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55 L M Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 6 N. 12, VERÃO 2009 BRUNO MARTINS MACHADO * RESUMO O presente artigo tem como propósito mostrar que em Para Além de Bem e Mal o projeto nietzscheano de crítica do conhecimento só pode ser realizado após uma reformulação completa da noção de verdade. Nesse sentido, a partir da apresentação do primeiro aforismo de BM, indicaremos que, para estruturar seu pensamento perspectivista, Nietzsche necessitou: (i) Implodir a noção de verdade que desde a Antiguidade amparava as produções filosóficas. (ii) Expor, em seguida, sua maneira própria de entender a verdade como um produto de vontades. PALAVRAS-CHAVE Nietzsche. Verdade. Vontade. Conhecimento. Perspectivismo. ABSTRACT The present paper intends to show that in Beyond Good and Evil the Nietzsche’s project of critical of knowledge can be carried only through a complete reformulation of the truth notion. In such case, from the presentation of the first aphorism of BM, we will indicate that to structure his perspectivism thought, Nietzsche needed: (i) First, to pull down the truth notion that since the Antiquity supported the philosophical productions. (ii) After that, to display, its own way to understand the truth as a product of the wills. KEYWORDS Nietzsche. Truth. Will. Knowledge. Perspectivism. Recebido em jul. 2009 Aprovado em out. 2009 * Mestre em filosofia (Unicamp), doutorando em Filosofia (Unicamp). Atualmente desenvolve pesquisa na área “NIETZSCHE: METAFÍSICA, PSICOLOGIA E MORAL”. A VERDADE COMO UM EXPERIMENTO EM PARA ALÉM DE BEM E MAL

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BRUNO MARTINS MACHADO *RESUMO

O presente artigo tem como propósito mostrar que em ParaAlém de Bem e Mal o projeto nietzscheano de crítica doconhecimento só pode ser realizado após uma reformulaçãocompleta da noção de verdade. Nesse sentido, a partir daapresentação do primeiro aforismo de BM, indicaremos que,para estruturar seu pensamento perspectivista, Nietzschenecessitou: (i) Implodir a noção de verdade que desde aAntiguidade amparava as produções filosóficas. (ii) Expor,em seguida, sua maneira própria de entender a verdade comoum produto de vontades.

PALAVRAS-CHAVE

Nietzsche. Verdade. Vontade. Conhecimento. Perspectivismo.

ABSTRACT

The present paper intends to show that in Beyond Good andEvil the Nietzsche’s project of critical of knowledge can becarried only through a complete reformulation of the truthnotion. In such case, from the presentation of the firstaphorism of BM, we will indicate that to structure hisperspectivism thought, Nietzsche needed: (i) First, to pulldown the truth notion that since the Antiquity supportedthe philosophical productions. (ii) After that, to display, itsown way to understand the truth as a product of the wills.

KEYWORDS

Nietzsche. Truth. Will. Knowledge. Perspectivism.

Recebido em jul. 2009Aprovado em out. 2009

* Mestre em filosofia (Unicamp), doutorando em Filosofia(Unicamp). Atualmente desenvolve pesquisa na área “NIETZSCHE:METAFÍSICA, PSICOLOGIA E MORAL”.

A VERDADE COMO UM EXPERIMENTO EM

PARA ALÉM DE BEM E MAL

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9Partindo da noção de vontade de verdade em Para Alémde Bem e Mal1, esse texto tem como objetivo

evidenciar alguns aspectos da crítica nietzscheana aoconceito de verdade desenvolvido pela tradição.Entendemos que essa discussão além de atingir o cerneda teoria do conhecimento proposta por Nietzsche, elaabre caminho para compreendermos como a doutrinada vontade de poder exige o perspectivismo como marcade seu projeto teórico. Tal proposição é corroborada pelanotável preocupação de Nietzsche em buscar elaboraras trilhas sobre as quais a produção de conhecimentopudesse seguir como um instrumento para assegurar oentendimento do mundo mas sempre mantendo abertasas vias para novas interpretações.

Para desenvolver tal tarefa, dividimos este textoem três momentos: O primeiro que recapitula a gênesede BM, indicando como esse livro foi produzido em umcontexto de seminal importância no pensamento madurode Nietzsche. O segundo que apoiado no desenvolvimentocrítico do primeiro aforismo apresenta o problema danoção de verdade da tradição. O terceiro que apontaressonâncias da vontade de verdade.

I

A primeira pergunta que se pode fazer é por queescolher Para Além de Bem e Mal como norte se emoutras obras também encontramos formulações tãoconclusivas acerca da verdade?

