Fréderic Gros - Preguiça e Capitalismo

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( ( ( ( ( esconder na praça aberta porém imensa (éramos vinte e poucos). A com- ( binação de sol, vinho, excitação e regressãoinfantjl deu àquele encontro / um espirito de profunda liberdáde J _Os_executiyos.que saíamjpara_fjamar na praça normalmente deserta estayani_p£rplexos. Até queacasttac.ão da realidade veio cobrar sua existência, encerrando subitamente..aJssta. ( Correndo como uma criança sem olhar para a frente em direção do / "piques", Floro se chocou contra um enorme e afiado bloco de granito da praça - desenhada, afinal, para que ningüém.^brincasse" ali. Caído no chão, ele tinha um talho profundo na panturrilha. Atônitos, nós voltamos ( para o museu, enquanto ele partia em ambulância, com Andrés, para o hospital mais,próximo. A atividade da tarde pareceu uma sessão de tera- pia: todos queriam purgar aquele sentimento confuso de simultânea visão e expulsão do paraíso, ao mesmo tempo que expiar sua própria culpa no ( ocorrido pela manhã. ' Quando, depois.de horas, •tudoseacalmava. entrou pela sala uma alu- na argentina que estava desde a manhã desaparecida, sem que ninguém, ( no entanto, tivesse dado por sua falta. Vinda da delegacia, Monica contou / que tinha se escondido tão bem que não percebeu nada no momento do acidente. Assim, permaneceu agachada atrás da porta de acesso a um dos prédios por um bom tempo. E quem a encontrou ali, depois que já ha- (* víamos ido embora, não fomos nós, evidentemente, mas a polícia. Afinal, o que estaria fazendo ela ali, em atitude tão suspeita, junto à entrada da embaixada americana? Brincando de esconde-esconde? Logicamente essa resposta não soou_a_çeitável, ainjdajnais porque ninguém mais estava pre- / sente ali para_ttsteniurilia£^e_u_favor. Ainda muito assustada, Monica riu ao contar sua história. Nós também, evidentemente. Vivendo plenamente 1 o nosso tempo histórico, pudemos sentir, naquele momento, a dor e a ( delícia de estar à deriva (Fig. 7). { ( Frédéric Gros r~ ^ Par&ee-jne que podemo^jdentificar, através da literatura ocidental, duaí graniJeipxQblematizações da preguiç^hjmâ^oblematização moral) e uma.p rôbTSSatização poMocái A problematização mciíaTcònsiste numa "^fZ condenação _ 3ã~prefuiça, considerada um vício, um pecado capital. A \ preguiça, nesse sentido, é a recusa de trabalhar, a indolência, a falta de / energia. Existe também, desde o famoso texto de Lafargue intitulado O s -~ i direito àpreguiça, uma Problematização política que, ao contrário, valoriza NjL a preguiça e consid^r_a^usístã^adíjregresentar uma fojma_de_resistên- cia política diant&da ideologia capitalista do trabalho çompúísiyp) Nessa segunda problematização, a preguiça não significa uma incapacidade de fazer esforços, mas uma liberação: liberação do tempo, liberação do pen- samento, liberação da existência. Aqui, vou considerar sobj5tudo_esse_segundo aspecto da preguiça. Parárei/de quatro dimensõè>(do capitalismo: mercantil, industrial, em- presarial e_ especulativa. Pois bem, se entendermos por capitalismo um processo de produção maciço e sistemático de riquezas, baseado na ini- ciativa privada, direi que, através da longa história do capitalismo, ( quatro ) grandes maneiras de criar riqueza foram definidas: a constituição de um mercado, a exploração do trabalho, a organização das empresas e, en- fim, a especulação financeira. Insisto aqui em dizer que não se_ trata de quatro seqüências históricas do capitalismo, mas de .quatro dimensões. Essas dimensões se encarnam em quatro grandes figuras da história do capitalismo: o comerciante, o capjtão_de indústria, o manager e, enfim, o

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Preguiça e Capitalismo

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esconder na praça aberta porém imensa (éramos vinte e poucos). A com-( binação de sol, vinho, excitação e regressãoinfantjl deu àquele encontro

