930

(nunca conversava política)

o Estado Maior das Forças Armadas

ofereceu-me um banquete

findo o qual a oficialidade reunida -

a alta oficialidade de meu país

levantou um brinde

(257]

de irrestrita solidariedade ao Governo

e de fidelidade ao Presidente

Um mês depois, foi o que se viu

Acreditar quem haveria de?

[258]

DEVE E HAVER

O dia

espelho de uma voz emudecida

à míngua de palavras

pronunciadas impronunciadas

grafadas não grafadas

em mil pedaços (de desgosto) se apaga

[259]

UM POETA DE MANSARDA

Alguém tenta inutilmente advertir

gritando em azul

que nádegas irónicas se divertem em contemplá-lo

No mar de suplementos literários não lidos -

de onde vez por outra emerge longínqua e espaçada

a voz ou o espelho da voz do imenso poeta -

sobrenada o gesto prosaico do personagem de Arezzo

Os momentos aqui dentro

são bastante iguais aos de lá fora:

o mesmo feltro de angú-s-tia

que o escorregadio corredor do tempo

vai deixando na sola dos pés na palma das mãos

daqueles que, como ele, sérias restrições fazem à morte

mas sem ela perderiam certamente

o que todo mundo chama (à falta de algo melhor)

de o encanto da vida

(260 ]

PÁSSAROS QUE SÃO PEDRAS

O outono cobre de folhas

a relva úmida e as poças no diminuto anfiteatro

Na lembrança descobre

revoada de pássaros numa tarde estival

a meio caminho de Assisi

Asas discêntricas abrindo o ar

como pedras um lago

O s MORTO S se escondem na memória

Se esquecem na água de um poço

cavado sobre o rio submerso

que circunda o Castelo

Num lugar próximo

tendas azuis abrigam os vivos

gente absorta na procura

da água que venha saciar

uma antiga sede

(261 ]

ARGILA

Vejo a tarde através da grande vidraça

Nuvens branco-cinza contra um céu azul claro

Ocre dos pequenos cones de barro que encimam

[as chaminés

Gradação de cinza nos tetos de ardósia

Imutável como um dos quadros da sala

a tarde se faz alterar pelo tempo

em nuvens que já não as mesmas

numa diversa luz

(262 ]

DENTRO

Como de uma varanda

a tarde debruça-se de meu olhar -

em sons iluminada

Murmúrio de vozes

a brisa verde dos pássaros

meu corpo recobre-se de relva silenciosa

Penso ouvir

o som distante de uma porta batendo

Regresso pelo escuro corredor

que vai de meu corpo a minha mente

(263 ]

MIRANTE

Dentro de uma gruta construíram a cidade

Lembrou-lhe a casa que abrigava uma floresta

o aquário colocado no fundo do açude

Ele a observava de um banco do jardim:

suave entremover-se de seres, gestos e coisas

sob a pálpebra

(Uma cidade iluminada ao sol

e cuja sombra o olho teima em revelar)

[264]

ÁGUA NO OLHAR

- e' est trop bête ça ...

Mostra a ponta do polegar

achatado na forma da. pequena peça difícil

O olho traz para dentro da loja

a tarde na rua

parede branca creme cinza

a água turva e transparente das vidraças

- Laissez tomber. C 'est pas grave

Dali a mais um pouco

a leitura atenta dos rostos

no passeio descuidado

Súbito ela entra

umidade de um caminho recoberto de folhas

num bosque onde casais passeiam

[265]

TRÊS EPISÓDIOS

A rainha enviou-me doze batedores

Meu chauffeur estava bastante intranqüilo; era moço

[e ia pela primeira vez a palácio

Contornamos um pequeno jardim

e o automóvel parou em frente a um súbito lance

[de escadas

(estava cinco minutos adiantado)

Os batedores perfilaram-se; fiz-lhes um leve aceno

[de cabeça

Não havia campainha- -

(estava adiantado)

Ninguém abria a porta

(estava adiantado)

Esperei uns três minutos e entrei

uma sala mal-iluminada

retratos de uma dinastia

Alguém apareceu para me dizer

- O senhor entrou pela porta errada

Qual é o traje?