Antes de responder diretamente a questão,observemos alguns aspectos acerca da natureza e

1 Doravante BM.

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estrutura de BM. Giorgio Colli nos apresenta a atmosferaque paira sobre a concepção do livro:

Um filósofo, que sente não se ter ainda realizadoplenamente como tal, que falou dos Gregos, que seexpressou como psicólogo, moralista, historiador, quefinalmente alcançou a efusão lírica em Assim FalouZaratustra, mas quer afirmar-se também no terrenoteórico, tem em vista, talvez até com uma intençãosistemática, legislar sobre os princípios da existência: é esteo Nietzsche do último período, que começa a manifestar-se em Para Além de Bem e Mal. (COLLI, 2000, p. 101).

Já na publicação da quarta parte de Assim FalouZaratustra2, Nietzsche estava preocupado com a edição dessetexto porque acreditava que uma obra terminada seria maisacessível ao público. Mas sem financiamento, o filosofo sóteve fundos para arcar com as despesas de quarentaexemplares. Mesmo com todo esforço, a recepção dosquarenta exemplares foi um completo fracasso de vendas.

Nietzsche continuou sua tarefa, queria ter suafilosofia reconhecida. Para tanto, ele buscou uma editoraque lhe proporcionasse o amparo material necessário àelaboração de um novo título, que funcionaria como portade acesso a toda sua produção intelectual. Em sucessivasreuniões com diversos editores, Nietzsche afirmou queestava pronto para uma nova prensagem de seu livroHumano Demasiado Humano 3. Ele acreditava que comalguns ajustes essa poderia ser sua obra chave, a queserviria como instrumento para compreensão dos seusoutros escritos. Como indicam Giorgio Colli e Mazzino

2 Doravante ZA.3 Doravante HH.

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9Montinari (1980), datam deste período, o verão de 1885,um número significativo de aforismos elaborados comtal propósito.

Mesmo tão obstinado na remontagem dos textos,Nietzsche não obteve sucesso junto às editoras, poismais uma vez não havia conveniência mercadológicapara custear sua produção. Aliado a esse problema, seuantigo editor, Ernst Schemeitzner, reivindicava umaconsiderável quantia para destruir os antigos exemplaresremanescentes da última tiragem de HH. Naquelemomento, quaisquer planos que passassem pelareprodução do livro trariam bastantes dificuldades.

Depois de algum tempo, esbarrando nosrecorrentes entraves que permeavam a possívelreedição, Nietzsche vê suas anotações crescerem etomarem corpo de modo a alcançarem volumesuficientemente grande para satisfazer as exigências deuma nova obra. Então,

[...] a partir do material que ele havia deixado escritono verão de 1885 para uma nova edição de HumanoDemasiado Humano, Nietzsche preparou ummanuscrito para impressão: “eu estou em processode recopiar, eu avanço muito, muito lentamente.”(carta à sua mãe, 23 de fevereiro, 1886). A cópiatransformou-se em uma nova obra: “Eu tinhautilizado este inverno para escrever uma coisa plenade dificuldades, se bem que minha coragem parapublicar, por alguns instantes, hesita e treme. Este[livro] se chamará Para Além de Bem e Mal - Prelúdioa uma filosofia do futuro”. (carta a Gast, 27 de março1886) (COLLI; MONTINARI, KSA XV, p. 156).

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Mesmo analisando o espólio e as cartas deixadaspor Nietzsche, é praticamente impossível estabelecercom exatidão um período ao qual possa ser creditada aconcepção efetiva dos aforismos que deram origem a BM.Existem extratos, que entraram na composição do livro,cujos originais datam do verão de 1881, outros do invernode 1882-1883. (PACUAL, 1997, p. 07) Entretanto, mesmopossuindo textos elaborados em um período mais antigo,é possível entender a que veio o novo livro, pois seunúcleo argumentativo fora concebido de acordo com doisparâmetros: (i) como vimos acima, a proposta dereedição de HH 4; (ii) o conjunto de algumas anotaçõesrealizadas no período de elaboração de ZA, como atesta opróprio Nietzsche ao escrever uma primeira versão doprólogo na primavera de 1886:

Este livro é composto por textos escritos ao mesmotempo que Assim Falou Zaratustra, mais exatamente,durante os intervalos desta produção: seja comorecreação, seja como auto-interrogatório ou auto-justificação, no melhor de um empreendimentoextremamente ousado e cheio de riscos. (W I 8, 238,primavera de 1886).

