FREUD E A COCAÍNA: MOMENTOS DE UMA RELAÇÃO … · Freud, em que à cocaína teve um papel...
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Karina Eleutério Luis
FREUD E A COCAÍNA:
MOMENTOS DE UMA RELAÇÃO AMBIVALENTE NA HISTÓRIA DA PSICANÁLISE.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Faculdade de Psicologia
2007
Karina Eleutério Luis
FREUD E A COCAÍNA:
MOMENTOS DE UMA RELAÇÃO AMBIVALENTE NA HISTÓRIA DA PSICANÁLISE.
Trabalho de conclusão de curso como exigência parcial para graduação no curso de Psicologia, sob orientação da Prof. Dr. Talitha Ferraz de Souza.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Faculdade de Psicologia
2007
AGRADECIMENTOS
Desejo agradecer a todas as pessoas que, direta ou indiretamente, contribuíram não somente
para a realização deste Trabalho de Conclusão de Curso, mas especialmente por terem
participado de todo o trajeto percorrido até aqui.
Agradeço primeiramente a minha orientadora por todo o seu conhecimento e dedicação,
disposta a oferecer estímulos e, principalmente, a explorar novos caminhos, ouvir com
interesse e ânimo todas as questões, dúvidas e problemas que surgiam durante o processo
de reflexão.
A todos os mestres que passaram pelo meu caminho dentro da Universidade. A cada um
deles agradeço pela transmissão de todo o conhecimento. Teórico, prático... Sou grata
principalmente por estimularem em nós, estudantes, uma formação que vai além da profissão
de psicólogos, por terem se dedicado em nos transformar em cidadãos críticos sociais.
As minhas queridas amigas que conquistei durante esses anos por possibilitarem que minha
trajetória pela PUC tenha sido sempre colorida. Agradeço por vocês terem me ensinado que a
vida torna-se mais bela quando estamos perto de quem sente o mesmo que nós e por nós.
Aos meus pais em especial, por terem me apoiado em minha escolha profissional
possibilitando a realização desse sonho. Por toda sua dedicação e compreensão em todos os
momentos especiais de minha graduação.
Aos meus irmãos e ao meu namorado por todo seu carinho, apoio e entendimento. Por terem
sido compreensíveis em muitos momentos.
A todos, sou grata e dedico com muita alegria esse trabalho.
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Área de Conhecimento: Psicologia. Karina Eleutério Luis: Freud e a Cocaína: momentos de
uma relação ambivalente na história da psicanálise, 2007.
Orientadora: Prof. Dr. Talitha Ferraz de Souza.
Palavras chave: cocaína; entusiasmo; decepção.
RESUMO
Essa pesquisa teve como objetivo estudar as mudanças de comportamento de Freud
referentes ao seu entusiasmo diante das primeiras experiências com a cocaína e sua
posterior decepção com o tema, tentando assim estabelecer uma relação entre essa
decepção e a ausência de uma publicação completa do assunto - como ele fez com outros a
que se dedicou. Também me predispus a compreender até que ponto esse período da vida de
Freud, em que à cocaína teve um papel importante, influenciou em seu estudo sobre os
sonhos e no conseqüente desenvolvimento da Psicanálise. Para a realização desse trabalho,
reuni o material teórico que pude encontrar na língua portuguesa que fazia referência aos
anos em que Freud demonstrou estabelecer uma forte ligação com essa substância. Utilizei
escritos do próprio autor, de seus biógrafos e de autores que relataram e comentaram sobre
essa época de sua vida. Após essas leituras, foi estabelecido que alguns momentos da vida
de Freud seriam estudados mais pontualmente, sendo fundamentais para o desenrolar desse
trabalho. A indicação da cocaína por Freud ao amigo Ernest von Fleischl-Marxow e sua
conseqüente morte; a perda do mérito da anestesia local de Freud para Carl Koller; as
lembranças traumáticas que aparecem no “Sonho da Injeção de Irmã” e no “Sonho da
Monografia Botânica” e a acusação de que Freud era o responsável pela disseminação dos
efeitos tóxicos da cocaína em todo o mundo em 1886, foram analisados nessa pesquisa
cuidadosamente para se chegar à conclusão da mesma. Nessa parte final, foi hipotetizado
que a mudança de comportamento de Freud que passa do entusiasmo à decepção e a não
conclusão de uma obra que refletisse seus estudos sobre a cocaína, tenha ocorrido devido a
todos os momentos traumáticos que ele viveu após ter se envolvido com esse tema. Também
ficou claro que tais estudos contribuíram sim para que ele pudesse chegar à importância dos
sonhos dando inicio á Psicanálise, fato não percebido por Freud naquela época.
SUMÁRIO
II – METODOLOGIA ................................................................................................................................... 8 III - O ENVOLVIMENTO DE FREUD COM A COCAÍNA..................................................................... 11 V - FREUD E OS SONHOS........................................................................................................................ 25
V - 1: A Cocaína e os Sonhos.................................................................................................. 25 V - 2: O “Sonho da Injeção de Irma”.................................................................................... 30 V - 3: O “Sonho da Monografia de Botânica”...................................................................... 33
VI - ARTIGOS PUBLICADOS DE FREUD SOBRE A COCAÍNA ......................................................... 35
VI - 1: “Sobre a Coca” (julho de 1884) ................................................................................. 35 VI - 2: “Contribuição ao Conhecimento Sobre o Efeito da Cocaína” (Janeiro de 1885) . 45 VI - 3: “Adendos a Sobre a Coca” (Fevereiro de 1885)....................................................... 46 VI - 4: “Sobre o Efeito Geral da Cocaína” (Março de 1885) .............................................. 48 VI - 5: “Ânsia e temor pela cocaína” (julho de 1887) .......................................................... 50
VII - DISCUSSÃO........................................................................................................................55 VIII - CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................ 68 IX - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................................. 72
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"Uma longa viagem começa com um único passo". (Lao-Tsé)
I – INTRODUÇÃO
A partir dos livros: Dependência de drogas de Alfredo Toscano (2000) e Drogas:
Classificação e efeitos no organismo de Cazenave (1998), farei um apanhado histórico
da utilização de substâncias tóxicas pela humanidade pensando em uma breve
contextualização de suas possíveis formas de utilização e de seus efeitos desde os
primórdios até os dias de hoje. Com isso, pretendo localizar a importância social e
científica posterior dos estudos e das experiências de Sigmund Freud com a cocaína.
A utilização de drogas pelo homem é um fenômeno que não se limita à época atual e
ao contexto sócio-cultural em que vivemos. Conhecem-se relatos de consumo de
drogas na Suméria (3000 ac); encontra-se já na China e no Egito de cinco mil anos
atrás, confirmação de consumo de ópio e outras substâncias, assim como se têm
encontrado evidências de uso na Babilônia e na Grécia antigas. O uso de drogas tem
sido muitas vezes, ligado ao contexto religioso: a droga era utilizada, nestes casos,
para atingir estados psíquicos supostamente superiores dirigindo dessa forma um
estado da alma e uma possível comunicação com ela. A partir do início do século XIX,
cientistas conseguiram isolar os princípios ativos de várias plantas, produzindo
medicamentos como a morfina em 1832, a atropina em 1833, a heroína em 1883 e os
barbitúricos em 1903.
Estes eram mais puros e de manejo mais fácil que as plantas, pois sua dosagem podia
ser calculada com mais exatidão. Num ambiente marcado por guerras e mudanças
sociais, havia grande demanda por medicamentos que diminuíssem os vários tipos de
dor, físicas e psíquicas, por isso também foram desenvolvidos o éter, o clorofórmio e o
óxido nitroso. Assim, espalhou-se o uso medicamentoso da morfina e da cocaína,
principalmente entre os membros das classes médias e altas. Artistas entretidos com o
novo culto do subjetivismo empregavam o ópio e o haxixe para embarcar em aventuras
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interiores, centrando seus interesses sobre os desvios da consciência, nas
transformações mais íntimas dos sentidos e dos pensamentos.(Toscano, 2000).
A incorporação da droga pelo saber médico teve um duplo aspecto. Por um lado, as
drogas psicotrópicas tiveram um grande desenvolvimento farmacológico e têm sido
largamente utilizadas no tratamento da “doença mental” ligada diretamente á
psiquiatria. Por outro lado, a medicina toma como objeto o uso não médico das drogas,
uso que é considerado um abuso. Surgem então as categorias nosográficas da
toxicomania, da dependência de drogas, do hábito, do abuso de drogas, etc. Os dois
aspectos mantêm uma relação estreita, já que o próprio uso das drogas pela medicina
facilita enormemente o abuso das mesmas.
A utilização das drogas era vista como um problema espiritual e, portanto o dependente
químico deveria ser tratado a partir de rituais específicos. O conceito de adição como
doença ou transtorno só veio a se desenvolver ao longo dos últimos 200 anos, num
contexto de mudança gradativa dos constructos da medicina, da psiquiatria e da saúde
pública. Com o tempo, essa questão passou a ser vista como uma questão moral, na
qual a sujeito era visto como alguém “sem vergonha”, um “marginal” que deveria ser
colocado à parte da sociedade e suas famílias eram vistas como vítimas. Aos poucos,
vai se ampliando o olhar até chegar na concepção da dependência química como um
fenômeno multifatorial. Apesar de os conceitos de adição e de seus componentes,
como a tolerância e a retirada terem sido correntes do século XVIII, pode-se afirmar
que somente no século XIX ocorreu a descoberta e a “criação” da adição.
A palavra adicto vem do latim addictus (entregue a alguém como escravo). Define-se
como uma pessoa francamente propensa a uma determinada prática - uma crença,
uma atividade, um trabalho - ou partidária de determinados princípios. O nascimento
desse conceito como objeto do saber médico tem uma certa contemporaneidade em
relação ao nascimento da psicanálise. Sabendo-se que as primeiras contribuições de
valor psicodinâmico sobre a drogadição foram feitas por Freud, proponho-me a utilizar
desse referencial psicanalítico para prosseguir nessa reflexão mesmo tendo essas
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contribuições um caráter de reflexões ocasionais e nunca uma idéia ampla e
minuciosamente desenvolvida.
Inicialmente, essa teoria nos leva a pensar no uso compulsivo como um dos tipos de
ações impulsivas e irrefreáveis existentes na conduta humana. Trata-se de considerar
o fenômeno não apenas como um caso particular de uso de drogas, mas como um
caso particular de adicção ou dependência, ou seja, como um acréscimo de algo
(droga) para suprir uma incessante busca.
Segundo Liberman (1981), o que caracteriza a adicção é o grande prazer que a
acompanha, sendo assim regida pelo princípio do prazer e da descarga imediata; no
caso da dependência de drogas, pode num determinado momento sobreviver à falta de
prazer. Para Betty Joseph (Toscano, 2000), a adicção também tem um valor defensivo,
entendido não somente como uma forma de prejudicar de alguma forma o corpo do
sujeito que a utiliza, mas também de sobrevivência, funcionando de forma básica a
evitar uma dor depressiva insuportável, causada pelo sofrimento que enfrenta.
Em “O mal-estar na civilização” de 1969, Freud fala sobre esse sofrimento que
vivemos, das decepções e das exigências de tarefas impossíveis que a vida em
sociedade nos cobra o tempo todo. De frente a esses sentimento, o homem busca por
diversas vias evitar os tais sofrimentos e alcançar a felicidade. Uma dessas possíveis
vias é a utilização da droga, que compreende em sua utilização, a tentativa de tornar o
homem independente do mundo externo e da realidade que o aflige. Este é um dos
textos em que Freud fala sobre o assunto das drogas como uma forma de afastar o
sofrimento, mas poderemos enxergar que sua posição perante o tema é bem diferente
da inicialmente favorável à cocaína na década de 1880.
O enfoque psicanalítico das relações que o toxicômano estabelece com a droga situa-
se no encontro de uma variada gama de problemas e impasses conceituais. Nada do
consumo abusivo da droga equivale ao que foi, para a psicanálise, o sintoma
conversivo ou as idéias delirantes, por exemplo, que permitiram a postulação de
estruturas clínicas freudianas clássicas. Por causa dessa insuficiência de cunho
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conceitual, deve-se tomar a drogadicção como um dos capítulos da história da
psicanálise em que mais se consegue aproximar dos próprios limites tanto de seu
saber quanto de sua prática.
O fenômeno da droga somente se torna abordável na psicanálise caso se aceite sua
inserção no interior dessa construção evidente da relação conflituosa entre o sujeito e
sua realidade. Seu objetivo, portanto, é desvendar as razões pelas quais a droga passa
a ocupar um lugar proeminente na economia pulsional do sujeito. Pensar na droga a
partir dessa teoria, requer uma valorização da concepção paradoxal do funcionamento
de economia da satisfação. Pretende-se nessa linha, estudar as experiências de Freud,
na qual aparece o aspecto central da abordagem econômica do psiquismo na ligação
especial e contraditória que se estabelece entre o sujeito e seus objetos de satisfação.
A natureza da relação móvel entre o homem e seus objetos abre a possibilidade de
uma aproximação analítica da toxicomania.
Na obra de Freud, não existe um estudo inteiramente dedicado à toxicomania como o
fez com os sonhos, em A Interpretação dos sonhos (1900/1969), por exemplo. Sobre
esse tema, o autor realiza apenas quatro ensaios relacionados às suas experiências
com a cocaína nos quais descreve suas descobertas sobre a planta da coca e seus
conseqüentes resultados obtidos em homens e em animais. Esses artigos eram
escritos na medida em que Freud realizava sua experiência em relação a essa
substância que tanto lhe instigava. Mas esse interesse pelos efeitos poderosos da
droga, em um momento posterior, passa a representar para ele um fracasso que queria
esquecer.
Diante disso, acredito que esteja aberta então uma lacuna paradoxal dada a
importância que a droga e a própria toxicomania tiveram em sua vida pessoal, na
descoberta da importância dos sonhos e no conseqüente desenvolvimento da
psicanálise. Em seus estudos com a cocaína, estabelece uma independência em
relação aos colegas de estudo e passa a recomendar o uso da droga para muitos de
seus amigos e colegas após ter experimentado por várias vezes e sempre ter obtido
“resultados espetaculares”. Mas após ter perdido um amigo que se viciou na então
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“droga mágica”, como era chamada por Freud, e ter descoberto a dependência da
cocaína em 1885, seu relacionamento pessoal e terapêutico com a substância termina
coincidentemente ou não ao fim de sua auto-análise e do começo da história da
psicanálise.
Pensando no estudo da drogadicção, me vi inclinada a estudar a relação de Freud com
a cocaína. Devido ter sido essa uma das primeiras experiências documentadas que se
apresenta como uma pesquisa científica sobre o tema, acredito que sua importância
seja indispensável para os estudos atuais da dependência da droga e da psicanálise.
Desta forma, passei a me questionar sobre a inconclusão da obra de Freud sobre a
toxicomania. Procuro discutir a mudança de comportamento por parte desse
pesquisador comparando o início das primeiras descobertas que denotavam um
enorme entusiasmo com um posterior arrependimento e desapontamento com tal
estudo desejando enfim esquecê-lo.
Acredito que tal estudo tenha um caráter social e científico relevante, pois tentarei
documentar que o episódio da cocaína vivido por Freud é dotado de uma importância
não somente por sua apreciação biográfica, mas também pela sua influência direta
sobre o desenvolvimento do saber psicanalítico. Dessa forma, ainda que as
experiências de Freud com a droga lhe tenham dirigido por caminhos um pouco
equivocados no sentido essencial de um tratamento que pudesse levar o morfinômano
a uma cura, veremos que o tema merece uma apresentação completa e detalhada. Já
que foi a partir do estudo dos efeitos euforizantes da cocaína, das tentativas analíticas
de seus próprios sonhos e da observação do comportamento de si mesmo e de várias
pessoas sob o efeito da substância, que foi desencadeado de fato um estudo pioneiro
sobre a psicofarmacologia, e uma importante influência sobre a ciência do
inconsciente.
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É interessante lembrar que mesmo no fim de sua vida, em seus últimos escritos, Freud
ainda acreditava na possível utilização terapêutica das substâncias químicas.
“Aqui, porém, estamos interessados na terapia apenas na medida que ela funciona através de meios psicológicos e, por enquanto, não possuímos outra. O futuro pode ensinar-nos a exercer influência direta, através de substâncias químicas específicas, nas quantidades de energia e na sua distribuição no aparelho mental. Pode ser que existam outras possibilidades ainda não imaginadas de terapia. De momento, porém, nada temos de melhor à nossa disposição do que a técnica da psicanálise, e, por essa razão, apesar de suas limitações, ela não deve ser menosprezada”.(Freud, 1940/1975. p 210).
Para discutir essas questões, faço uma releitura das primeiras utilizações clínicas da
cocaína realizadas por Freud até o momento em que demonstra um grande
arrependimento de tê-la conhecido, descrito em “O episódio da cocaína” do livro de
Jones (1989). Pensando em seus escritos que demonstravam um grande interesse
inicial em explorar cada vez mais as experiências com a substância, procuro
encaminhar meu trabalho para uma possível compreensão de até que ponto certos
acontecimentos influenciaram Freud a se decepcionar tanto com o tema a ponto de
deixar tudo de lado. Procuro fortalecer meu estudo, aprofundando a discussão sobre a
não continuidade das experiências com a substância e a não publicação de uma obra
completa sobre o tema, visando pesquisar alguns acontecimentos importantes da vida
de Freud que possam ter influenciado também a relevância da utilização da cocaína
para o estudo dos sonhos e o início da psicanálise.
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II – METODOLOGIA
Para alcançar tal objetivo esboçado na introdução, realizei uma pesquisa especulativa
de vários materiais teóricos que demonstraram fazer referência aos momentos em que
Freud aparece de alguma forma ligado ao tema da cocaína. Todas as leituras que
descreviam as situações vividas por ele durante tal estudo e os momentos a ele
posteriores representaram para mim uma fonte importante de dados.
No início do trabalho me dediquei a pesquisar os escritos do próprio Freud em relação
as suas experiências com a substância. Acreditava que seria importante para o
andamento de meu estudo, ler primeiramente o que ele mesmo falava dessas
situações. Mas após algumas pesquisas, pude encontrar inicialmente apenas alguns
trechos de sua própria autoria em sua obra sobre os sonhos, na qual Freud cita mais
claramente sua relação com o estudo da cocaína.
Devido a essa dificuldade, passei a pesquisar materiais diversos os quais discutiam o
tema em questão. Dessa maneira, passei a compreender que meu trabalho estava
sendo construído a partir de uma base teórica composta por livros que podem ser
agrupados do seguinte modo. A primeiro deles era composto por textos escritos pelo
próprio Freud: A Interpretação dos Sonhos de 1900/1969, O Mal-Estar na Civilização
de 1969 e A História do movimento Psicanalítico de 1997. No segundo, estavam
presentes os biógrafos de Freud que descreveram sua vida: Ernest Jones com A Vida
e Obra de Sigmund Freud de 1989 e Peter Gay com Uma Vida Para o Nosso Tempo
também de 1989. E já no terceiro grupo estavam reunidos os comentadores de Freud
que de alguma forma escreveram suas opiniões sobre período em que ele se dedica a
cocaína. São eles: Jürgen vom Scheidt autor de As Experiências de Freud de 1975,
Robert Byck organizador do livro Freud e a Cocaína de 1989 e Oscar Cesarotto com
Um Affair Freudiano de 1989.