Terno branco gravata preta sapatos de verniz

Mas minha filha

a gente tem que obedecer aos costumes locais

Corri ao alfaiate da cidade

e consegui um terno branco em 48 horas

[266]

Atravessei as duas alas de ministros de estado

Papa Doe falava baixo

não ouvi nada; fui obrigado a tomar a palavra

- Mas se ninguém me disse nada

Fui conduzido a uma pequena sala

lá estava Madame (acompanhante permanente da rainha)

vestida de rosa, da cabeça aos pés

Alguns convidados: gente muito velha

Madame cumprimentou-me, convidou-me a admirar

[a paisagem

árvores desfolhadas três cisnes desanimados

Eu só devia acompanhá-la no automóvel

Sentava-me a seu lado

Num pequeno banco intermédio

um jovem aide-de-camp

Ao lado do chauffeur o Almirante Ferreira Brito

(que eu teimava em chamar Brito Ferreira)

Sua Majestade lembrava-se de mim

Apresentei-lhe meu adido naval

como se fora o militar

Quando passou em carro aberto pela frente de meu prédio

acenou simpaticamente para meus empregados

duas copeiras, uma cozinheira, um chauff eur

O príncipe consorte chegou logo depois

Percebi que era o único convidado de fora; os outros,

[gente do palácio

[267]

Senti-me na obrigação de ficar conversando com

[Sua Alteza

Perguntou-me se tomava alguma coisa

Perguntei o que ele tomaria

-A esta hora um gin tonic

eu também

Um oficial precipitou-se para servir as bebidas

Não permitiu; quis ele próprio prepará-las

Como vai a saúde do Presidente?

Estendeu-me a mão; percebi que era hora de deixá-lo

Atravessei novamente a ala dos ministros

(trinta e seis - quanto-rnenor o país, maior o ministério)

Antes de sair

voltei-me e saudei-o novamente

conforme recomendava o protocolo

A porta fechou-se atrás de mim

dirigi-me a um funcionário que estava por perto

- O Presidente não reparou nas hastes de meus óculos

aparelho para sui;dez

Fui obrigado a falar

dizia-lhe por onde estava passando

Ela me fazia mais perguntas

Eu só queria que não houvesse silêncios compridos

perguntei ao aide-de-camp

se ele achava que eu falava muito

[268]

L

Mas como - Embaixador - o senhor me faz uma

[pergunta dessas?

Sabe de uma coisa

ela gosta muito de uma conversinha

Dias depois entrevistei-me novamente com o Presidente

D essa vez ele falou bem alto

O pedido de meu amigo Presidente

será estudado com o maior cuidado

Estendeu-me a mão; vi que era hora de deixá-lo

A rainha chegou, acompanhada de um militar

Temos governo?

Ainda não mas as coisas estão bem encaminhadas

Em cima da lareira uma pequena caixa

Vou ser. condecorado

Essas coisas não podem ser feitas assim

Deviam ter-me prevenido

Meu pai recebeu da mãe de Vossa Majestade

a mesma condecoração

Não posso escrever minhas memórias

[269]

Eu sou ninguém; meu nome é ninguém

Toda coisa que existe é uma luz

EXEMPLAR PROCEDER

-

GRETA

Estou vivendo meus grandes dias

O Império terá sido mesmo

uma fazenda modesta e ordenada mas sem povo

Aqui, penteando este caroço de manga

sobre o mármore da pia da cozinha,

me lembro daquela mangueira ao lado do curral

e de suas mangas-rosa

Para chegar até lá

a gente atravessava antes um pátio de pedras -

entre o curral e a casa -

em cujas gretas um dia

alguém viu desaparecer uma urutu cruzeiro

[275]

ORDENHA

Os dedos flácidos

acompanham trôpegos

o embate da testa

Ordenham esta idéia

e mais aquela outra

espremem bem a teta

Longe o telefone

acorda um latido -

o bastante afinal

para que a córnea escorra,..

sobre a fronha

PROFISSÕES

Um circo

onde v~cê defendesse sua tese

Maria, num picadeiro mínimo, se decidisse entre

a Faculdade de Letras e a de Comunicação

Pedro batesse fotografias

Eu, esquecido do diploma,

debulhasse um sem-número de ofícios

[276 )

..