Portanto, BM parte das teses exploradas em HHremodelado-as de acordo com os conceitos lançados por

4 “Publicado em 1886, Para Além de Bem e Mal é a primeira obraque sucede a Zaratustra. Em certa medida, Nietzsche retoma nelaos temas de Humano Demasiado Humano. [...] O que é essencial éque Nietzsche retoma a um nível superior os temas fundamentaisde Humano Demasiado Humano: desenvolve uma crítica da filosofia,da religião e da moral.” (FINK, 1982, p. 134) Percebemos que aaproximação entre BM e HH é inegável.

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9Zaratustra, a tal ponto de ser entendido por algunscomentadores como uma espécie de “glossário” desteúltimo5.

Após fracassadas tentativas frente às editoras, BMsó fora finalmente publicado em agosto de 1886, quandomais uma vez por conta própria Nietzsche arcou com osgastos da tiragem dos trezentos exemplares.

Tomando seu conteúdo, “este livro (1886) é, emtodo essencial, uma crítica da modernidade” (EH, BM§02), o que frente à ZA significa um reajuste deperspectiva: “o olho, por necessidade tremenda mal-acostumado a ver longe – Zaratustra enxerga mais longeque o tzar –, é obrigado a enfocar com agudeza o imediato,a época, o em torno.” (EH, BM §02) As críticas seestendem “as ciências modernas, as artes modernas,mesmo à política moderna, juntamente com indicaçõespara um tipo antitético que é o menos moderno possível,um tipo nobre que diz Sim.” (EH, BM §02).

Agora podemos, retomar a pergunta apresentadaem parágrafos anteriores: Mas por que manter BM comonorte se em outras obras também encontramosformulações tão conclusivas acerca da verdade?

A resposta: Porque em BM é perceptível queNietzsche pretendia notadamente continuar a “legislarsobre os princípios da existência” (COLLI, 2000, p. 101),

5 Pascual na sua introdução à tradução espanhola de Para Além deBem e Mal. Colli também afirma essa perspectiva de leitura, segundoele: “Que Para Além de Bem e Mal tenha os mesmos conteúdos deAssim Falou Zaratustra é o próprio Nietzsche que o diz, e que umatemática igual esteja já prefigurada na época de Gaia Ciência é fácilde demonstrar através de uma análise desta obra e doscorrespondentes fragmentos póstumos.” (COLLI, 2000, pp. 87, 88).

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mas atuando em um outro plano: “particularmente nocampo da teoria do conhecimento.” (COLLI, 2000, p. 101)Esse é o motivo pelo qual o filósofo dedica os doisprimeiros capítulos do livro (“Dos preconceitos dosfilósofos” e “O espírito livre”) aos temas epistemologia eteoria do conhecimento. Sobretudo, Nietzsche pretendelevar para o campo científico sua hipótese da vontade depoder. O passo inicial para conseguir desenvolver esseprojeto foi atacar a noção de verdade.

II

Passando, então, às linhas iniciais do primeiroaforismo de Para Além de Bem e Mal, lemos: “A vontadede verdade [Der Wille zur Wahrheit], que ainda nosseduzirá a vários riscos, aquela célebre veracidade, queaté agora todos os filósofos têm falado com veneração:que tipo de questões essa vontade de verdade já não nosapresentou!” (BM, §01).

Com essa admirada constatação, Nietzsche colocao leitor perante o tema central desse aforismo, qual seja,a pergunta pela vontade de verdade. Ele quer nos indicarque essa vontade estimulou os pensadores a buscarem oconhecimento, pois é uma força presente em todos osfilósofos. Nessa constelação tão ampla de pensadores, elenão se posicionou do lado de fora, pois também foiseduzido por esta dama.

A sedução tira do caminho os filósofos quetentados unicamente a encontrar a verdade atribuem-lhea função de musa: para ela, os pensadores compuseramsuas questões e elaboraram seus conceitos. O maisimpressionante é que tais questões, levantadas desde a

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9Antiguidade grega, arrastam-se até nossos dias. Sãoproblemas que ainda estruturam o cerne das lucubraçõesfilosóficas, exigindo respostas acerca de: essência/aparência, sujeito/objeto, causa/efeito, unidade,identidade etc. Para Nietzsche, esses problemas nãopassam de “estranhas, graves e discutíveis questões!”(BM, §01). Mas por que não conseguimos nosdesvencilhar de tais indagações que ainda servem denorte às investigações filosófico-científicas? ParaNietzsche, tal incessante busca por uma resposta partede uma “vontade”, quer dizer, de um impulso que poderiaapontar para diversos caminhos mas, no caso da filosofia,tende propriamente à verdade. E por que à verdade?