/ um espirito de profunda liberdádeJ_Os_executiyos.que saíamjpara_fjamar

na praça normalmente deserta estayani_p£rplexos. Até queacasttac.ão

da realidade veio cobrar sua existência, encerrando subitamente..aJssta. ( Correndo como uma criança sem olhar para a frente em direção do

/ "piques", Floro se chocou contra um enorme e afiado bloco de granito da praça - desenhada, afinal, para que ningüém.^brincasse" ali. Caído no

• chão, ele tinha um talho profundo na panturrilha. Atônitos, nós voltamos ( para o museu, enquanto ele partia em ambulância, com Andrés, para o

hospital mais,próximo. A atividade da tarde pareceu uma sessão de tera­pia: todos queriam purgar aquele sentimento confuso de simultânea visão e expulsão do paraíso, ao mesmo tempo que expiar sua própria culpa no

( ocorrido pela manhã. '

Quando, depois.de horas, •tudoseacalmava. entrou pela sala uma alu­na argentina que estava desde a manhã desaparecida, sem que ninguém,

( no entanto, tivesse dado por sua falta. Vinda da delegacia, Monica contou / que tinha se escondido tão bem que não percebeu nada no momento do

acidente. Assim, permaneceu agachada atrás da porta de acesso a um dos prédios por um bom tempo. E quem a encontrou ali, depois que já ha-

(* víamos ido embora, não fomos nós, evidentemente, mas a polícia. Afinal, o que estaria fazendo ela ali, em atitude tão suspeita, junto à entrada da embaixada americana? Brincando de esconde-esconde? Logicamente essa resposta não soou_a_çeitável, ainjdajnais porque ninguém mais estava pre-

/ sente ali para_ttsteniurilia£^e_u_favor. Ainda muito assustada, Monica riu ao contar sua história. Nós também, evidentemente. Vivendo plenamente

1 o nosso tempo histórico, pudemos sentir, naquele momento, a dor e a ( delícia de estar à deriva (Fig. 7).

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Frédéric Gros

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Par&ee-jne que podemo^jdentificar, através da literatura ocidental, duaí graniJeipxQblematizações da preguiç^hjmâ^oblematização moral) e uma.p rôbTSSatização poMocái A problematização mciíaTcònsiste numa

" f̂Z condenação_3ã~prefuiça, considerada um vício, um pecado capital. A

\ preguiça, nesse sentido, é a recusa de trabalhar, a indolência, a falta de / energia. Existe também, desde o famoso texto de Lafargue intitulado O

s-~i direito àpreguiça, uma Problematização política que, ao contrário, valoriza NjL a preguiça e consid^r_a^usístã^adíjregresentar uma fojma_de_resistên-

cia política diant&da ideologia capitalista do trabalho çompúísiyp) Nessa segunda problematização, a preguiça não significa uma incapacidade de fazer esforços, mas uma liberação: liberação do tempo, liberação do pen­samento, liberação da existência.

Aqui, vou considerar sobj5tudo_esse_segundo aspecto da preguiça. Parárei/de quatro dimensõè>(do capitalismo: mercantil, industrial, em­presarial e_ especulativa. Pois bem, se entendermos por capitalismo um processo de produção maciço e sistemático de riquezas, baseado na ini­ciativa privada, direi que, através da longa história do capitalismo,(quatro ) grandes maneiras de criar riqueza foram definidas: a constituição de um mercado, a exploração do trabalho, a organização das empresas e, en­fim, a especulação financeira. Insisto aqui em dizer que não se_ trata de quatro seqüências históricas do capitalismo, mas de .quatro dimensões. Essas dimensões se encarnam em quatro grandes figuras da história do capitalismo: o comerciante, o capjtão_de indústria, o manager e, enfim, o

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traáer. Eiitão vou mostrar como, para cada uma dessas quatro dimensões, podemos pensar uma possibilidade de resistência preguiçosa.

Mas antes eu gostaria de evocar, à guisa de introdução^i3ois momen­tos na obra de Foucault em que ele colocou o problemada preguiça.

