FUNDAMENTOS PARA A ElABORAÇÃO DE UMA METODOLOGIA …

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jÁDERSON AGUIAR TEIXEIRA FUNDAMENTOS PARA A ElABORAÇÃO DE UMA METODOLOGIA DE TREINAMENTO AUDITIVO-MUSICAL Introdução Começamos a pensar neste trabalho quando, através do gosto pela música e de certa experiência musical, nos vimos circunstancialmente incentivados a ensinar uma dis- ciplina chamada Treinamento Auditivo.' Ora, o pensamen- to seguinte que fosse ao mesmo tempo pragmático não poderia ser outro: como ensinar isto. Estavaclaro que uma metodologia nos seria imprescindível, e a dificuldade resi- dia justamente em que não havíamos encontrado referencial norteador com que nos contentássemos entre os professores dessadisciplina que encontramos no decorrer de nossacar- rei ra discente. Isto somado à dificu Idade que encontramos em acessar dissertações sobre o assunto nos entusiasmou pelo que poderíamos tornar-nos úteis. A propósito de de- monstrarmos que não fomos displicentes em nosso proces- so de coleta, que diz respeito ao reconhecimento dos trabalhos escritos sobre o assunto, com certo esforço conse- guimos encontrar dois trabalhos mais próximos do nosso tema. Um deles realizado pelo professor Gerardo Iúnior-' que formulou um software de treinamento auditivo aqui, e outro pelo violonista Eduardo Carnpolina ' que faz um ba- lanço e relaciona percepção musical e criatividade no am- biente do fazer pedagógico. Todavia, nosso objeto é menos pretensioso por um lado, por outro, anterior e ainda em outro sentido, posterior ao deles. É anterior porque só buscamos fundamentar um cami nho para o desenvolvi mento da acuidade auditiva vol- tada para a música, oferecendo modelos esquemáticos na ordem devida de aplicação. É menos pretensioso porque não chega a relacionar diretamente a percepção musical à possi- 1 Disciplina ofertada no Curso Técnico em Música do CEFET-CE. 2 Professor Mestre do Curso de Educação Musical da UFC. 3 Professor Mestre de Composição da Escola de Música da UFMG. 148

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FUNDAMENTOS PARA A ElABORAÇÃO DE UMAMETODOLOGIA DE TREINAMENTO AUDITIVO-MUSICAL

Introdução

Começamos a pensar neste trabalho quando, atravésdo gosto pela música e de certa experiência musical, nosvimos circunstancialmente incentivados a ensinar uma dis-ciplina chamada Treinamento Auditivo.' Ora, o pensamen-to seguinte que fosse ao mesmo tempo pragmático nãopoderia ser outro: como ensinar isto. Estavaclaro que umametodologia nos seria imprescindível, e a dificuldade resi-dia justamente em que não havíamos encontrado referencialnorteador com que nos contentássemos entre os professoresdessadisciplina que encontramos no decorrer de nossacar-rei ra discente. Isto somado à dificu Idade que encontramosem acessar dissertações sobre o assunto nos entusiasmoupelo que poderíamos tornar-nos úteis. A propósito de de-monstrarmos que não fomos displicentes em nosso proces-so de coleta, que diz respeito ao reconhecimento dostrabalhos escritos sobre o assunto, com certo esforço conse-guimos encontrar dois trabalhos mais próximos do nossotema. Um deles realizado pelo professor Gerardo Iúnior-'que formulou um software de treinamento auditivo aqui, eoutro pelo violonista Eduardo Carnpolina ' que faz um ba-lanço e relaciona percepção musical e criatividade no am-biente do fazer pedagógico.

Todavia, nosso objeto é menos pretensioso por umlado, por outro, anterior e ainda em outro sentido, posteriorao deles. É anterior porque só buscamos fundamentar umcami nho para o desenvolvi mento da acuidade auditiva vol-tada para a música, oferecendo modelos esquemáticos naordem devida de aplicação. É menos pretensioso porque nãochega a relacionar diretamente a percepção musical à possi-

1 Disciplina ofertada no Curso Técnico em Música do CEFET-CE.2 Professor Mestre do Curso de Educação Musical da UFC.3 Professor Mestre de Composição da Escola de Música da UFMG.