Nas obras desses comentadores aparecem muitas cartas de Freud que não foram por
ele publicadas. Essas eram enviadas em sua maioria a sua noiva Martha Bernays que
com a ajuda de outras pessoas que eram muito próximas a ele, como sua filha Anna
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Freud, conseguiram “salvá-las” de serem queimadas como ele fez com várias outras
após se decepcionar com os efeitos da cocaína.
Além disso, esses manuscritos descritos acima carregam uma importância bastante
significativa para o desenrolar deste trabalho, pois compreendem quase todo o material
que pude ler, já que muitos outros trabalhos só são encontrados em versão original
alemã. Também são por meio desses livros que faço uma descrição dos fatos e
comento as respectivas interpretações de alguns períodos da vida de Freud, tentando
dessa forma, aproveitar os conteúdos que possam auxiliar a esclarecer as minhas
questões iniciais referentes ao seu envolvimento com a cocaína.
Assim, destaco em meu trabalho alguns acontecimentos significativos aos quais
confiarei uma importância relevante em meu estudo. São esses: a ocasião em que
Freud se decepciona por ter perdido o mérito legitimo de ter achado uma utilidade para
a cocaína para Carl Koller; o sofrimento traumático sentido por ele com a culpa e o
remorso pela morte do amigo Fleischl-Marxow anos após ter sido por ele recomendado
que utilizasse a droga, o que rendeu a ele graves censuras das comunidades médica e
científica na época; e finalmente, o período em que os conteúdos ligados às
experiências com a cocaína compareciam nos sonhos de Freud com alta freqüência,
como veremos em o “Sonho da Injeção de Irma” e o “Sonho da Monografia de
Botânica”.
Além desses momentos, buscava me dedicar também às publicações dos depoimentos
do próprio Freud em relação as suas experiências com a cocaína. Porém, progredindo
em minhas pesquisas, compreendi que o assunto aos poucos foi causando tanto
desencanto ao autor que esses ensaios somam apenas cinco dentre os numerosos
publicados sobre outros temas, por ele. Portanto, “Sobre a Coca” (julho de 1984),
“Contribuição ao Conhecimento Sobre o Efeito da Cocaína” (janeiro de 1885),
“Adendos de Sobre a Coca” (fevereiro de 1885), “Sobre o Efeito Geral da Cocaína”
(março de 1885) e “Ânsia e Temor pela Cocaína” (julho de 1887), foram também
estudados por mim com muita dedicação, pois, cada um deles representa a forma pela
qual Freud encarava a utilização da droga e seus resultados obtidos em cada época.
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Caracterizando assim outro aspecto importante para entender a mudança de
comportamento de Freud.
Diante de todo esse material teórico descrito até o momento, me dispus a fazer uma
leitura dedicada a cada um deles na tentativa de entender os acontecimentos que não
somente a uma primeira impressão tinham uma certa ligação com as experiências de
Freud com a cocaína, mas que na tentativa de unir determinadas informações,
pudessem estabelecer uma linha de raciocínio a fim de responder às questões iniciais
dessa pesquisa.
Esclareço ainda, que por ser essa uma pesquisa teórica que tem como objetivo
analisar certos acontecimentos da vida de Freud, por muitas vezes faço uso das
citações do próprio autor, de seus biógrafos e de seus comentadores. Isso ocorre não
somente com a intenção de ilustrar o assunto de que falo, mas para que os trechos
estudados possam ser melhor compreendidos pelo leitor, já que a citação possibilita
demonstrar com mais exatidão o que de fato o autor citado diz.
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“A vida que nos foi imposta é muito árdua para nós (...) Para podermos suportá-la, temos de recorrer a certos paliativos (...): fortes distrações (...); prazeres artificiais (...); substâncias inebriantes (...)” – Freud.
III - O ENVOLVIMENTO DE FREUD COM A COCAÍNA
A partir do estudo das obras citadas na metodologia, procuro fazer uma releitura do
envolvimento de Freud com a cocaína, passando por seus primeiros interesses
despertados pela droga, as importantes descobertas de seus efeitos e os primeiros
indícios de que “a droga mágica” como escrevera, começava a trazer a ele algumas
decepções.
Durante 1881 a 1884, Freud dedica intensamente esses anos de sua vida ao trabalho
no Hospital Geral de Viena. Espera que dada sua preferência pela indagação
sistemática, pudesse aproveitar alguma oportunidade de descoberta no ramo da
medicina clínica e patológica para alcançar a fama. Mas muito mais do que ambição
profissional, buscava melhores condições financeiras com abertura de um caminho
para a clínica privada na esperança de se casar dentro de um ou dois anos com sua
noiva Martha Bernays. Nessa busca, os únicos dois tópicos em que são relatados os
estudos com maiores minúcias e os que o fizeram chegar até mais perto do sucesso foi
o método do cloreto de ouro para coloração do tecido nervoso e a utilização clínica da
cocaína.
Em algumas cartas à Martha, Freud descreve os pontos de partida do seu projeto
sobre a cocaína. Em 21 de abril de 1884 ele dá notícias a ela de “um projeto
terapêutico e de uma esperança”. Nesses escritos é mencionado pela primeira vez um
assunto que por um bom tempo prendeu sua atenção. Ele relata à amada que anda
fazendo muitas leituras sobre a utilização das folhas de coca por índios e por soldados
alemães que buscam em seu uso, agüentar o trabalho duro e certas privações. Tais
usuários relatavam que ao mascar a folha da planta, a energia e a capacidade de
resistência do corpo aumentavam consideravelmente.
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Nessa carta fala ainda sobre seu interesse em utilizar a droga em casos de moléstia do
coração, na exaustão nervosa e particularmente “por evidentes razões” no quadro que
se verifica após a retirada da morfina em dependentes. Freud expressa dessa forma
que existe um motivo importante para se engajar em tal pesquisa, algo que merece
tanta ou mais atenção que a sede de prestígio ou a intenção matrimonial, mas que
razões seriam essas?
Logo adiante em seu relato, é citado à noiva como exemplo, o Doutor Fleischl, cujo
nome vem preservado entre parênteses. O intuito do uso da droga é particularizado
pela introdução do caso do amigo no tratamento do morfinismo, como pode ser
observado neste trecho escrito por Freud em outubro de 1883 em uma carta à amada
sobre o episódio: “Esta tarde, por volta das três horas, fui visitar Fleischl e achei-o
novamente em péssimo estado...” (Cesarotto, 1989. p 31). Muitas foram às vezes em
que o caso do amigo era relatado nas cartas escritas à Martha. Freud descreve
claramente a sua percepção e seu imenso sofrimento em relação ao estado deplorável
em que se encontrava o amigo.
Fleischl era companheiro de Freud no começo de sua carreira científica, tratava-se de
um dos assistentes no Instituto de Fisiologia, cuja amizade muito significava para ele.
Impulsionado pelo fascínio do momento causado pelas primeiras experiências
relacionadas à cocaína, em maio de 1885 Freud ministra pela primeira vez uma
pequena dose da droga com o objetivo de livrar Fleischl do vício da morfina,
recomendando que a utilizasse para curar sua dor nevrálgica.
Tal encanto de Freud pelos efeitos da coca, se deu inicialmente pela sua facilidade de
aquisição, já que era fabricada próximo a Viena, e por sua venda não ser restringida.
Além disso, a oportunidade ainda favorecia a possibilidade de constituir um novo
método terapêutico, o que despertava um poder imediato de sedução em Freud, pois
caminhava ao encontro de suas reais preocupações com a fisiologia. Mas o que fez
definitivamente com que ele prescrevesse a substituição da morfina pela cocaína foi
um texto na Detroit Medical Gazette sobre o seu uso com esse fim.
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Enquanto Fleischl se afogava na nova droga valendo-se dela continuamente, Freud
mostrava-se cada vez mais entusiasmado com a “droga mágica”. A experiência de
Freud em consumir um vigésimo de grama por dia, fez com que sentisse que seu mau
humor se transformava em alegria e que experimentava a sensação de ter “jantado
bem”, sem perda de energia para exercício ou trabalho, concluindo assim seu efeito
anestésico gástrico.
Em uma carta escrita à Martha em 25 de maio de 1884, Freud deixa bem claro seu
interesse no aprofundamento do estudo da droga devido a seus ótimos resultados
obtidos em suas primeiras experiências. Ele aposta tanto em seus efeitos que envia à
amada uma porção da droga para fortalecê-la e dar “uma cor rosada às suas faces”.
“... Tomo-a regularmente, em doses muito pequenas, contra a depressão e a indigestão, com o mais admirável sucesso. Espero que ela seja capaz de extinguir o vomito mais intratável, mesmo quando decorrente de dor aguda... Se as coisas prosseguirem assim, não precisaremos ter qualquer preocupação quanto a podermos nos unir e permanecer em Viena”. (Freud apud Byck, 1989. p 30).
Embora a cocaína ainda não tivesse sido popularizada na Europa e na literatura
houvesse uma dificuldade de se encontrar escritos sobre a utilização da substância,
Fleischl apresentou a Freud a biblioteca da Sociedade de Médicos onde ele se deparou
com o volume recentemente publicado, do catálogo do cirurgião geral, que examinava
a questão minuciosamente. Freud passou então a utilizá-la como fonte de seus
estudos. A partir dessas leituras e de suas experiências Freud pretendia escrever um
ensaio sobre a cocaína: ”se tudo correr bem, escreverei um ensaio sobre ela, e espero
que conquiste seu lugar na terapêutica, ao lado da morfina, mas superior a esta”.(Freud
apud Byck, 1989. p 30). Freud calculava então terminar o ensaio em 15 de junho, uma
quinzena depois.
Embora fosse uma apresentação exaustiva de todo o assunto, “Sobre a Coca”
apresentava maiores qualidades como literatura do que como contribuição científica.
Freud desenvolvia no ensaio o seu melhor estilo utilizando simplicidade e distinção,
estilo que não tivera muita oportunidade de aparecer quando falava sobre os nervos e
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que segundo Jones, fazia uma combinação entre objetividade e calor pessoal “num tom
que nunca mais voltou a registrar-se em seus escritos”. Essa combinação era tanta que
se mostrava como se ele estivesse em relação amorosa com o próprio conteúdo da
coisa, usando expressões como “a excitação mais deslumbrante” para se referir à
sensação do uso da cocaína e preferir utilizar a palavra “oferenda” ao invés de “dose”.
A intenção de Freud era apresentar ao mundo as possibilidades medicinais da cocaína
e com a disseminação dessas informações, o terreno ficou preparado então para a
entrada em cena de Carl Koller. Na época, Koller era residente do departamento de
Oftalmologia, do qual aspirava se tornar assistente. Seus pensamentos se
concentravam exclusivamente no tema das doenças oftalmológicas e percebendo
corretamente a necessidade de uma droga anestésica, estava particularmente
empenhado a descobri-la. Já havia experimentado várias drogas como a morfina e o
brometo de cloro, mas até então sem sucesso. Sua ligação com Freud ocorreu no
seguinte incidente publicado por Freud em “The cocaine Papers” em 1963:
“Um dia eu estava no pátio com um grupo de colegas, dentre os quais esse homem, quando passou por nós outro residente, com sinais de dor intensa. Eu disse-lhe:” Creio que posso ajuda-lo “, e fomos todos para o meu quarto, onde lhe administrei algumas gotas de um medicamento que fez a dor desaparecer instantaneamente. Expliquei aos meus amigos que essa droga era o extrato de uma planta sul-americana, a coca, que parecia ter poderosas qualidades para aliviar a dor, e sobre a qual eu estava preparando um artigo. O homem com interesse permanente pelo olho - cujo nome era Koller - não disse nada, mas alguns meses mais tarde fiquei sabendo que ele havia começado a revolucionar a cirurgia oftálmica com a utilização da cocaína, tornando fáceis operações que até então haviam sido impossíveis. Esse é o único modo de fazer descobertas importantes: focalizar as idéias exclusivamente em um único interesse central.”( Freud apud Byck, 1898. p 49).
Koller também colaborou com alguns testes iniciados por Freud com um dinamômetro,
para averiguar o aparente aumento do vigor muscular obtido com o uso da cocaína.
Ambos ingeriram uma quantidade da substância, e como os outros colaboradores,
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perceberam o entorpecimento dos lábios e da boca. Mas esse acontecimento teve uma
importância maior para Koller do que para Freud.
A situação foi descrita em 1924, na Autobiografia:
“Em 1884, interessei-me profundamente pelo alcalóide chamado cocaína, pouco conhecido naqueles tempos, e encomendei certa quantidade ao laboratório Merck para estudar seus efeitos fisiológicos. No meio dessa tarefa surgiu a oportunidade de uma viagem para a cidade onde residia minha noiva, a quem não via já havia dois anos. Terminei rapidamente minha publicação, predizendo que não demoraria muito até serem descobertas várias aplicações para a substância. Antes de sair de Viena, recomendei ao meu amigo Dr. Königstein, oculista, que investigasse em que medida eram aplicáveis as propriedades anestésicas da cocaína nas intervenções próprias de sua especialidade.
Quando voltei, vi que não fora Königstein e sim outro de meus amigos, Carl Koller, a quem tinha falado da cocaína, quem acabou realizando experiências decisivas sobre suas possibilidades anestésicas, comunicando e demonstrando os resultados no congresso de Oftalmologia de Heidelberg. Koller foi considerado, e com razão, o descobridor da anestesia local por meio da cocaína, tão importante hoje nas pequenas cirurgias“. (Freud apud Cesarotto, 1989. p 42).
Koller leu o ensaio publicado de Freud em julho, pensou sobre ele e no começo de
setembro, quando Freud havia deixado Viena, experimentou a droga como anestésico
no Instituto de Anatomia Patológica de Striker. Com um sucesso absoluto, desde
experiências em sapos até mesmo em seus próprios olhos chega assim à publicação
da “Comunicação Preliminar” no início de setembro.
Königstein, um amigo mais chegado procedeu fielmente à recomendação de Freud
seguindo sua sugestão de utilizar a cocaína com o objetivo de aliviar a dor de
determinadas enfermidades oculares. E em 17 de outubro leu seu trabalho
descrevendo as suas experiências, embora atrasado em relação a Koller não fez
menção ao nome do mesmo em seu trabalho. O que ficou parecendo uma luta
deselegante em busca de prioridade, mas Freud conseguiu persuadi-lo com um
16
comportamento cavalheiresco para que inserisse em seu trabalho uma referência aos
escritos de Koller feita no mês antecedente renunciando a sua própria qualificação de
prioridade.”Aconselhei Königstein a ler os dois ensaios simultaneamente na
Gesellschaft dês Äzte. De qualquer modo, é para o bom nome da coca, e meu trabalho
conserva a reputação de tê-la recomendado com êxito aos vienenses”.(Freud apud
Byck, 1989. p 50).
É evidente, portanto que nessa época Freud ainda considerava o território da cocaína
sua propriedade privada, pois continuou fazendo experiências com algumas doenças
esperando que a substância pudesse curá-las. Encarando dessa forma a descoberta
de Koller como mais uma das aplicações externas de que era capaz a droga, podemos
dizer que Freud demorou um bom tempo para que ele pudesse assimilar a verdade
dolorosa de que a utilização feita por Koller iria se revelar como praticamente a única
de valor.
Em uma carta não publicada enviada a Martha em 18 de outubro de 1884, Freud relata
que se deu então a discussão entre Koller e Königstein na Gesellschaft dês Äzte, e que
esta lhe abriu um pouco os olhos para a importância do que ocorrera anteriormente.
“Se ao menos, em vez de aconselhar Königstein a realizar as experiências do olho, tivesse acreditado mais nelas e não me esquivado de realizá-las, não teria deixado escapar o fato fundamental (isto é, a anestesia), como fez Königstein. Mas com tanto descrédito por toda parte acabei perdendo o rumo.” ( Freud apud Byck, 1989. p 51).
Aparecia aqui então a primeira autocensura de Freud. Pouco depois, em 29 de outubro
de 1884, em uma carta escrita à cunhada Minna Bernays, ele teve de mencionar que a
descoberta de Koller havia produzido uma “sensação enorme” no mundo inteiro: “A
cocaína me trouxe muito crédito, mas a parte do leão foi para outro lugar”. Seus
comentários feitos nessa carta sugerem que alguém devia ser culpado e há indicações
de sobra de que era a si próprio que ele culpava: “Em meu ensaio eu dera a entender
que o alcalóide poderia ser empregado como anestésico, mas não fui meticuloso o
bastante para levar o assunto adiante”. (Freud apud Byck, 1989. p 52).
17
Mas Freud não culpou só a si mesmo por não ter recebido o mérito da descoberta do
efeito anestésico da cocaína. Alguns trechos de sua Autobiografia (1924), demonstram
que ele culpou também sua noiva Martha Bernays: “No meio dessa tarefa surgiu a
oportunidade de uma viajem para a cidade onde residia minha noiva, a quem não via já
há dois anos”. ( Freud apud Cesarotto, 2989.pg 42). Ainda em outro trecho: É o
momento de lhes contar que coube a minha noiva a culpa de eu não ter me tornado
famoso naqueles anos juvenis “. (Freud apud Scheidt, 1975. p 20).
Portanto Koller materializou a idéia de Freud e atingiu a notoriedade no lugar dele. Sua
“Comunicação Preliminar” indicava “Sobre a Coca” (primeiro artigo de Freud sobre a
cocaína) na bibliografia, mas a referência, no entanto, pouco trouxe em termos de
destaque para o autor do trabalho inicial. Mesmo citado como mentor da droga, Freud
ficou à margem do evento.
Freud, no entanto continuou fazendo suas experiências e estudando sobre os efeitos
da cocaína seguindo sua vontade. Após a publicação de “Sobre a Coca” em julho de
1884, na qual traz ao leitor uma abundância de dados sobre a história da droga, de
seus efeitos sobre os homens e animais e de suas diversas utilidades terapêuticas, o
autor se mostra muito intrigado com a ação irregular da cocaína em indivíduos
diferentes. Essa preocupação o leva a realizar observações sobre a capacidade
muscular e a rapidez das reações sob o efeito da cocaína. Os resultados dessas
experiências foram publicados em 31 de janeiro de 1885, em um outro artigo,
“Contribuição ao conhecimento sobre o efeito da cocaína”. Esse ensaio é de interesse
ímpar, pois representa único estudo experimental que Freud chegou a realizar.
Tais resultados o levaram a concluir que a cocaína não tem ação direta sobre o
sistema neuromuscular, mas que age apenas melhorando em determinadas
circunstâncias, a condição geral de bem-estar.