/O primeiro é na sua História da loucura, que data de 1961 e da qual se festeja este ano o cinqüentenário de publicação. Vocês certamente sabem que há nesse livro um episódio muito importante: o do encerramento dos loucos no Hospital Geral de Paris no começo do século xvn. Outrora, no Renaxisiento, os loucos levavam com facilidade uma existência errante: eram tolerad^s^om_a.çondição_de drcularem perpetuamente. Na época clássica, eles serão sistematicamente encerrados: não se suporta mais vê--los vagarem pelas ruas ou pelos campos. Esse episódio, então, costuma ser interpretado como o sinal da exclusão da loucura pela Razão ociden-tairõs muros do hospício: testemunham'que a razão clássica afirma sua identidade a partir de uma rejeição, de uma exclusão da loucura.

Essa interpretação é a mais evidente, mas o texto de Foucault oferece outra possibilidade de leitura que destaca, justamente, urnacondenação da preguiça. De fato, Foucault mostra que a p^r^a^çjojueseacha encer-rãdãnãò é especificamente a dos loucòs.^São encerrados os vagabundos,', os mendigos, as prostitutas, os_sem-teto. Na verdade, esse encerramento sistemático testemunha principalmente uma mudança de sensibilidade social muito importante em relação ao mundo da miséria. Durante muito (tempo o cristianism.ó^havia construído em torno da figura_do pobre, do louco, do misgráyel errante, uma aura mística: esses personagens tinham uma dimensão crística. Quando as sociedades da época clássica encerram o mundo da miséria, é comj)aj[e_na_dessacralização da pobreza. A pobre­za não tem mais dimensão mística: é tratada simplesmente como um problema de ordem pública. Mas por trás dess^imedida política (o pobre errante é encerrado por razões de ordem pública) há tambénvuma con-iarenação moral) Encerra-se o mundo da miséria porque se suspeita que os vagabundos, os mendigos e os loucos sejam, sobrerado,{pjreguiçososT^

í^jçerr^3^iosjÊiag_o^rigá-los a trabülrraR Na verdade, os hospitais gerais {&$5i centrosde trabalho forçadò~>iNão se explica_ajniséria por razões

econômicas, mas por razões moraig2gJyÍQQ^-jgggujW ~* Encontramos na obra de Foucault um segundo)desenvolvimento

importante sobre a preguiça, desta vez na descrição das sociedades disd-

plinares num livro igualmente muito conheddo:J3gi4T e punir. Lembro aqui rapidamente o que Foucault chama de disdplina. A^disdpUna é uma modalidade do poder sobre os corpos. Em realidade, trata-se de estruturar as atitudes do; corDojsarajdctrair dele o máximo de utilidade. Essa organi­zação adquire Varias formas_que_Foucault descreve bem em Vigiar e punir.

a distribuição espadai ($uma oficina;, por exemplo, se buscará dispor os operários de maneira ótima para queuns não atrapalhem os outros); os mecanismos de examctnuma escola/por exemplo, serão avaliadas regularmente as competêndas dos alunos); o sistema de penalidade (no

/^xérdftVpara obrigar os soldados a obedecerem cegamente, çejnstaura (todj^jmsU^emajde punições); e os dispositivos de vigilânda que devem resultar num autocontrole dos indivíduos. A_djsdpjina, como se vê, é uma modalidade de poder que permite obter, por um sistema de pressões insistentes e contínuas, certo número de comportamentos normatizados a fim de produzir um bom soldado^um bom operário, um bom aluno etc.

Há ainda um último instrumento da disdplina: o emprego do tempo. Foucault mostra que as fábricas, as casernas, os pensionatos, as escolas são organizados segundo empregos do tempo extremamente estritos. Faz-se corresponder a cada momento do dia uma atividade, tenta-se reduzir ao máximo os momentos vazios. A disdplina finalmente se apresenta como uma cronopolítica: uma ocupação completa, exausti­va, sistemática e radonal do tempo da vida. Creio que há uma primei­ra interpretação evidente da disdplina como organização radonal do tempo- Se tempo é dinheiro, considera-se que todo momento vazio na jornada do operário é um tempo morto para a produção de riquezas e representa, portanto, uma perda. É importante que o trabalhador não fique um instante sequer sem fazer nada, porque isso corresponderia a uma diminuição de sua produtividade. ,

