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fresta por onde olhar

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fresta por onde olhar

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fresta por onde olhar

2008belo horizonte

ana elisa ribeiro

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fresta por onde olhar, poemas

copirraite © 2008 de Ana Elisa Ribeiro

Esta obra não pode ser reproduzida integralmente. Poemas e trechos podem ser copiados, desde que se dê crédito à autora.

[email protected]

Projeto gráfico e diagramação Ana Cristina Ribeiro e Ana Elisa Ribeiro

Revisão de texto Ana Elisa Ribeiro

Foto de orelhaJorge Rocha

Consultoria de produção gráfica Bruno Brum

RIBEIRO, Ana Elisa. Fresta por onde olhar.

Belo Horizonte: Editorial Interditado, 2008. 64 p.

ISBN 978-85-908072-0-9

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Para a Carla, o Milton e a Sandra;para o Adilson, a Mônica e

o Marcelo (in memoriam),incentivadores de perversidades.

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Para quê escrever? Essa não é uma questão fácil de responder. Eduardo Frieiro ponderou: “Para quê? Para nada. Mas justamente esse nada – a ilusão literá-ria – é tudo para certa raça de imaginativos”.

Há dez anos, eu trabalhava na redação do jor-nal O Tempo e fui escalado para escrever uma resenha sobre a coleção Poesia Orbital, que reunia mais de 60 livros. Depois de ler todos os volumes, confesso que apenas alguns chamaram minha atenção. Entre eles, destacava-se justamente Poesinha, que já dava pistas sobre a qualidade da autora. Ana Elisa, desde ali, já demonstrava intimidade na lida com as palavras.

Depois de Poesinha veio Perversa (Ciência do Aci-dente, 2002) e, agora, o terceiro livro, em que mais e mais se reforça aquela impressão que a leitura de seus poemas me deixou. Não é aconselhável tentar aprisio-nar a poesia em uma só definição, mas a do poeta Carl Sandburg me parece a mais próxima do que a poesia significa neste século: “a poesia é o diário de um ani-mal marinho que vive na terra e que gostaria de voar”. É exatamente desse estranhamento – essa sensação de não pertencer e de não deixar ser pertencido ao seu tempo e lugar, ao mesmo tempo que, paradoxalmen-te, se é um poeta do tempo presente – que a poesia parece extrair sua força, nesses tempos pós-utópicos e pós-qualquer-coisa. Poeta é “nave falha”.

alada e leve

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Nesse contexto, percebo a poesia insinuante da Ana, marotamente, driblando esse estranhamento com suas próprias armas, mas também afirmando-o. Primeiro, ela insiste em pintar ângulos diferentes de um mesmo tema, tal como Paul Cézanne criava suas naturezas-mortas no começo do século passado, ou oferecendo cinco versões de um grupo de jogadores de cartas ao redor de uma mesa ou, ainda, apresen-tando pelo menos oito versões da Montagne Sainte-Victoire. Sobre isso, dizia o pintor: “o mesmo assunto visto de um ângulo diferente oferece um tema de es-tudo do maior interesse e tão variado que poderia me ocupar dele durante meses, sem mudar de lugar, in-clinando-me ora mais à direta, ora mais à esquerda”.

A respeito das “obsessões” de Ana Elisa – as relações amorosas, a própria poesia, um eu lírico tentando definir-se –, pode-se dizer que a poeta as desenha com muita ironia e humor, ora inclinando-se para o erotismo, ora para o lirismo, ora para uma coloquialidade sem-vergonha, ora para tudo isso ao mesmo tempo. Depois, a poesia de Ana Elisa precisa ser compreendida na oscilação entre o texto verbal e a oralidade, entre a poesia tipográfica e a performan-ce oralizada do poema. Se alguns poemas são identifi-cados com a palavra impressa na página, outros, apa-rentemente mais informais, ganham ainda mais vida quando ditos pela poeta. Experimentem ouvir, na voz dela, poemas como “antiguidade d’onde viemos” ou “salvando o relacionamento”.