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bi lidade subjetiva de criação, embora esclareça esta possibi-lidade. Tampouco visa a facilitar o ensino mediante tecno-logias. Mas é posterior em certo sentido, pelo que buscamostranspor o persistente estranhamento auditivo-cultural queainda experimentamos ao nos depararmos com a música doséculo XX. Queremos expor e abordar as alegações que noslevam a pretender a superação desse estranhamento.

Primeiras Veredas da Percepção Musical

Buscando um princípio sobre o qual soerguer nossafundamentação para um método de treinamento auditivo-musical, procuramos interesses semelhantes entre os anti-gos e encontramos em Descartes o método de conduzir porordem os pensamentos, iniciando pelos objetos mais sim-ples e fáceis de conhecer, para elevar-nos, pouco a pouco,como galgando degraus, até o conhecimento dos mais com-postos, e presumindo até mesmo uma ordem entre os quenão se precedem naturalmente uns aos outros (DESCAR-TES, 1989). Considerando que nosso primeiro problema éo de saber por onde devemos começar nosso treinamentoauditivo e o que precisa ser deixado para depois, parece-nos proveitosa sua máxima. Sobretudo porque Descartes nospermite avaliar o caráter artificial do método quando pre-coniza a possibilidade de uma ordem antinatural de examedo objeto, quando necessário. Confirmaremos essa necessi-dade mais abaixo no decorrer do artigo, no entanto adianta-remos um esboço em uma palavra: mesmo sendo o somharmônico in natura, será preciso começar a estudá-Io emsua dimensão horizontal e secundária."

O canal através do qual é viabilizada a possibilidadede receber informações de cunho musical é a audição. Con-tudo, na medida em que considerarmos a música enquantoIinguagem, tal canal não basta para a ap reensão do conteú-

4 Tomamos por dimensão horizontal e secundária aquela circunscritano conceito de melodia. Horizontal porque se dá sucessivamente, umsom de cada vez, no tempo. Secundária porque deriva da dimensãoharmônica cuja simultaneidade inerente sugere uma vertical idade. Vol-taremos a essa discussão mais abaixo.

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do inerente ao texto musical. Não poderemos entender es-sas informações do ponto de vista científico, se não conhe-cermos, as formas através das quais ela pode se manifestar.Três manifestações elementares precisam ser vivenciadas: aharmônica, a melódica e a rítmica.

O aprendizado dessas três manifestações depende daexperiência obtida pelo hábito de escutar, ajudado pelocontato com a prática instrumental individual e em con-junto, pelo conhecimento da história e dos recursosestilísticos que cada época ou compositor estabeleceu.

O treinamento auditivo será estabelecido num lugarem que a manifestação desses três princípios poderá ser expe-rimentada de forma oposta a que um músico prático faz aoexecutar seu instrumento. Na prática o instrumentista reti raos sons da partitura, por assim dizer - se não os têm dememória. Aqui ele fará o contrário, vai codificar o que escu-tou. Portanto, o material musical escutado deverá ser registradopelo treinando e a escrita que adotaremos será a tradicional.

Porém sabemos largamente que esse exercício não ésequer concebível, do ponto de vista didático-interdisciplinar,sem uma experiência musical paralela em que o estudanteesteja envolvido e de que falamos mais acima. Consideran-do que a relação direta entre as diversas formas de praticarmúsica e nosso treinamento perceptivo foge ao domínio quedecidimos abranger, precisamos ao menos pressupor quenossos discentes terão condições de arrecadar um mínimo deconhecimento que viabilize nosso enfoque.