BIOMBO

Estava há muitos anos na firma

Sair porque

se ninguém pensa em me sacudir daqui

Um dia reparei em seus olhos

à espreita de um fracasso posto sobre a mesa

e de vozes que soubessem encontrar -

por trás de palavras compassivas

o castigo que julgavam merecer

Do apartamento -

à noitinha

percorria de binóculo a vizinhança

[277)

E N COSTEI MEU ombro naquele céu curvo e terno

No lago as estrelas molhavam-se

Sussurravam que meu abraço . . .

contivera a terra inteira e os ares

FONTE

Um pássaro, uma pássara

tombam exangues do céu escuro -

espiral amorosa

Em colinas de relva, navgga a casa

Tão perto de mim

te vejo: queda molhada

folha verde debruçada

das águas de uma fonte clara

T uoo NA manhã brilha

Teu corpo claro é a luz deste dia

Calma

Calma de névoa nos montes

Luz e sombra

Água fria

[278]

ÁGUA

Quando olho para você vejo uma árvore

molhada de chuva

Meu coração se aquieta

terra onde chovesse

uma água verde

ÂNGELA

O A mor; o amor é água

T UA FACE de um branco descorado, caliça de um

[muro humilde

Teus olhos onde a tristeza é ainda apenas uma

[sombra líquida

escorrendo da íris

Tua boca alegre, ingenuamente alegre - de um

[rosa aguado

Tua fronte alta, curva, vaga

Teus cabelos envolvendo teu rosto

como se molhados estivessem

[279]

E N Q UANTO T E vejo, te recordo

teu corpo claro, teus ásperos cabelos

Estarei te tendo para sempre

ou apenas no agora te entrevendo?

Percorro os ossos de teu rosto

imerso na claridade sombria desta tarde

ALÔ ALGUÉM

No posto telefônico - -

todos falam para toda parte

A telefonista de antes

é menos simpática que a de hoje

Um sujeito de bigode

espinafra alguém

que não quer dar um orçamento

Há blusas e distintivos

suéteres amarelos, saias roxas

e um coração distraindo-se

da ânsia de falar com alguém

por algum tempo

[280]

UM CASO PACÍFICO

O senhor teve alta, meus parabéns

Você há de ter em breve, um caso pacífico

Pacífico só se for com os homens

porque com as mulheres não sou nada

Quis dizer: um caso tranqüilo

O senhor também me parece tranqüilo

só que - lá dentro - eu o achava de cara fechada

tinha medo de puxar conversa

e levar uma porrada

PASSAMENTOS

- Coragem, Presidente!

- Coragem não me falta

o que me falta é o ar

- Amalita, vem cá

um cochicho no ouvido

- sobretudo nada de escândalo

- Segura aqui, por favor

a mão ansiada

guiando a da sobrinha até o sexo

[281]

AUDEN'S SHORT

When she is sick

he gives her hell

But he' s a brick

when she' s well

AO MEIO-DIA NA AVENIDA

Vou pisar na cara dele-pa.ra ele sentir o drama

Depois de amanhã subo cedinho para Teresópolis

Tem dez filhos e ganha salário-mínimo

Se tomar um uisquinho agora não faço mais nada

Você não sabe o que é ter uma perna travada

O M. D. B. não é besta de se tornar popular

[282 ]

...

