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Jornal da UFRJ Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano 4 • Nº 39 • Novembro de 2008 Entrevista Eduardo Portella 13a16 28 Andar altivo e derramando simpatia, Eduardo Portella estava visivelmente feliz ao reencontrar – exatamente no dia em que completava 76 anos, em 8 de outubro último – antigos colegas da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ, quando aqui esteve para participar do I Simpósio dos Programas de Pós-graduação do Centro de Letras e Artes (CLA). Intelectual de renome internacional, carrega, com orgulho, o título de professor emérito da UFRJ. Nesta entrevista concedida ao Jornal da UFRJ, sem perder o garbo e a ironia refinada, como se fosse o primeiro compromisso do dia, fala animadamente acerca de sua juventude, conta histórias dos bastidores do poder e revela como passou de crítico literário a ensaísta. 8 a 11 Um literato sedutor ZOPE O neoliberalismo morreu? 6 e 7 A v i d a n ã o s e r e s u m e e m f e s t i v a i s Rio de Janeiro, setembro de 1968. Mais de 20 mil pessoas lotam o Maracanãzinho com cartazes, agitando bandeiras e transformando o III Festival Internacional da Canção (FIC) em uma arena de batalha. O que menos importava era ouvir as músicas e ver as performances de artistas. O anúncio da vitória da música “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque, foi a senha para a mais furiosa e constrangedora vaia já dirigida a um grande compositor na história da MPB. Elaborado por comitê técnico, o documento apresenta propostas que influirão nas vidas não apenas de estudantes, professores e técnico- administrativos, como também dirão respeito a todos aqueles que freqüentam a UFRJ, residem nas imediações ou simplesmente habitam o Rio de Janeiro. O mundo convulsiona-se em mais uma crise, oriun- da de um dos setores mais desregulamentados da economia: o mercado financeiro. Os mecanis- mos de Estado mais uma vez são acionados para corrigir os desatinos pro- duzidos pela “mão invisí- vel” do mercado. 20 a 21 O grande pregador Emigrado para o Brasil com sua família, quando tinha apenas seis anos de idade, o lisboeta Antônio Vieira (1608-1697) tornou-se nome emblemático na literatura e na política, tanto no Brasil, quanto em Portugal.

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Jornal da

UFRJGabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano 4 • Nº 39 • Novembro de 2008

EntrevistaEduardo Portella

13a16

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Andar altivo e derramando simpatia, Eduardo Portella estava visivelmente feliz ao reencontrar – exatamente no dia em que completava 76 anos, em 8 de outubro último – antigos colegas da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ, quando aqui esteve para participar do I Simpósio dos Programas de Pós-graduação do Centro de Letras e Artes (CLA). Intelectual de renome internacional, carrega, com orgulho, o título de professor emérito da UFRJ. Nesta entrevista concedida ao Jornal da UFRJ, sem perder o garbo e a ironia re� nada, como se fosse o primeiro compromisso do dia, fala animadamente acerca de sua juventude, conta histórias dos bastidores do poder e revela como passou de crítico literário a ensaísta.

8 a 11

Um literato sedutor

ZOPE

O neoliberalismo morreu?

6 e 7

“A v

ida

não

se r

esum

e em festivais”

Rio de Janeiro, setembro de 1968. Mais de 20 mil pessoas lotam o

Maracanãzinho com cartazes, agitando bandeiras e transformando o III Festival Internacional da Canção (FIC) em uma arena de batalha. O que menos importava era ouvir as músicas e ver as performances de artistas. O

anúncio da vitória da música “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico

Buarque, foi a senha para a mais furiosa e constrangedora vaia já

dirigida a um grande compositor na história da MPB.

Elaborado por comitê técnico, o documento apresenta propostas que influirão nas vidas não apenas de estudantes, professores e técnico-administrativos, como também dirão respeito

a todos aqueles que freqüentam a UFRJ, residem nas imediações ou simplesmente habitam o Rio de Janeiro.

O mundo convulsiona-se em mais uma crise, oriun-da de um dos setores mais desregulamentados da economia: o mercado fi nanceiro. Os mecanis-mos de Estado mais uma vez são acionados para corrigir os desatinos pro-duzidos pela “mão invisí-vel” do mercado.

20 a 21O grande pregadorEmigrado para o Brasil com sua família, quando tinha apenas seis anos de idade, o lisboeta Antônio Vieira (1608-1697) tornou-se nome emblemático na literatura e na política, tanto no Brasil, quanto em Portugal.

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Reitor Aloísio Teixeira

Vice-reitora Sylvia da Silveira Mello Vargas

Pró-reitoria de Graduação (PR-1) Belkis Valdman

Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa (PR-2)

Ângela Maria Cohen Uller

Pró-reitoria de Planejamento e Desenvolvimento (PR-3)

Carlos Antônio Levi da Conceição

Pró-reitoria de Pessoal (PR-4) Luiz Afonso Henriques Mariz

Pró-reitoria de Extensão (PR-5) Laura Tavares Ribeiro Soares

Superintendência Geral de Administração e Finanças

Milton Flores

Chefe de Gabinete João Eduardo do Nascimento Fonseca

Forum de Ciência e CulturaBeatriz Resende

Prefeito da Cidade UniversitáriaHélio de Mattos Alves

Sistema de Bibliotecas e Informação (SiBI) Paula Maria Abrantes Cotta de Melo

Coordenadoria de Comunicação (CoordCom) Fortunato Mauro

Fotolito e impressão Newstec Gráfi ca e Editora

25 mil exemplares

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Cidade Universitária CEP 21941-590

Rio de Janeiro – RJ Telefone: (21) 2598-1621 / 1622

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JORNAL DA UFRJ É UMA PUBLICAÇÃO MENSAL DA COORDENADORIA DE COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO.