Um terceiro ponto, talvez o mais importante, é aquilo que, na área econômica, primeiro o velho

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Marx e, depois, Althusser identificaram como o fato de se chegar ao complexo passando pelo simples, e não o contrário. Também na poesia essa assertiva é válida. Ana Elisa controla e regula referências pop e poéticas, “facilidades”, mixando versos só na aparên-cia “simples”, mas que guardam, no conjunto, uma complexidade que só é capaz de urdir quem mer-gulha na alma das palavras. Carrego comigo meus favoritos, exemplos dessa característica: “mulher de terra”, “vidente”, “trapaça”, “altura” e a seqüência de Penélopes.

E não se enganem quando Ana Elisa define assim sua poética: “Poesia deixa bolhas no ar. É um atrevimento. Mas vejam que ela consegue suspender tudo no último verso. Eu acredito em chave-de-ouro como ninguém. Um poema não pode ser em capítu-los. Ele é tudo. Não digo daquela chave-de-ouro com rimas, mas do fechamento da idéia num zíper de aço cirúrgico. Precisão. O poema tem que conter. E dei-xar o leitor incontido”. É mais, claro, mais que isso. Portanto, ó raça de imaginativos, eis aqui os versos de quem vive como se fosse alada, de quem corre o risco, de quem colhe a tempestade de amor e escre-ve sobre amores que não dão certo, sobre prazeres amorosos na voz dublada de um desenho de Hanna Barbera. Versos para espiar com elegância e leveza.

Fabrício Marquesmarço de 2008

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antigüidade d’onde viemos

Péricles disse que a maior virtude de uma mulherera ficar calada.

Péricles se fodeu.

Péricles, hoje, levaria uma surra dada por mil mulheres como eu.

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mendel, meu amor

Nasci no inverno,quase na primavera.

Sou filha de um tórrido cruzamentoentre uma bela broméliae um boêmio hibisco.

Vou viver pouco.Topo tudo.Corro o risco.

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mulher de terra

I.Cuidado com esta minha rudezaque é parede ásperapra que você não vejaminha imensa delicadeza

[...]

III.Sou mulher de orelha pequenade lobo aderentetenho buço de portuguesamão fria, coração quente

IV.Sou tua guiapro céu e pro infernoNão visto saiasPrefiro teu terno

V.(...)

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renascença

A casa em que eu vou morarcom meus homens quase todosfica em um terreno plano e rarona região nordeste da capitalna esquina exata entre os meus sonhose as tarefas de dona-de-casa.

É um terreno quase quadradosimétrico e alinhado com as duas ruas que o ladeiam.

Embaixo dele é aterro.Sobre ele plantarei meu último suspiro.

A casa é antiga e feia.Depois que me tornei

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dona dela,chamei um engenheiroque reformou o meu futuro.

Comprei janelas caras.Refiz os batentes das portas.Reorganizei o telhado,mas ele continuou de vidro.

Ainda não há armáriosonde eu possa guardar minhas roupas quase iguais.Meus sonhos, que eram imensos,haverão de caber dentro das caixas de sapatos.

Na mudança, estarei muito preocupada em trazer meus anéis e minhas memórias,mesmo as que estão quase apagadas,e os relógios, por onde meço meus desapegos.

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Nesta casa, viverei minha infância.Minha velhice será lenda.Gosto da nova casa, onde nem tudo será novidade,mesmo quando constato, aliviada,que lá de dentro não vejo nada.

Não há vista, nem há os lados.Apenas os muros altos e fechadose o céu zenital jamais alcançado.

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Sou fácil, sim,mas sou deuma sofisticação danada.

Não gosto de flores.Não me dobro com cantadas.

Sou do tipo que não se conquistacom qualquer buquê de palavras.

buquê

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reza

eu me distraio ajoelhadanos grãos durosdo que virou a minha vida

minhas lembrançassão ficçãoe se comparo meus dias aos meus desejossou desertora

se eu deixasse estarpassaria o tempoqueimando meus desejos em velas acesas em intenção de santa rita

meus desejos realizadosviraram vigase os que são ainda desejosjá viraram ruína

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popularesca

Cadê aquela ironia?Boi bebeuE aquela alegria?Fogo queimouE aquele tesão?Água fria apagou

Mas não há de ser nada não, violãoAinda sinto as asinhas de foraSe passar aqui um dragãoLogo me aprumo e vou-me embora

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cultivo

planta vento,poeta que me arremessa

tempestades-ninfas virão entregar-te confissões da musa inquieta

planta o vento sossegado que aponta ao lestee colhe a tempestade de amorque tu mesmo fizeste

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bem-servida [iguaria para servir crua]

esta carne brancacrua, quase francaquase nuaé pra ser tua

pra ser comida rentemuito quente

bem-servidaé pra ser bebida

na dúvida,crava o dente

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dois poetas

beijos se atiram do Acaiacaimprovisos de salivaregem uma ária em lá maiore o poeta invade a musa.