NO SUFOCO

Não quis aceitar

(o suborno)

foi menos pelo que tinha feito

do que pela consideração que demonstrei falou

se é assim aceito

veio o outro e disse que ia me prejudicar

se tiver mulher e filho vai ser pior

será que ele consegue?

tenho um defeito

o que quero quero mesmo

levantei um empréstimo . .

convivo pouco com meus pais

não me dou com meu irmão

se não fosse ela

acho que estaria sozinho

vou apanhá-la todo dia no trabalho

estou exausto

é uma profissão que as pessoas entendem mal

ganho uma miséria

[283 ]

QUARTO E SALA

Usando o mesmo banheiro com sua empregada você já

está doente qualquer hora acaba pegando ainda a doença

de uma negra dessas depois da tragédia que o acome­

teu nunca mais se viu frente ao espelho e as suas fan­

tasias homossexuais a melhor arma para assaltar banco

é o fuzil e a baioneta você acha que vai morrer de quê

do coração e eu de câncer no pulmão.

(28 4]

QUASE APOSENTADO

Da janela de meu trabalho

vejo três palmeiras

Entre elas e eu uma rua estreita

uma lâmina de vidro

um parapeito baixo sobre o qual se amontoam fichas

catálogos

embrulhos

As palmeiras talvez tenham a minha idade

Posso dizer-lhes

(como se a mim algum dia houvesse dito)

- Somos moços

vamos ver o que a vida ainda nos reserva

A tarde é uma velha doente, ressentida com o mundo

em cujas veias o sangue tornou-se espesso e difícil

de cujas folhagens escorre uma brisa macilenta

(285 ]

ALMOÇO

Sim senhor doutor, o que vai ser?

Um filé mignon, um filezinho, com salada de batatas

Não: salada de tomates

E o que vai beber o meu patrão?

Umacaxambu

A CA BAVAM DE promovê-lo

e ele deu um tiro no Quvido

E o outro na prisão

dizem que perdeu o uso das pernas

Delação

expurgo de homossexuais

Uma profissão sem eles

mau sinal

[286]

>

NOSSO TRABALHO

Você tem idéia por que foi chamado?

Não, meu caro, não é nada disso

se ele foi eleito é porque teve sinal verde da presidência

O que a gente pode visitar por perto?

Não sei, não saio nunca daqui

Ouvi dizer que Pirenópolis

É preciso que ela venha

circulamos em meios mais ou menos paralelos

o seu jeito de falar

Passemos agora às torturas

Você acha que o Ministro é capaz de deixar desprotegido

[um seu funcionário?

Você vê, esta cidade é um labirinto

Um corredor comprido e estreito

(um gato atrás de um rato

um prato de jiló sem molho)

É preciso encontrar uma explicação

ln dubio contra reo

Microfones

[287 ]

NUMA OUTRA ACADEMIA

Galhos flexíveis e sábios

restituem ao chão - com brandura

o peso demente do mundo

- Velho é quem se encosta na parede

grita o professor: . . . .

vivo morto morto vivo morto vivo vivo

DE PASSAGEM [para A~ e~seunatalício]

As pessoas para quem trouxe presentes

não me receberam

e os amigos, confiarão ainda em mim?

Fazer 40 anos nesta terra

é muito duro

Estou pensando em começar uma análise

Acabar com tanto ressentimento

Não, estou mudando

já não sou o mesmo

[288 ]

REVOLUÇÃO

Antes da revolução eu era professor

Com ela veio a demissão da Universidade

Passei a cobrar posições, de mim e dos outros

(meus pais eram marxistas)

Melhorei nisso -

hoje já não me maltrato

nem a ninguém

JANTAR

Entre uma espada e outra espada

entre uma manga espada e outra manga espada

[289]

UM COMENSAL

Ela botou abaixo a porta da Diretoria

(queimou-a simbolicamente no pátio do Colégio)

para mostrar que não havia distinção entre diretora

[e dirigidos

Eu recoloquei a porta

(Não era aquele certamente meu modo de administrar)

com lambris de sucupira

pois sou um pequeno-burguês

um pequeno pequeno-burguês

SE VOCÊ ESTÁ FELIZ

Aquele desejo insofrido

Um campo de trigo

Som de vento nos ramos

terra

Vocês poderiam estar combinando esta manhã

a morte de alguém

Neblina azul

o mar batendo nas pedras

[29 0]

MANHÃ

O aguadeiro sobe a encosta do morro

Lá em cima amor dormiu esta noite

Tanto medo

tanta ânsia noturna

na lembrança não apagaram

o vôo da ave marinha

L'ÉTOILE AUX ÉLÉPHANTS

- Você continuou a leitura de Proust?