É esse espírito de dúvida e suspeita que Nietzschepretende imprimir ao seu leitor logo no início de seu livro.Ele quer que olhemos para a história da filosofia e daciência e nos perguntemos: Por que ainda continuamosquestionando a essência das coisas? Por que somenteessa busca pela essência pode servir de parâmetro paraencontrarmos a verdade? De onde vem esse interessedesesperado pela verdade? O que significa identificaressência à verdade?

Tais dúvidas delimitam um marco na história dopensamento ocidental. Abre-se espaço na filosofia nãoapenas para a pergunta pelo “em si” da verdade, mastambém, para a investigação de um impulso, de umapaixão, isto é, de uma vontade. Mais especificamente, aquestão que se coloca segue em direção a desvelar o quevem a ser a “vontade de verdade”.

O curso filosófico pode, então, confluir para umrumo cujo propósito é investigar as “vontades”. Se

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entendermos que, em Nietzsche, ao perguntarmos sobrea vontade estamos transitando em um solo psicológico.Então, a psicologia pode ser considerada como eixofundante também para pensarmos as questões doconhecimento. Sob tal acepção, não nos interessa maisalcançar a verdade “em si”. Queremos saber acerca dascondições daquele que coloca a pergunta pela verdade.Perguntamos sobre a vontade de verdade.

Nietzsche sabe que, mesmo operando tal mudançade registro, ele não pode desconsiderar seus precedentes,pois a história da filosofia se traduz como a história dacultura ocidental – “trata-se de uma longa história” (BM, §01). Entretanto, ao entrar em um campo psicológico equestionar o impulso à verdade, Nietzsche nos apresentaum novo viés sobre o qual nenhum problema havia sidolevantado. Nesse novo domínio, como ainda não háperguntas, não existem respostas. Seria como se oproblema do conhecimento estivesse nascendo. Assimsugere o próprio Nietzsche ao perguntar: “mas não é comose apenas começasse?” (BM, §01).

O problema da vontade de verdade consiste, pois,em um questionamento recente. Entretanto, a buscaincessante pela verdade é um procedimento antigo e domodo como vem sendo abordado pela tradição filosóficadesemboca em duas saídas possíveis assinaladas notrecho abaixo:

Que surpresa, se por fim nos tornamos desconfiados,perdemos a paciência, e impacientes nos afastamos?Se, com essa esfinge, também nós aprendemos aquestionar? Quem, realmente, nos coloca questões? Oque, em nós, aspira realmente “à verdade”? (BM, §01).

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9Nietzsche nos apresenta duas propostas parasolucionarmos o impasse, uma apoiada em um certoceticismo pessimista e outra construída sobre umaperspectiva experimental: (i) ou paramos de perguntar,pois cansamos da tarefa improdutiva de alcançar averdade do mundo; (ii) ou repensamos nossa relação coma verdade e assumimos também a posição da Esfinge,isto é, tomamos para nós a condição de questionar nãosó o mundo, mas também, nós mesmos.

Se seguirmos a segunda possibilidade, que é aproposta defendida por Nietzsche, questionamos o papelda vontade de verdade. Em um precioso exercíciofilológico, ele resgata na tragédia de Sófocles a imagemde Édipo frente à Esfinge: é a Esfinge quem formulaperguntas, ela detém não só o poder de executar a questão,mas também conhece de antemão a resposta. Issosignifica que a Esfinge detém a verdade acerca do que sequer saber. Édipo, por outro lado, é aquele que usa daracionalidade para chegar à verdade. A verdade para elenão está posta, ele deve usar seu intelecto para descobriralgo sobre ela.

Dessa representação metafórica extraímos oreflexo da relação homem-verdade. O homem ocupa opapel daquele que busca incansavelmente desvendar osproblemas que o mundo lhe impõe. Tal acepção doproblema, entretanto, mantém a relação de distânciaentre aquele que quer conhecer e a verdade, sujeito doconhecimento e mundo como objeto de conhecimento.Apóia-se, portanto, na cisão mundo aparente e mundoverdadeiro. Segundo Nietzsche, o grande empecilho paracontinuarmos tratando a questão sob esse ponto de vista

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é que, partindo de tal separação (aparência-essência), a“verdade” nunca foi alcançada. “Acerca do que é a‘veracidade’ ninguém parece ter sido veraz o bastante.”(BM, §177) Sem a noção tradicional de “verdade”, arelação Édipo-Esfinge se mostra infrutífera, o que nossugere que ela deve ser reinterpretada para garantir suariqueza.