Não se pode desenvolver criticidade alguma sobre oque não se escuta direito de forma que é necessário apren-der a escutar melhor e com mais precisão. Ao passo quenos esforçarmos para codificar os sons através de símbolos,ou seja, através da escrita tradicional, teremos como me-lhor avaliar objetivamente, no decorrer do processo, o quan-to se tem progredido. De forma a reconhecer nossasdisposições. Se senti mos mais faci lidade em compreenderum ritmo, se parece mais duro escutarmos uma progressãoharmônica do que uma melodia e se a progressiva dificul-dade que sentimos, a depender dos elementos a serem rece-bidos, corresponde de fato ao exercício de apreensão de ummaterial musical mais complexo para nós.

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o teórico e compositor Arnold Schoenberg, consi-derou em seu tratado de harmon ia ser mais d ifíci I escutaruma harmonia do que uma melodia. Segundo ele uma me-lodia não passade uma análise harmônica, uma forma ho-rizontal e sucessivade expressãoda harmonia que a sustenta(SCHOENBERG, 1949). Do que poderíamos aproveitar que,partindo do mais simples deveríamos, antes de irmos à har-monia, exercitarmos passagensmelódicas. Equanto ao lu-gar do ritmo na ordem de princípios a serem estudados oque temos a dizer por nossaconta é que embora este seja ofundamento da possibilidade de articulação melódica, veri-ficado isoladamente corresponde a um recurso mais fácilde perceber. Por isso devemos começar nosso treinamentoauditivo a partir de exercícios rítmicos.

Não há dúvida de que essaúltima verificação precisaser confirmada já que uma parte considerável da expres-sividade de um Stravinsky, por exemplo, reside em umarítmica complexa. Então precisamos discorrer acerca dessasuposta 'simplicidade' em perceber o ritmo. Talvez consi-gamos nos retratar com o auxílio de Wisnik. Emseu livro OSom e o Sentido ele considera que o ritmo pode ser enten-dido como o som em uma freqüência tão baixa que aindanão recebeu habilitação acústica para reverter-se em altura(WISNIK, 1999). De onde depreendemos que o ritmo é umelemento intrínseco ao som in natura e que ao mesmo tem-po é anterior ao som em sua plenitude de possibilidadesporque não compreende a rigor sequer uma altura definida.

Talvez fosse o suficiente para considerar que dentreastrês manifestações que pautamos, o ritmo é o mais rudi-mentar já que antecede a possibilidade de altura fixa e con-seqüentemente, da existência melódica e harmônica. Porém,há mais o que se discutir.

O som é a substânciasuficiente de onde sedepreendeos elementos básicos que são usados na música como re-curso lingüístico a partir dos quais, no decorrer da história,inventamos maneiras de manusear esse mesmo som. Esseciclo pode ser representado pelo esquema síntese-análise-neosíntese. Do reconhecimento e habilidade artística emarticular os elementos constituintes do próprio som, é quedepende a música. Em sua obra Os Caminhos para a Músi-

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ca Nova, Webern diz que cada vez que um novo harmônicomais distante do som fundamental foi utilizado, a músicadeu mais um passo (WEBERN, 1984).

É verdade que uma altura possui uma quantidade debatimentos que podemos entender, sob certa influência deWisnik, como a parte rítmica do som que aprendemos ausar. Mas esse ritmo reduzido a batimentos por segundo érudimentar apenasantesde sermanuseado, porque se reduza uma pulsação. Não existe melodia sem um ritmo condu-tor e essacondução precisa ser cuidadosamente pensada.Portanto, em uma frase musical, o ritmo é tão pensadoquanto as alturas que vão compor uma melodia.

Nosso intuito em examinar o lugar do ritmo entrenossoselementos de estudo visa tão somente confi rmar poronde devemos começar nosso treinamento e parece queencontramos um termo. Começaremos nosso treinamentoauditivo por exercícios rítmicos. Não porque seja um recur-so menos sofisticado, mas por ser mais simples do que amelodia quando afastamos desta as alturas. Da mesma for-ma poderemos fazer em relação às alturas que podem serestudadas isoladamente para que em um terceiro momentopossamos juntar o ritmo e as alturas para que sejam perce-bidas enquanto passagemmelódica.