Na língua,um sabor de carne intempestiva

a musa-poeta responde com pêlosafaga-lhe os cabelos

a cidade desanoitece aliviadaa vida atribuladatem pausa para desmaiar

sossego de saliva e vinhoabraço de quase alturasalinhando palavras no corpo

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a saliva hortelã dela pede arele amortece o carinho com o lábioa vida é obrigada a verter hálito

ano começa com finezaschocolate e vinho chilenopoesia confessa e amor ameno

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vandalismo

nada me fez sentir,amor, o amor

restringe minha movimentaçãoà tua cama paulistana

te canto um poema recém-feitoàs quatro da matina

e em cada teu poro abertoescrevo: ana

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desvão

desvão esconsotonto

cérebro tortocorpo oco

seu rosto flagradono topono cume mais morto

do meu própriotorsoem fogo

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desorientação

levo cinco luas minguantespra remendar um afeto partido

outras cinco luas crescentespra curar amor vivido

e estes amores que não dão certolevo séculos,a céu aberto,tentando ver onde mesmo estava a Lua

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olhando a Lua[em duas versões que não se completam]

víamos a luaesfera amarelapelo teto solar

pra ele:um romance

pra mim:um Dramin

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dos amores difíceis

Eu me socorri da asfixiade amar uns amores tolosdesses que desbastam os amigose desfazem os calores do corpo.

Também fugi das prensasque desatinam e desovam parentesno limbo da memória.

Corri para longe das gradesdo amor irrefreável.

Assim como despejei litrosde amor confessona privada.

Foi fácil viver como se fosse alada.

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nossa questão

Centelha é quando o fogo risca,mas não pega,só assusta.

Faísca é quase chama,mas não custa, brilha só por um momento.

Chispa faz barulho,mas não queima;lampeja, mas não vinga;escorre,mas não pinga.

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raso

Não me movo neste espaçopor acaso.

Entre um lado e outrodestes braçostem um raso.

Ímã, fivela, argola,nada dissocola.

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alada

Se não me dissessemque eu tinha asas,eu não as notaria.

Até porque jamais voaria.Nem ia pensar em planar.

Minha mitologiaé muito ordináriapra que eu penseem tirar os pés do chão.

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raff

Gostava de vê-lo nublado.Dentro do box,parecia uma pintura.Do lado de fora,era apenas esboço.

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poro

Depois de uma rinha,ele foi dormir fora de casa.

Achei que seria uma festa.

De madrugada, no entanto,acordei com o cheiro forteda ausência dele.

Enfrentei a manhãpassando algodão úmidonos meus poros,que sangravam.

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poema tântrico

avaria meu pulmão cheio de cacos inspira sálvia

expira molhando os lábios de uma lembrança muito próxima e muito tanta

mas meu delírio não é de planta de erva, de tantra

é, sim, deste dia [anomalia em minha vida dia-a-dia] cheio de prazeres amorosos na voz dublada de um desenho de hanna barbera

minha saudade queima e a magia já era

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sem ele

ele me falta[ ]

enche o imenso espaçoentre meus braçosde sua ida

suicido-me amanhãlogo pela manhãse não achar saída

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penélope horrorosa

teci duas manhãs enquanto esperava

desci minhas ladeiras mais de mil vezese piores eram as ladeiras dele

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penélope nervosa

entre esquecer e lembrartomei vários copos de água com luze teci mais uma noite de sereno

noites de espera são lentasde fio opaco e largonoites de espera são vários fios de manhãmil dias de avó e milhões de corações de mãe preocupadanoites de espera fazem cânceres

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penélope matemática

fiz tranças comos nossos dias

três partes de nós:duas minhasuma dele

desigualmas justo

na proporção deste amor

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altura

do alto de vocêeu vejo tudo o que existe.

do alto de vocênão caio, não arrisconão me fodo.

do alto de vocêtenho asas, cascas, lascas e brasas.

e mesmo que eu caísse,subiria,arrastando pedras,pro alto de você de novo.