Destarte, observemos novamente a citação doaforismo 01, Nietzsche acentua o pronome pessoal “nós”e os pronomes interrogativos “que” e “quem”. Isso indicaque a questão da verdade deve ser posta pelo homem edirecionada para o homem. Não devemos mais pensarem um interior que pergunta e um exterior que fornecerespostas. Perguntas e respostas são produtos humanos,demasiado humanos, logo é imprescindível que ostomemos como valores. A necessidade de ir além da noçãode verdade (já muito utilizada pela tradição) a partir dainvestigação da vontade de verdade é incontornável.Somente através da pergunta pela vontade é queconseguiremos operar essa inversão de valores que seformaram a partir da cisão Édipo-Esfinge (homem everdade).

Na proposta nietzscheana, há na relação Édipo-Esfinge uma completa neutralização de perspectivas: adistância existente entre Édipo – aquele que se colocafrente às questões para tentar descobrir a verdade – e aEsfinge – aquela que tem a guarda da verdade – extingue-se. Sendo a verdade um valor, a própria Esfinge passa aser parte de uma construção do homem, ou seja, foi opróprio Édipo quem inventou e tomou para si a tarefade produzir e desvelar a verdade. Logo, a pergunta pela

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9vontade de verdade se mostra como uma questão dirigidaà própria Esfinge. A pergunta é pela vontade, pelo impulsoa perguntar e deve emergir quando olhamos para nósmesmos e indagamos a que serve e o que significa avontade insaciável de alcançar a verdade.

Caso partíssemos unicamente de uma leiturametafórica da história de Édipo, estaríamos certamentepondo de lado a formação filológica de Nietzsche. O filósofocertamente conduz sua interpretação da tragédia atravésde outra chave, uma leitura que contempla a riqueza doescrito. Isso porque a relação Édipo-Esfinge pode serevelar mais profunda caso atentemos para a polissemiado nome de Édipo, no grego ΟιδιπουσΟιδιπουσΟιδιπουσΟιδιπουσΟιδιπουσ. Oidipous, em umprimeiro momento, significa “pés inchados” pois o termoderiva de oideo (inchar) e de pous (pés), contudo apolissemia do nome Oidipous nos abre a perspectiva paraas mais diversas interpretações 6. Na passagem em queÉdipo decifra o enigma da Esfinge há uma outrapossibilidade de leitura:

Ironia e ambigüidade estão também presentes nadecifração do enigma da Esfinge. A ‘cadela cantora’pergunta qual ser possui dois, três e quatro pés –dípous, trípous, tetrápous. Oidipous respondeacertadademente ‘homem’, isto é, oi-dipous (‘o de doispés’). (VIEIRA, 2001, p. 26).

Ao tomar o homem como resposta à pergunta daesfinge, observamos que Édipo coloca a si próprio comoalvo central seja da pergunta, seja da resposta. Todo

6 Sobre as possibilidades polissêmicas do nome Oidipous, vercapítulo 01 da obra Oedipous at Thebes de Bernard Knox. London;New Have: Yale Universit Press, 1998. p. 03-52.

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questionar vai ter sua resolução construída sobre “o dedois pés”. Isso implica um reposicionamento da noçãode verdade pois a resposta a qualquer pergunta

[...] só é um saber na aparência; ela mascara overdadeiro problema: o que é então o homem? O que éÉdipo? A pseudo-resposta de Édipo abre-lhe todas asgrandes portas de Tebas. Mas, instalando-o na chefiado Estado, ela realiza, dissimulando-a, sua verdadeiraidentidade de parricida e incestuoso. (VERNANT;VIDAL-NAQUET, 1977, p. 91).

Nietzsche, ao remontar a cena entre Édipo e aEsfinge e associá-la à forma trágica como nosrelacionamos com a verdade, indica que por maior queseja o uso que fazemos da racionalidade, nossoconhecimento do mundo consiste em formulações acercade aparências. Não podemos alcançar a “verdade” sobreo mundo quando esse é, unicamente, a interpretação quefazemos dele. Assim, tentar chegar a uma essência purada realidade é um equívoco. A questão fundamental “Oque é Édipo?” independe de nossa intelecção do mundo.Ela só tem solução, como defende Vernant, enquantopseudo-resposta. Portanto, ela só pode ser concebidacomo um experimento, como uma interpretação: comouma leitura de uma vontade.

