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Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 10 N. 19, INVERNO 2013 149 CÍCERO ANTÔNIO CAVALCANTE BARROSO * Recebido em abr. 2013 Aprovado em jun. 2013 POPPER E A INDUÇÃO RESUMO É amplamente sabido que Karl Popper foi um crítico severo da ideia de que o método da ciência é o método indutivo, mas a verdade é que ele foi muito além disso. Em seu livro Conhecimento Objetivo, ele chega a afirmar que a indução por repetição não existe. Neste artigo, analiso criticamente essa afirmação popperiana. Primeiramente, procuro esclarecer o seu real sentido, fazendo algumas observações gerais sobre a ideia de indução por repetição. Em seguida, examino os argumentos de Popper em favor de sua afirmação e tento mostrar que eles não são convincentes. PALAVRAS-CHAVE Doutrina da primazia psicológica das repetições. Raciocínio indutivo. Crenças induzidas. Verdades universais. Razão. * Doutor em Filosofia pela PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO (PUC-Rio), professor adjunto da UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ, pesquisador da FUNDAÇÃO CEARENSE DE APOIO AO DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO (FUNCAP) com o projeto A Noção de Informação e suas Aplicações Filosóficas e do C ONSELHO NACIONAL DE D ESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO (CNPq) com o projeto Consciência e Informação. Atua nas áreas de Lógica, Filosofia da Mente, Filosofia da Linguagem e Filosofia da Ciência.

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CÍCERO ANTÔNIO CAVALCANTE BARROSO *

Recebido em abr. 2013Aprovado em jun. 2013

POPPER E A INDUÇÃO

RESUMO

É amplamente sabido que Karl Popper foi um críticosevero da ideia de que o método da ciência é o métodoindutivo, mas a verdade é que ele foi muito além disso.Em seu livro Conhecimento Objetivo, ele chega a afirmarque a indução por repetição não existe. Neste artigo,analiso criticamente essa afirmação popperiana.Primeiramente, procuro esclarecer o seu real sentido,fazendo algumas observações gerais sobre a ideia deindução por repetição. Em seguida, examino osargumentos de Popper em favor de sua afirmação etento mostrar que eles não são convincentes.

PALAVRAS-CHAVE

Doutrina da primazia psicológica das repetições.Raciocínio indutivo. Crenças induzidas. Verdadesuniversais. Razão.

* Doutor em Filosofia pela PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO

RIO DE JANEIRO (PUC-Rio), professor adjunto da UNIVERSIDADE

FEDERAL DO CEARÁ, pesquisador da FUNDAÇÃO CEARENSE DE APOIO

AO DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO (FUNCAP) com oprojeto A Noção de Informação e suas Aplicações Filosóficas edo CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E

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73. ABSTRACT

It is widely known that Karl Popper was a severe criticof the idea that the method of science is the inductivemethod, but the truth is that he was far beyond thatpoint. In his book, Objective Knowledge, he even claimsthat the induction by repetition does not exist. In thisarticle, I critically analyze this Popperian statement.First, I seek to clarify its real sense, by making somegeneral observations about the idea of induction byrepetition. Then I examine the arguments of Popper infavor of his claim and I try to show that they are notconvincing.

KEYWORDS

Doctrine of the psychological primacy of repetitions.Inductive reasoning. Induced Beliefs. Universal truths.Reason.

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APRESENTANDO O PROBLEMA

Indução (‘epagôgê’), para Aristóteles, é um raciocínio que parte de premissas particulares para chegar a

uma conclusão universal. No entanto, não basta queum raciocínio comece com premissas particulares etermine com uma conclusão universal para que ele sejaconsiderado indutivo. É preciso que a verdade daspremissas sirva como evidência para a verdade daconclusão. Não é simples determinar com precisãoquando isso ocorre, mas uma ideia bastante intuitiva éde que isso ocorre quando as premissas expressamalgum tipo de repetição. Dessa forma, se eu raciocinardeste modo: “o dado deu seis no primeiro lance, logoo dado dará seis em qualquer lance”, meu raciocínionão será indutivo, embora eu parta de uma premissaparticular e chegue numa conclusão universal. Emcontrapartida, se eu fizer um raciocínio no qual há umnúmero suficiente de premissas que enunciam aocorrência reiterada de certo estado de coisas, e umaconclusão que enuncia que aquele estado de coisassempre ocorre, então estarei fazendo uma indução. Noraciocínio seguinte, por exemplo, temos um caso deindução:

O dado deu seis no primeiro lanceO dado deu seis no segundo lanceO dado deu seis no terceiro lance