No entanto, certamente vocês sabem que não foram os capitalistas do século xix que inventaram, com a organização do trabalho nas fábricas, o prindpio de uma programação exaustiva_do tempo. Npjsjnosteiros cristãos, os momentos da jornada são também extremamente codifica­dos. É que,(paxa^sjnojiges, todos os instantes devem ser consagrados à devoção, não devendo haver um minuto sequer que não seja dedicado a cantar, de uma maneira ou de outra, louvores a Deus. Também porque o momento vazio é uma tentação para a preguiça, que representa um

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gozo de si e uma lascívia perigosos, porque ocasionam todos os pecados. ( M.%§JveÍam^.dtfereSÇa^m- fábrica, se nenhum momento deve ser vazio,

,- é porque nada deve escapar à produção das riquezas. Após essa introdução um pouco longa em torno de Foucault, eu gos­

taria de mostrar como, a partir das quatro dimensões do capitalismo que ( evoquei há pouco, podemos desenhar quatro figuras da preguiça como

contrapontos, possibilidades de resistência ou, para empregar uma ex­pressão de Foucault, de "contraconduta". Essa preguiça da qual se falará, repito, não é uma passividade lasdva, uma recusa sistemática do esforço

( ou uma ausência de energia ou de coragem, mas outra forma de ativi­

dade, uma relação de si a si alternativa à£uela^ue.i?_capit?li';:'mn prnp.Õ.p

Falarei aqui ao mesmo temp^de capital''*"-""» e dp lihera]jsm_a,'mesmo que esses doisjermos não se sobreponham inteiramente. O que cha-

/ mamosftapitalismo'é uma determinada escolha de sociedade, a saber, a J orientação do conjunto das forças (materiais, espirituais, naturais, sociais) I para a produção de riquezas -produção de riquezas maciça, sistemática e

( racional, baseada na iniciativa privada. Nesse sentido, o capitalismo pode

ser definido como um processo histórico^O liberalismo designa mais uma doutrina, um conjunto de discursos, uma filosofia. Há um liberalismo po­lítico que consiste em uma valorização do indivíduo, uma defesa de seus

( direitos naturais, um apelo à sua emancipação contra abusos de poder

estatais, religiosos ou pedagógicos. Ao lado desse liberalismo político, há também um liberalismo eronômirn que, de maneira bastante ampla,

< consiste na demonstração racional do interesse, para a humanidade in-

/ teira, do modo capitalista de produção das riquezas. Partirei, para começar, do famoso texto de Adam Smith, A riqueza

das nações, geralmente considerado o texto de referência do liberalismo ( econômico, e reterei desse livro essencialmente duas teses.

A primeira é a tese.anuito conhecida, da mão invisível Smith afirma, em seu texto, que cada um deve seguir cegamente seu interesse pessoal; e

( que é da busca dg_cada um pelo hiçro_que poderá resultar a prosperidade ( geral e o benefício coletivo, bem melhor do que se estes fossem buscados

por si mesmos. A imagem da mão invisível está aí para sublinhar o aspec­to providencial dessa coincidência: é como se, escreve Smith, uma mão

( invisível se servisse secretamente da buscs.de çada.um.por seu interesse

próprio para produzir a utilidade comum. Esse enunciado é fundamen-

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tal porque rompe uma evidência secular do. pensamento político. Essa evidência, que se encontra tanto em textos antigos como modernos, é o tema da oposição irredutível entre o interesse pessoal .e o interesse coletivo. Nos textos de pensamento político,.de Aristóteles a Rousseau, aparece com muita freqüência a idéia de que, para produzir e garantir o interesse de todos, o governante não deve levar em conta seu interesse particular; e também de que se deve pedir a cada cidadão, em nome do bem comum, que sacrifique seu bem pessoal.

Ora, com esse texto de Adam Smith, e com a tradição liberal em geral, não apenas não há oposição, mãs-há mesmo uma relação de cau­salidade uiüyoca: é somente se cada um buscar seu lucro pessoal, que a utilidade comum será. atingida. Compreende-se bem, a partir daí, que os liberais possam denunciar as políticas públicas que gostariam de produzir o bem público ppr,.leis_çp_erçitivas: o bem público jamais pode resultar, segundo essa doutrina, senão do jogo natural dos egoísmos econômicos.