Nesse movimento, em que a vontade de verdadelança seu olhar sobre ela mesma, Nietzsche traça um novocampo de perguntas e respostas. O importante de estarna encruzilhada é que podemos saltar para uma posiçãocrítica mais profunda, pois “por longo tempo nosdetivemos ante a questão da origem dessa vontade – atéafinal parar completamente ante uma questão ainda mais

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9fundamental. Nós questionamos o valor dessa vontade.”(BM, §01).

O campo aberto, ou seja, a investigaçãopsicológica não mais pretende remeter às causas davontade de verdade. A pergunta “o que?” e “quem?” nosleva a perscrutar o “valor” dessa vontade. Assim, Nietzschenos coloca na posição de legisladores, pois perguntar pelovalor significa assumir a perspectiva de que vivemosincessantemente emitindo juízos, isto é, assumimos umaresponsabilidade descomunal frente a cada evento.

III

A pergunta sobre o próprio impulso desmedidopara alcançar o verdadeiro se torna o ponto central doprimeiro aforismo. Ela desvela a grande perspectivateórica apresentada por Nietzsche em Para Além de Beme Mal, qual seja, a psicologia. Extraímos, então, doquestionamento da vontade de verdade o planofundamental do livro: (i) fugir dos antigos preconceitosdos filósofos; (ii) descobrir em nós aquilo que impulsionaà verdade, isto é, perguntar o que seriam as vontades;(iii) pensar as consequências dessa nova perspectivafrente à cultura, à política, às artes e à sim mesmo. Trêsidéias que só surgem porque

Nietzsche prefere insistir na relação que se mantém coma verdade mais que na verdade ela mesma por considerarque esta relação é que é reveladora, pois mostraria quehá alguma coisa suspeita no projeto filosófico – a relaçãodos filósofos com a verdade não passa de uma relação de‘veneração’, de respeito quase religioso. É de sumaimportância notarmos que essa noção de veneração

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escapa a qualquer determinação teórica objetiva queos filósofos alcem. (WOTLING, 2003, p. 10).

Entretanto neste primeiro aforismo, mesmodeixando aberta à psicologia a possibilidade de perguntarsobre as vontades, Nietzsche manteve seu foco sobre avontade de verdade, ou seja, em um primeiro momento,ele se deteve em torno do âmbito da verdade. Poderíamosnos perguntar: Então como escapar ao problema daverdade se a pergunta pelo valor da vontade de verdade é,em última instância, uma “verdade” sobre tal vontade?

O caminho indicado pelo filósofo para solucionarmosessa questão aponta para um novo percurso: devemosreinterpretar a noção de verdade de um modo tal que “afalsidade de um juízo não chega a constituir, para nós,uma objeção contra ele; é talvez nesse ponto que nossanova linguagem soa mais estranha.” (BM, §04). Casoobservemos com atenção o alcance dessa proposição,realmente nos colocamos em uma situação desconfortávelpois se não é possível valorar um juízo segundo os padrõesde verdade e falsidade, então sob quais parâmetrospodemos balizar nossa leitura do mundo? Como seriapossível prosseguir com investigações filosófico-científicas sem a noção de verdade como medida?Segundo o filósofo, mais do que tentar qualificar umaasserção como verdadeira ou falsa, “a questão é em quemedida ele [um juízo] promove ou conserva a vida,conserva ou até mesmo cultiva a espécie” (BM, §04).

Portanto, a tarefa de um filósofo não mais seidentifica à pesquisa da verdade, mas à interpretação dosdiferentes modos de produzir valores, nesse caso,verdades. “Nietzsche sumariamente observou que tais

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9concepções inventadas, e portanto errôneas, sãoinconscientemente empregadas pelos homens paraoferecer vantagens para a vida e para a ciência.”(VAIHINGER, 2002, p. 341)7.

Nesses termos, a exploração da valoração comoproduto incondicional da vontade de verdade é elevada auma radicalidade tamanha que Nietzsche se permitequestionar: “Certo, queremos a verdade: mas por quenão, de preferência, a inverdade? Ou a incerteza? Oumesmo a insciência?” (BM, §01) Enquanto juízo, a noçãode verdade deve se distanciar daqueles parâmetrosindicados pela tradição. Não há uma causa quecondicione o verdadeiro, a verdade é o que é tal como seapresenta, ou seja, ela consiste em um aspecto valorativo.Sendo um valor, ela não deve ser mais tomada como umfundamento intocável sempre igual a si mesmo. Poroutro lado, ela pode assumir outros sentidos, a saber, ofalso, o incerto.