Logo, o dado dará seis em qualquer lance

O que é considerado um número suficiente de

premissas é algo bem relativo. Pode ser, por exemplo,que alguém considere que o raciocínio acima não tem

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73. um número suficiente de premissas. Isso ocorre porque,

no raciocínio indutivo, a função das premissas é a defornecer evidência para a verdade da conclusão, não ade garantir a verdade da conclusão de forma irrevogável,e pessoas mais céticas exigem mais evidências do quepessoas mais crédulas. Em todo caso, há raciocínios nosquais as premissas fornecem tanta evidência recorrenteem favor da conclusão que é difícil de negar que elesconstituem casos indiscutíveis de indução. À primeiravista, portanto, é incompreensível o fato de alguém negara existência de induções. Mas, ao que parece, é o que ofilósofo austríaco Karl Popper faz.

No primeiro capítulo de O Conhecimento

Objetivo, Popper afirma: “isto de indução por repetiçãonão existe” (POPPER, 1974, p. 18). O que ele querdizer com isso? Que ninguém pode raciocinar comono exemplo acima ou que o exemplo acima não é umexemplo de indução? Creio que Popper não negarianem que o exemplo acima pode expressar um raciocíniofeito numa situação real nem que ele se encaixa nadefinição clássica de ‘indução’, o que ele nega é o que,no Apêndice X de sua obra mais famosa, A Lógica da

Pesquisa Científica, ele chama de ‘doutrina da primaziadas repetições’. Tal doutrina tem duas variantes. Aprimeira, a doutrina da primazia lógica das repetições,consiste na afirmação de que as repetições de exemplosparticulares fornece uma justificação lógica para ainferência de enunciados universais. A rejeição dessavariante não é nenhuma novidade filosófica, pois Humejá havia tomado posição semelhante. Por outro lado,Popper é original quando rejeita a segunda variante

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da doutrina, a que ele chama de doutrina da primaziapsicológica (ou temporal) das repetições (doravante,DPPR), por isso o exame dessa segunda rejeição seráde maior interesse para mim.

A DPPR declara que “[...] estas [repetições],mesmo sem conseguir dar uma justificação de uma leiuniversal nem das expectativas e crenças que estaenvolve, induzem e suscitam de fato em nós taisexpectativas e crenças [...]” (POPPER, 1971, p. 392).Vê-se, portanto, que a DPPR não pretende determinarse o que fazemos quando raciocinamos indutivamenteé justificado ou não (como alegadamente pretende adoutrina da primazia lógica das repetições), ela tãosomente procura dar uma resposta à questão de porque fazemos inferências indutivas. E a resposta é quefazemos isso porque a repetição expressa pelaspremissas nos leva a ter uma forte confiança de que aconclusão é verdadeira.

Posto isso, podemos entender o que Popperqueria dizer quando afirmou que não há indução porrepetição. O que ele queria dizer era que a doutrinada primazia das repetições é falsa, inclusive a DPPR.Em particular, pode-se supor que, diante do raciocínioapresentado acima, Popper negaria que a repetiçãodos resultados nos lances consecutivos do dado suscitaem nós a crença na conclusão de que o dado daráseis em qualquer lance. Isso certamente não parecetão absurdo quanto negar que existem induções emabsoluto, mas ainda é muito pouco plausível. Afinal,o que eu observo é que quando o dado dá seis noprimeiro lance, eu não me sinto nem um pouco

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73. inclinado a crer que ele voltará a dar seis no lance

seguinte. Quando ele dá seis no segundo lance, eu jáme sinto muito mais compelido a crer que ele daráseis no lance seguinte. E, finalmente, quando ele dáseis no terceiro lance, eu aposto todas as minhas fichasno seis. E acredito que a maioria das pessoas faria omesmo. Nesse processo, fica claro que minha confiançano resultado seis cresceu junto com a quantidade depremissas; parece sensato então admitir que é arepetição dos resultados nos lances consecutivos dodado que suscita em nós a crença na conclusão de queo dado dará seis em qualquer lance. Como Popper podenegar isso?

Nas próximas páginas examinarei algunsargumentos que Popper oferece para amparar a rejeiçãoda DPPR e conferirei se eles são pertinentes ou não.

OS ARGUMENTOS DO APÊNDICE X

Popper começa seu primeiro argumento contraa DPPR observando que coisas que se repetem sãocoisas semelhantes em algum aspecto. Com base nisso,ele afirma o seguinte:

De um modo geral, o semelhante – e com ele arepetição – pressupõe sempre um ponto de vista.[...] Mas se a semelhança e repetição pressupõemque se adote um ponto de vista – ou um interesse,ou uma expectativa – é logicamente necessário queos pontos de vista, os interesses ou as expectativassejam logicamente prévios à repetição: resultado quedestrói tanto a doutrina da primazia lógica dasrepetições como a da primazia temporal (POPPER,1971, p. 394).