Outra fase da construção desta metodologia trata danecessidade de trabalhar com os outros dois parâmetros dosom, a saber: timbre e intensidade. Pode parecer prescindí-vel deliberar sobre isso, mas a importância que dermos àintensidade e, sobretudo ao timbre, implicará em tornar aexperiência de perceber elementos musicais no mínimo maiscontemporânea.

Schoenberg, mentor da segunda escola vienense,falava no começo do século passado a respeito da idéia dese manipular o timbre de modo que pudesse gerar estrutu-rassemelhantes a um pensamento:

Acho que o som faz-se perceptível através do tim-bre, do qual a 'altura é uma dimensão. O timbre é,portanto, o grande território e a altura, um distrito.A altura não é senão o timbre medido em umadireção. Se é possível, com timbres diferenciadospela altura, fazer com que se originem formas que

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chamamos melodias, sucessões cujo conjuntosuscita um efeito semelhante a um pensamento,então há de ser possível, a partir dos timbres [...]produzir semelhantes sucessões [...] Melodia detimbres! (...) Que espírito sublimemente desenvol-vido o que possa encontrar prazer em coisas tãosutis!" (SCHOENBERG, 1949, p. 578).

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Satie, de quem Debussy foi admirador e amigo, tam-bém sugeria com ironia bem humorada que, no timbre, amúsica abriria possibilidades que o Tonalismo, por exem-plo, já não possuía em sua época, quando comenta: "lim-par o som. Isto é imundo, sabiam?" (WISNIK, 1999). Oque Satie satiriza aqui é um tipo de ideal estético de refina-mento sonoro construído na cultura ocidental, que restrin-ge o som de seu uso integral.

Schaeffer,criador das primei rasobras de música con-creta, demonstra grande interesse em criar uma novatextual idade com interesse especial no timbre, preocupan-do-se em tentar separar o musical do não-musical e emhierarquizar elementos. Diferencia corpo sonoro (produtorde som não necessariamente musical), objeto sonoro (somproduzido a parti r do corpo sonoro) e objeto musical (ma-terial captado cujo conteúdo foi avaliado e escolhido a par-ti r do objeto sonoro). Apreciando o som de uma chapa deferro com parcial agudo comentou: "Esse objeto sonorocontém pelo menos dois objetos musicais". E lança sobreeste argumento uma ressalva:

Está na hora de lembrar que as manipulaçõesfísicas não garantem os efeitos musicais". Paraele os critérios de escolha dos objetos musicaisaparecem a partir da apreciação do objeto sono-ro registrado no corpo sonoro, que é a fita mag-nética. N Assim, nos exercitamos a não maisrecorrer às causas para revelar os efeitos, e adescobrir nesses efeitos da sonoridade os critéri-os de objeto. (SCHAEFFER, 1966).

Portanto, a questão da incorporação do timbre entrenossostópicos de estudo é digna de nota e em estudos futu-

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ros, examinaremos tal problemática no exame objetivo dasexperiências musicais do século XX. Buscaremos aí umaforma de observá-lo que seja didaticamente produtiva, jáque apenas para as três primeiras fases gerais do nosso trei-namento - rítmica, melódica e harmônica - temos umaidéia de como proceder e delimitar nossas fronteiras. Oproblema para encontrar uma forma de estudo do timbreque seja efetivamente edificante nos incomodará enquantonão soubermos lidar com o caráter experimental eespeculativo que permeia o universo do timbre.