Um artigo popular produzido na imprensa norte-americana a respeito da monografia
“Sobre a Coca” publicado em janeiro de 1885 desencadeou diversas solicitações a
Freud de auxílio e de informações mais completas sobre o assunto. Com isso, o autor
18
publicou novamente seu ensaio com alguns complementos e ratificações no mês
seguinte com o mesmo nome.
Em março, ele realizou duas conferências recapitulando o assunto da cocaína de uma
forma mais geral na Sociedade Psiquiátrica e no Clube de Fisiologia. Essas foram
publicadas em ”Sobre o Efeito Geral da Cocaína” no mesmo mês. Freud destacava que
a psicopatologia por vezes é capaz de reduzir a ação nervosa superestimulada e em
outras se mostra deficiente em elevar a quantidade diminuída, como debilidade ou
depressão do sistema nervoso. A cocaína, no entanto provava que um agente
interventor de natureza desconhecida era capaz de às vezes ser removido por meios
químicos. Nessas conferências, ele admitia que em determinados casos de vício da
morfina a droga não era útil, mas em outros era de grande valor. Sua afirmação era de
que até o momento não havia visto casos de vício de cocaína, já que isso ocorrera
antes de Fleischl ter vivido essa dependência.
Após realizar essas conferências sobre a droga, Freud esperava ter encerrado o
assunto, mas isto estava longe de acontecer. Essa discussão despertava cada vez
mais interesse tanto a favor quanto contra suas afirmações. Em abril, ele foi escolhido
por uma empresa norte-americana para testar a cocaína que ela fabricava em
comparação à da Merck, e se revelou tão boa quanto. Nesse mesmo mês ele conduzia
algumas experiências com a cocaína com o auxílio de Königstein as quais não se sabe
no que consistiam, mas era certo de que estavam sempre sendo encontrados novos
usos para tal substância. Até mesmo o pai de Freud em abril de 1885, queixando-se de
que houvesse algo errado com sua visão, é operado por Königstein sob os efeitos
sedativos da cocaína utilizada como anestesia local.
No entanto os “poderes mágicos” da cocaína começavam a ser colocados em questão
e o declínio das perspectivas positivas de Freud perante a utilização da droga estava
surgindo. Em julho de 1885 a primeira das críticas de Erlenmeyer à utilização da
cocaína na retirada da morfina, era publicada. Freud a comentou: “Tem a vantagem de
mencionar que fui eu quem recomendou a utilização da cocaína em casos de vício de
morfina, coisa que nunca fazem aqueles que comprovaram seu valor nesse caso. É
19
sempre possível, como se vê, ser grato aos próprios inimigos”. (Freud apud Byck,
1989. p 193).
Por outro lado, em um Congresso médico, Obersteiner defendera Freud
verdadeiramente em seu trabalho “Sobre o uso da cocaína em neuroses e
psiconeuroses”. Enviou a ele uma cópia do texto e uma carta dizendo que havia
comprovado a eficácia da cocaína durante a retirada da morfina em alguns casos de
seu sanatório. Mas num artigo sobre psicoses de intoxicação, datado no primeiro mês
do ano seguinte, Obersteiner teve de admitir que o uso ininterrupto da droga poderia
levar a um delirium tremens1.
No início de 1886, Freud alegrou-se por ter sido cumprimentado pelo oftalmologista
mais importante da época, Dr. Knapp como o homem que apresentara a cocaína ao
mundo. Porém, nesse mesmo ano, chegavam relatos de casos de vício em cocaína por
todos os lugares do mundo, especialmente na Alemanha. No mês de maio, Erlenmeyer
ataca Freud novamente ao se referir à cocaína como o “terceiro flagelo da
humanidade”, classificando-a como sendo mais perigosa do que o álcool e a morfina.
A polêmica atingiu tal repercussão que Freud se viu na obrigação de escrever um
artigo em defesa própria, que seria o derradeiro sobre a substância. Em “Ânsia e
Temor pela Cocaína” a irregularidade das propriedades da droga e seus efeitos nocivos
eram atribuídos à variação da excitabilidade de cada indivíduo, além de culpar as
injeções subcutâneas pelas decorrências da epidemia.
Podemos dizer então, que num intervalo de tempo menor que dois anos, o
posicionamento de Freud perante a cocaína deu uma virada brusca, quando afirmou
nesse ultimo artigo o contrário do que defendera em “Sobre o efeito geral da cocaína”
de março de 1885. “Aconselho abandonar, na medida do possível, o uso das injeções
1 Delirium Tremens é um estado confusional breve, mas ocasionalmente com risco de vida, que se
acompanha de perturbações somáticas. Disponível
em:<http://gballone.sites.uol.com.br/psicossomatica/delirium.html> acesso em: 20/08/2207.
20
subcutâneas de cocaína no tratamento dos distúrbios nervosos intensos”. (Freud apud
Cesarotto, 1989. p 50).
Sua tentativa de esquecer o assunto a que por um bom tempo se dedicou inteiramente
faz com que ele chegue a tentativa de destruir em 1885, todos os seus escritos
anteriores a essa data, na esperança de uma grande mudança que recompensaria
seus esforços. No entanto foi impossível evitar todos os resquícios.
Em 1924, Freud demonstra que realmente queria eliminar o tema da cocaína de suas
lembranças. Nesse ano Fritz Wittels escreve uma biografia de Freud. Mas este, não se
sentindo muito à vontade de ser objeto da curiosidade de outras pessoas, deixa claro
em suas cartas as discrepâncias entre os pontos de vista a seu respeito.
“(...) O biógrafo deve tentar, pelo menos, ser tão escrupuloso como o tradutor. E o ditado diz:” Tradutore: traditore!”. Percebo que as circunstâncias dificultam esta qualidade para o senhor, e disso resultam certas omissões que dão uma imagem desfocada de alguns fatos, conduzem a erros sem paliativos et cetera. Isso acontece, por exemplo, no que se refere à cocaína, episódio ao qual, por razões que desconheço, o senhor atribui tanta importância. (...)” (15\08\1942). (Freud apud Cesarotto, 1989. p 53).
No mesmo ano ainda em outra carta, Freud escrevia: “Agora sei o que se passou. O
estudo da cocaína foi um alotrión que eu estava ansioso por abandonar o quanto
antes”. (Cesarotto, 1989. p 53). Utilizou-se dessa palavra, alotrión, para dizer que o
episódio da cocaína representava para ele, portanto um deslize ou descuido em
relação à norma, que como conseqüência lhe trouxe um castigo.
21
“Somos feitos de carne, mas temos de viver como se fôssemos de ferro”.– Freud.
IV - O AMIGO ERNEST VON FLEISCHL – MARXOW
Fleischl era um médico nove anos mais velho que Freud, reunia uma porção de
virtudes e qualidades que fascinavam as pessoas, principalmente o futuro pai da
psicanálise. Nascido em uma família aristocrática, inteligente, elegante, brilhante orador
e um professor fascinante, tinha todas as condições para se tornar um modelo da
perfeição humana. Era portador das maneiras mais encantadoras e benévolas da
sociedade de Viena. Sempre disposto às discussões de problemas científicos e
literários defendidas com idéias brilhantes. Como disse Freud: “É uma pessoa
excelente, um ótimo resultado da combinação da natureza e da educação. Bem-
apresentado, destro em todos os esportes e jogos com a marca da genialidade nos
traços másculos...” (Freud apud Cesarotto, 1989. p 31).
Mas tais méritos de Fleischl eram ofuscados por seu estado de saúde lastimável que
se dirigia cada vez mais ao declínio. O uso da morfina como tratamento de dores
intoleráveis em sua vida teve seu início após sofrer um acidente manuseando um
bisturi enquanto realizava pesquisas em anatomia patológica. Uma posterior infecção
gerou operações consecutivas tornando sua vida uma tortura infindável de dores e de
vagarosa aproximação da morte.
Primeiramente Freud admirava Fleischl à distância, mas após ter deixado o instituto de
Brücke veio a conhecê-lo de maneira mais pessoal. Em fevereiro de 1884, por
exemplo, fala sobre sua “relação intima” com o amigo. Um pouco antes dessa época,
no mês em que se verificou seu noivado, junho de 1882, Freud escreve à Martha:
“Ontem estive com meu amigo Ernest v. Fleischl, a quem até aqui antes que eu conhecesse Martha, invejava em todos os sentidos. Agora levo vantagem sobre ele. Esteve comprometido efetivamente durante dez ou doze anos com alguém de idade idêntica a sua, que se dispunha a espera-lo indefinidamente e de quem presentemente por alguma razão desconhecida, se
22
desvinculou. É um individuo altamente distinto, extremamente bem dotado tanto pela natureza quanto pela educação que recebeu. Rico, treinado em todas as espécies de exercícios físicos, com a estampa do gênio nas suas afeições enérgicas, elegante, com fina sensibilidade, aquinhoado com todos os talentos e apto a emitir juízo original sobre a maioria dos assuntos: foi sempre o meu ideal e não podia sossegar até que nos tornássemos amigos e pude desfrutar uma pura alegria diante de sua capacidade e de seu prestígio”.(Freud apud Byck, 1989. p 155).
Em outra oportunidade escreve:
“Admiro-o e o quero com uma paixão intelectual, se tal frase for permitida. A sua destruição comover-me-á como a destruição de um templo sagrado e famoso teria comovido a um grego antigo. Quero-o não tanto como a um ser humano, mas como uma das preciosas realizações da criação. E de maneira nenhuma você precisa ter ciúme disso”. (Freud Byck, 1989. p 155).
Porém esse homem encantador sofria de uma insuportável nevralgia que durante anos
o aniquilava e com isso sua mente periodicamente se mostrava muito afetada. Além
das altas doses de morfina que tomava, com as conseqüências habituais. Tal estado
deplorável se mostrou a Freud em outubro de 1883 quando este faz uma visita a
Fleischl.
“Perguntei-lhe, desconsoladamente, a que tudo isso levaria. Disse que seus pais o consideravam um grande sábio e que tentaria manter-se em seu trabalho enquanto eles estivessem vivos. Depois que morressem ele se mataria com um tiro, pois achava que era inteiramente impossível agüentar por muito tempo. Seria insensato tentar consolar um homem que vê tão claramente a sua situação”. (Byck, 1989. p 156).
Após alguns dias um novo encontro marcou Freud:
“Ele não é o tipo de homem que se pode abordar com palavras vazias e consolo. O seu estado é tão desesperador quanto ele diz, e não é possível contradize-lo (...) “Não consigo suportar” ele disse, ter de fazer tudo com três vezes maior esforço do que os outros, quando estava acostumado a fazer as coisas mais facilmente do que eles. “Ninguém agüentaria o que eu agüento”,
23
acrescentou, e eu o conheço bastante bem para acreditar nele”. (Freud apud Byck, 1989. p 156).
A partir de maio de 1884, Freud passou a administrar cocaína a Fleischl com a
esperança de livrá-lo do vício da morfina e com pouco tempo conseguiu alcançar tal
objetivo. No início, por um curto período de tempo, a tentativa de Freud de substituir o
uso da morfina pela cocaína alcançou tamanho êxito que Fleischl chegou a escrever
em uma nota de rodapé de um artigo publicado por Freud, no St. Louis Surgery
Journal, sobre sua cura fazendo uma recomendação sobre o uso da coca em casos
similares de morfinismo. Declarava que se sentia muito bem porque os sintomas de
desmaios, insônia e convulsões não o incomodavam mais com as doses ministradas
pelo amigo.
A partir daí Freud passou a visitá-lo com freqüência, auxiliando o amigo a realizar
algumas tarefas como organizar sua biblioteca. Com essa aproximação, era impossível
para ele não perceber que com o passar do tempo se instalava em Fleischl o vício da
droga, pois havia agora a necessidade de doses cada vez maiores para que esta
fizesse os mesmos efeitos que antes. Em uma ocasião no mês de abril, Freud havia
ficado acordado a noite toda ao lado dele mergulhado em uma banheira de água
quente. Esta foi a primeira de muitas noites iguais que Freud presenciou nos dois
seguintes meses em que cuidou do amigo nessas circunstâncias. A essa altura Fleischl
já estava consumindo mais de um grama diário por via subcutânea e Freud enfrentava
nesse momento algo muito forte.
“Sempre que isso acontece, eu me pergunto se irei algum dia em
minha vida experimentar algo tão perturbador ou carregado de
emoção como essas noites. (...) Sua conversa, suas explicações
de todas as coisas obscuras possíveis, suas opiniões sobre as
pessoas do nosso círculo, sua atividade múltipla interrompida por
estados da mais completa exaustão, aliviados pela morfina ou
cocaína: tudo isso forma uma totalidade que não pode ser
descrita”. (Freud apud Byck, 1989. p 157).
24
Como Freud jamais poderia imaginar no início de suas experiências, a cocaína foi
capaz de despertar em seu amigo não somente a propriedade anestésica que ele tanto
buscava para alívio do sofrimento de Fleischl, mas também uma enorme dependência
que o levaria à morte. Pois estando diante da possibilidade de curar-se do vício da
morfina e manter-se aliviado das dores acreditando nas propriedades da cocaína,
Fleischl passa a utilizar com um entusiasmo maior do que o do próprio Freud, grandes
quantidades da substância por dia. O que acaba intensificando seu sofrimento,
tornando-o dependente agora não mais da morfina, mas sim da cocaína.
A nova quantidade consumida foi provocando em Fleischl uma intoxicação crônica com
quadros de desmaios, insônia aguda e falta de controle de vários comportamentos e
finalmente desencadeou um posterior quadro de dellirium tremens. Esta deteriorização
da saúde do querido paciente foi sentida por Freud como um pesar que passou a
carregar por toda sua vida. Tal sentimento de uma possível culpa em não ter
conseguido ajudar o amigo, será demonstrado nesse presente estudo mais adiante.
Essa situação latismável em que se encontrava Fleischl chegou a uma crise em 4 de
julho do mesmo ano. Nessa noite, Freud vendo o amigo em tal estado sai à procura da
ajuda de Breuer e relata ter sido essa a noite mais assustadora que já tivera passado
em sua vida.
Ainda no final desse mês, a pedidos da família de Fleischl, Freud se dispõe a deixar
prematuramente o hospital e perder alguns cursos para cuidar do amigo em St. Gilgen.
Mas o amigo insistiu em ficar sozinho. Freud nesse momento acreditava que Fleischl
não conseguiria agüentar por mais de seis meses, mas ele ainda viveu mais seis anos
sofridos até 22 de outubro de 1891.
Após esse momento em que Fleischl se instala em St. Gilgen, não há mais nenhuma
citação sobre ele nos materiais pelos quais me guiei para seguir tal estudo. Acredito
que essa ausência de informações posteriores a esse momento tenha relação com a
tentativa de Freud de eliminar de sua vida algumas experiências sofridas que queria
esquecer após algumas decepções, das quais falarei adiante, com a “droga mágica”.
25
“Freud deve ser medido segundo seus próprios padrões” - Sr. Bernfeld.
V - FREUD E OS SONHOS
V - 1: A Cocaína e os Sonhos
Para esse capítulo, além dos livros já citados, utilizo também como base teórica A
Interpretação dos Sonhos do próprio Sigmund Freud publicada em 1900, Noções
Básicas de Psicanálise (1975) de Charles Brenner e As Experiências de Freud de 1975
escritas por Jürgen vom Scheidt.
Hoje sabemos que os efeitos alucinatórios, euforizantes ou alterados de consciência
produzidos pelas drogas em geral, se devem a modificações químicas no cérebro. Mas
apesar dessas substâncias serem conhecidas pelo mundo todo há milhares de anos,
pouco se sabe a respeito da natureza exata dessas modificações. Fundamentalmente
Scheidt (1975) afirma que tais substâncias prejudicam ou alteram as funções do ego,
como orientação intelectual, percepção, memória, força de vontade e etc; influenciam o
superego especialmente neutralizando-o e estimulam de certa forma o id.
Dessa forma, todas as drogas extasiantes, como a cocaína, perturbam a relação entre
o sujeito e seu meio ambiente, e conseqüentemente a maneira de reação a ele. Esses
efeitos traduzem para o plano subjetivo, uma sensação irreal perante o mundo exterior
e uma instabilidade crescente dos contatos com ele, enquanto o mundo interior ganha
uma aparência que compreende um maior vigor. Assim, o pensamento racional recua,
predominando os impulsos instintivos primários e os fenômenos emocionais; o
pensamento tende a uma “associação livre” ficando mais desimpedido; o tempo se
torna mais lento ou é extinto em sua percepção.
À medida que o desvanecimento vai ficando mais intenso, segundo Scheidt, aparece
num primeiro plano de fundo psíquico um conteúdo de tipo onírico, na maior parte das
vezes alternadamente com percepções da realidade externa. Afirma também que uma
relação significativa existe entre o estado de euforia e o mundo dos sonhos. Pois sendo
26
a euforia “um sistema aberto” e os sonhos “um sistema fechado”, a cisão trazida pela
droga torna a pessoa em condições de agir conforme suas impressões sensoriais
ilusórias ou mesmo alucinatórias, enquanto que o sonho se distingue porque seu
sistema motor se mantém inacessível ao ego do sonhador. É como se a vivência da
substância se situasse entre os dois mundos, o do sonho e o da realidade externa.
Como Scheidt, outros autores também afirmaram que o inebriamento da droga estimula
a produção onírica. Em 1965, Charles Fischer assim escreveu em um trabalho coletivo
sobre as novas pesquisas sobre o sonho:
“Verificou-se que várias drogas aumentam o fator REM2 do sonho (...); pequenas doses, 10 a 30 miligramas, de LSD ministradas antes do início do sono ou uma hora depois que sobreveio, têm por efeito elevar de 30 a 40% o segundo REM acima do nível médio registrado habitualmente para os respectivos sujeitos”. (Fischer apud Scheidt, 1975. p 50).
Thomas de Quincey também se manifesta sobre o ópio a que se habituara: “Não só
acentua as cores do cenário do sonho: também aprofunda as sombras. Mas antes de
tudo intensifica a impressão de sua terrível realidade”. (Quincey apud Scheidt, 1975. p
51).
Os relatos desses autores representam um papel de destaque para esse presente
trabalho. Pois se colocam como um importante elemento dentre outros, os quais falarei
mais tarde, fortalecedor da minha hipótese de que as experiências de Freud com a
cocaína tiveram um papel de destaque na elaboração da psicanálise.
Segundo Jones, o consenso geral crê que A Interpretação dos Sonhos é uma obra
prima de Freud, aquela pelo qual seu nome será provavelmente lembrado por muitos
anos. Parece que esta não é somente a opinião dos leitores, mas também do próprio
escritor. Em um Prefácio à terceira edição inglesa em 1931, Freud fala sobre o livro
parecendo concordar com o consenso: “Este livro contém, mesmo segundo minha
2 Rapid Eye Movement- Movimento rápido dos olhos, é a fase do sono na qual ocorrem (embora não todos) os sonhos mais vívidos. Disponível em:< http://pt.wikipedia.org/wiki/REM_(sono)> acesso em: 25/09/2007
27
opinião atual, a mais valiosa de todas as descobertas que tive a sorte de fazer. Um
discernimento dessa natureza só acontece à gente uma vez na vida“. (Freud apud
Brenner, 1975. p 161). Além disso, seu êxito nessa obra, representou um imenso valor
para todo o século, numa época em que ele trabalhava completamente isolado de seus
colegas de medicina.