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vidente

Os seus olhos eram moréias.Cartilagem aparecia dos talos dos seus dedos.Fiquei presa numa teia de quases.

Um dia, um nunca me disse que já era hora.Quando abri as folhas da janela,o dia rareavae era o último a me deixar viver vida de moça solta.

Daquela manhã em diante,abracei as raízes que seus pés vertiame plantei seu nomenas beiradas dos meus espelhos,assim como

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em todas as saídasdesta cidade de desesperos.

O dia agora ejeta projetosmarcados para a virada dos milênios.

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trapaçapara o Jorge

O seu cheirode tabaco caroA sua lâmina de cortar assuntoO seu andar de lamentoA sua tocha de atear sonhosO seu olhar de improvisoO seu custo, o seu preço, o seu aviso

Quando me apaixoneieu era um rio cheio de afluentes poluídos

O seu amor gastou salivaminha ruína em reformaTroquei meu destino barrocoPor um tapete de fios espaçados

Seu perfume de prenúnciosua gentileza de príncipe etrusco

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suas mãos de alicerceseu sexo de imprevisto

Desta muda aquiescêncianasceu um talvez

Que vinga

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peças em pau-marfim

A linha dos olhosfaz flechas da cor de futuros

As mãos formam conchasde pegar contentamentos

Os pés são grandes como as telas holandesas realistas

O corpo inteiro é um tabuleirode jogar jogos de azar

As costas quadriculadasAs coxas quadriculadasA boca quadriculada

Onde eu me finjode dama

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mulher maravilha

sonhei que era uma amazonavestida de máscara e cetro

detesto cavalosrodopiava num Volks veloz

queria um rapto rápidoa vítima estava escolhida

e dava cavalos-de-pauerguia o cetro e diziacom voz de aeroporto:“linda carter é morta!”

minha vítima, sonada,acendia a luz e abria a porta:“daqui a pouco vai ser você,ô idiota!”

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visitante

bem-vindo à minha cidade.estou toda às ordens,fique à vontade.

Mas finja, por favor,enquanto estiver aqui,que este amor é de verdade.

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salvando o relacionamento

eu sei, meu bem,que seu sonho é comeruma sueca alta loura boa

finge, meu amor,fecha o olho e finge

o meu cabeloa gente tinge.

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lampejos matinais

I.6 da manhãvocê despertaeu, alerta

II.desde ontem acordadavocê dormeeu, nada

III.beijo sua foto na telavocê, lasereu, vela

IV.se provoco seus desejosvocê, bocaeu, beijos

V.eu e você em guerravocê, areseu, terra

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VI.alinha sua vida com a minhavocê, reieu, rainha

VII.só você na minha teiavocê, soltoeu, cadeia

VIII.vai até o fundovocê, mapaeu, mundo

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ciuminho básico

escutacaladoa proposta rudedeste meu ciúme:

vou cercar tua bocacom arame farpado

pôr cerca elétricaao redor dos braçosna envergadurapra bloquear o abraço

vou serrar teus sorrisosdeixar apenas os sisos

esculhambar com teus olhosfurá-los com farpasqueimar os cabelos

acendo no torso uma tochaque se apague apenasao sinal da minha volta

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finco ao fundo uma placa“não há vagas, vagabundas”na bunda ponho uma cerca

proíbo os arrepiosexceto os de medo

e marco no lombo, a brasa,a impressão única do meu dedo.

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personagem

Não sei se ele gosta de vinho ou de samba. Se apre-cia dança ou se votou no Lula. Se tem livros com-prados em bancas ou se curte rodadas de xadrez. Eu acho tudo isso chato.

Do vinho eu aproveito a cor. Da dança, o gesto. Os livros eu compro na Internet. O resto eu divido entre o lixo e o quartinho de despejo do meu apar-tamento.

Não sei em que dia ele nasceu. Nem qual é seu signo ascendente. Se dirige ou se lê no ônibus. Se tinha boas notas na escola ou se é casado. Se os filhos que porventura tenha já estão crescidos.

Acontece que nada disso importa se a finalidade é experimentar um romance vertiginoso e brincar de esconde-esconde com esta vidinha.