O problema, evidenfémente, ..é_gue_a doutrina liberal, quando fala, de "prosperidade geraT^de^utilidade comum", de "interesse de todos",. entende agenasum aumento global das riqüezà~s> Aliás, para tomar ahis-tória das últimas décadas, é certo que a liberação do jogo concorrencial e a desregulação das trocas comerciais e financeiras ocasionaram efetiva­mente uma multiplicação dos bens materiais no mundo. Resta pHgTintaTS que sentido pode ter esse aumento puramente quantitativo, frente a um

"SÇJ interesse coletivo que seria expresso, dessa vez, em termos-de justiça, de \ soHdarie^dep.ujnesmo de felicidade.

Ou seja-' a_tese HberaT?e baseia na síntese abusiva e discutível entre . ./"̂ 'Taem^cflmurcLLs.JTucrq global". Quero aqui evocar um texto que nos •Qç permitirá esboçar precisamente uma primeira figura da preguiça como

j contraponto ao capitalismo como valorização de uma busca individual "á do ganho econômico. É um texto escrito por um aurar_americano co­

nhecido: tlenry David TEõrêãúrEsse texto é Wálâen ou a vida nos bosques.

^v, Thoreau e uma personalidade muito singular, bastante excêntrica, que no começo do século zrx quer romper com a çrolização^ materialista e a obsessão do ganho econômico que ele vê desenvolver-se entre seus contemporâneos. Assim ele decide passar algum tempo em autarcia com­pleta, sem trabalhar, numa cabana que ele mesmo construiu à beira de um lago, ocupado em ler, em caminhar, em contemplar o espetáculo da

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natureza e em procurar o que comer na jornada. É essa vida que ele relata em Walden. Vocês compreendem imediatamente que, visto de fora, Tho-reau aparece como um indivíduo bizarro, excêntrico e, principalmente, como um preguiçoso que passa os dias sem fazer nada.

Seu livro Walden ou a vida nos bosqu.es, como sabemL_conheceu um grande-sucesso. Acho que esse sucesso se deve a uma provocação enor­me contida no livro. De fato, Thoreau coloca a questão, muito provoca-dora, do custo da riqueza. Ele se pergunta: quanto custa à vida ser rico?

—j—Pois~bem, todos sabem que custa muito caro: é pr^çisjj.trabalhar sem j parar, cuidar para nãojser superado pelos concorrentes, vigiar constan­

temente seus negócios etc. E é porque custa muito caro querer ser rico \ que Thoreau decide levar uma vida que, vista de fora, parece miserável \ e preguiçosa.

Mas essa vida miserável e preguiçosa, essa vida na qual se dedica mui­to mais tempo a caminhar e a contemplar a natureza do que a trabalhar, muito mais tempo a ler coisas inúteis do que a contar dinheiro, essa vida lhe é muito proveitosa. Por exemplo, escreve Thoreau, "minhas longas caminhadas cotidianas são proveitosas porque aproveito o que a Natu­reza dá a ver, a escutar, a sentir, e tudo isso de graça: perfume das flores, canto dos pássaros, beleza das paisagens. E esses encontros me permitem

l acumular lembranças, formar um tesouro de impressões e de lembranças j que ninguém poderá me tirar, o que não é o caso de riquezas que uma ' crise financeira faz subitamente desaparecer".

São essas atividades preguiçosas que lhe permitem, precisamente, adquirir tal fortuna. Aqui aparece uma primeira determinação muito importante da preguiça, sobre a qual se falará com freqüência, e que é a presença. Pela preguiça me torno presente ao mundo, presente aos outros e, sobretudo, presente a mim mesmo. E é essa presença que me é recusada quando busco obstinadamente o lucro^