Nessa época cheia de dificuldades, Freud buscava a compreensão das neuroses de
seus pacientes com o objetivo de tratá-las com êxito. Mesmo que por vêzes se sentisse
desanimado, conseguia criar coragem a partir das descobertas que seguia fazendo
sobre os sonhos tendo a certeza de que pisava em uma área segura e que era essa
confiança que o fazia seguir em frente. Antes de Freud, os sonhos eram considerados
apenas símbolos, analisados como se fossem premonições ou manifestações divinas,
mas por meio da análise dos sonhos, ele mostrou a existência do inconsciente e
transformou os sonhos em um instrumento revelador da personalidade humana. Para
Brenner, A Interpretação dos Sonhos foi uma contribuição tão revolucionária para a
psicologia como A Origem das Espécies para a biologia. O próprio Freud acreditava
que foi com uma profunda dedicação explorando os sonhos, e contando também com
um pouco de sorte á que conseguiu finalmente chegar até essa descoberta tão valiosa.
Podemos dizer que o interesse de Freud pelos sonhos se manifestou provavelmente na
sua infância. Segundo Peter Gay, ele sempre foi um bom sonhador, pois além de dar
atenção aos seus conteúdos, sempre os registrava por escrito. Quinze dias após seu
noivado com Martha, Freud escreve em uma carta: “Tenho tido muitos sonhos
incomuns. Nunca sonho com as coisas que me ocuparam durante o dia, só sonho com
assuntos apenas aludidos no decorrer do dia e que desaparecem em seguida”. Essa
peculiaridade descrita na frase acima, mais tarde tornou-se um componente de sua
teoria sobre os sonhos na qual todo sonho mostra um ponto de contato com os
acontecimentos do dia anterior. “Esse restos diurnos, freqüentemente proporcionam o
acesso mais fácil à interpretação dos sonhos”. (Freud apud Gay 2004. p 115).
Para ele, “A interpretação dos sonhos, é a via régia de acesso ao conhecimento do
inconsciente e da vida mental” (Freud apud Gay 2004. p 109). Freud tinha razão em
28
valorizar tanto o seu trabalho sobre os sonhos. Em nenhum outro fenômeno da vida
psíquica normal, os processos inconscientes da mente humana são revelados de forma
tão clara e acessível ao estudo. Pois na concepção freudiana, o sonho é um produto da
atividade do Inconsciente e tem sempre um sentido intencional, a saber: a realização
ou a tentativa de realização - mais ou menos dissimulada, de uma tendência reprimida.
Assim, os sonhos revelam a verdadeira natureza do homem, embora não toda a sua
natureza, e constituem um meio de tornar o interior oculto da mente, acessível a nosso
conhecimento. É este fato que torna os sonhos importantes para os psicanalistas, pois
os sonhos proporcionam a compreensão dos conteúdos que foram excluídos da
consciência.
Para Scheidt, a elaboração de A Interpretação dos Sonhos, foi precedida e
possibilitada pela auto-análise de Freud, que lhe deu acesso ao inconsciente e o
familiarizou com o simbolismo onírico. Acredita ainda que um dos fatores que
impulsionaram o autor a realizar a tarefa de penetrar no inconsciente foi o consumo da
cocaína nos anos 80 do século passado. Adverte, porém, que várias outras causas
podem tem ocorrido.
Seguro das propriedades euforizantes e presumidamente curativas da cocaína, Freud
passou a utilizá-la como anestésico nas pequenas cirurgias, descoberta essa que
coube a Koller. Mas, frustrado com suas esperanças, ele se voltou para o mundo dos
sonhos e do inconsciente. Podendo nesse campo dar muito mais de seu talento, do
que no episódio da droga, na construção da teoria psicanalítica que marcou as idéias e
os costumes dos nossos dias.
A teoria psicanalítica dos sonhos é formulada por Freud a partir da experiência
subjetiva que aparece na consciência durante o sono, e que ao despertar, é
denominada sonho. Esse é apenas o resultado final de uma atividade mental
inconsciente durante tal processo fisiológico, que por sua intensidade ou natureza
ameaça interferir no próprio sono. Portanto ao invés da pessoa acordar, ela sonha.
29
Todo sonho, portanto, é resultado de um trabalho árduo. Com a função de converter
impulsos e lembranças inaceitáveis numa história inofensiva, o sonho é capaz de
neutralizar seu impacto e permitir que eles se expressem. Esse trabalho com os
sonhos é extremamente diverso e inesgotável, pois estes têm a disposição uma
infinidade de restos diurnos e histórias únicas do sonhador para os compor.
Mas, podemos dizer que A Interpretação dos Sonhos não se restringe apenas aos
próprios sonhos de Freud. É uma autobiografia sincera e cautelosa ao mesmo tempo
em que se mostra instigante pelo que revela e pelo que omite. Em sua primeira edição,
ela também oferece um levantamento das idéias psicanalíticas fundamentais, como o
trabalho da repressão e o complexo de Édipo, e um rico material de casos clínicos.
Podemos também dizer que nessa obra, são encontradas numerosas referências a
cocaína, que representam de certo modo, a conseqüência ou o desfecho de um longo
confronto inconsciente com a euforia ocasionada pela absorção da droga. Segundo
Scheidt, esse sintoma da cocaína foi de fato um impulso importante, inconsciente, mas
que de qualquer forma, não passou de um fator, entre outros no desenvolvimento
científico e humano de Freud, mas que até hoje tem sido discutido.
Em Freud e a Cocaína de 1989, o autor supõe que as experiências e a utilização da
cocaína por Freud tenham cessado em 1887, mas uma leitura cuidadosa dos dois
sonhos que se seguem, o “Sonho da Injeção de Irmã” e o ”Sonho da Monografia de
Botânica”, demonstra claramente que ele ainda a usava até 1895, pelo menos. Muitas
das personagens que apareceram antes nesse livro vêm aqui de novo à tona nesses
sonhos de Freud, também reveladores de várias maneiras pelas quais nessa época,
suas lembranças estavam ligadas às experiências que tivera com a cocaína.
A partir dos sonhos de Freud descritos a seguir, podemos observar que em muitos
momentos aparece claramente a ligação da cocaína com algum acontecimento.
Portanto, conclui-se que sua relação com a droga nessa época ainda era intensa já que
esta fazia parte de muitos de seus pensamentos, recorrentes nos sonhos. Nesses
mesmos sonhos, sua preocupação com o estado físico de seu amigo Fleischl também
30
é bastante recorrente. Relação essa que estabelecia também uma forte ligação com a
cocaína. Portanto, tendo em vista as recentes informações de que a cocaína tem a
tendência a suprimir no sono a fase associada à ocorrência dos sonhos, é
particularmente notável que o primeiro sonho submetido por Freud a uma interpretação
mais detalhada tenha ocorrido numa época em que ele estava fazendo uso da cocaína.
Minha intenção então em estudar esses sonhos abaixo descritos visa destacar o quão
importante representava para Freud suas experiências com a droga. Tanto no aspecto
positivo e entusiástico perante seus efeitos iniciais benéficos, como em suas primeiras
decepções diante das ocorrências mundiais de quadros de dependência. Esses
sonhos, portanto, são de extrema importância para esse trabalho, pois como veremos
em seus relatos, o tema central da cocaína se liga diretamente ao conteúdo de seus
sonhos ainda nessa época em que ele próprio garantia não mais fazer uso da droga,
mas que veremos talvez não ter sido esta a realidade.
V - 2: O “Sonho da Injeção de Irma”
Esse sonho aparece no segundo capítulo do livro A Interpretação dos Sonhos, na qual
Freud apresenta o método da interpretação dos sonhos completando com a análise de
um sonho modelo. Esse sonho se apresenta como uma parte importante para que eu
possa alcançar o objetivo do meu estudo, pois além de ser o primeiro sonho de Freud
analisado inteiramente por ele em seu próprio livro, demonstra uma grande intensidade
de angústia por parte do autor chegando a se sentir culpado por suas experiências com
a cocaína e conseqüentemente pela morte de seu amigo Fleischl.
Antes de relatar esse sonho datado de 23-24 de julho de 1895, Freud escreve um
preâmbulo na qual objetiva nortear um pouco o leitor no contexto em que o sonho
aparece. O autor escreve que no verão de 1895, ele vinha prestando tratamento
psicanalítico a uma jovem senhora que mantinha laços muito cordiais de amizade com
ele e com sua família. Esse tratamento terminara com êxito parcial, pois a paciente
ficara livre de sua angústia histérica, mas não perdera todos os sintomas somáticos.
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Nessa ocasião, ele ainda não discernia com muita clareza quais eram os critérios
indicativos de que um caso clínico de histeria estava afinal encerrado, e havia proposto
à paciente interromper o tratamento durante as férias de verão, enquanto estavam
nessa discordância sobre o encerramento ou não do tratamento.
Após receber a visita de seu colega mais novo na profissão, Otto, que estivera com
Irma e sua família, Freud perguntou-lhe como a achara e o amigo lhe respondeu: “Está
melhor, mas não inteiramente boa.” Relata que teve consciência de que as palavras de
Otto o aborreceram. Na mesma noite, redigiu o caso clínico de Irma, com a idéia de
entregá-lo ao Dr. M. (um amigo comum que, na época, era a principal figura do círculo
de Freud), a fim de se justificar. Então, naquela noite (ou na manhã seguinte, como é
mais provável), teve o seguinte sonho, que anotou logo ao acordar.
“Um grande salão — numerosos convidados a quem estávamos recebendo. — Entre eles estava Irma. No mesmo instante, puxei-a de lado, como que para responder a sua carta e repreendê-la por não ter ainda aceitado minha ”solução”. Disse-lhe: “Se você ainda sente dores, é realmente apenas por culpa sua”.Respondeu ela: “Ah! Se o senhor pudesse imaginar as dores que sinto agora na garganta, no estômago e no abdômen… — isto está me sufocando”.— Fiquei alarmado e olhei para ela. Parecia pálida e inchada. Pensei comigo mesmo que, afinal de contas, devia estar deixando de perceber algum distúrbio orgânico. Levei-a até a janela e examinei-lhe a garganta, e ela deu mostras de resistências, como fazem as mulheres com dentaduras postiças. Pensei comigo mesmo que realmente não havia necessidade de ela fazer aquilo. — Em seguida, ela abriu a boca como devia e, no lado direito, descobri uma grande placa branca; em outro lugar, vi extensas crostas cinza-esbranquiçadas sobre algumas notáveis estruturas recurvadas, que tinham evidentemente por modelo os ossos turbinados do nariz. — Chamei imediatamente o Dr. M., e ele repetiu o exame e o confirmou… O Dr. M. tinha uma aparência muito diferente da habitual; estava muito pálido, claudicava e tinha o queixo escanhoado… Meu amigo Otto estava também agora de pé ao lado dela, e meu amigo Leopold a auscultava através do corpete e dizia: “Ela tem uma área surda bem embaixo, à esquerda”.Indicou também que parte da pele do ombro esquerdo estava infiltrada. (Notei isso, tal como ele fizera, apesar do vestido.)… M. disse: “Não há dúvida de que é uma infecção, mas não tem importância; sobrevirá uma disenteria, e a toxina será eliminada”.… Tivemos também pronta consciência da origem da
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infecção. Não muito antes, quando ela não estava se sentindo bem, meu amigo Otto lhe aplicara uma injeção de um preparado de propil, propilos… ácido propiônico… trimetilamina (e eu via diante de mim a fórmula desse preparado, impressa em grossos caracteres)… Injeções como essas não deveriam ser aplicadas de forma tão impensada… E, provavelmente, a seringa não estava limpa”. (Freud, 1900/1996. p 121).
Freud se dispõe a analisar de forma bem detalhada todo esse sonho como nunca tinha
feito antes. Nesse processo ele vai interpretando cada parte dele, pretendendo assim
chegar à finalidade e ao sentido do sonho. É através do trabalho da análise desse
sonho que Freud vai aos poucos tomando consciência de seus pensamentos
inconscientes relacionados a vários temas de sua vida que antes se mantinham
preservados do seu consciente. Como o sentimento de culpa em relação à morte de
Fleischl e a preocupação com sua conscienciosidade profissional, “interesse por minha
própria saúde e pela saúde de outras pessoas”.
“O que vi em sua garganta: uma placa branca e os ossos turbinados recobertos de
crostas”. Nesse trecho da descrição do sonho, Freud faz uma belíssima interpretação
dizendo que as crostas nos ossos turbinados fizeram-lhe recordar uma preocupação
sobre seu próprio estado de saúde. Nessa época, ele vinha fazendo uso freqüente da
cocaína para reduzir algumas incômodas inchações nasais, e ficara sabendo alguns
dias antes que uma de suas pacientes, que seguira seu exemplo, desenvolvera uma
extensa necrose da membrana mucosa nasal. Freud fora o primeiro a recomendar o
emprego da cocaína, em 1885, e essa recomendação trouxera sérias recriminações
contra ele. “O uso indevido dessa droga havia apressado a morte de um grande amigo
meu. Isso ocorrera antes de 1895 [a data do sonho]”. (Freud, 1900/1996. p 126).
Em outro trecho do sonho, Freud interpreta-o fazendo novamente uma forte ligação
com sua culpa pela indicação de cocaína a Fleischl: “Quando ela não estava se
sentindo bem, meu amigo Otto lhe aplicara uma injeção”.
Analisando o sonho escreve que seu amigo Otto efetivamente lhe contara que, durante
sua curta estada com a família de Irma, fora chamado a um hotel das imediações para
aplicar uma injeção em alguém que de repente se sentira mal. Essas injeções fizeram
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com que Freud se recordasse mais uma vez de seu infeliz amigo que se envenenara
com cocaína. “Eu o havia aconselhado a só usar a droga internamente [isto é, por via
oral], enquanto a morfina era retirada; mas ele de imediato se aplicara injeções de
cocaína”. (Freud, 1900/1996. p 130).
Novamente Freud lembra de seu amigo estudando outro trecho do sonho: “Injeções
como essas não deveriam ser aplicadas de forma tão impensada”.
Sobre esta frase do sonho ele escreve que se lembrou mais uma vez de seu amigo
morto, que com tanta pressa recorrera a injeções de cocaína. “Como já tive ocasião de
dizer, eu nunca havia considerado a idéia de que a droga fosse ministrada por
injeções”.
A partir dessas interpretações, Freud pôde perceber que alguns temas que não
estavam ligados de forma tão evidente ao efeito prejudicial da cocaína e a sua
preocupação em cumprir sua obrigação profissional desempenharam seu papel
disfarçado no sonho com o objetivo de chegar à consciência. Somente com uma
análise detalhada é que o autor pôde chegar até a compreensão do sonho.
V - 3: O “Sonho da Monografia de Botânica”
Este é um outro sonho de Freud, na qual ele também faz uma interpretação importante
de algumas partes deste se referindo a cocaína. Segue sua descrição do sonho:
“Eu escrevera uma monografia sobre certa planta. O livro estava diante de mim e, no momento, eu virava uma página dobrada que continha uma prancha colorida. Encadernado com cada exemplar havia um espécime seco de planta, como se tivesse sido retirado de um herbário”. (Freud, 1900/1996. p 178).
Ao interpretar o sonho, Freud se lembra de que ele realmente havia escrito algo da
natureza de uma monografia sobre uma planta, a saber, uma dissertação sobre a
planta da coca a qual atraíra a atenção de Karl Koller para as propriedades anestésicas
da cocaína. Faz a referência de que ele mesmo havia indicado essa aplicação do
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alcalóide em seu artigo publicado, mas não fora suficientemente rigoroso para levar o
assunto adiante. Isso tudo fez com que ele lembrasse que na manhã do dia após o
sonho, já que não tivera tempo de interpretá-lo senão à noite, ele havia pensado na
cocaína, numa espécie de devaneio.
Seus pensamentos ainda fluíam em direção a uma recordação de um acontecimento
específico que estava por trás desse sonho. Pouco depois da descoberta de Koller, o
pai de Freud fora acometido por um glaucoma e seu amigo Doutor Königstein, cirurgião
de olhos, foi quem o operou. O Doutor Koller se encarregou da anestesia e comentou o
fato de que esse caso reunira os três homens que participaram da introdução da
cocaína.
Relata ainda que seus pensamentos passaram para a ocasião em que, pela última vez
lembrara do caso da cocaína. Há uns dias antes havia lido um exemplar de uma
Fertschrift, na qual tinha visto uma alusão ao fato de que Koller fizera ali sua
descoberta das propriedades anestésicas da cocaína.
Para Freud, o sonho da monografia botânica, levou o assunto levantado no primeiro
sonho, o da Injeção de Irmã, a um estágio adiante e o examinou com referência ao
material novo que surgira no intervalo dos dois sonhos. Mesmo a forma aparentemente
irrelevante de que se revestiu o sonho mostra ter tido importância para ele quando são
percorridos os caminhos associativos do sonho.
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“O homem quis sonhar, mas o sonho acabou dominando o homem” - Baldelaire.
VI - ARTIGOS PUBLICADOS DE FREUD SOBRE A COCAÍNA
VI - 1: “Sobre a Coca” (julho de 1884)
Nesse seu primeiro artigo “brilhantemente escrito” como destaca Anna Freud, sobre a
planta da coca, o autor traz ao leitor uma abundância de dados sobre a história de sua
utilização, de seus efeitos sobre os homens e animais e de suas diversas utilidades
terapêuticas. São por Freud relatadas em detalhe as investigações de numerosos
autores. Há várias alusões relativas à propriedade anestésica da droga, sendo
apresentadas possibilidades promissoras a esse respeito, porém não se propõe
nenhuma área específica para sua aplicação. Além disso, podemos observar que a
atitude do autor para com a utilização da coca é favorável e algumas vezes muito
entusiasmada.
No primeiro capítulo: “A planta de coca”, Freud faz uma breve descrição sobre as
informações que ele reunira sobre as propriedades biológicas da planta como tamanho,
forma, reprodução e modo de preparo para o consumo. Nomeada cientificamente como
Erythoxylum Coca, o arbusto era muito cultivado na América do Sul, principalmente no
Peru e na Bolívia onde sua maior produção se concentrava nos vales quentes dos
Andes.
As folhas da planta medem de cinco a seis centímetros de comprimento e possuem
uma forma ovalada. O arbusto tem flores brancas em racemos e frutos vermelhos e
multiplica-se por sementes ou enxerto. Dezoito meses após esse processo, as
primeiras folhas aparecem. Quando estiverem maduras (rijas e quebradiças) poderão
ser secadas ao sol ou no fogo para de imediato serem ensacadas. Em ótimas
condições, um arbusto de coca rende de quatro a cinco safras anuais, produzindo por
quarenta ou cinqüenta anos.