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É interessante observar que na formulação quePopper dá para a DPPR, citada há pouco textualmente,não está dito que a repetição é algo dado ou livre depressupostos. O título ‘doutrina da primazia dasrepetições’ com certeza pode ser enganoso, mas o queimporta na DPPR é como ela é efetivamente formulada.O caso é que, pelo menos na formulação popperiana, adoutrina diz apenas que repetições induzem expectativase crenças. Estranhamente, o que Popper mostra nacitação acima é que repetições dependem de um pontode vista, com base no que, subitamente, ele conclui queseu argumento destrói a DPPR.

É difícil descobrir alguma coisa no argumento dePopper que ao menos lembre um ataque à DPPR. Emsocorro a Popper, poder-se-ia dizer que o problema é quea repetição se revela como algo subjetivo e que seriapossível encontrar repetições em qualquer conjunto decoisas. Isso é razão para bradar a destruição da DPPR?Não penso que seja. É possível conceder que alguém commuita imaginação pode encontrar entre as coisas assemelhanças mais desconcertantes, mas o argumento dePopper continua sem mostrar que, uma vez descobertauma repetição, ela não induzirá expectativas e crenças, eesse é o ponto. É verdade que se Popper mostrasse que acrença que se pretende seja induzida pela repetição é amesma que permite descobrir ou ver a repetição, entãoele teria um bom argumento contra a DPPR. No entanto,não é isso que ele mostra. De fato, nem poderia mostrar,pois podemos perceber uma repetição antes de inferirmosqualquer enunciado universal. O exemplo do dado quedá sempre seis deixa isso muito claro.

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73. De que depende minha percepção de que algo

se repete? Digamos que as premissas do raciocínio queusei como exemplo descrevem uma situação que eutestemunhei efetivamente. Nessa situação, o queacontece é que eu vejo o primeiro resultado e vejo queé um seis, e isso é registrado na minha memória. Emseguida, eu vejo o segundo resultado e vejo que é umseis outra vez, e isso é registrado na minha memória.E, finalmente, eu vejo o terceiro resultado e vejo quemais uma vez é um seis, e isso é registrado na minhamemória. Agora, o que a psicologia cognitiva nos diz éque quando registramos informações na memória, essasinformações são colocadas em associação com outras.O modo como fazemos essas associações depende denossos métodos cognitivos de categorização, de nossosinteresses pessoais, de nossa resposta emocional e atéde nossas idiossincrasias culturais e linguísticas; dequalquer forma, independentemente de umaexplicação psicológica detalhada, podemos concordarque quando registramos as informações sobre osresultados do dado, elas são associadas de forma talque sabemos que são informações sobre o mesmo dadoe sobre o mesmo resultado, o qual foi observado emlances consecutivos distintos. Ocorre que quando océrebro discrimina algo que ele classifica como o-

mesmo-em-momentos-distintos, temos a percepção darepetição. Desse modo, fica claro que a crença de quealgo se repete depende apenas das nossas faculdadesde memória e categorização, e possivelmente dealgumas definições categoriais tácitas, e que,indiscutivelmente, trata-se de uma crença acerca de

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observações passadas ou presentes. Por outro lado, acrença que é expressa pela conclusão de nossoraciocínio exemplar vai além disso, ela é uma crençaque abrange a totalidade do futuro. Além disso, pareceevidente que podemos ter a percepção de repetiçãosem termos essa crença induzida sobre a totalidadedos lances futuros. Note-se que quando eu observo oresultado seis no segundo lance, eu já tenho apercepção da repetição, porém, muito provavelmente,ainda não terei a crença induzida sobre o futuro (euposso pensar que a repetição foi só uma questão desorte ou coincidência). Isso torna evidente que osprocessos cognitivos que me possibilitam enxergar arepetição não são os mesmos que me possibilitam tera crença de que o dado sempre vai cair no númeroseis. Depois que eu percebo a repetição, algo mais deveocorrer para que eu realize a inferência indutiva. Ora,se é assim, o primeiro argumento de Popper contra aDPPR não se sustenta. É verdade que “os pontos devista, os interesses ou as expectativas” são prévios àrepetição, mas essa constatação não destrói a DPPR.Ainda parece razoável afirmar que as repetições (pelomenos quando temos um número suficiente delas eelas aparecem de modo uniforme ao longo do tempo)induzem em nós crenças sobre o futuro.