Em relação ao parâmetro intensidade, também esterecebe no século XX uma resignificação. Assim como o tim-bre, ele por vezes é redimensionado de quantidade sonorapara qual idade, ou seja, os compositores começam a atribui rà intensidade a autonomia de gerenciar mesmo uma frasemusical completa. Ora, pode-se aqui perfeitamente parti r dapremissa de criar um segmento de cerca de dez segundos,cuja intenção seja um contínuo crescendo com forma deexecução devidamente especificada por extenso pelo com-positor. Beethoven nesse sentido antecipa-se um século quan-do em 1821 compõe para piano uma fuga: allegro ma notropo em lá bemol (sonata no. 31, op 110), cujo fi nal dasecção central inclui um acorde repetitivo de sol maior emque a expressão não pode residir senão na obstinação e naflexão dinâmica que o compositor pede. É inócuo imaginar adificuldade de seus contemporâneos em cornpreendê-lo. En-tretanto o famoso argumento de Beethoven: "gostarão maistarde" parece também aqui apropriado.

De modo algum pretendemos fazer entender que ograu de expressão que se espera desses últimos parâmetrosem análise (timbre e intensidade) foi aumentado, mas mos-trar que seu valor é que sofreu modificação. É neste sentidoque Wisnik fala em redimensionamento sonoro e que nospreocupamos em lidar com esse assunto.

Entretanto, como nosso intuito inicial é o de prepa-rar nossos alunos a parti r de exercícios dos mais rudimenta-res até os tonais de oito compassos incluindo melodia eharmonia simultâneas, seríamos precipitados demais se fôs-semos mais longe antes de proceder uma etapa fundamen-tal. Com o término dela, forneceremos suporte necessário

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para que nossos alunos avancem no reconhecimento de novassignificações sonoras por relação com o antigo sistema to-nal. Sabemos que a possibilidade de relacionar o velho como novo é um fundamento seguro para o conhecimento donovo ou pelo menos útil. Falaremos sobre isso mais adiante.

Essasúltimas considerações nos levam a uma palavrade digressão sobre o desconforto que surge do fato de que aarte como objeto a ser ensi nado e a arte como meio de expres-são, ao mesmo tempo que caminham na mesma direção, umaatrás da outra, buscam rumos diferentes. Aquela parte do queé conhecido e precisa ser sabido e esta parte da possibilidadede conhecer de um jeito que ainda é demasiado novo para serobjeto de instrução. É por isso que é difícil pensarem ensinara criar arte. Como ensinar o que está sendo inventado? Ospróprios gênios precisariam de qualidades as quais ainda nãoas encontramos entre eles para ensinar a criar. Falo, sem es-quecer da criatividade possível a qualquer inteligência media-na, daquela criação que só o futuro compreende e consagra.Daquela apreciada pelo crítico mais arguto: o tempo. Por isso,ficamos inclinados a conduzir nossos discentes pela senda se-gura do que eles precisam aprender, com o cuidado de esti-mular em cada qual a parcela de criatividade que, com muitoescrúpu 10, avaliamos poder exigi r! A responsabi Iidade não épequena, corremos grande risco aqui ...

Por último, gostaríamos de citar o posicionamentode personalidades dessemelhantes tanto quanto à área quan-to à época em que atuaram e que contudo corroboramconosco naquilo que tange a necessidade de perceber cons-cientemente para que se possa, através de um jogo de rela-ções viabilizado, chegar a obtenção de conhecimento.

Spinoza, fi lósofo racionalista, trata de estabelecer en-tre quatro modos de percepção o modo mais adequado deapreciação objetiva da Natureza, antes de versar sobre o ca-minho pelo qual conheceremos as coisas (SPINOZA, 1972).Charles Peirce, criador da ciência dos signos e doPragmatismo, valoriza a percepção enquanto condicional nafundação do pensamento. (SANT AELLA, 1993). Koellreutter,musicólogo e compositor, refere-se à percepção como umprocesso de comparação essencial para a compreensão dosfenômenos do mundo (ZAGONEL & CHIAMURELA, 1985).

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A Administração do Repertório de Signos Musicais

Neste tópico, gostaríamos de nos apropriar de deter-minados estudos da Semiótica que julgamos imprescindí-veis para a obtenção de um processo de controle de repassede informações em nosso treinamento auditivo. Pensamosque tal controle facilitará a nossa compreensão da melhorforma de tornar perceptíveis os fatos musicais cuja apreen-são e codificação exercitaremos.