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Nesse mesmo capítulo, Freud escreve que das folhas da coca era extraído um
“estimulante indispensável” para milhões de pessoas. Essa expressão nos mostra que
já nessa época, na qual as primeiras descobertas sobre a utilização da planta estavam
sendo feitas, e o primeiro artigo de Freud sobre a cocaína era publicado, já se tinha o
conhecimento de seu poder estimulante.
A descoberta inicial da planta e suas primeiras utilizações foram descritas no segundo
capítulo do artigo, intitulado “História e usos da coca”.
Segundo o autor, no Peru, a invasão dos conquistadores espanhóis fez com que esses
descobrissem que a planta da coca era amplamente cultivada naquele país estando
intimamente ligada aos costumes religiosos do seu povo. Mas foi somente nessa época
que a coca se tornou acessível a qualquer um, pois anteriormente, somente a classe
dominante a utilizava.
Logo após a invasão, os espanhóis não acreditavam nos efeitos maravilhosos da
planta, desconfiavam ser ela “obra do demônio” chegando até mesmo a proibir seu uso
em um concílio realizado em Lima. Essa atitude mudou quando os conquistadores
descobriram que os índios não conseguiam executar seu trabalho pesado sem comer a
folha da coca. O poeta Garciliasso de la Veja defendeu a necessidade do uso da coca,
e ela foi novamente permitida, se ministrada algumas vezes ao dia nos intervalos de
descanso.
Esse capítulo indica amplos indícios de que sob o efeito da coca, os índios eram
capazes de suportar provações excepcionais sem necessitar de alimentação adequada
durante o tempo todo. Segundo o autor, os índios continuavam prestigiando o consumo
da coca, utilizando-a em grandes quantidades e não considerando um exagero utilizar
entre eles cerca de 85 a 115g de folhas por dia. Eles carregavam uma porção de folhas
e uma garrafinha com cinzas da planta; faziam uma bolinha com a folha e a colocavam
na boca, amassada e misturada com as cinzas, mastigando devagar, com abundante
salivação. Não é claro o papel desempenhado pelo acréscimo dos álcalis das cinzas.
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Alguns autores sustentam a crença de que sua participação é indiferente, enquanto
outros que a cocaína libera-se pela ação alcalina em composição com o acido tânico.
Ainda nesse capítulo de “Sobre a Coca”, Freud reúne alguns depoimentos de pessoas
que puderam observar o trabalho dos índios utilizando a folha. Valdez y Palácios afirma
que com a utilização da coca os índios são capazes de viajar a pé por centenas de
horas e correr mais depressa que cavalos, sem mostrar nenhum sinal de fadiga.
Castelnau, Martius e Scrivener confirmam isso e Humboldt diz ser esse um fato muito
comum e conhecido. O relato de Tschudi revela que um indígena foi capaz de realizar
um trabalho duro de escavação por cinco dias e noites, sem dormir mais de duas horas
por noite, não consumindo nada além da coca. Depois desse trabalho realizado, ele
acompanhou Tschudi em uma viajem que durou dois dias, correndo ao lado de sua
mula.
Considerando esses testemunhos e tendo em mente o papel que durante séculos a
coca vem desempenhando na América do Sul, Freud afirma que se deve rejeitar a
opinião de que seu efeito é imaginário e que por força das circunstâncias e pela prática,
os nativos seriam capazes de realizar essas atividades sem mascar a planta. Para ele,
é inegável que sem a coca seus rendimentos seriam apenas corriqueiros. Tudo indica
que o uso moderado faz bem a saúde, prolongando a vida, embora os excessos
possam levar a uma série de distúrbios digestivos, extenuação, caquexia e apatia em
relação a tudo o que não tenha vínculo direto com o gozo do estimulante. Isso é mais
freqüente em alguns brancos, que chegam a um estado muito semelhante aos
sintomas provocados pelo alcoolismo crônico e pelo consumo de morfina.
A primeira menção da coca e os posteriores escritos sobre ela, Freud reuniu no terceiro
capítulo, “As folhas da coca e a cocaína na Europa”. Esta menção se encontra num
ensaio do Dr. Monardes de 1569, em Sevilha. O jesuíta padre Antonio Julián e o Dr.
Pedro Crespo, de Lima, detalharam maravilhas sobre os efeitos da planta e
recomendaram sua utilização na Europa. Aqui chegou em 1749, sendo descrita por
A.L. de Jessieu e denominada Erythroxylum. Em 1786, apareceu na Enciclopédia
Metódica Botânica de Lamarck como Erythoxylum coca. Já em 1859, Paolo
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Mantegazza, depois de viver muitos anos em regiões onde se utilizava a planta, publica
suas descobertas sobre os efeitos fisiológicos e terapêuticos das folhas, ilustrando sua
versatilidade com várias historias clínicas. Seus relatos muito elogiosos, despertam
interesse, mas oferecem pouca informação.
Entretanto, Freud diz sentir-se inclinado a aceitar seus argumentos, mesmo sem ter
tido a oportunidade de confirmá-los pessoalmente. E escreve que em 1859, um
membro da expedição da fragata austríaca Novara trouxe um monte de folhas de Viena
e o Dr. Niemann isolou delas o alcalóide cocaína. Seu discípulo, Lossen, continuou
com as experiências depois de sua morte.
A cocaína de Niemann aparece de forma tão importante para Freud, que ele descreve
em seus escritos as propriedades físicas e químicas da droga estudadas por Niemann,
como seu sabor amargo e seu efeito anestésico nas mucosas.
Desde esse momento da descoberta até os dias atuais, é referido no texto que, o
composto já foi aplicado em animais e em pessoas sadias ou doentes, às vezes
ministrada como cocaína, em outras como infusão, ou também a maneira dos índios.
Algumas experiências são relatadas como bem sucedidas e algumas como fracassos.
Argumenta-se que na Europa não seria possível obter os mesmos rendimentos que na
América do Sul, o que poderia ser explicado pela quantidade dos preparos utilizados.
Acredita-se na existência de alguma substância volátil em suas folhas que ao
desaparecer, diminuiria o poder da planta. Esta hipótese baseia-se no fato de que,
inclusive nos países de origem, um armazenamento por longo período acaba com suas
propriedades.
Os experimentos realizados recentemente com a cocaína preparada pelo laboratório
Merck, segundo “Sobre a Coca”, justificam a afirmação de que a cocaína é o
verdadeiro agente do efeito da coca e que pode ser produzido tanto na Europa como
nos Estados Unidos, sendo de grande importância em tratamentos dietéticos e
terapêuticos.
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Freud também estudou os efeitos da droga nos organismos dos animais e seus relatos
que seguem abaixo foram escritos no IV capitulo, “Os efeitos da coca nos animais”.
Ele afirma que como os animais de diferentes espécies, variam muito em sua
receptividade às substâncias estranhas ao organismo, não se deve esperar que os
efeitos da coca nos animais se assemelhem aos efeitos descritos no ser humano. O
importante é compreender como ambos, homem e animal são afetados de um ponto de
vista comum.
O resultado desses testes demonstra que a coca é um estimulante quando aplicada
em doses pequenas, e em doses maiores tem efeito paralisador sobre o sistema
nervoso. Nos animais de sangue frio, pode desencadear aceleração do pulso e da
respiração, ocorrer espasmos, dilatação das pupilas e morte convulsiva. A
compreensão da eficácia da droga para o pesquisador já estava clara: depende, em
grande parte, da quantidade e do modo de aplicação.
Já em animais de sangue quente o envenenamento por cocaína produz grande
agitação, evidenciada em contínuos pulos e corridas e depois a paralisia das funções
musculares e cãibras. Podendo também aumentar a secreção da mucosa e o açúcar
na urina além de provocar claros sinais de extrema alegria e compulsão ao movimento.
Além desses estudos com animais, Freud escreve o quinto capitulo, “Os efeitos da
coca nas pessoas sadias”, dedicando-se as experiências da droga em seres humanos.
“Tenho efetuado experiências e estudado em mim mesmo e em outras pessoas sadias os poderes da coca, e minhas conclusões coincidem fundamentalmente com a descrição de Mantegazza.
Na primeira vez tomei 0,05 grama de cocainum muriaticum em solução com água a um por cento e me senti livre de toda a fadiga. A solução é viscosa, opalescente e de aroma estranho; amargo no início e depois muda de sabor agradavelmente, com diversos aromas. O sal de cocaína seco tem o mesmo cheiro e gosto, mais acentuados.
Poucos minutos depois da ingestão sente-se um repentino vigor e uma sensação de leveza, certa aspereza nos lábios e no céu da
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boca seguida de uma sensação de calor nos mesmos lugares. Se se toma água gelada, parece quente nos lábios e gelada na garganta.
Em minha primeira tentativa senti um instante de efeitos tóxicos que não se repetiram novamente. A respiração ficou mais lenta e profunda. Estava cansado e sonolento, bocejava com freqüência e parecia um pouco embotado, insensível. Passados alguns minutos começou a euforia da cocaína, precedida por alguns arrotos frios. Imediatamente após a ingestão, percebi uma leve debilidade no pulso e logo uma aceleração moderada.
Constatei as mesmas reações nos outros, quase todos de minha idade. O sintoma mais constante foi a eructação fria, com freqüência acompanhada por um ruído originado acima do intestino. Amiúde o primeiro momento da ação da cocaína, algumas pessoas afirmaram sentir um intenso calor na cabeça. Eu também já percebi em algumas ocasiões, mas não em todas. Só por duas vezes a cocaína me provocou vertigem. Em geral os efeitos são de curta duração e muito menos intensos do que doses de quinino. Parecem ainda mais fracos depois de repetido uso”. (Freud apud Cesarotto, 1989, p 73).
Ainda nesse capítulo, Freud parte dos escritos de Mantegazza, nos quais são
mencionados os efeitos ocasionais da cocaína, para afirmar que em relação às
manifestações corporais como aumento da quantidade de urina, secura da conjuntiva e
das mucosas nasais, as diferenças existentes entre os relatos de diversos autores
dependem do modo do preparo da substância e de variações individuais. Para ele, há
certas pessoas que não toleram a coca, outras não são afetadas como um todo, e há
ainda aquelas que experimentam rapidamente seus efeitos. Nesse ultimo grupo de
pessoas Freud se inclui dizendo:
“Doses de 0,05 a um grama de cocainum muriaticum proporcionam a euforia e o vigor similares aos de qualquer pessoa sadia. Falta por completo o sentimento de excitação produzido pelo álcool, assim como também está ausente à urgência de atividades. Aumenta o autocontrole e a disposição para o trabalho, mas se não se trabalha, perde-se a exaltação dos poderes mentais similares a produzida pelo álcool, chá ou café. Tudo parece normal e é difícil acreditar que se está sob a influência de uma droga”.(Freud apud Cesarotto, 1989. p 74).
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O autor segue falando dos efeitos da coca afirmando que logo após seu uso aparecem
os sintomas descritos como os maravilhosos efeitos estimulantes da droga. Nesse
período, duradouros trabalhos físicos podem ser desenvolvidos sem canseira, como se
as necessidades de descanso e alimento desaparecessem. É possível se alimentar
sem desagrado, em quantidade e sem repulsa, durante os efeitos, mas se tem a
sensação de que a comida se torna supérflua.
Da mesma forma, para dormir quando declinam os efeitos, é suficiente apenas se
deitar, mas também o sono pode ser omitido sem conseqüências desagradáveis. “Eu
mesmo experimentei, uma dúzia de vezes, a ausência da fome, do sono e da fadiga,
além da tendência ao trabalho intelectual, mas não tive a oportunidade de fazer esforço
físico”. (Freud apud Cesarotto, 1989. p 75).
Pelos relatos de muitas pessoas que experimentaram a substância, Freud crê estar ele
e outros autores certos em afirmar que os efeitos da coca são os mesmos para os
europeus e para os índios. Pois como estes, os europeus após utilizarem a coca
puderam executar uma jornada cansativa de trabalho sem se cansarem comendo
apenas as folhas de coca. Mantegazza, por exemplo, permaneceu por 40 horas sem
comer, como conseqüência de um chá de folhas.
Para Freud, os efeitos de uma dose moderada desaparecem gradativamente, pois
quando se trabalha de maneira intensa sob a influência da coca, três a quatro horas
mais tarde há um declínio da sensação de bem-estar e já é necessária uma nova dose
para afastar o cansaço. No entanto, os efeitos parecem durar mais quando não se
realiza nenhum exercício físico.
“No meu próprio caso notei que no dia seguinte minha condição correspondia a normal. Tendo a atribuir tal resultado a continuidade dos efeitos e ao aumento de energia residual.
Parece provável, segundo alguns relatórios que mencionarei mais tarde, que a coca, usada de forma prolongada e com moderação, não prejudica o organismo. Acho digno de menção, pois comprovei em mim mesmo e em outras pessoas sensíveis, que uma primeira ou segunda dose de coca não produz o desejo
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compulsivo de seguir usando o estimulante. Ao contrário, experimenta-se uma aversão injustificada. Talvez seja essa a causa porque a coca, apesar de algumas recomendações insistentes, ainda não tenha se estabelecido na Europa com maior firmeza “. (Freud apud Cesarotto, 1989. p 76).
No final desse capítulo, Freud conta um pouco sobre as experiências de altas
dosagens que Mantegazza conduz em si próprio. Sua sensação era de uma imensa
alegria acompanhada de um desejo de quietude, interrompido, porém, pela vontade
exigente de se movimentar. Ao aumentar a quantidade, percebeu um aumento de
temperatura e o pulso extremamente acelerado. Concluiu então que não seria possível
falar nem escrever nesse momento e começou a ter alucinações incômodas no início e
agradáveis posteriormente. O autor ainda destaca que o excesso da substância não
desencadeou em Mantegazza nenhum sinal de intoxicação nem de depressão, mesmo
quando fez uso de dois quilos de folhas.
Em conseqüência aos resultados das experiências das propriedades terapêuticas do
uso da coca por diversos médicos, Mantegazza organizou um quadro no qual reúne
todas essas propriedades. Estava claro, portanto, que era inevitável a utilização de
uma planta com tanta reputação nas diversas doenças e distúrbios do corpo humano.
Freud utilizou as recomendações desse quadro na tentativa de diferenciar as que eram
referidas ao tratamento de alguma doença e as decorrentes dos efeitos psicológicos do
estimulante descrevendo-as em “Usos terapêuticos da Coca”, o último capítulo do
artigo. Segundo ele, os últimos efeitos são mais reconhecidos nos Estados Unidos, do
que na Europa aonde são conhecidas apenas pelo nome. Acredita que esse fracasso
possa ter sido desencadeado pelas informações negativas que o continente recebia em
relação a sua relativa escassez, ao seu alto preço e à dúvida perante a qualidade do
preparado. São por ele descritas então as aplicações da cocaína do laboratório Merck
afirmando conter nessa substância e em seus sais, todas as propriedades essenciais
das folhas da coca.
A primeira dessas aplicações é a coca como estimulante. Nesse tópico o autor retoma
sua principal utilização a fim de aumentar a capacidade física especialmente em
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situações que impedem a obtenção de alimento e descanso. Indica que sua utilização
como estimulante seja conveniente em pequenas doses, podendo repetir o uso após o
fim de seus efeitos dizendo: “Ao que parece, a substância não se armazena no corpo”.
E completa:
“Por enquanto, é impossível avaliar até que ponto a cocaína aumenta os poderes mentais. Tenho a impressão de que seu uso prolongado pode levar a melhor desempenho permanente. O efeito instantâneo de uma dose nem se compara ao de uma injeção de morfina; entretanto, o uso constante produz menos danos ao corpo que no caso desta última”.(Freud apud Cesarotto, 1989. p 78).
Os índios sul-americanos acreditam que essa capacidade estimulante da coca também
funcione como afrodisíaco. Mantegazza concorda dizendo, que por muitas vezes, pôde
ser informado que seguindo com o uso da planta, conseguem manter um alto grau de
potência mesmo quando bastante idosos. “Ministrei a droga em várias pessoas, e três
delas disseram que a violenta excitação sexual que haviam experimentado só podia ser
atribuída a seu poder”.(Mantegazza apud Cesarotto, 1989. p 81).
Além de seu poder estimulante, Freud também destaca o importante papel de
anestésico que desempenha a coca em aplicações locais quando em contato com a
pele ou com as mucosas. Sugere um ocasional uso nas enfermidades da faringe e das
afecções das mucosas, entretanto deixa claro que essa sua capacidade anestesiante
pode ser eficaz em muitas outras aplicações.
Posteriormente o autor coloca em destaque a coca como eficaz na eliminação de
sintomas como asma e bronquite crônica. Através da mastigação de suas folhas pode-
se ser eliminado o chamado mal-das-montanhas que compreende os sintomas de
respiração ofegante, taquicardia, vertigem etc.
Há também a citação de que muitos psiquiatras acreditando exercer a coca um
importante papel na redução da excitação dos centros nervosos, receitavam a
substância para vários distúrbios como histeria, hipocondria, estupor e outros quadros
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similares. Por essa mesma hipótese acreditavam também no resultado positivo em
casos de caquexia, pois a cocaína poderia ter influência benigna na nutrição do corpo
com os tecidos degenerados.
Outra aplicação da coca, segundo Freud a mais antiga e ratificada por autoridades do
passado e da época, é descrita no segundo tópico, O uso da coca nas perturbações
digestivas. Nesse trecho, o autor afirma que sua utilização termina com os problemas
de perturbações nervosas do estômago alcançando em sua maioria a cura
permanente.
Ainda nesse capítulo, Freud apresenta-nos um tópico na qual fala sobre o uso da
cocaína no tratamento da adição ao álcool e à morfina. Acredito que esta seja uma das
mais importantes citações feitas no capítulo, pois creio que os relatos feitos sobre as
aplicações também influenciaram de maneira importante os pensamentos e estudos
desse autor com a droga.
Segundo ele, foi naquela época nos Estados Unidos que se descobriu que os
preparados com coca têm a propriedade de suprimir a necessidade de morfina nos
viciados, além de reduzir a proporções consideráveis os complicados colapsos que
ocorrem quando o paciente é afastado da droga. Nos estudos citados consta que foi
em 1878 administrado pelo Doutor Bentley que ocorreu o primeiro caso dessa
substituição e nos posteriores anos diversas publicações mostraram-se interessadas
por esse tratamento.
Nas publicações americanas são demonstrados dezesseis casos bem sucedidos e
apenas um fracasso. Tal resultado foi alcançado em sua maioria aumentando
gradualmente a cocaína à medida que se reduzia a morfina lentamente. A retirada
brusca da morfina também foi experimentada, em geral na Europa, com o processo de
administração da cocaína toda vez que reaparecia o anseio á primeira. Tal tentativa
requeria uma permanência do paciente num hospital, diferente da cura por substituição
na qual o próprio dependente tinha a possibilidade de fazê-la sozinho.