O segundo argumento de Popper tem duaspartes. Em primeiro lugar, ele mostra que háenunciados universais que não podem ser obtidos porindução. Por exemplo, o enunciado “todo corpo atraie é atraído de acordo com a lei do inverso do quadradoda distância” não é inferido a partir de enunciados

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73. particulares de observação. Segundo Popper, leis como

essa descrevem o que poderíamos chamar de‘propriedades estruturais do mundo’, e todastranscendem qualquer experiência que possamos ter.Isso implica que elas não podem ser verificadas à luzda experiência. Não obstante, elas ainda podem sertestadas por meio do confronto com a experiência, oque lhes assegura o seu conteúdo empírico, seu contatocom a realidade. Como os cientistas chegam a essasleis estruturais? Como é amplamente sabido, a respostade Popper é de que os cientistas podem chegar àenunciação de suas teorias através de caminhos váriose inesperados. Entretanto, no entender de Popper, ocaminho da indução por repetição certamente não éum deles. Para Popper, por exemplo, Newton nãoprecisou observar repetidas vezes que os corpos seatraem com uma força inversamente proporcional aoquadrado da distância entre eles para, a partir daí, fazeruma inferência e enunciar a lei da gravitação universal.E, em geral, não acreditamos que leis estruturais sãoverdadeiras por que essa crença é induzida em nóspela observação de relações que se repetem.Simplesmente não nos apoiamos em repetições aqui.Essa é a primeira parte do argumento popperiano.

A segunda parte consiste em mostrar que naverdade não há nenhuma distinção real entre essas leisestruturais e o que poderíamos chamar de ‘purasgeneralizações de observações’. Uma pura generalizaçãode observação seria uma generalização que não tem ostatus de lei científica, e que, por essa razão, é maismodesta e poderia ser alcançada a partir da observação

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comum. O enunciado “o dado dá seis em todos oslances” e o enunciado “todos os cisnes são brancos”seriam exemplos de generalizações desse tipo. Todomundo concorda que essas generalizações transcendema observação da mesma forma que as leis estruturais,mas há quem procure sustentar que as generalizaçõespuras de observação realmente são induzidas pelaobservação de repetições. Uma pessoa vê um cisnebranco uma vez, vê um cisne branco outra vez, e assimvai vendo sempre cisnes brancos durante anos a fio,até que chega um momento em que aquela repetiçãotoda origina no observador uma forte crença de quetodo cisne é branco. Em suma, é a repetição que nosleva à crença nesse caso, e, de fato, em qualquer casoque envolva uma generalização de observação. Isso éo que dizem aqueles que defendem que há umadistinção real entre generalizações de observação e leisestruturais. Agora, o que Popper mostra é que as coisasnão são bem assim. Para ele, até mesmo um enunciadosingular como “este cisne é branco” transcende aobservação. Isso ocorre porque o enunciado inclui apalavra ‘cisne’ que nomeia um universal1. Ora, segundoPopper, para nomearmos algo como ‘cisne’ ou ‘dado’precisamos pressupor teorias que determinam que umobjeto deve se comportar de acordo com certa lei paraque possa ser considerado um cisne ou um dado. Dessaforma, “mesmo enunciados singulares comuns sãosempre interpretações dos fatos à luz de teorias”(POPPER, 1971, p. 396). Com base nisso, Popper

1 É importante notar que a palavra ‘branco’, para Popper, indicauma amostra singular de brancura, não um universal.

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73. conclui então que o caminho que tomamos para chegar

às generalizações de observação não pode ser diferentedo caminho que o cientista toma para chegar às leisestruturais. Não há, portanto, uma distinção real entreestas e aquelas.

Bem, uma vez que, por um lado, Popper tentamostrar que leis estruturais não são obtidas mediante aindução por repetição, e, por outro lado, argumenta quenão há uma diferença real entre leis estruturais e purasgeneralizações de observação, é forçoso concluir quegeneralizações de observação também não são obtidasatravés da indução por repetição. De fato, é precisoconcluir que a repetição não tem o poder de suscitar emnós nenhuma expectativa ou crença. Essas expectativase crenças surgem logo de saída como conjecturas quetentam captar verdades universais. Isso valeria tanto paraas verdades da ciência como para as verdades do sensocomum. Dessa forma, não resta nenhuma função parao raciocínio indutivo baseado em repetição e,consequentemente, a DPPR é uma falsa doutrina.