Gostaria agor^d^_ezaffijnar«naJs£gund^_te£e^presente no livro de J. t Adam Smithfo divisão do trabalho)Smith afirma que a divisão do traba­

lho é uma das condições da produção maximal das riquezas. Esse tema da divisão do trabalho não é novo: já encontramos na República de Platão a idéia da necessidade da especialização. Mas essa divisão permanecia subordinada a um ideal de autarcia que era o da cidade grega. Os textos de^mjth e mais tarde de Bicardo\ insistirão, ao contrário, na necessidade,

c-i

para otimizar as trocas, de uma especialização da produção por regiões e mesmo por nações. Mas essa produção maximal de riquezas por especia­lização só pode se dar ao preço de uma interdependência generalizada. Então, para voltar ao nosso problema, penso que esse tema da divisão do trabalho acarreta uma obsejsáo pela especialização nas sociedades capitalistas. Cada um deve se especializar" é para ser o melhor na" sua especialidade, deve praticá-la de maneira exclusiva. Querer desenvol­ver diferentes talentos, recusar a espetializaçãQ..serájristaxomo-falt; de seriedade, como próprio de um tempejamento preguiçoso, porque, para fazer funcionar de maneira ótima o sistema capitalista, cada um deve ser níqnomaníacó^ Marx, no seu texto A ideologia alemã, denuncia com ênfase a dimj:nsjio_alieiiante dessa especialização e sonha com"úma sociedade na qual, justamente, cada um pudesse desenvolver uma gama diferenciada de talentos.

Mas os textos de Marx, como sabemos, insistem numa outra dimen­são do^apitaUsmo, a da produção industrial. O capitalismo não é apenas a busca do lucro ou a especialização das tarefas, é também íTéxplSrasão das energias^é também a grande indústria. Então eu gostaria de voltar aqui à ligação gugjjoucault estabelece entre a disciplina e o capitalismo, num curso inédito que ele pronunã'õa"TI5"C5lIège de France em 1973 e que se intitula "A Sociedade Punitiva". Nesse curso, Fpucault reconhece que Mançjnalisou e elucidou o processo de transformação da força de trabalho em força de produção. ÇLgperárici vead£âo patrão uma força de trabalho, e o patrão, que é o proprietário dos meios de produção (pro­prietário das fábricas, das máquinas), transforma essa força de trabalho, que o operário vende como mercadoria, em forca de produção. E essa transformação é evidentementegeradora de lucroSpara o patrão, pois o custo de reconstituição da força de trabalho é inferior aos lucros He pro­dução que ela gera. Tal é a demonstração geral de O capital Mas Foucault, nesse-curso inédito, mostra que o capitalismo exige uma transformação

i Welirninar>>a ffansformaçãojiaJbj^LyifiLsJ13^^ ou, mais

•O píêasãmente ainda, transformação do tempo^dajgda^qi^éj^jempo N^ plural, qualitativo, em tempo de trabalho monótono e abstrata) Ora, é

pfêHsãmêrité k-disciplig^que opera essa transformação. P^Ía.discjpJüia, •j~> aprendida na egccja, no exército, na família, o temppjda vjda se torna um ~-~ tempo mecânico. Pois o tempo da vida é um tempo concreto, elástico,

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natureza e em procurar o que comer na jornada. É essa vida que ele relata em Walden. Vocês compreendem imediatamente que, visto de fora, Tho-

/ reau aparece como um indivíduo bizarro, excêntrico e, principalmente, como um preguiçoso que passa os dias sem fazer nada.

' Seu livro WaMen ou a viâa. nos bosques, como sabem!_conheceu um ( grande.s.uçesso. Acho que esse sucesso se deve a uma provocação enor­

me contida no livro. De fato, Thoreau coloca a questão, muito provoca-dora, do custo da riqueza. Ele se pergunta: quanto custa à vida ser rico?

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"Poisbem, todos sabem que custa muito caro: é p_rcg§g_ttabajfctãr sem parar, cuidar para não ser superado pelos concorrentes, vigiar constan­temente seus negócios etc. E é porque custa muito caro querer ser rico que Thoreau decide levar uma vida que, vista de fora, parece miserável e preguiçosa.