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“Numa ocasião, tive a chance de observar a cura de um homem submetido à retirada repentina da morfina, assistido com coca. Sua situação era suportável, sem sinais de depressão ou náuseas sob os efeitos da coca; os únicos sintomas que permaneciam com a abstinência eram tremedeiras e diarréia. O paciente não ficava de cama e levava uma vida normal. Durante o tratamento, consumia 0,3 gramas de cocainum muriaticum, que mais tarde também deixou”. (Freud apud Cesarotto, 1989. p 80).
Portanto, Freud acreditava nessa época que o tratamento da substituição da morfina
pela cocaína não resulta na simples troca de uma adição por outra, pois como o uso da
cocaína é apenas temporário, não converte o morfinômano em cocainômano. Comenta
que acredita que a cocaía tenha um efeito diretamente antagônico ao da morfina e não
seria o efeito estimulante da cocaína o que permitiria suportar a retirada da outra,
concordando com o Doutor Bentley.
A cocaína também foi utilizada nos Estados Unidos na tentativa de eliminar a
dependência do álcool em dependentes crônicos. Mas seus resultados não foram tão
satisfatórios como nas experiências de retirada da morfina, porém mesmo assim a
compulsão de beber pode ser minimizada.
VI - 2: “Contribuição ao Conhecimento Sobre o Efeito da Cocaína” (Janeiro de 1885)
Neste ensaio Freud se preocupou em escrever sobre os efeitos objetivos da droga, em
condições mensuráveis de energia muscular e de tempos de reação. Tentara provar
experimentalmente aqueles efeitos revigorantes da utilização da droga que sentia no
próprio corpo de maneira impressionante. Chamar a atenção dos médicos perante a
planta de coca e seu alcalóide, também era seu objetivo, chegando assim a publicar
uma revisão de toda a literatura que havia sobre o tema e suas próprias experiências
com a coca.
Após perceber que os efeitos subjetivos da droga são diferentes em cada pessoa,
alguns relatavam euforia e outros confusão, representando-se claramente intoxicados,
46
a tentativa de Freud foi investigar de forma objetiva e ao mesmo tempo, examinar e
medir de maneira quantitativa o efeito geral do alcalóide que provocava um estado de
contentamento aumentando a capacidade física e mental proporcionando maior
resistência.
Esperando que seu método revelasse uma maior severidade em seus resultados, como
meio para precisar a ação da coca de acordo com a variação das quantidades
ministradas, decidiu observar a motricidade de vários grupos de músculos e o tempo de
reação física utilizando o neuroamebímetro e o dinamômetro.
Após uma série de experimentos, Freud não considerou que a ação da cocaína seja
direta, sobre os músculos ou sobre a substância motora-nervosa, mas sim indireta
efetuada sob uma melhora no bem-estar-geral da pessoa.
“Muitas vezes observei que, sob a influência de cocaína, meus tempos de reação eram menores e mais uniformes do que antes de tomar a droga. Às vezes, porém numa disposição de ânimo mais alegre a ativa, minhas reações psíquicas eram igualmente boas. A alteração do tempo de reação é, portanto, uma característica da euforia da cocaína, a que também atribuo o aumento da força muscular”. (Freud apud Byck, 1989. p 113).
VI - 3: “Adendos a Sobre a Coca” (Fevereiro de 1885)
Em resposta a muitos pedidos de maiores informações que recebia desde a publicação
de “Sobre a Coca” em julho de 1884, Freud decide reeditar seu ensaio sob a forma de
um caderno em fevereiro de 1885. Nessa edição ele aproveita para corrigir alguns
erros de impressão e destacar alguns pontos importantes das observações sobre os
efeitos da cocaína que continuou a fazer em muitas pessoas.
Em resultado a novas descobertas, o autor acentua que tem observado a diversidade
das reações individuais ao uso da cocaína. Encontrou entre essas diferenças, sujeitos
47
que ao usar a coca, demonstravam sinais de euforia; outros que não experimentavam
nenhum efeito com doses altas (0,05-0,10 gramas) e outros ainda que reagiam a ela
com leves sintomas de intoxicação. Porém, por outro lado apareceu-lhe que havia um
sintoma que se mantinha constante em todos os sujeitos, o aumento da capacidade de
trabalho.
Freud então realizou um experimento planejando estudar o efeito da coca comparando
as variações de determinadas quantidades mensuráveis nos seres humanos. Inclinou-
se a investigar a força muscular do braço por meio de um dinamômetro e as reações
mentais conseqüentes utilizando um neuramebímetro. “Pude determinar em
experiências feitas comigo mesmo, após tomar 0,1 grama de cocainum muriaticum,
que a pressão que podia ser exercida por uma das mãos era aumentada em de 2-4 kg,
e que podia ser feita por duas mãos, em 4-6 kg”. (Freud apud Byck, 1989. p 117).
Partindo dessa investigação, o autor acredita ser importante destacar que os efeitos da
coca dependem das condições de cada indivíduo no momento da experiência. Ele
constatou que na maioria dos casos, a elevação da potência ocorre após quinze
minutos após a ingestão da droga e vai decrescendo, chegando a durar
aproximadamente quatro horas. Durante o processo, ocorre uma influência mais direta
da coca sobre os órgãos motores do que qualquer outra, o tão falado aumento na
disposição para o trabalho e do bem-estar geral do corpo. Essa observação pode ser
considerada uma confirmação dos escritos que relatam os efeitos da planta nos índios.
Dessa mesma forma também foi observada por Freud uma variação de tempo de
duração em relação às reações mentais. “No meu caso após tomar a coca, o tempo de
reação mental era o mesmo que quando estou com a melhor saúde, ainda que
anteriormente estivesse irregular e lento...” (Freud apud Byck, 1989. p 117).
Outra importante informação que Freud cita nesse capitulo é a descoberta recente, a
época, de Richter, que também admite a hipótese já citada sobre o antagonismo entre
os resultados da morfina e da cocaína, sobre a confirmação da utilidade da cocaína
nos casos de colapso provocado pela morfina. Afirma assim que apesar das
autoridades continuarem temendo o uso interno de cocaína, mesmo as injeções
48
subcutâneas são para ele inofensivas. Ainda afirma que em seres humanos a dosagem
tóxica é muito alta e não parece haver dose letal.
Apesar de uma maior aceitação da utilização da cocaína ter ocorrido após a sua
utilização por Koller como anestésico, os elevados preços ainda prevaleciam
fortalecendo um obstáculo para que as novas investigações sobre seu uso interno
acontecessem.
VI - 4: “Sobre o Efeito Geral da Cocaína” (Março de 1885)
Neste ensaio, lido para a Sociedade Psiquiátrica Vienense, Freud tenta despertar em
seus colegas o interesse para o uso interno da cocaína e sua conseqüente capacidade
de elevar o estado de bem estar geral. Relata suas próprias experiências como fez em
“Contribuições aos Efeitos da Cocaína” e defende que se experimente a coca em
estados psiquiátricos de nível reduzido, salientando que essa utilidade na clínica
psiquiátrica ainda precisa ser comprovada. O maior destaque para essa publicação é o
otimismo com que o autor encara a utilização da cocaína em tratamentos para a
privação da morfina e de outros vícios.
No início do seminário, Freud fala sobre o percurso da utilização da coca. Faz um
breve relato sobre a descoberta pelos nativos do efeito estimulante de suas folhas, do
conseqüente isolamento do novo alcalóide cocaína realizado por Niemann até chegar a
suas experiências realizadas em si próprio e em outras pessoas a fim de comprovar a
veracidade dos efeitos da cocaína de aumentar a capacidade de trabalho.
Na tentativa de incentivar o uso interno da droga, o autor descreve seus efeitos, nos
quais a utilização de pequenas, porém efetivas doses em pessoas que estavam com a
saúde boa, mas sem ter realizado nenhum esforço, raramente irão produzir resultados
exorbitantes. Essa situação é bem diferente quando o uso da coca é ministrado em
pessoas que se encontram debilitadas por cansaço ou fome. Nesse caso, pouco depois
de ingerir a droga, a pessoa atinge um bem estar sentindo-se recuperado tanto
49
fisicamente quanto mentalmente sem apresentar nenhum sinal de intoxicação. Mas um
dos efeitos que mais surpreende Freud é a ausência de sinais que demonstrem que a
droga esteja agindo no organismo de quem a consumiu. Pois depois que a diferença
entre o estado que a pessoa se encontrava antes do uso e a condição atual forem
esquecidas, torna-se difícil aceitar que está sob a influência da substância, estado esse
que pode durar por quatro ou cinco horas sem traços de depressão posteriores.
Freud faz então uma retomada aos escritos de “Sobre a Coca” para posteriormente
discutir os dois pontos que ele acredita ter um interesse psiquiátrico direto. Relembra
suas experiências que demonstraram ser os sintomas de ausência de fome e alta
disposição para o trabalho, num resultado subjetivo a cada pessoa, pontuando que
este último é o sintoma mais freqüente. Utiliza também em seus estudos com o
dinamômetro e o neuroamebímetro para medir o aumento da força muscular e o tempo
de reação sob o efeito da substância.
O primeiro ponto discutido por Freud julga que a prática da psiquiatria conta com
vários métodos que reduzem a superexcitação nervosa, mas não possui tantos para
estimular o sistema nervoso.
“Parece claro, então, segundo os efeitos antes descritos, a aplicação que pode ser dada em casos de doenças que acarretam debilidade e depressão, sem lesão orgânica. De fato, a partir de sua divulgação, a cocaína tem sido usada com sucesso em casos de histeria, hipocondria e até em pacientes melancólicos. De modo geral, deve-se admitir que a utilidade da cocaína no campo da psiquiatria ainda necessita comprovações, mas as possibilidades entrevistas justificam uma ampla investigação tão logo a droga, atualmente cara e, portanto, antieconômica, tenha um preço razoável”.(Freud apud Cesarotto, 1989. p 101).
Um outro uso, segundo o autor, que o psiquiatra pode lhe dar é utilizar a cocaína para
equilibrar os sintomas associados à abstinência da morfina durante os tratamentos
contra o morfinismo. A partir da descoberta dessa capacidade da cocaína nos Estados
Unidos, vários relatos foram escritos e o próprio Freud teve a oportunidade de
acompanhar alguns casos como citou em “Sobre a Coca”.
50
“De acordo com toda a informação que consegui coletar até este momento, só me resta recomendar, sem dúvida alguma injeções subcutâneas de 0,03 a 0,05 grama em tais curas, sem perigo de acumulação das doses. Em grande numero de casos vi como a cocaína eliminava os sintomas decorrentes do uso prolongado da morfina, sendo ao mesmo tempo um eficaz antídoto contra essa droga. Tais conclusões foram confirmadas pouco tempo atrás, por Richter, para além das reações individuais à substância”.(Freud apud Cesarotto, 1989. p 102).
VI - 5: “Ânsia e temor pela cocaína” (julho de 1887)
Neste ensaio podemos dizer que Freud defende a cocaína da acusação de ser
perigosa e formadora de hábito citando suas próprias experiências e a de outros
autores. Ele sustenta que o vício só ocorre quando os dependentes de morfina fazem
mal uso do tratamento durante as tentativas de retirada, mantendo a dependência
apenas trocando a morfina pela cocaína. Em todos os outros casos, afirma que a
cocaína não desenvolve hábito, podendo ser abandonada a qualquer momento e
quando utilizada por um tempo maior, pode provocar aversão em vez de ânsia.
De outra maneira, Freud considera que o uso geral da cocaína é limitado por sua
inconfiabilidade. Pois com exceção da sua condição anestésica, sua reação varia de
acordo com o estado individual de cada usuário.
Em seu artigo, o autor relembra que a utilidade da cocaína como anestésica
descoberta por Karl Koller obscureceu a possibilidade de ser utilizada no tratamento de
distúrbios internos e nervosos. Porém, em julho de 1884, o estudo do autor sobre sua
utilização no combate à morfina chegou ao conhecimento dos médicos. Mas,
Erlenmeyer em seu Centralblatt de 1885 se coloca contra qualquer possibilidade de
utilização eficaz da cocaína na retirada da morfina. Com base em uma série de testes,
caracterizou a droga como altamente perigosa devido seu efeito de enervação
vascular. Tais conclusões, para Freud, se apoiavam em um grave erro experimental, no
qual ao invés de administrar a dose recomendada por Freud de vários decigramas por
via oral, Enlernmeyer aplicou por via subcutânea, quantidades mínimas da droga
51
obtendo um efeito tóxico transitório que seria inócuo durante um vasto período se
tivesse sido usada como recomendada. “Na opinião dos autores que o rebateram,
minhas afirmações originais não haviam sido de forma alguma invalidadas. No entanto,
o valor da cocaína para viciados em morfina perdeu-se por outros motivos”.(Freud apud
Byck, 1989. p 169 e 170).
Os pacientes passaram a utilizar a cocaína da mesma forma que utilizavam a morfina,
agarrando-se a ela e se viciando da mesma forma. A droga passou a substituir a
morfina, mas de maneira insatisfatória, já que sua tolerância era facilmente alcançada
no consumo subcutânneo de alta dose de um grama por dia. Mas Freud enfatizava,
que como já havia sido verificado, essa forma de utilização da cocaína representava
um inimigo muito mais forte e perigoso para a saúde do que a morfina dizendo:
“Em vez de um lento marasmo temos uma rápida deterioração física e moral, estados alucinatórios de agitação semelhantes ao delirium tremens, mania crônica de perseguição, caracterizada segundo a minha experiência, pela alucinação com pequenos animais que se movem sobre a pele, e o vício da cocaína no lugar do vício da morfina”.(Freud apud Byck, 1989. p 170).
Nessa mesma época em que Enlernmeyer dispunha-se levar adiante sua luta contra a
cocaína, segundo ele o “terceiro flagelo da humanidade” pior que os dois primeiros, o
álcool e a morfina, foram sendo conhecidos os primeiros relatos de especialistas em
olhos e garganta sobre os efeitos tóxicos da droga. O que lhe conferiu uma reputação
altamente perigosa, cujo uso prolongado produz um hábito ou condição semelhante ao
morfinismo. “Encontro essa advertência na mais recente publicação sobre a cocaína(
de O. Chiari, em Wochenschrift, no. 8)”. (Freud apud Byck, 1989. p 170).
E mais:
“Creio que isso já foi demasiado longe. Não posso resistir a fazer um comentário que me vem à mente e que irá extinguir o horror do assim chamado ‘terceiro flagelo da humanidade’, como Erlenmeyer tão pateticamente rotula a cocaína. Todos os relatos sobre o vício em cocaína e a deterioração dele resultante se referem a viciados em morfina, pessoas que já, sob o domínio de um demônio, tem tão pouca força de vontade, são tão suscetíveis,
52
que usariam mal, e de fato têm usado, qualquer estimulante que lhes ofereça. A cocaína não reivindicou ninguém mais, nenhuma vitima por sua própria conta. Tenho tido larga experiência com a utilização regular da cocaína, durante longos períodos, por pessoas que não eram viciadas em morfina, e eu mesmo venho tomando a droga há alguns meses, sem perceber ou experimentar qualquer condição semelhante ao morfinismo, ou qualquer desejo de uso contínuo da cocaína. Ao contrário, ocorreu, com freqüência maior do que eu desejaria, uma aversão a droga, que foi motivo suficiente para abreviar sua utilização.”(Freud apud Byck, 1989. p 170).
Freud comenta que o envenenamento agudo causado pela cocaína no uso ciruegico,
que tem sido observado por médicos de olhos e garganta, dificilmente pode ser
atribuído às mínimas doses do alcalóide utilizadas, pois até certo ponto, esse estado é
comum a um estado pós-cirúrgico, sobretudo em partes sensíveis do corpo. Além
disso, outro conjunto de observações deve ser caracterizado inequivocamente como
envenenamento, devido à semelhança com sintomas que aparecem após utilização de
doses excessivas da droga como delírio, fraqueza, insônia e etc. Tais estados, às
vezes são resultantes de sua reabsorção pelas mucosas da cabeça e em maior
número das injeções subcutâneas de cocaína. Mas por elas serem de rara ocorrência e
em nenhum caso ter desencadeado risco de vida, parece ser esse um bom motivo
segundo Freud para que os médicos acreditem que a possibilidade dos efeitos tóxicos
não exclui o uso da droga para se alcançar um objetivo terapêutico.
O autor acentua ainda a importância de que a utilização de doses pequenas do
alcalóide também tem como conseqüência uma certa toxidade. Assim a sensibilidade
de alguns indivíduos tem sido classificada como idiossincrasia. “Creio que este único
fator de fabilidade da cocaína - isto é, não se saber quando irá surgir um efeito tóxico -
está muito intimamente ligado ao outro, que deve ser atribuído à própria droga: não se
identificar quando e com quem se deve esperar uma reação geral”.(Freud apud Byck,
1989. p 172).
Freud diz que para facilitar o entendimento dessa peculiaridade é preciso saber que
existem diversas afirmações retumbantes e contraditórias de vários pesquisadores
sobre a ação da droga, mas em todas essas o conhecimento comum destacado é que
53
a utilização da cocaína produz um efeito óbvio nos vasos sanguíneos. Este efeito,
porém, varia conforme a concentração, o método de aplicação e a disposição do
paciente no momento. Desse modo, sendo o efeito geral da droga criado pela
influência sobre a circulação cerebral, Freud afirma que ela será ineficaz quando o
tônus estiver estável, e diante de uma alteração rápida, produzirá efeito tóxico.
“Suspeito que a razão da irregularidade do efeito da cocaína reside nas variações individuais de excitabilidade e na variação do estado dos nervos vasomotores sobre os quais a cocaína atua. Visto que se tem dado pouca atenção a esse fator da predisposição individual, e que, em geral, não se pode conhecer o grau de excitabilidade, julgo aconselhável abandonar até onde for possível á injeção subcutânea de cocaína no tratamento de distúrbios internos e nervosos”. (Freud apud Byck, 1989. p 172).
O autor faz então um resumo do relato feito por W. Hammond em 2 de novembro de
1886 na Sociedade Neurológica de Nova York sobre a cocaína. Segundo tal exposição,
ele realizou experimentos com ele próprio e com outras pessoas com vinho de coca
preparado e conseguiu observar efeitos que não poderia atribuir apenas ao efeito do
vinho, como a diminuição da irritação espinhal. Quando se habituou a tomá-lo
diariamente após o trabalho, sentiu-se satisfeito a cada dia sem qualquer quadro de
depressão.