Esse segundo argumento popperiano contra aDPPR mostra de forma mais clara a verdadeira fonteda animosidade de Popper contra a tese de que arepetição, pelo menos a repetição do tipo exemplificadono exemplo do dado que dá sempre seis, incita em nóscertas crenças e expectativas. O caso é que Popper temuma concepção muito específica do método científico.Trata-se do método das conjecturas e refutações, ométodo hipotético-dedutivo. Primeiro, as teoriasentram em cena, só depois é que elas são submetidasà prova dos experimentos. O contato que as teorias

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científicas têm com a realidade se dá no fim doprocesso, não no começo. Destarte, pode-se argumentarque teorias científicas não são obtidas por meio daindução baseada em repetição. Acontece que, segundoPopper, nossas crenças de senso comum também sãomediadas por teorias. Quando alguém defende que éa repetição que suscita em nós os enunciados geraisdessas teorias, essa pessoa está defendendo que ocontato que essas teorias têm com a realidade se dálogo no começo do processo, que tais teorias sãoinduzidas a partir da observação. Assim, haveria ummétodo para a teorização científica e um métododiferente para a teorização de senso comum. Isso,aparentemente, não é aceitável para Popper.

Mas o que é aceitável para Popper é uma coisa,e o que é aceitável à luz dos fatos é outra. O que oexemplo do dado nos apresenta é um fato inegável.Ali, vemos que é a repetição de certo resultado quenos leva a crer que esse resultado sempre se verificará.Não podemos recusar esse fato com base naargumentação de Popper. O que sua argumentação nosoferece afinal? Resumidamente: 1. na primeira partedo seu argumento, Popper afirma que leis estruturaisnão podem ser obtidas com recurso à indução porrepetição, e 2. na segunda parte, ele sugere que crençasgerais de senso comum não são essencialmentediferentes de nossas crenças científicas. Em nenhumadas duas partes, a meu ver, o que ele afirma ou sugerefica estabelecido. Está estabelecido que os cientistasnão podem chegar a leis gerais mediante indução porrepetição? De forma alguma. Aparentemente, Kepler

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73. chegou as suas leis da mecânica celeste observando que

certas relações anotadas nas tabelas de Tycho Brahe serepetiam. Está estabelecido que nossas crenças de sensocomum não são essencialmente diferentes de nossascrenças científicas? Também não, embora isso sejarazoável. Seja como for, se for verdade que não há essadiferença essencial, ainda temos que escolher entre duasalternativas: ou sustentamos que a indução por repetiçãotem um papel tanto do lado do senso comum como dolado da ciência, ou sustentamos que ela não temqualquer papel em nenhum dos lados. Popper escolheessa segunda alternativa, e sua escolha decorre daprimeira parte de sua argumentação, mas, como aponteihá pouco, o que ele defende nessa primeira parte nãoestá estabelecido. Por conseguinte, parece que a escolhade Popper não é compulsória; pelo contrário. Com efeito,se pensarmos que o exemplo do dado nos dá boas razõespara aceitar que a repetição pode suscitar crenças eexpectativas nos observadores, então temos que admitira repetição tem um papel do lado do senso comum. Se,além disso, estamos convencidos de que nossas crençasde senso comum não são essencialmente diferentes denossas crenças científicas, então temos que reconhecerque a repetição também deve ter algum papel do ladoda ciência. Seja como for, a DPPR continua incólume.

No restante do apêndice X, Popper apresentaalgumas ideias interessantes sobre predicadosdisposicionais e sobre a irredutibilidade dos enunciadoscientíficos a enunciados observacionais, mas nenhumargumento contra a DPPR. Assim, passo aosargumentos que ele propõe no Conhecimento Objetivo.

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AS REFORMULAÇÕES DE POPPER

Popper afirma no primeiro capítulo doConhecimento Objetivo que ele conseguiu resolver oproblema da indução graças à reformulação que deuao problema. Como sua solução é negativa, ou seja,como sua solução consiste na negação completa dadoutrina da primazia das repetições, em especial daDPPR, é de se esperar que as reformulações de Popperlhe forneçam algum subsídio para refutar a DPPR.Vejamos se esse é o caso.

Em primeiro lugar, Popper distingue entre oproblema filosófico tradicional da indução (Tr) e oproblema de senso comum da indução (Sc). Ele osapresenta da seguinte maneira:

Tr: “Qual a justificação para a crença de que o futuro

será (amplamente) como o passado? Ou, talvez, quala justificativa para as inferências indutivas?”

Sc: “Como podem ter surgido essas expectativas e crenças

[em teorias e leis da natureza]?” (acréscimo meu).

Em seguida, ele desenvolve a sua resposta aoproblema da indução da seguinte forma: 1º. Ele dizque devemos distinguir dois aspectos do problema daindução, o aspecto lógico e o aspecto psicológico eapresenta as formulações de Hume para esses aspectos(H

l e H

ps); 2º. Ele apresenta seu princípio de

transferência, que afirma que “o que é verdadeiro emlógica, é verdadeiro em psicologia”. 3º. Ele propõe trêsreformulações de H

1 e não se preocupa em reformular

Hps, pois, pelo princípio de transferência, uma resposta

para Hl vale também para H

ps.