A ciência dos signos, a Semiótica, é relativamentenova; data do final do século XIX. Foi fundada pelo ameri-cano Charles Peirce e também recebeu importante contri-buição do suíço Ferdinand de Saussure.A Semiótica seocupado estudo do processo de significação na natureza e na cul-tura. Em um filme - exemplo característico de objeto deanálise semiótica - busca-se o significado da ordenaçãodos elementos constituintes de sentido, o significado finalque emerge do encadeamento das cenase do enredo: o sig-nificado do significado. Contudo não queremos aqui em-preender digressão alguma, somente nos por a par dedeterminados resultados desta ciência que nos ajudarão naestruturação do nosso método.

Um dessesresultados provém dos estudos de Peircee derivam dasCategorias Universais do Signo: Primeiridade,Secundidade e Terceiridade. Na Primeiridade é onde ocor-re, por acaso,a apresentação do fenômeno à consciência. ASecundidade corresponde à etapa em que a consciência focao fenômeno e procura entendê-Io. Ea Terceiridade lida como processo de interpretação geral do fenômeno.

Os fenômenos com que nos ocupamos, no que tan-ge ao nosso trabalho, sãodeterminados fatos musicais. Por-tanto, a característica da Primeiridade não seenquadra emuma metodologia porque o fenômeno a ser apreendido emum método é previsto. A Terceiridade foge ao nosso âmbi-to de estudo, pois se enquadra em um objeto cujareflexividade adequa-se melhor a Análise MusicalFenomenológica; já que aí não são asconexões internas dodiscurso que mais interessam, mas o produto geral dessasconexões. Pelo que concluímos que nossa tarefa residirá

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em facilitar a Secundidade, o repasse dos fatos musicais.Nesse nível poderemos tomar consciência dos elementosbásicos (ritmos, acordes, escalas...), que ajudam a engen-drar um organismo musical; um meio de expressão, afinal.

Porém, é do Estruturalismo, derivado do Curso deLingüística geral de Saussure,que advém nossamais valiosaajuda. O Estruturalismo defende que, em qualquer lingua-gem, cada elemento constitui nte só pode ser defi nido pelasrelações de equivalência ou de oposição que mantém comos demais elementos. Essaconsideração nos ratificou aimportância do estabelecimento de critério na administra-ção de signos musicais, visando facilitar a percepção cons-ciente, a Secundidade.

Nosso critério seráo seguinte: adotaremos um modode acumular o reconhecimento de signos musicais a partirde um processo de oposição simples, ou seja, dotado de

,apenas dois elementos. Eantes de acrescer ao domínio des-~seselementos reconhecidos um terceiro, compararemos pelo

menos um deles com o terceiro para só então reuni-Ios aomesmo domínio.

Por exemplo, se os fatos a serem exercitados foremos acordes. Começaremos pela administração dois signos,como estabelecido. Façamos uma comparação das tríadesmaior e menor, confrontando-os sempre. Superada estadi-ficuldade de percepção, compararemos um novo signo compelo menos um dos já exercitados. Por exemplo, a tríadeaumentada com a tríade menor. Procurando imperativamenteconciliar informação à redundância, comparando algo co-nhecido com algo novo para ensinar o novo.

Procedendo assim, facilitaremos não somente o pro-cessode apreensão de significados quanto o da codificação.A codificação corresponde a segunda fase da percepção ecorresponde ao registro dos signos através dos símbolosmusicais, ou seja, a uti lização do pentagrama para a escritado que foi escutado. Também ressaltamos que esse é omelhor modo que encontramos para faci litar o aumentogradual da memória musical. Não há como conceber umaumento de memória sem um domínio crescente e geral-mente lento de acúmulo de reconhecimento de signos. Épreocupando-nos com a aquisição gradativa de maior re-

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pertório? de signos musicais que exercitaremos a memóriapara que realize a sua tarefa.