Ao utilizar o preparado em casos de dispepsia observou um efeito calmante
surpreendente e constatou que nesses casos de sensibilidade estomacal eram
aliviados os sintomas após algumas horas de tratamento. Experimentou também as
injeções de cocaína em si mesmo na tentativa de provar a veracidade dos relatos
recentes publicados fazendo uma abreviada descrição de seu efeito tóxico leve. No
entanto, não se tornou um viciado, sendo capaz de abandonar a droga quando
desejasse. Dessa mesma maneira também responderam duas pessoas que ao usar a
droga durante três meses aproximadamente, no auxilio no tratamento da doença de
Graves e no vício da morfina, conseguiram interromper seu uso sem alguma
dificuldade. Cita também bons resultados em três casos de melancolia com mutismo,
54
nos quais a partir do uso das injeções subcutâneas, o Doutor Hammond conseguiu
fazer com que elas voltassem a falar. Dessa forma ele compara ainda o hábito da
droga com o do café ou do chá, diferenciando-o totalmente do vício da morfina:
“Ele não acredita que exista registro de um único caso comprovado de vício de cocaína (exceto entre viciados em morfina), quer dizer, do tipo em que o paciente seria incapaz de interromper o uso da droga quando quisesse. Com o uso contínuo em prolongado da cocaína, pode-se, porém, prever danos ao coração e a outros órgãos”. (Byck, 1989. p 173).
55
VII – DISCUSSÃO
No artigo, “Ânsia e Temor pela Cocaína”, podemos perceber que Freud admitiu duas
maneiras de se defender diante das acusações da cocaína ser perigosa e formadora
de hábito. A primeira era que, exceto em casos em que a pessoa já tinha demonstrado
um quadro de vício à morfina, nenhum caso de adição à cocaína era até então
conhecido, insinuando assim que ninguém seria então vítima da droga. Ele estava
absolutamente certo em dizer que qualquer formação de hábito não era, como se
hipotetizava geralmente, resultado direto da absorção da cocaína como uma droga
nociva, destacando que para isso, se deveria anteriormente estudar a peculiaridade de
cada pessoa que a utilizava. Mas, apesar de estar certo sobre o que afirmava, na
época seu argumento não era nada convincente.
A segunda maneira se mostrava um pouco mais incerta, pois Freud atribuía à
permeabilidade dos vasos sanguíneos cerebrais o fator de variação dos efeitos incertos
da cocaína sobre diferentes pacientes. Afirmava que, quando a pressão dos vasos era
estável, a cocaína não tinha efeito; em outros casos ela provocava congestão
sanguínea favorável, e, em outros ainda, um efeito tóxico. Portanto, a partir da
incerteza da possibilidade de prever de antemão quais seriam os resultados obtidos
com o uso da substância, Freud afirmou em 1887, que era obrigação de todos abster a
administração das injeções subcutâneas de cocaína em quaisquer doenças, tanto
externas quanto nervosas. Dessa forma, ele tentava desviar da cocaína a marca de ser
uma droga perigosa, recorrendo ao preconceito geral de ver nas injeções hipodérmicas
o risco verdadeiro dos efeitos tóxicos.
Dois meses depois que a droga foi oferecida a Fleischl (maio de 1884), Freud ainda
não tinha nenhuma informação sobre os efeitos tóxicos da droga e muito menos que
tais efeitos se potencializavam quando usados sob a forma de injeções subcutâneas.
Isso fazia com que ele defendesse sua utilização da substancia acreditando não ser
nociva ao ser humano. Essa sua crença é demonstrada claramente em seu artigo
“Sobre a Coca” que acabava de ser escrito. Em um trecho ele diz: “Parece provável,
56
segundo alguns relatórios que mencionarei mais tarde, que a coca, usada de forma
prolongada e com moderação, não prejudica o organismo...”. (Freud apud Cesarotto,
1989. p 76).
Eram esses, os momentos iniciais de Freud, também documentados em “Sobre a
Coca” que se referiam a sua tentativa de utilizar a coca no tratamento da adição à
morfina. Para ele, a droga tinha a capacidade de eliminar a necessidade de consumir a
morfina nos viciados e de reduzir os colapsos ocorridos com os pacientes que foram
afastados da mesma. Após comprovar ele mesmo que o alcalóide chamado cocaína
desenvolvido com as folhas de coca pela fabricante Merck tinha as mesmas
propriedades anestésicas e euforizantes das folhas, Freud passou a utilizá-la de uma
maneira entusiasmada. Por vezes demonstrava estar fascinado diante de seus
poderosos efeitos: “Numa ocasião, tive a chance de observar a cura de um homem
submetido à retirada repentina da morfina, assistido com coca...”. (Freud apud
Cesarotto, 1989. p 80).
Nessa época, portanto, ele acreditava que o tratamento da substituição da morfina pela
cocaína, não era resultado de uma simples troca de uma adição pela outra, pois como
o uso da cocaína seria apenas temporário, não seria capaz de converter o
morfinômano em cocainômano. Sustenta ainda essa convicção em fevereiro de 1885,
quando em “Adendos de Sobre a Coca”, escreve que apesar das autoridades
continuarem temendo o uso interno de cocaína, mesmo as injeções subcutâneas
continuam sendo para ele inofensivas.
Mas, é no mês seguinte que Freud realmente expõe para a “Sociedade Psiquiátrica
Vienense” o seu interesse no uso interno da cocaína e sua conseqüente capacidade de
elevar o estado de bem estar geral. Tenta dessa forma despertar tal interesse também
em seus colegas médicos, principalmente no tratamento do morfinismo, afirmando:
“De acordo com toda a informação que consegui coletar até o momento, só me resta recomendar, sem dúvida alguma injeções subcutâneas de 0,03 a 0,05 grama em tais curas, sem perigo de acumulação das doses. Em grande número de casos vi como a cocaína eliminava os sintomas decorrentes do uso prolongado da
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morfina, sendo ao mesmo tempo um eficaz antídoto contra essa droga”. (Freud apud Cesarotto, 1989. p 102).
Mas, após Fleischl receber a indicação de utilizar a cocaína para livrar-se do vício da
morfina passando rapidamente a utilizá-la sob a forma dessas injeções, Freud afirma
anos depois, que nunca isso fora de sua vontade, que apenas tinha recomendado a
administração oral da cocaína (Byck, 1989. p 195). Essa é uma questão complicada,
pois Freud realmente tinha indicado que o amigo utilizasse a droga por via oral, mas
pouco tempo depois ele realmente passou a usá-la sob a forma das injeções por conta
própria. É claro que Freud ficou sabendo dessa sua nova maneira de usar a cocaína,
mas na época não fizera nenhuma objeção sobre isso. “Eu o havia aconselhado a só
usar a droga internamente [isto é, por via oral], enquanto a morfina era retirada; mas
ele de imediato se aplicara injeções de cocaína”. (Freud, 1900/1996. p 130).
Freud também se defende das acusações feitas por Erlenmeyer em seu Centralblatt de
1885. Este afirmava que a partir de uma série de testes, a droga tinha sido
caracterizada como altamente perigosa na retirada da morfina. Porém, Freud se
defendia dizendo que tais conclusões se apoiavam num erro experimental, já que ao
invés de Erlenmeyer administrar as doses recomendadas por Freud por via oral, o fez
por via subcutânea obtendo um efeito tóxico transitório. “Na opinião dos autores que o
rebateram, minhas afirmações não haviam sido de forma alguma invalidadas. No
entanto, o valor da cocaína para viciados se perdeu por outros motivos”. (Freud apud
Byck, 1989. p 170).
Segundo Freud, na tentativa de se livrar do vício da morfina, acreditando que a cocaína
pudesse substituí-la sem causar a dependência, os seus usuários não conseguiram
seguir as recomendações médicas passando a utilizar a cocaína intensamente como
faziam com a primeira droga. Essa substituição acontecia de maneira insatisfatória,
pois diferente do uso oral, a tolerância da cocaína era facilmente alcançada no
consumo subcutâneo.
Entendo que, da forma com que Freud recomendava a cocaína, por via oral, seus
efeitos colaterais e seu grau de dependência eram menos prováveis e menos intensos
58
do que a administração por via subcutânea. A via oral de administração é considerada
pelos especialistas mais segura, mais conveniente e menos dispendiosa e é por esses
motivos, que a maior parte das medicações é normalmente administrada por esta via.
Além disso, as medicações orais são algumas vezes prescritas em doses maiores do
que as injetáveis, porque após absorção através do trato gastrintestinal, elas são
imediatamente metabolizadas no fígado antes de atingir a circulação sistêmica,
diminuindo assim efeitos adversos.
Dessa maneira, podemos perceber que os efeitos causados pela droga injetada são
sentidos pelo usuário de uma forma muito mais rápida e intensa do que quando
utilizada por via oral. E, considerando que o tempo em que a cocaína fica agindo no
organismo ser julgado baixo quando se utiliza as injeções, podemos dizer que é muito
mais provável que uma pessoa que usou cocaína sob a forma subcutânea, tenha
vontade de usá-la novamente antes que uma outra pessoa que a tenha administrado
por via oral. Portanto, devido à necessidade de ser utilizada em maior quantidade na
forma de injeções, gerando uma concentração excessiva, essa via de utilização da
droga possibilita uma maior probabilidade de toxidade e dependência. Acredito que
seja por essas questões que Freud tenha culpado as injeções como sendo o risco da
utilização da cocaína.
Novamente em julho de 1887, Freud tenta defender a cocaína da acusação de ser
perigosa e formadora de hábito, passando a considerar significativo para argumentar
sua defesa, um dado que até o momento era colocado à margem de suas conclusões.
Constatou em “Contribuição ao Conhecimento Sobre o Efeito da Cocaína”, que os
efeitos subjetivos da droga são diferentes para cada usuários e que, sendo assim, não
é possível prever com antecedência, quais serão as pessoas que sob o efeito da
cocaína reagirão com euforia, com confusão e as que se encontrarão claramente
intoxicadas. Mas é apenas em 1887, que ele passa a dar importância a essa
informação. Considera agora que as diferentes reações dos efeitos da cocaína em
cada pessoa demonstram que essa substância não pode ser utilizada com a mesma
confiança de antes já que não se pode prever em que casos ela vai despertar quadros
59
de toxidade ou de uma mera confusão. Diante disso, Freud chega a recomendar a
suspensão da administração da cocaína por via das injeções:
“... Visto que se tem dado pouca atenção a esse fator de predisposição individual, e que, em geral, não se pode conhecer o grau de excitabilidade, julgo aconselhável abandonar até onde for possível a injeção subcutânea de cocaína no tratamento de distúrbios internos e nervosos”. (Freud apud Byck, 1989. p 172).
Nas referências feitas a seus escritos anteriores no artigo de 1887, “Ânsia e Temor pela
Cocaína”, na qual Freud dava a entender que a agulha seria fonte do risco do uso da
cocaína, ele faz omissão a qualquer referência ao artigo de 1885, “Sobre o Efeito Geral
da Cocaína”, no qual defendia com muito otimismo as injeções. Esse ensaio tampouco
consta na lista de seus escritos de 1897, preparado por ele ao solicitar o titulo de
Professor. Parece ter sido eliminado, na tentativa de minimizar o assunto da cocaína,
pois nenhuma cópia foi encontrada na coleção na qual ele guardava suas publicações.
(Byck, 1989).
Sua intenção em tentar subestimar o assunto, aparece novamente em 15 de agosto de
1924. No trecho a seguir, Freud se queixa da maneira com que seu biógrafo, Wittels,
relata seus experimentos de 1884 com a cocaína:
“(...) Daí resultam certas omissões que deturpam os fatos, levam a erros indiscutíveis, e assim por diante. Haja visto o episódio da cocaína, ao qual, por motivos que ignoro, você concedeu tão grande importância. Toda a analogia feita com a descoberta de Brücke em relação ao olho cai por terra se tomarmos em consideração circunstancias que você desconhecia, ou seja, que pressenti a utilidade da cocaína para o olho, embora, por motivos particulares(necessidade de viajar), tenha sido forçado a abandonar os trabalhos, encarregado meu amigo Köningstein de testar o produto. Ao regressar, percebi que não se saíra bem na tarefa e, conseqüentemente, abandonara o projeto, o que fez com que outro investigador, Koller, se tenha tornado o autor da descoberta”. (Freud, apud Scheidt, 1975. p 19).
Vê-se assim que ainda em 1924 aqueles acontecimentos de quarenta anos atrás ainda
lhe pareciam muito desagradáveis, e suas antigas queixas em relação à noiva
assumem agora a formulação “necessidade de viajar”. Já que Freud por várias vezes
60
demonstrou em cartas à Martha seu descontentamento por não ter recebido o mérito
da descoberta do efeito anestésico da cocaína, chegando até mesmo a censurá-la. Em
uma dessas cartas data de 10 de outubro de 1884, já citada na introdução desse
trabalho, ele mostra esse sentimento:
”Se ao menos, em vez de aconselhar Königstein a realizar as experiências do olho, tivesse acreditado mais nelas e não me esquivado ao trabalho de realizá-las, não teria deixado escapar o fato fundamental (a anestesia) como fez Köniugstein. Mas com tanto descrédito acabei perdendo o rumo”. (Freud apud Byck, 1989. p 51).
Em um trecho de sua Autobiografia (1924), Freud insinua que o que o atrapalhou em
continuar tais estudos, foi de fato sua noiva: “No meio dessa tarefa surgiu à
oportunidade de uma viajem para a cidade onde residia minha noiva, a quem não via já
havia dois anos”. (Freud apud Cesarotto, 1989. p 42). Na verdade, para muitos autores,
Freud vira Martha pela última vez há menos de dois anos antes e a viagem não fora tão
repentina assim. Königstein por sua vez seguiu sua sugestão, mas não foi bem-
sucedido por utilizar uma solução comercializada, fornecida por um farmacêutico, que
talvez tivesse álcool em demasia. Já a tentativa de Koller alcançou êxito, pois ele
próprio fez sua mistura, dando logo a conhecer seu achado, sob a forma de uma
“Comunicação Preliminar” onde demonstrava as aplicações práticas da cocaína.
Mas, é em outro trecho ainda de sua Autobiografia que Freud explicita claramente seu
sentimento: ”É o momento de lhes contar que coube à minha noiva a culpa de eu não
me ter tornado famoso naqueles anos juvenis”. (Freud apud Scheidt, 1975. p 20). É
verdade que Freud esperava alcançar certa fama com seu estudo sobre a cocaína,
mas não podia saber que uma fama muito maior do que a que havia imaginado estava
ao alcance daquele que a empregasse de uma certa maneira. Quando percebeu isso, o
que demorou acontecer, ele se culpou, mas também acusou a noiva.
É permitido supor que esse ataque contra a noiva tenha sido um pretexto para
esconder um conflito que, entre outros aspectos, tinha muito a ver com a cocaína e
seus efeitos, já que não condiz exatamente com os fatos. Como afirmava Jones (1989)
61
essa era uma desculpa nem um pouco convincente que deveria estar encobrindo um
motivo mais profundo obscuro. Para começar, a separação de Martha e Freud não
durara dois anos como ele afirma, e sim apenas um3. O ensaio sobre a cocaína estava
concluído em 18 de junho de 18844 e Martha havia partido de Viena para Wandsbek
somente em 14 de junho de 18835. Dessa forma, não houve qualquer possibilidade de
última hora de poder visitá-la, além de que já planejara fazer isso nas férias do mês
seguinte.
Dessa forma, podemos concordar com Cesarotto (1989), quando ele diz que além da
história oficial, que nos aparece como uma mentira, há a história sobre a qual somente
Freud saberia dizer a verdade dos fatos. A “história da vergonha” como disse Balzac
(1970), que se diferenciaria bastante como vimos, da Autobiografia que apenas
compreende uma desculpa de quarenta anos depois. Há, portanto uma correlação
entre o fato de Freud desviar sua responsabilidade para a noiva e a sua atitude de
omitir “Sobre a Coca” em seus escritos de 1897.
Essa maneira talentosa de responsabilizar os outros pelo seu próprio fracasso em ir
adiante, segundo Gay (1989), é rara em Freud. Mas isso nos ajuda a pensar que a
cocaína, mesmo já ocupando um lugar relativamente distante na seqüência de fatos da
vida de Freud, ainda representava para ele um significado incômodo.
Em A interpretação dos Sonhos, também há algumas demonstrações de que o tema da
cocaína estava presente nas lembranças de Freud de uma maneira inoportuna. Wittels,
um de seus biógrafos, notou que Freud fazia referência a sua recomendação da
cocaína como sendo do ano de 1885, sendo que na realidade isso tinha ocorrido um
ano antes, em 1884. Segundo Wittels, Freud ignorava tanto esse lapso que chegou a
perguntar a ele, em que lugar tinha escrito 1885, acrescentando: “Desconfio de um
engano de sua parte” (Byck, 1989. p 195 apud carta a Fritz Wittels, 18 dez. de 1923).
Mas o próprio Wittels não percebeu nenhum significado nessa confusão de Freud,
3 Em carta a Wittels, Freud chegou mesmo a dizer “vários anos”. Assim, numa perspectiva, bem como na ocasião, a espera parecera terrivelmente longa.(Byck, 1989. p 52). 4 Carta de Freud a Martha Bernays, datada de 19 de junho de 1884. (Byck, 1989. p 52). 5 Carta não publicada de Freud a Martha Bernays, de 12 de junho de 1885.(Byck, 1989. p 52).
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quem o fez foi Bernfeld. Ele notou que teria sido em 1884 que Freud realmente tinha
recomendado a administração da cocaína, e que foi em 1885 que ele recomendara o
uso das temidas injeções subcutâneas. (Byck, 1989. p 195).
Essa confusão de Freud diante de tais datas relacionadas ao tema da cocaína
demonstra uma certa culpa por parte do autor em relação ao método de utilização da
droga por via hipodérmica. Por várias vezes também, em alguns sonhos de Freud,
como o “Sonho da Injeção de Irma“ e o ”Sonho da Monografia de Botânica“, aparecem
trechos que demonstram que suas lembranças ligadas às experiências que tivera com
a cocaína eram de certa forma culpadas. Apesar desses sonhos terem ocorrido anos
depois de seus estudos, eles evidenciam que Freud ainda usava a droga até 1895,
pelo menos, ano do primeiro sonho. Em um dos trechos do Sonho da Injeção de Irma:
”O que vi em sua garganta: uma placa branca e os ossos turbinados recobertos de
crostas” (Freud, 1900. p 126), Freud o interpreta dizendo que os ossos turbinados
fizeram com que ele recordasse uma preocupação com seu próprio estado de saúde.
Pois nessa época, julho de 1895, ele vinha usando cocaína para diminuir as incômodas
inchações nasais.
A culpa sentida por Freud pela indicação da cocaína ao amigo Fleischl também
aparece em outros trechos do sonho, evidenciando que esse tema dominava a maior
parte de seus pensamentos ainda nessa época. Em um fragmento da interpretação
desse sonho destaca: “O uso indevido dessa droga havia apressado a morte de um
grande amigo meu. (...)”. (Freud, 1900/1996. p 126), e mais: “Quando ele não estava se
sentindo bem, meu amigo Otto lhe aplicara uma injeção”. (Freud 1900/1996. p 129).
Apesar dessas interpretações demonstrarem que ele sentia-se realmente culpado por
tais acontecimentos, por outro lado, ele tentava se defender afirmando que nunca tinha
considerado a idéia de que a droga fosse ministrada por injeções, como fez Fleischl. E
comenta: “Injeções como essas não deveriam ser aplicadas de forma tão impensada”
(Freud, 1900/1996. p 131).