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73. Ao longo dessa exposição, Popper chega a

algumas conclusões que deveriam ajudá-lo a refutar aDPPR para, com isso, poder sustentar a sua tese deque inferências indutivas não se justificam em nenhumsentido. O que farei doravante é examinar essasconclusões para ver se alguma delas consiste numargumento razoável contra a DPPR. Podemos destacaras seguintes conclusões:

I. A alegação de que uma teoria explanativa universalé verdadeira não pode ser justificada por ‘razõesempíricas’; em outras palavras, não pode haver umainferência lógica dos enunciados universais de umateoria a partir de enunciados particulares (que, pode-se dizer, são ‘baseadas em experiência’).II. A alegação de que uma teoria explanativa universalé falsa pode ser justificada por ‘razões empíricas’; emoutras palavras, pode haver inferência lógica danegação dos enunciados universais de uma teoria apartir de enunciados particulares (que, pode-se dizer,são ‘baseadas em experiência’).III. “Expectativas podem surgir sem qualquer repetição,ou antes de qualquer uma” (POPPER, 1974, p. 34).IV. “Elas [as expectativas] não podem surgir de outra forma,porque a repetição pressupõe similaridade e a similaridadepressupõe um ponto de vista” (POPPER, 1974, p. 34).V. Se encararmos criticamente uma teoria, do pontode vista da evidência suficiente e não de qualquer pontode vista pragmático, não poderemos ter sempre osentimento de completa segurança e certeza de suaverdade.

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VI. As crenças fortes que todos temos, como a crençade que haverá um amanhã não são resultadosirracionais da repetição.

Vejamos se algumas dessas conclusões dãomesmo a garantia de que a DPPR é falsa:

(a) Os enunciados I e II não confrontam a DPPR,pois negam apenas a existência de justificaçãológica para inferências indutivas. O próprioHume concordaria com tais enunciados.(b) A conclusão III também não refuta a DPPR,pois a DPPR não nega que expectativas podemsurgir sem repetição, a DPPR apenas afirma queexistem casos em que elas surgem por causa derepetições.(c) Popper percebe isso, por isso ele enuncia aconclusão IV, que é uma reedição do seuprimeiro argumento do apêndice X. Essa novaedição, tem os mesmos defeitos da primeira. Defato, pode-se interpretar a DPPR assim: existemcasos em que adquirimos uma crença porquepercebemos uma repetição. Como se dá essapercepção é totalmente irrelevante para averdade da DPPR. Quando vejo um dado cairno número seis três vezes, é possível dizer queminha observação da repetição se baseia numponto de vista (embora julgue que esse pontode vista é comum a todo homem mentalmentesão). Mas isso não impede que minha observação,seja ela pura ou impura, instigue minha crençade que o dado está viciado.

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73. (d) O que Popper conclui em V é que, se levamos

em conta a lógica, não podemos ter certeza daverdade de nenhuma teoria. Hume concordacom isso; essa é exatamente a mensagem doseu ceticismo. O enunciado tampouco confrontaa DPPR, pois a doutrina diz apenas querepetições induzem crenças e não que induzemcertezas. Desse modo, V também não é umarefutação da DPPR.

(e) A conclusão VI seria uma negação da DPPRse não contivesse a palavra ‘irracionais’, emesmo então não seria uma refutação, pois nãoconstitui um argumento, seria apenas umanegativa simpliciter. Com a palavra, e desde queela seja entendida num sentido mais amplo, oenunciado pode até ser considerado compatívelcom alguma interpretação da teoria de Hume.

Feitas essas observações, sou levado a concluirque, salvo no caso de ter deixado passar algumargumento menos saliente, as reformulações de Poppernão lhe dão nenhuma base para refutar a DPPR.Vejamos então outro de seus argumentos.

O ARGUMENTO DA IRRACIONALIDADE

Um dos argumentos preferidos de Popper é umque gostaria de chamar de ‘argumento dairracionalidade’. Ele consiste em mostrar que a verdadeda DPPR leva ao irracionalismo; uma vez que oirracionalismo não pode ser aceito, a DPPR também nãopode. Uma forma do argumento é apresentada noseguinte comentário que Popper faz a respeito de Hume:

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Por que a maioria das pessoas, por mais que sejamracionais, creem na validade da indução? O mecanismopsicológico de associação os força a crer, por hábitoou costume, que ocorrerá no futuro o que ocorreu nopassado. Este mecanismo é útil biologicamente -–talvez não pudéssemos viver sem ele – porém carecede todo fundamento racional. Assim, não só o homemé um animal irracional, mas também é claramenteirracional aquela parte de nós que consideramosracional – o conhecimento humano, incluindo oconhecimento prático (POPPER, 1974, p. 91).