- Não, posso lê-lo na volta

Li Graciliano: Caetés e São Bernardo

Você se lembrará de mim?

- Não, não me lembrarei

O velho Nabuco tinha razão

lembrar é colecionar

[291]

RODRIGO E O MAR

Êta capinzal bonito, minha mãe

Um mel de águas, macia pedra, sombra

por ele, por suas colinas e vales verdes,

v1apre1

Hei de aprender a outra margem

e quando voltar ..

serv1re1

ESTÁ DEMORANDO

A operação já durava nove horas

A equipe fora trocada duas vezes

Os bisturis estavam todos cegos

Alguém se lembrou de recorrer a um canivete -

foi quando ele mandou um bilhete do outro lado:

parem com isto que eu já estou morto

[292]

NA SALINHA

Nós temos um problema de feed-back

Nossa entropia cada vez aumenta mais

Você pergunta a um cara daqui

o que é entropia

o que é feed-back

ele te responde: é a mãe

[293 ]

ISABEL [para Alexandre Eulália]

Assisto às lições de Sapucaí

de inglês e de alemão

dadas às minhas filhas

Nas segundas1eiras lerei a elas

Barros, das 7,J o às 8 da noite

Terças, Lusíadas, das z O,J o às z z da manhã

Quartas, Lusíadas (id.)

A física de Ganot, das 3 às 4

Latim, das 7,J o às 8 da noite

Partida de Petrópolis 6 rnen.as 3

Raiz da serra 7 e z/ 4

Caminho de ferro 8 menos 2 z

Barca 8 mais sete

Desembarque z o horas

São Cristóvão - chegada, z o mais trez.!

Hoje contei as voltas da serra: 26

Pensava no Conde d'Eu para minha irmã

e no Duque de Saxe para mim

Deus e os nossos corações decidiram diferentemente

fardas e fardinhas e fardetas e fardonas

É difícil sonhar com país mais belo

[294]

..

Só há um aspecto negro - e bem negro

é a natureza criminosa do trabalho

que serve a esta opulência

Nos salões da Sereníssima Condessa d'Eu

a espinha dorsal não sofre torturas

[295]

O PERSEGUIDOR INTERNO

... Devo-lhe esta desculpa, Dr .

... e se Platão tiver razão?

Às VEZES a vida me faz sentir como um morto

lançado a um mar deserto em dia escuro

e que, de dentro das paredes da morte,

ainda provasse o pânico de um náufrago.

(E cujo ouvido distinguisse

vindo da terra ou de uma lembrança de terra

um uivo cruel e torpe

escurecendo a planície oval e a montanha)

[296]

DOIS ANTIGOS

Som escuro de trompas ilumina o fero monarca

A seta retesa no arco não alcançará a fera

Será uma de tantas que apenas roçaram o breu

Noite humana Interminável noite

Urros Uivos

sons devorando ouvidos

Sobre cabeças

latejam chicotes

retinem couraças

presas rebrilham num esplendor sombrio

II

A guerra chegou há longos meses

Começo a suportar mal esta vida de armas

vozes me repetindo incessantes

"és tua própria lança

teu próprio escudo"

No parque há pássaros

flores cobrem o gramado

as árvores estão verdes

[297]

Voltou a primavera, a sempre mesma

maravilhosa primavera

Sinto meu olhar despegar-se da demência dos combates

e invadir-se de nostalgia pungente:

não há como reter esta hora verde

que passará como todas as outras

[298]

AQUELA TARDE

Disseram-me que ele morrera na véspera.