Novamente as lembranças incômodas relacionadas à cocaína, aparecem em março de
1898, no “Sonho da Monografia de Botânica”. Ao interpretá-lo, Freud se lembra de
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alguns acontecimentos que envolviam a substância; principalmente que realmente
tinha escrito uma dissertação sobre a planta da coca, a qual atraíra a atenção de Carl
Koller para suas propriedades anestésicas. Fato que também remeteu suas
lembranças ao fato desconfortável de não ter sido ele quem teria ganhado o mérito da
anestesia local.
Este personagem do sonho de Freud representava para ele um certo incômodo. Pois
como o autor mesmo previa, apesar de ter Koller viajado para Nova York e obtido uma
carreira privilegiada, já no início de seu sucesso, cometeu um erro que indicava
defeitos em seu caráter que foram se manifestando conforme os anos seguintes. Ao
publicar o trabalho que lera em outubro de 1884 em Viena, deixa clara a impressão de
que este fora simultâneo ao trabalho de Freud e não posterior, pois ao invés de citar a
monografia de Freud com a data de julho, o faz datada em agosto. Tal erro foi
percebido mais tarde por Freud e corrigido nas edições posteriores, mas Koller
continuava afirmando essas discrepâncias chegando até mesmo a citar que a
monografia de Freud fora publicada um ano após sua própria descoberta, deixando
claro que o que fizera até então não tinha ligação nenhuma com as descobertas de
Freud em relação à utilização da cocaína. Para Byck (1989), esse curioso
comportamento de Koller está correlacionado ao fato de que na época, Freud tratava
seu distúrbio neurótico em particular no hospital, e que isso possa ter desencadeado
“transferências negativas” duradouras.
O que chama atenção no período em que Freud se dedica à cocaína é sua maneira
característica e absolutamente rara de trabalhar. Geralmente em um trabalho científico,
costumam ser rejeitadas as observações isoladas quando essas não aparentam
estabelecer ligações com outros dados ou com o conhecimento geral já conhecido.
Mas Freud tinha um respeito absoluto por um único fato e não conseguia parar de
pensar sobre ele até que conseguisse encontrar uma explicação. Quando ele captava
algo simples, mas com certo grau de significância, sentia que era um exemplo de algo
universal, e a idéia de reunir estatísticas sobre o assunto lhe era inteiramente estranho.
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Porém, essa característica que representava tanto a grande força de Freud, em alguns
momentos podia também ser sua grande fraqueza. Isso acontece quando falta uma
decisão crítica para saber se um fato singular é verdadeiramente importante ou não,
podendo ocorrer devido à influência de algum outro pensamento que se associa ao
tema inicial. No caso de Freud, sua ligação com a cocaína representa claramente que
passava por alguns momentos de êxito e outros tantos de decepção. Era isso que o
fazia se dedicar tanto. Sua curiosidade era estimulada à medida que suas descobertas
iam se concretizando. Ficou perplexo quando descobriu que em algumas pessoas,
como em si próprio, a cocaína tinha o efeito de liberar a plena vitalidade normal do
paciente paralisando o elemento perturbador; e que em outras ela era capaz de levar a
pessoa ao vício e a um posterior quadro de intoxicação. Estava certo Freud, em
acreditar que essas últimas pessoas tinham dentro de si mesmas um elemento
enfermo de que ele estava isento, mas muitos anos se passariam antes que ele
conseguisse definir a verdade. Por outro lado, quando observou isoladamente o vício
em cocaína de Fleischl, associou-o de maneira equivocada ao fato não importante de
que ele a administrava sob a forma de injeções. O que não fez de início quando ele
próprio recomendava seu uso. Porém, mais tarde, quando apareceram as tristes
conseqüências da utilização da droga, sua reação de autocensura e sentimento de
culpa se dirigiram para o foco da terrível agulha e sua recomendação desta precisava
ser então apagada.
Em 1924, quarenta anos após suas primeiras experiências entusiasmadas e seu
conseqüente arrependimento diante do tema da cocaína, Freud descreve em uma carta
a Wittels, seu mais sincero sentimento diante das muitas decepções: “sei muito bem
como isso aconteceu, o estudo sobre a coca era um allotrion que eu estava impaciente
por terminar”. A palavra allotrion com sua conotação punitiva era muito conhecida por
Freud devido o uso que seus professores faziam dela para indicar qualquer coisa como
um passatempo favorito que tirasse a atenção devida ao cumprimento sério de uma
obrigação.
Decepcionado com os efeitos curativos da cocaína; sentindo-se culpado por ter
indicado tal substância ao amigo Fleischl, levando-o a morte e por estar sendo
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responsabilizado pela disseminação dos efeitos tóxicos nas pessoas do mundo todo
que a utilizavam inicialmente a partir de suas recomendações, Freud demonstrava
agora ter perdido todo o interesse que tinha por esse assunto. Tudo que ele mais
desejava, passados esses momentos, era esquecer que um dia ele tivesse
estabelecido alguma relação com o estudo da cocaína, tentando de qualquer maneira
apagar essas lembranças ruins de sua vida.
Nesse período, Freud somente conseguia fazer referência aos momentos em que se
dedicou aos trabalhos com a cocaína, como um episódio muito ruim, que o levara a
caminhos equivocados, o qual pretendia bravamente esquecer. Mas alguns autores
afirmam que esse período da vida de Freud representou no mundo todo um papel de
destaque extremamente importante para que ele tenha alcançado o estudo dos sonhos
e desenvolvido posteriormente a psicanálise.
Mas para chegar até esse ponto, devemos dar atenção à compostura com que Freud
usava a cocaína, conseguindo dosar o seu consumo por todo o período em que se
dedicou á ela. O que seus comentadores, Cesarotto, Byck e Scheidt mais citam, são as
formas com que ele utilizava a cocaína e não sua dosagem nem a freqüência desse
uso. Por isso, não sabemos exatamente a quantidade que Freud consumia da droga e
nem em que momentos o fazia. Mas, é através desses mesmos autores, que podemos
ter a certeza de que ele não era um viciado. Em seu primeiro artigo “Sobre a Coca”,
ele comenta: “... Acho digno de menção, pois comprovei em mim mesmo e em outras
pessoas sensíveis, que uma primeira ou segunda dose de coca não produz o desejo
compulsivo de seguir usando o estimulante. Ao contrário, experimenta-se uma aversão
injustificada”. (Freud apud Cesarotto, 1989. p 76).
Comentam ainda que Freud não teve alucinações quando se administrava cocaína
como as que são experimentadas durante um momento extasiante por outros usuários.
Acreditam que isso só tenha ocorrido devido a esse seu cuidado perante a quantidade
que usava, afinal considerava a cocaína um medicamento e não uma substância usada
para alcançar uma euforia qualquer.
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Creio assim, que tal prudência não decorreu apenas de uma defesa (sua consciência
por ser naquela época um produto caro), mas que possa também ser atribuída ao
excepcional vigor de seu ego contra a força destruidora da cocaína. Todos as
descrições dos momentos vividos por Freud relacionados à cocaína trazidos nesse
trabalho, nos levam a crer que nunca um efeito tão forte tenha sido capaz de alterar as
funções de seu ego já que ele se manteve, ao que tudo indica, consciente e livre dos
efeitos tóxicos de dependência o tempo todo em que usou a substância.
Embora ao que tudo indica, durante os momentos em que Freud esteve orgulhoso
pela cocaína ele não tenha experimentado alucinações oníricas, segundo Scheidt
(1975), pode-se bem imaginar que aqueles estados de euforia causados pelo consumo
da cocaína nos anos 80 do século retrasado tenham sido um dos fatores que o
impulsionou a realizar a tarefa de penetrar no inconsciente se aproximando do mundo
dos sonhos e preparando, assim, o seu posterior acesso a ele. O autor faz essa
relação, pois acredita que as drogas que desencadeiam efeitos euforizantes, como a
cocaína, alteram ou até mesmo prejudicam as funções do ego e influenciam o
superego neutralizando e estimulando de certa forma o id de quem a utiliza. Scheidt
concede à utilização da cocaína, uma importância considerável diante do estudo dos
sonhos e o conseqüente início da psicanálise. Nessa linha de pensamento, afirma que
em conseqüência das perturbações da relação entre o sujeito e seu ambiente
causadas pelo uso da droga, o pensamento racional vai recuando para dar lugar aos
impulsos instintivos e aos fenômenos emocionais. Acredita assim, que exista uma
relação significativa entre o estado de euforia e o mundo dos sonhos. A droga traz uma
cisão entre esses dois estados tornando a pessoa apta a agir a partir de suas
impressões ilusórias, enquanto que o sonho é mantido inacessível ao ego do sonhador.
Situando assim a pessoa que vivencia a substância entre os dois mundos, o do sonho
e o da realidade.
Mas, como vimos no capítulo III, não é somente Scheidt quem afirma que o
inebriamento da cocaína atua como estimulante da produção onírica. Charles Fischer e
Thomas de Quincey também acreditam nessa afirmação e a demonstram em suas
pesquisas. O primeiro destaca que o fator REM do sonho pode aumentar em até 40%
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sob o efeito de várias drogas. Já Quincey enfatiza a atuação do ópio na intensificação
do colorido de seus sonhos.
Scheidt acredita ainda, que a definitiva elaboração psíquica dos momentos em que
Freud esteve relacionado ao tema da cocaína, só foi alcançada depois que ele pôde
sublimá-los através da ocupação com os sonhos e a auto-análise. Frustrado por suas
experiências com a cocaína terem-no dirigido a caminhos equivocados, na tentativa de
cura diante da morfinomania, Freud se volta para o estudo das primeiras tentativas
analíticas de seus próprios sonhos e para a observação de suas próprias reações sob
o efeito da droga. Sua dedicação a esses estudos revela um percurso definitivo na
identificação de uma série de configurações simbólicas que, mais tarde, foram
utilizadas como instrumentação teórica na construção do livro sobre os sonhos (Byck,
1989), na qual Freud tenta dar muito mais de seu talento do que no período em que se
dedicou á cocaína.
É a partir do estudo dos sonhos que Freud elabora a obra que ocupou um lugar
fundamental na psicanálise. A Interpretação dos Sonhos foi considerada por ele como
parte de sua auto-análise, mas Gay (1989), enfatiza que de fato, é essa auto-análise de
Freud, que teve início em algum momento da metade dos anos 1890 e um empenho
dedicado a partir do final da primavera de 1897, que deve ser considerada como o ato
fundador da psicanálise. Nesse processo, eram os sonhos que ofereciam o principal
material para que Freud pudesse empregar em sua auto-análise o método da
associação livre. Gay ressalta que essa importância que ele atribui a auto-análise de
Freud se deve ao heroísmo paciente que o autor teve ao se dedicar tanto à análise de
seus próprios conteúdos, que por muitas vezes eram extremamente dolorosos.
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VIII - CONSIDERAÇÕES FINAIS
As colocações dos autores citados na Discussão, afirmando que o envolvimento de
Freud com o assunto da cocaína tenha de fato desempenhado um papel importante no
estudo dos sonhos e do desenvolvimento da psicanálise faz muito sentido para mim,
agora nessa fase final deste trabalho. Acredito que essas afirmações possam ser
consideradas válidas, pois como vimos durante os capítulos e retornamos na
Discussão, a maneira com que os fatos acontecem, nos leva a crer que o envolvimento
de Freud com o tema da cocaína o tenha influenciado centralmente para que ele tenha
chegado aos sonhos e à psicanálise. Não digo que esse seja o único fator que o tenha
influenciado em seus estudos, mas considero-o como um dos mais importantes, pelo
menos para a realização desta pesquisa.
A partir da discussão realizada anteriormente, é possível dizer que o efeito euforizante
causado pelo uso da cocaína possa realmente ter facilitado a Freud se aproximar das
alucinações oníricas direcionando-o assim à sua auto-análise, especialmente a de seus
sonhos. Antes de Freud, os sonhos eram considerados apenas símbolos, analisados
como se fossem premonições ou manifestações divinas. Mas ao entrar em contato com
esse mundo simbólico, Freud se manteve disposto a desvendar cada vez mais os
mistérios de cada sonho, acreditando que este seja justamente o fenômeno da vida
psíquica normal em que os processos inconscientes da mente são revelados de forma
bastante clara e, portanto acessível ao seu estudo. Como ele mesmo afirmava: “O
sonho é a estrada real que conduz ao inconsciente”. (Freud, 1900/1996).
Freud mostrou então ao mundo, por meio da análise dos sonhos, a existência do
inconsciente e transformou “o lixo do pensamento”, considerado pela ciência, no caso
os sonhos, em um instrumento revelador da personalidade humana chegando assim a
publicar seus estudos sobre o tema em A Interpretação dos Sonhos. Obra que é
considerada como o marco na história da psicanálise, pois foram nesses escritos que
Freud edificou os principais fundamentos da teoria psicanalítica, constituindo-a como o
ponto de apoio para todo o desenvolvimento de seus trabalhos posteriores.
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O “Sonho da Injeção de Irma” é o primeiro de A Interpretação dos Sonhos a ser
analisado por Freud como um sonho modelo. Localizado no Capitulo V desse trabalho,
esse sonho demonstra que ele estava certo ao dizer que os sonhos têm sempre um
sentido intencional de tentar realizar um desejo reprimido. Ele demonstra que há em
Freud uma grande intensidade de angústia e culpa devido as suas equivocadas
experiências com a cocaína e pela posterior morte de seu amigo Fleischl.
Ao interpretar alguns trechos desse sonho, Freud faz ligações com os acontecimentos
que realmente tinham deixado marcas traumáticas. Em: “Quando ela não estava se
sentindo bem, meu amigo Otto lhe aplicara uma injeção” (Freud, 1900/1996. p 129), ele
remete esse fragmento a sua culpa pela indicação da cocaína ao amigo que se
intoxicara com ela. O próprio Freud nos fala ainda na interpretação deste sonho, que
fora o primeiro a recomendar o emprego da cocaína, em 1885, e essas recomendações
trouxeram sérias recriminações contra ele, deixando claro que essa era uma
preocupação que ainda prevalecia em seus pensamentos mesmo anos depois.
Mas, para chegar a essa clareza na análise de seus sonhos, Freud teve que se dedicar
muito a eles, já que seus conteúdos inconscientes apareciam em suas lembranças ao
acordar, como algo bagunçado e sem sentido. No entanto, Freud sabia que essas
distorções alertavam para um conflito interno, já que entendia que o sonho surge numa
zona congestionada na qual seus conteúdos encobertos estão entrelaçados com as
significações emocionais. Como ele mesmo havia dito, os sonhos são capazes de
revelar a verdadeira natureza de um homem, e no seu caso, ela estava sendo
representada pelos sentimentos de arrependimento e remorso diante da lembrança da
morte de Fleischl e pela disseminação dos efeitos tóxicos da cocaína em todo o
mundo. Dessa forma, é totalmente aceitável que em muitos momentos dos sonhos de
Freud, aparecesse essa idéia fixa de culpa.
Em um trecho de uma carta escrita a Martha em 21 de abril de 1884, Freud deixa bem
claro que o seu interesse em se dedicar aos efeitos da cocaína ia além de prestígio
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profissional e melhores condições financeiras para se casar, buscava intensamente
conseguir ajudar no morfinismo de Fleisch. Crendo nessa possibilidade, Freud se
entusiasmou em suas pesquisas e passou a indicar ao amigo doses da substância
acreditando que essas pudessem livrá-lo das dores insuportáveis que sentia e libertá-
lo do vício da morfina. Afinal nessa época ele acreditava que esse tratamento de
substituição, não converteria o morfinômano em cocainômano, como ele mesmo
escreve em “Sobre a Coca”.
Freud admirava Fleischl de uma maneira que pode nos parecer exagerada, como
pudemos ver no Capitulo IV dessa pesquisa, sua amizade era considerada para Freud
uma preciosidade, ”amo-o como uma paixão intelectual”, dizia ele. Assim, creio que
tenha sido horrível para Freud, presenciar em muitos momentos suas crises de
intoxicação e perceber que Fleischl criara uma dependência muito forte agora não mais
com a morfina e sim com a cocaína. Isso foi crucial para que Freud se culpasse, pois
afinal, tivera sido ele quem recomendara tal substituição acreditando em sua melhora.
Nessa época, o próprio Freud a utilizava, mas até então não conhecia seus efeitos
tóxicos.
Esse conhecimento tanto não fazia parte ainda do repertório de Freud que ele
recomendara o uso da substância em diversas situações. Como vimos, ele até mesmo
chega a recomendar as injeções subcutâneas, defendendo seu benefício em “Sobre o
Efeito Geral da Cocaína”: “... só me resta recomendar, sem duvida alguma injeções
subcutâneas de 0,03 a 0,05 grama em tais curas...”. Podemos perceber que quando
defende sua utilização, em março de 1885, ainda não havia visto nenhum caso de vício
dessa droga, já que nesse ano, Fleischl ainda não tinha vivido a dependência. É
apenas em julho desse ano que surgem as primeiras críticas de Enlermeyer perante
sua utilização, nas quais Freud é criticado e responsabilizado pelos indícios de vício de
cocaína no mundo.
É então nesse momento, que ele deixa bem claro o quanto esse episódio o
atormentava, passando a culpar totalmente as injeções por esses efeitos tóxicos. Além
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de aconselhar em 1887 que essa via de administração fosse abandonada em todas as
circunstâncias, apesar de afirmar não ter indicado as tais injeções, o que não era
verdade, ele explicita seu sentimento de rejeição a essa época tentando queimar suas
anotações, esclarecendo que seu desejo era esquecer tudo o que tinha se passado.
Dessa forma, acredito que Freud tenha tido todos os motivos para se vangloriar de sua
descoberta, mas pelos caminhos tortuosos que os fatos foram sendo levados, ao invés
de ser valorizado, foi na época, depreciado diante das conseqüências de seus estudos.
Não ser reconhecido como o descobridor da anestesia local, perdendo o mérito para
Carl Koller; ter perdido o amigo Fleischl por sua própria indicação da cocaína e ser
culpado pelo mundo todo dos efeitos tóxicos do uso da substância, representaram para
ele, momentos extremamente dolorosos, dos quais com toda razão, só pretendia
esquecê-los. Sua decepção com a cocaína marcou profundamente uma boa parte de
sua vida e de suas lembranças. Para ele, somente marcas ruins foram deixadas, mas
para os seus leitores, uma imensa contribuição científica parece surgir dessas
experiências de Freud com a cocaína.
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IX - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Universidade de São Paulo, 1975.
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Comunidades Terapeu; Campinas: Compasso Arte, 1998, v. 1, p. 25-32.
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73
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pessoais de Freud para escrever a interpretação dos sonhos e a descoberta da
Psicanálise. Rio de Janeiro: Artenova S. A., 1975.
• TOSCANO, Alfredo. Dependência de drogas. São Paulo: Ateneu, 2000.