Mas essa vida miserável e preguiçosa, essa vida na qual se dedica mui­to mais tempo a caminhar e a contemplar a natureza do que a trabalhar, muito mais tempo a ler coisas inúteis do que a contar dinheiro, essa vida lhe é muito proveitosa. Por exemplo, escreve Thoreau, "minhas longas caminhadas cotidianas são proveitosas porque aproveito o que a Natu­reza dá a ver, a escutar, a sentir, e tudo isso de graça: perfume das flores,

( canto dos pássaros, beleza das paisagens. E esses encontros me permitem acumular lembranças, formar um tesouro de impressões e de lembranças que ninguém poderá me tirar, o que não é o caso de riquezas que uma crise financeira faz subitamente desaparecer".

( São essas atividades preguiçosas que lhe permitem, precisamente, adquirir tal fortuna. Aqui aparece uma primeira determinação muito importante da preguiça, sobre a qual se falará com freqüência, e que é a

( presença. Pela preguiça me torno presente ao mundo, presente aos outros e, sobretudo, presente a mim mesmo. E é essa presença que me é recusada

quando busco obstinadamente o lucrcu ( Gostaria agoja^d^jxaminar^maJsegjuid^^tes^presente no livro de

/ J t Adam Smitfcüú divisão do trabalho^Smith afirma que a divisão do traba-Iho é uma das condições da produção maximal das riquezas. Esse tema da divisão do trabalho não é novo: já encontramos na Republica, de Platão ( a

\ a idéia da necessidade da especialização. Mas essa divisão permanecia subordinada a um ideal de autarcia que era o da cidade grega. Os textos de^Smith e mais tarde deBícarda insistirão, ao contrário, nanecessidade,

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para otimizar as trocas, de uma especialização da produção por regiões e mesmo por nações. Mas essa produção maximal de riquezas por especia­lização só pode se dar ao preço de uma interdependência generalizada. Então, para voltar ao nosso problema, penso que esse tema da divisão do trabalho a£Mrm_uma_obsessão pela especialização nas sociedades capitalistas. Cada um deve se especializar è" para ser o melhor na sua especialidade, deve praticá-la de maneira exclusiva. Querer desenvol­ver diferentes talentos, recusar a especialização, serijistq-como-falta— de seriedade, como próprio de um temperamento preguiçoso, porque, para fazer funcionar de maneira ótima o sistema capitalista, cada um deve ser monomaníacò> Marx, no seu jjexto A ideologia alemã, denuncia com ênfase a dim^nsjíç^aJienante dessa especialização e sonha comuma sociedade na qual, justamente, cada um pudessTdêsenvolver uma gama diferenciada de talentos.

Mas os textos de Marx, como sabemos, insistem numa outra dimen­são dp_£apjtahjmo, a da produção industrial. O capitalismo não é apenas a busca dc-lucro ou a especialização das tarefas, é também Céx^5r3fã£>

' das energias^é também a grande indústria. Então eu gostaria de voltar aqui à ligaçãoi gjue_Foucault estabelece entre a disciplina e o capitalismo, num curso inédito que ele pronuriCiõu~n5"C5IIege de France em 1973 e que se intitula "AJodedade Punitiva". Nesse curso, FauçauTt reconhece que Marxjuialisqu_e elucidou o processo de transformação da força de trabalho em força de produção'. O operárict vendg^o patrão uma força de trabalho, e o patrão, que é o proprietário dos meios de produção (pro­prietário das fábricas, das máquinas), transforma essa força de trabalho, que o operário vende como mercadoriaJ_ern_feça de produção. E essa transformação é ev^entemente'gerador^deJuçros^para o patrão, pois o custo de reconstituição da força de trabalho é inferior aos lucros "de pro­dução que ela gera. Tal é a demonstração geral de O capital Mas Foucault, Be«se-aJxso inédito, mostra que o capitalismo exige uma transformação

i Weliminarya transformação_da força vitaLemiarça de trabajho ou, mais •-O precisamente ainda, transformação do tempo jajyjda, qu^é.umjempo

2j*-=. plural, qualitativo, em tempo de trabalho monótono e abstrato^ Ora, é prê^íslmêrit^Xdis^lig^que opera essa transformação. Pela disciplina,

~-> aprendida na escola, no exército, na família, o tempo da vida se torna um "~~— tempo mecânico. Pois o tempo da vida é um tempo concreto, elástico,