Fora preso, torturado. Morreu no Hospital do Exército.

O enterro seria naquela tarde.

(Um padre escolheu um lugar de tribuno.

Parecia que ia falar. Não falou.

A mãe e a irmã choravam.)

EU TOCO PRATOS

À minha esquerda

violas ondulam um areal imenso

À minha direita

ossos de baleia cavucam as cáries do ar

Maestro e pianista desfecham o último ofício:

vai terminar o expediente

Na platéia um fole arqueja

[299]

QUADRO

Ouro tua pele

ouro velho ouro podre

ouro mel

Tuas coxas aluem o barro

redondo do círculo

Flui de mim o rio opaco

que inunda o cântaro

O tempo brilha mortiço

no ouro de Rembrandt

Os OLHOS escuros

revelam o azul

encanto da morte

Viver porque

a vida revela

os verdes os sumos

(300]

BEIJO

Os livros devem ficar onde estão:

em estantes surdas, entre paredes mudas

Nenhuma lembrança

de escrito algum de fala nenhuma

Som, para que som neste espaço trancado

onde tudo se exclui - até o ar

no tempo de um beijo?

Nota

Os poemas de Passatempo foram escritos na Europa, principalmente em

Paris, nos anos de I 969, 70, 7 I; os de Exemplar proceder foram escritos

no Brasil, entre I 97 I e I 97 3.

(301]

227 Limitações 245 Muito obrigado 278 "Encostei meu ombro naquele 292 Rodrigo e o mar

227 História natural 246 Digo ao povo que fico céu curvo e terno " 292 Está demorando

228 Festa de arromba 247 Sessão 278 Fonte 293 Na salinha

229 Reserva 249 O riso amarelo do medo 278 "Tudo na manhã brilha" 294 Isabel

229 A prática do léxico 250 % 279 Água 296 O perseguidor interno

230 O conde Drácula 251 Moça de bicicleta 279 Ângela 296 "Às vezes a vida me faz sentir"

231 Tia Rose 252 Entrevista 279 "Tua face de um branco 297 Dois antigos

231 Meia-noite 253 Job inscription descorado" 299 Aquela tarde

232 Montagem paralela 254 Postulando 280 "Enquanto te vejo, te 299 Eu toco pratos

233 Jatos 255 "Traí meu irmão três vezes " recordo" 300 Quadro

233 Não se esqueça 256 "Não posso pensar cada 280 Alô alguém 300 "Os olhos escuros "

233 Famoso instante de minha vida" 281 Um caso pacífico 301 Beijo

234 Luta literária 257 Conversa 281 Passamentos

234 Outras lutas 259 Deve e haver 282 Auden' s short

234 Paixão 260 Um poeta de mansarda 282 Ao meio-dia na avenida SOL DOS CEGOS [1968]

235 A força do direito 261 Pássaros que são pedras 283 No sufoco

235 Véspera 261 "Os mortos se escondem 284 Quarto e sala SOL DOS CEGOS

235 Disseram na Câmara namemóna " 285 Quase aposentado

236 Conselho 262 Argila 286 Almoço 307 O rito

236 Voltas 263 Dentro 286 "Acabavam de promovê-lo" 308 Os verdes

237 Meu filho 264 Mirante 287 Nosso trabalho 308 O eclipse

237 Pedido 265 Água no olhar 288 Numa outra academia 309 A morte de alguns

266 Três episódios 288 De passagem 31 l "Conheces bem "

289 Revolução 3 l l Cena de obra

PASSATEMPO [1974] EXEMPLAR PROCEDER 289 Jantar 31 l A pedra

275 Greta 290 Um comensal 312 Os bichos

PASSATEMPO 276 Ordenha 290 Se você está feliz 3 l 3 Terreiro de pedra

243 Luz 276 Profissões 291 Manhã 314 Linha

244 Um corredor 277 Biombo 291 1.'.étoile aux éléphants 314 O inimigo