A partir desse entendimento, surgem novasperguntas que apontam para novas hipóteses. Se, comovimos, já não há mais uma distância entre homem everdade podemos nos perguntar: “O problema do valor

7 No seu livro A filosofia do “como se”, Hans Vaihinger apontou ainfluência kantiana na obra de Nietzsche através das leituras que essefez das obras de F. A. Lange. A presença das proposições de Lange sãoimprescindíveis para que o experimentalismo e o perspectivismo possase desenvolver nos escritos nietzscheanos. “Nietzsche, tal como Lange,enfatiza a grande significação de ‘aparências’ em todos os muitoscampos da ciência e da vida e, com ele, indica a função fundamental ede longo alcance da ‘invenção’ e ‘falsificação’ assim como a influênciafalsificante e a criação poética e, com isso, o valor e a justificação do‘mito’ – não apenas na religião.” (VAIHINGER, 2002, p. 341-342).

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da verdade se apresentou à nossa frente – ou fomos nósa nos apresentar diante dele? Quem é Édipo? Quem é aEsfinge?” (BM, §01) Nietzsche é enfático ao determinara emergência de um novo campo investigativo, vejamos:

Este é, ao que parece, um lugar onde perguntas esignos de interrogação se encontram. E seria deacreditar que, como afinal nos quer parecer, oproblema não tenha sido jamais colocado – que tenhasido por nós pela primeira vez vislumbrado,percebido, arriscado? Pois nisso há um risco, comotalvez não exista maior. (BM, §01).

O risco emerge da condição de tomar a entre avontade de verdade como diretriz de um caminho que levaa um valor, a uma verdade. A verdade deixa de ter umestatuto de lugar incondicional das formas perfeitas domundo ou da natureza. Tanto as idéias de natureza quantode perfeição estariam assim condicionadas àsperspectivas. Não há mais uma ligação necessária entreo “em si” da verdade e aquilo que o mundo. O espaço entretais pontos só pode ser preenchido por uma suposição,um experimento, uma hipótese. Temos que assumir,portanto, a arriscada tarefa de “reconhecer a inverdadecomo condição de vida” (BM, §04). E, nesse domínio, paraadquirir rigor e profundidade,

[...] a vontade de verdade a qualquer custo é compelidaa reconhecer que ‘a verdade’ sobre sua origem temque projetá-la para além dela mesma: a exigência‘incondicional’ de verdade está irremissivelmentecomprometida com condições (elas mesmas ‘nãoverdadeiras’), ou com perspectivas de valor. (GIACOIAJR, 1997, p. 135).

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9“Isso significa, sem dúvida, enfrentar de maneiraperigosa os habituais sentimentos de valor; e umafilosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, apenas por isso,para além de bem e mal.” (BM, §04) Ao explorar avaloração como produto incondicional da vontade deverdade, Nietzsche nos apresenta, a partir de suaperspectiva psicológica, uma proposta na qual ocorreuma inegável aproximação entre pensamento e valor. Apergunta pelos valores tem como objetivo perscrutar oalcance e a profundidade da influência dos impulsos dofilósofo nos seus posicionamentos teóricos, morais oureligiosos. “Nietzsche mostra, assim, como umadeterminação psicológica específica – uma paixão –antecede a atividade filosófica.” (WOTLING, 2003, p. 10).

***

Se, como vimos, o destino da pergunta filosóficaaponta para um impulso, uma “vontade”, então, adistância entre pensar e valorar não se sustenta. Averdade emerge como uma hipótese, um pressuposto,uma ficção regulativa. Essa concepção vai contra aproposta da tradição pois acerca dos filósofos,

[...] todos eles agem como se tivessem descoberto oualcançado suas opiniões próprias pelodesenvolvimento autônomo de uma dialética fria,pura, divinamente imperturbável (à diferença dosmísticos de toda espécie, que são mais honestos etoscos – falam de ‘inspiração’): quando no fundo é umatese adotada de antemão, uma idéia inesperada, uma‘intuição’, em geral um desejo íntimo tornado abstratoe submetido a um crivo, que eles defendem comrazões que buscam posteriormente – eles são todos

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advogados que não querem ser chamados assim, ena maioria defensores manhosos de seuspreconceitos, que batizam de ‘verdades’ (BM, §05).