A primeira coisa que fica saliente nesseargumento é a pressuposição de uma noção de razão.Popper, que não gostava de definições, não define oque ele chama de ‘razão’. Todavia, ele parece concordarque razão é algo que os homens têm e os outros animaisnão têm. Ora, para ele o traço mais destacado de nossarazão estaria na nossa capacidade de usar a linguagemdescritiva e argumentativa. De fato, às vezes Popper falade razão como sinônimo de argumentação. Ele diz, porexemplo, que Hume foi levado “à conclusão de que oargumento, ou a razão, desempenha apenas um papelmenor em nosso entendimento” (POPPER, 1974, p. 18).Por essa e por outras passagens, pode-se dizer que, paraPopper, razão é a capacidade de dar boas razões e serracional é ser capaz de justificar algo através de bonsargumentos, o que, efetivamente, é algo característicodo ser humano. Outra passagem do Conhecimento

Objetivo que reforça essa interpretação é a seguinte:

[...] Atuamos baseando-nos não em repetição ou‘hábito’, mas sim em nossas teorias mais bemtestadas que, como temos visto, são as que vêm

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73. apoiadas por boas razões racionais; naturalmente,

possuímos boas razões não para crer que sãoverdadeiras, mas que são as mais válidas do pontode vista da verdade ou verossimilitude [...] [O grifoé meu] (POPPER, 1974, pp. 95-6).

Nesse sentido, as crenças obtidas por induçãoseriam irracionais porque não são apoiadas por boasrazões. Por outro lado, os resultados da ‘discussão crítica’são racionais porque são apoiados em boas razões, elespodem ser justificados racionalmente. Dito de modo maisexplícito: nossa crença em uma teoria bem criticada éracional porque somos levados a ela por bonsargumentos; já a crença induzida pela repetição éirracional porque, segundo Popper, “a repetição não temqualquer valor como argumento” (POPPER, 1974, p.18).Esse, em resumo, é o argumento popperiano que chamode ‘argumento da irracionalidade’.

Há pelo menos três pontos discutíveis no argumentoda irracionalidade: 1. Não é clara a diferença entre ascrenças que Popper considera racionais e as crençasinduzidas 2. A concepção popperiana de razão équestionável; 3. Mesmo que adotemos a concepçãopopperiana de razão e concordemos que as conclusõesobtidas em raciocínios indutivos são irracionais, talvez issoainda não seja motivo suficiente para negar a DPPR.Gostaria de discutir esses pontos mais pormenorizadamentenos parágrafos seguintes.

O ponto 1 chama a atenção para a distinçãoentre o racional e o irracional. Dizer que uma crençaracional é a que é apoiada por boas razões não esclarecemuita coisa. O que é uma boa razão? Se for uma razão

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lógica, então mesmo a nossa crença numa teoria bemtestada é irracional. Popper reconhece isso quando sepronuncia na seguinte passagem:

[...] apesar da ‘racionalidade’ de escolher a teoriamais bem testada como base de ação, essa escolhanão é ‘racional’ no sentido de basear-se em boas

razões para esperar que, na prática, seja uma escolhade êxito: não pode haver boas razões nesse sentido;tal é precisamente o resultado de Hume (POPPER,1974, p. 33).

Aqui Popper, parece admitir dois sentidos de‘racional’, um equivale a ‘ser logicamente justificável’e o outro, a ‘ser discutido criticamente’. Acontece queser discutido criticamente é o mesmo que ser discutidode acordo com o método crítico de Popper. Uma vezque se adota esse sentido de ‘racionalidade’, pode-sedizer que uma crença é racional se está de acordocom os critérios de Popper e é irracional se não está.Em outras palavras, o único método de obtenção decrenças racionais é o método de ensaio e erro, e foradele não há salvação. Nem é preciso dizer que isso étotalmente arbitrário.