Esquemática dos Grupos de Treinamento

A partir dos fundamentos que levamos em conside-ração estabelecemos quatro grupos de exercícios e aqui osapresentamos. São fatos elementares porquanto fundamen-tais na sintática musical; não podemos construir motivos,frases musicais, sem a presença de pelo menos um deles.Trataremos de fatos rítmicos, intervalares e melódicos, to-nais e também modais, acordes e progressões, sem fugi r àrealidade musical ocidental de tradição.

Grupo I Rítmicos e Intervalares;Grupo 11 As Escalas e os Acordes;G ru po III As Inversões e as Progressões;Grupo IV Melodias Harmonizadas.

Escutamos uma voz obsequiosa de objeção a nosdizer: "Mas de onde vieram, de repente, esses grupos? Aoquê respondemos que apareceram das considerações a par-tir das quais concluímos quais os instrumentos mais ele-mentares dos fatos musicais, o som, o ritmo, as alturas. Aobjeção persiste: "Acontece que os critérios da ordem aquiexposta não foram discutidos, somente impostos" Julgamosparcialmente injusta essa objeção: Dissemos que nos preo-cuparíamos com o aumento gradativo da complexidade eque esse seria o (10SS0 método. Não obstante, reconhece-mos que não explicitamos os critérios específicos para aobtenção da ordem dos grupos de estudo que adotamos, eque até aqui se mostram ocultos. Então, este é o lugar paraesclarecermos isso.

O primeiro grupo de exercícios é fundamental e sobreisso já discorremos o suficiente. O trei namento das escalas eacordes é decorrente do treinamento das alturas e sabemos

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5 Tomamos o conceito de repertório no sentido em que a Semiótica oaplica: enquanto uma gama de reconhecimento de unidades inteligíveise interligáveis que uma vez reunidas de determinado modo, são capazesde produzir uma informação derivada, porquanto dependente do modocomo as unidades menores foram combinadas (SANTAELLA, 1993).

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que são formas posteriores e historicamente falando, artifici-almente desenvolvidas visando à expressão artística a partirdo som manipulado analítica (as escalas) e sinteticamente(os acordes). As inversões e progressões estão em terceirolugar porque é preciso admitir os acordes como o fato básicoa parti r do qual podemos exercitar suas próprias inversões epodemos começar a trei nar as progressões desses acordes. Oquarto grupo representa nosso objetivo mais imediato a par-tirdessas percepções prévias. Precisaremos ter adquirido umaboa experiência a parti r dos outros exercícios para consegui r-mos algum aproveitamento aqui. Tal objetivo explica por-que não quisemos encontrar um lugar para o exercício dapolirritirnia: o polirritmo não é, em geral, a principal dificul-dade numa percepção simultânea de melodia e harmonia.

Conclusão

Nosso intuito no mais das linhas não foi o de criarum método, tampouco falar da forma ou problemática dasua aplicação. Nossa empreita residiu no campo doarcabouço teórico sem o qual estaríamos à mercê da puraexperiência para desenvolver uma metodologia e estaría-mos expostos à parcela de inconsistência teórica advindada não-reflexão ontológica.

Em fim, esperamos ter mantido em geral a ressalvaque relaciona, comporta e ambienta nossos fundamentos ea arte aos seus devidos lugares:

E o que queremos ter por leis são, talvez, apenasleis que governam nossa percepção, mas nãoleis que a obra de arte tenha que cumprir. O fatode acreditarmos vê-Ias na obra de arte é seme-lhante ao que ocorre com o espelho: acredita-mos vermos nele, apesar de não estarmos dentro.A obra de arte consegue refletir o que se enxerganela. Nisto podem ser conhecidas as condiçõesque a nossa capacidade de entendimento esta-belece, ou seja: um reflexo de nossa própria na-tu reza. Mas esse reflexo não mostra o plano deorientação da obra de arte, e sim o nosso méto-do de orientação. (SCHOENBERG, 1949, p. 73).

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