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r / exemplo, para afastar o medo de morrer que ameaça nossa felicidade

preguiçosa, devemos repetir o seguinte raciocínio: "a morte nada signi-! fica para mim, porque, se eu estou, ela não está; e, se ela está, eu é que ( não estou mais". Convém notar que essa demonstração não visa apenas , nos curar do medo de morrer. Ela visa, sobretudo, nos curar do desejo

insensato de imortalidade que nos faz perder a alegria da felicidade de ( existir. Compreendam: se a morte é nada, é porque a vida é tudo. Não

há outro absoluto para Epicuro senão.o_do_Dresente. Mais uma vez, não se trata de compreender teorias, mas de repetir essas frases para que elas nos impeçam de cair na tentação das falsas satisfações sociais.

( A segunda estratégia consiste em fojrrnar-uma_C£munMadei de ami­gos. Qs_amigos, para Epicuro, devem nosjjreseryardqs perigos_da socie­dade. A sociedade, como também compreenderá mais tarde Rousseau, é a

' tirania das comparações. Compara-se tudo: nossa condição social, nossos filhos, nossafortuna, nossa casa. O problema, então, não é de modo al­gum ser JeUz,_é_ mostrar ao outroaue se é mais feliz queele. Na amizade,

1 ao contrário, reencontra-se a simples felicidade da presença, saboreia-se ( a simples alegria de estar junto.

Para conquistar a felicidade preguiçosa, Epicuro ensina, enfim, a exis-têntiados deuses. Pois^'osdèuses existem", diz e repete Epicuro. Essa tese da existência jdos deuses pod&.rjarecer surpreendente no quadro do epi-curismo, que é uma filosofiaáçíaterialista. Mas a? divindades epicurianas são, justamente, seres preguiçosos. Elas estão distantes, diz Epicuro, não se ocupam de nós, repousam em sua eternidade. Esses deuses preguiçosos

( têm uma dupla função na sabedoria epicuriana. Por um lado, não exigem nem religião, nem dogmas, nem devoções. Com isso nos fazetrTver as angústias do além, difundidas pelas Igrejas, como erros.- Por. outro lado,

( sua preguiça sublime e transcendente serve de modelo ao sábio.. Serfeliz é conseguir, como os deuses, repousar tranqüilamente em simesmo.

Epicuro nos lembra, finalinente,..queLíi_rriaiorobstáculo à felicidade ( não é a irifeHddadej'sã.oas.irna£ensjsQciais da feliddady^Marx denunciará, / bem mais tarde, pjeticrüsmojâjnercadoriàj qüeJ&_acredkar_que_o valor

éjJin2a^rop.Dedadejritnris^çAdas.coisas, au_ando.ele-é uma relação social. ' Epicuro, por seu lado, denuncia o que podemos chamar o fetichismo da ( felicidade, a saber, a ilusão que faz acreditar que a felicidade estaria ligada

a condições difíceis de obter. E é finalmente a busca incessante da felici-

(

Í 6 4 Preguiça e capitalismo

dade que nos faz infelizes. Mas a felicidade é preguiçosa demais para se atravancar com condições.

Pode parecer estranho ter evocado as lições dessa sabedoria antiga após um estudo sobre as. relações, entre o capitalismo e. a preguiça. Mas

percebe-se claramente na arte_da felicidade.epicuriana uma série de ca-/ racterísticas rejeitadasjpelo sistema de valores capitalistas: a valorização | do instante presente, a disponibilidade às alegrias naturais, a riqueza da

\ simplicidade. No fundo, a preguiça é uma arte de fazer-se presente. A multiplica­

ção dos objetos, o movimento social incessante, a busca de -performances, tudo isso acaba por nos tornar ausentes. Arrastados pelo movimento do mundo, ficamos ausentes ao mundo, ausentes aos outros e ausentes a nós mesmos. Creio que a preguiça é precisamente uma maneira de nos fazer­mos presentes, presentes à presença do mundo, à presença dos outros e de nós mesmos. Por isso se pode dizer, para terminar, que a preguiça não é tempo perdido. Não é tempo perdido porque é uma arte'de dar o tempo a si mesmo, o tempo presente.

Mas essa arte é difícil. E aí também a sabedoria nos ensina.que o.mais difícil é a simplicidade.

Ffédéric Gros