O ponto 2 diz respeito à concepção popperianade razão. O que posso fazer em relação a esse ponto émanifestar minha própria concepção de razão ecompará-la com a de Popper. Para começar, devo dizerque, em minha opinião, razão é uma abstração; nãohá razão, o que há são processos da mente humanaque a diferenciam da mente de outros animais. Alémdisso, pode ser que esses processos se distingam apenaspor aspectos quantitativos, não necessariamente

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73. qualitativos 2. Seja como for, é certo que pelo menos o

nosso processo de formulação de hipóteses não éexclusividade da nossa espécie. Animais consideradosirracionais também têm sistemas cognitivos que lhespermitem gerar e representar hipóteses, e usá-lasdepois para guiar suas decisões (é assim, por exemplo,que um chimpanzé chega à conclusão de que podealcançar um cacho de bananas se fizer uma pilha decaixas e depois escalá-la). A diferença está apenas nodesempenho mais elevado do cérebro humano, o quenos permitiria lançar hipóteses mais ousadas. Seadotarmos essa outra concepção de razão, podemosafirmar que qualquer processo cognitivo que umhomem pode realizar e animais de outra espécie nãopodem pode ser chamado de racional. Se um homemolha para o seu relógio na Segunda quando ouve osino da Igreja e nota que ele está um minuto adiantado,faz isso na Terça e percebe que ele está dois minutosadiantado, faz a mesma coisa na Quarta e atesta queele está três minutos adiantado e finalmente concluique o relógio estará quatro minutos adiantado naQuinta, ele realiza uma inferência que indivíduos denenhuma outra espécie podem realizar. Essa inferência,

2 É verdade, porém, que a linguística chomskyana oferece fortesargumentos em favor do caráter único da faculdade humana delinguagem. O que esses argumentos parecem mostrar é que nossafaculdade de linguagem está baseada em uma propriedadebiologicamente isolada nos nossos cérebros, a saber, a propriedadeda infinidade discreta. É essa propriedade que nos permitecombinar uma quantidade finita de palavras para formar umaquantidade virtualmente infinita de enunciados completamentenovos (cf. CHOMSKY, 2000, p. 3-4).

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que como se vê é indutiva, seria racional dentro dessaoutra concepção de ‘razão’.

O ponto 3 é o ponto da honestidade filosófica.Não se pode rejeitar a DPPR somente porque ela levaao irracionalismo, supondo que é isso que acontece.Uma objeção aceitável da DPPR tem que mostrar aimpossibilidade da existência de um tipo decompulsão psicológica que nos leva a inferir certascoisas na presença de repetição. Parece algo difícilde mostrar, mas esse é o ônus de quem rejeita a DPPR.Em contrapartida, se for possível mostrar exemplosde raciocínios em que se pode identificar talcompulsão, então de nada vale dizer que estamosincorrendo em um tipo de irracionalismo. Se nosconvencemos de que a coisa é real, não é pelo fatodela ter um efeito indesejado que podemos negar suaexistência.

CONCLUSÃO

Depois das considerações anteriores sobre osargumentos popperianos, fica claro que eles fracassamcompletamente na tentativa de refutar a tal doutrinada primazia psicológica das repetições. Na verdade,algumas ideias de Popper, a saber, a irredutibilidadedas teorias científicas a enunciados empíricos, ocritério de demarcação, o próprio método hipotéticodedutivo e outras, são compatíveis com a DPPR. Maisdo que isso, algumas como, por exemplo, a ideia deestabelecer critérios para a preferência de teorias,seriam reforçadas pela DPPR, pois poder-se-ia tratara corroboração como uma forma de indução.

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73. Talvez, todo o problema de Popper com a DPPR

seja uma consequência da sua ideia de que “a psicologiadevia ser encarada como uma disciplina biológica [...]”(POPPER, 1974, p. 35). Com isso, ele quer sugerir quenossos mecanismos psicológicos devem reproduzir omecanismo geral da evolução. Na sua interpretação, essemecanismo geral se baseia em duas coisas: diferenciaçãogenética e seleção natural. Da mesma forma como háalgo de randômico na diferenciação genética e é issoque efetivamente produz indivíduos de novas espécies,também deveria haver algo de randômico naquelesnossos processos psicológicos que nos permitem alcançarnovas hipóteses e teorias. O que a DPPR declara é quetais processos podem ser desencadeados por algo maisdeterminado, nomeadamente, a repetição, e, dessaforma, parece insinuar que eles não seguem o métodogeral da evolução. Parece ser esse aspecto da DPPR quedesagrada Popper e lhe instiga a fazer as críticas queele faz. Todavia, na ausência de melhores argumentos,esse aspecto não é suficiente para justificar a rejeiçãoda DPPR.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHOMSKY, Noam. New horizons in the study of

language and mind. Cambridge: Cambridge UniversityPress, 2000.

HUME, David. Investigações sobre o entendimento

humano e sobre os princípios da moral. São Paulo:UNESP, 2004.

POPPER, Karl. La lógica de la investigación científica.Madrid: Editorial Tecnos, 1971.

POPPER, Karl. Conocimiento Objetivo: un enfoque

evolucionista. Madrid: Editorial Tecnos, 1974.

POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Lisboa: EditoraAlmedina, 2003.