Presos a seus preconceitos, os filósofoscompuseram os mais diversos enunciados acreditandoque descobriram certezas naturais ao homem. Contudo,no fundo, eles apenas estavam dando uma novaroupagem e defendendo antigas posições morais.Nietzsche chama a tentativa de mascarar taisprocedimentos de “truques sutis dos moralistas epregadores da moral” (BM, §05). Sob o ímpeto da vontadede verdade, eles criaram conceitos e articularamprocedimentos lógicos, de tal modo que ao tratar deverdade, eles permaneceram presos à tentação desolucionar a antiga questão do “problema ‘do mundo reale do mundo aparente’” (BM, §10). Portanto, a buscadesenfreada pelo verdadeiro mantém ainda um dospreconceitos mais antigos e nefastos, a saber, a crençanos opostos8.

8 O combate a uma concepção dicotômica de mundo consiste emuma marca inconfundível dos escritos nietzscheanos. SegundoMüler-Lauter, é por conceber a metafísica fundamentalmente comouma teorização sobre a existência de um mundo das aparências ede um mundo das essências que Nietzsche pôde “se voltarexplicitamente contra a metafísica, mas podemos rapidamente nosconvencer de que ele dela fala apenas no sentido de uma teoria dosdois mundos (Zweiweltentheorie). Se desconsiderarmos esseestreitamento, não pode ser mantida a pretensão de Nietzsche deque sua filosofia não seja metafísica. (...) Mais essencial parece-me, porém, que, por detrás das fachadas, sempre de novo erguidaspor ele, a metafísica desmorona, em conseqüência de seu incessanteperguntar.” (MÜLLER-LAUTER, 1997, pp. 52, 53.)

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9Assim sendo, lemos nos escritos dos filósofos queem oposição a esse mundo no qual vivemos, existe umoutro onde não há obscuridades, incertezas, tampoucomales. Com isso, eles se prendem à rede da metafísicaplatônica. Acerca da forma dicotômica de ler a realidadeatravés da cisão mundo verdadeiro / mundo aparente,Nietzsche escreve:

Esse modo de julgar constitui o típico preconceito peloqual se reconhecem os metafísicos de todos os tempos;esse modo de estimativas de valor está por trás de todasas suas proceduras lógicas; a partir dessa sua ‘crença’,eles se atarefam em torno de seu ‘saber’, em torno dealgo que, no final, é solenemente batizado como ‘averdade’. A crença fundamental dos metafísicos é acrença na oposição dos valores. (BM, §02).

O erro fundamental que figura como a fé nosopostos, sob o qual Nietzsche inscreve todos os filósofos,consiste em crer que para qualquer elemento do mundoexiste uma essência específica que lhe corresponde.

Nietzsche conclui com isso que o trabalho dosfilósofos quase sempre se caracterizou pela confusãoentre essência e valor. Tais filósofos quiseram pensara verdade como essência; viram, no entanto, a partirduma perspectiva histórica, que a verdade não podeser determinada como estável, nem mesmo comoobjetiva. (WOTLING, 2003, pp. 11, 12).

Ao creditar uma essência a um objeto, supomosque há algo a mais do que o modo como o percebemosno mundo. Algo de igual, um substrato que permaneceapesar da forma como os objetos se mostram. Segundo

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Nietzsche, “a crença na oposição de valores” (BM, §02)guia o impulso do filósofo, que para sustentar essa crençaem dois mundos, tenta-se encontrar o fundamento últimode todas as coisas e, ao mesmo tempo, o melhor métodopara dar inteligibilidade à essência das coisas.

***

Nietzsche propôs uma completa inversão deperspectivas, a efetivação da transvaloração dos valores[Umwertung der Werte], ou seja, devemos nos voltar parao velho conceito de verdade e produzir um novo sentido,um sentido mais amplo, que possibilite a multiplicidadede interpretações. Conceber a verdade como essênciaúltima e única das coisas se mostra como uma hipóteseque não acompanha a fluidez e a casualidade do mundo.

Nesses termos, grande parte do empreendimentofilosófico de Nietzsche consiste em aguçar nossossentidos para que entendamos o mundo como umimenso conjunto de valores e que, diante da Esfinge (estagigantesca construção), possamos nos perguntar pelovalor dos valores. É a hora de aprender a colocar questões.

Como o mundo é interpretação, então, não há umaverdade em si, apenas ilusões erguidas sobre valores. Aoentrarmos no mundo estamos nos relacionando commúltiplas interpretações. Nietzsche não diferencia omundo e suas interpretações, para o filósofo, só háinterpretações.

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