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hi-fi

Eu estou semprena sua área de cobertura:

beijando outro,em roaming;na cama,reloading.

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trágica

meu galegonão conhecia minha ira

era dono do meu corpomeu espírito de porco

sabia minha gingaminha pletora, minha míngua

conhecia cada frestacada trinca, cada aresta

cada vinco, furo, fissura,mau humor, amargura

mas da minha iracondenada iraira de maldita

ira de mulherfêmea exataana saliente

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uterina, enfezadaele não sabia nada

(meu galego dorme esta noite no IML)

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cantiga da ribeirinha[com a licença de Paio Soares Taveirós]

Neste mundosou único na minha espécie

ninguémcomigo se parece

tanto para menosquanto para maisdedico a titodos os meus ais!

Maldito o diaem que saquei, ai,que eras bela.

E além de boa,eras casada com homem da coroa.

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Maldito o dia em que te vi quase peladavestida de quase nadapele branca e carmime eu cá comigo: ai de mim.

Ai, maldita perversa,se fosses feia,eu não boliria contigonão ganharia inimigonão correria perigo.

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cantiga do amor fodido

Não me demorodeitada em peito algumNem espalho em qualquer corpominha anca de metro

Faço amor de fingimentosmas vivo-o a espaçossaltitando entre desgastescom ardor de chama ao vento

Trago do seu corpoa memória deste tato falhoorvalho salgado, rebarbas

O amor é fodido, meu amor,Não se demora na lembrançae nem se cansa de parecer esparsoComo se fosse fácilamar sem ser gasto

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eu quero um amor que duremas ele parece ser feitoda matéria esparsa dos calendários

alguém que me procureque me desejeque me protejaque não me esqueçaque me aconteça

mas tudo me faz crerque não há quem me mereça

é mesmo

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notas e agradecimentos

O poema Cantiga da Ribeirinha é uma recriação do poema Cantiga de Guarvaya ou Cantiga da Ribeirinha, de Paio Soares Taveirós, escrito em 1189 e considerado o primeiro texto escrito em língua portuguesa.

Vários poemas deste livro foram publicados em jornais, revistas e sites como: Suplemento Literário (MG), O Casulo (SP), Pitanga (Portugal), Semana de Design do Café com Letras (MG). Também foram publicados em coletâneas de poesia.

Dedico estima, admiração e agradecimentos a meus amigos e interlocutores neste e em outros projetos: Ana Cristina Ribeiro, Ana Elisa Novais, Bruno Brum, Camila Diniz e Suplemento Literário, Carlos Herculano Lopes, Eduardo Ribeiro Rocha, Fabrício Marques, Guga Schultze, Guiomar de Grammont, Jorge Rocha, José Eduardo Gonçalves, JR Lemmon, Luiz Roberto Gue-des, Pilar Fazito, Ricardo Aleixo, Sérgio Fantini, Valter Hugo Mae, Wilmar Silva e Alfredo Albuquerque.

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alada e leve, 7antigüidade d’onde viemos, 11mendel, meu amor, 12mulher de terra, 13renascença, 14buquê, 17reza, 18popularesca, 19cultivo, 20bem-servida [receita para servir crua], 21dois poetas, 22vandalismo, 24desvão, 25desorientação, 26olhando a Lua [em duas versões...], 27dos amores difíceis, 28nossa questão, 29raso, 30alada, 31raff, 32poro, 33poema tântrico, 34

índice

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sem ele, 35penélope horrorosa, 36penélope nervosa, 37penélope matemática, 38altura, 39vidente, 40trapaça, 42peças em pau-marfim, 44mulher maravilha, 45visitante, 46salvando o relacionamento, 47lampejos matinais, 48ciuminho básico, 50personagem, 52hi-fi, 53trágica, 54cantiga da ribeirinha, 56cantiga do amor fodido, 58é mesmo, 59notas e agradecimentos, 61

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Este livro foi impresso no mês de abril do ano da graça de 2008, na gráfica O Lutador, com tiragem de 500 exemplares. Os papéis

utilizados foram Pólen Bold 90g para miolo e Cartão Supremo 250g, com laminação fosca para a capa, que foi colada a quente e costurada.A fonte utilizada foi Perpetua, corpos 20 e 12, e a obra foi composta

no programa InDesign, da Adobe.