Supervisão editorial João Eduardo Fonseca

Jornalista responsável Fortunato Mauro (Reg. 20732 MTE)

Pauta e Edição Fortunato Mauro e Antônio Carlos Moreira

RedaçãoBruno Franco,

Coryntho Baldez, Márcio Castilho,

Pedro Barreto e Rodrigo Ricardo

Projeto gráfi co Anna Carolina Bayer,

Jefferson Nepomuceno e Rodrigo Ricardo

Diagramação Anna Carolina Bayer

Ilustração Anna Carolina Bayer,

Jefferson Nepomuceno, Patrícia Perez e Zope

FotosAndré Telles, Bruno Veiga,Filó, Gabriela D’Araujo,

Marco Fernandes, Raquel Lima, Sterfeson Faria,

CPDoc JB eAgência Petrobras de Notícias

Revisão Mônica Machado

Instituições interessadas em receber esta publicação devem entrar em

contato pelo e-mail [email protected]

UFRJJornal da

NovembroAgenda

coordenadoras Maria Angélica e Márcia Lisboa, darão sugestões possíveis para intervenções em benefício da saúde do participante.

Há também palestras individuais, com folders explica-tivos, sobre temas diversos: pressão alta, diabetes, HIV e métodos contraceptivos, entre outros. A partir de dados acerca do dia-a-dia dos brasileiros, como a informação de que “metade da população nacional não pratica nenhuma atividade física, o que, associado a uma dieta inadequada, é a maior causa de doenças cardiovasculares”, os estagiá-rios ressaltam a importância das atividades físicas – que melhoram o humor e diminuem a insônia e ansiedade –, e de uma alimentação balanceada e saudável, com indi-cação de alimentos.

Com o objetivo de difundir a corrida de rua como prática esportiva de lazer, a Coordenação de Extensão da Escola de Educação Física e Desportos (EEFD) da Universidade Federal do Rio de Janeiro promove a III Volta da UFRJ, neste ano, ela integra as comemorações dos 200 anos do Banco do Brasil. O evento busca, ainda, valorizar a qualidade de vida e saúde entre as pessoas da comunidade acadêmica e demais cidadãos da cidade do Rio de Janeiro.

Entre os principais desdobramentos acadêmicos e sociais do evento estão: a implementação do Centro Integrado de Atividade Física (CIAF); a implantação do programa “Movi-menta Fundão” e dos projetos “Equipe Fundão de Corridas” e “Atletismo Cidadão”; a valorização da Cidade Universitária como área de convivência apropriada para a prática de ati-

Enfermagem orienta parauma vida mais saudável

A Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN) está promovendo o programa “A saúde das pessoas que trabalham” como proposta de estágio curricular a seus alunos e também orientação junto à comunidade. O programa, já realizado na estação do metrô da Carioca e no Centro de Tecnologia (CT), retorna à Cidade Uni-versitária nos dias 11, 13, 18 e 25 de novembro, das 8 às 12 horas, na Faculdade de Letras (FL), avenida Jequitibá, número 2.151.

Baseado na orientação de hábitos saudáveis e ali-mentação balanceada aos participantes, a partir de uma pequena entrevista e da medição da pressão ar-terial, glicemia, e índice de massa corporal (IMC), os estagiários do 3° período da EEAN, orientados pelas

II Encontro com mestres populares na UFRJ

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A Escola de Educação Física e Desportos (EEFD) da UFRJ promove o II Encontro com Mestres Populares na UFRJ, que contará com a participação de mestres populares de São Paulo, Espírito Santo e Rio de janeiro para oficinas, debates e trocas de experiência. Estarão presentes os grupos Batuque de umbigada, Boi Brilho de Lucas, Fado de Quissamã, Jongo Cafimbinha, Caxambu do Salgueiro, Caxambu de Santo Antônio de Pádua, Folia de Reis Manje-doura da Mangueira, Cirandas de Tarituba. Data: 4 e 7 de novembro. Local: Escola de Educação Física e Desportos (EEFD), Cidade Universitária. Informações: (21) 9236-9102, [email protected] , www2.eefd.ufrj.br/ciafolc.

O evento, promovido pelo Programa de Pós-graduação do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da UFRJ, é destinado a estudantes de graduação e pós-graduação.

Os interessados podem se inscrever até 10 de novembro, na Secretaria de Pós-graduação do curso, no Centro de Ciências da Saúde (CCS), bloco J, sala J1-001, Cidade Universitária.Data: 13 e 14 de novembro. Informações: (21) 2562-6447, [email protected].

IV Jornada em Farmacologia e Química Medicinal

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III Volta da UFRJvidade física intencional e espontânea, conforme preconiza o conceito do CIAF; o envolvimento de distintas áreas de conhecimento e grupos de pesquisas interdisciplinares; e o fortalecimento da prática regular de atividades físico-esportivas como componente do bem-estar e saúde geral.

A corrida será disputada na distância de 10 km. Além das categorias etárias e por sexo, normalmente utilizadas em outras provas, o evento contará com categorias especiais para a comu-nidade interna da UFRJ (estudantes, docentes e funcionários) e para os funcionários do Banco do Brasil. Data: 16 de novembro.Hora: início às 8 horas.Local: Cidade Universitária da UFRJ.Informações: (21) 2562-6806, [email protected].

A Editora da UFRJ convida para o lançamento de mais quatro títulos da Série Didáticos: Violência de gênero e políticas sociais, Suely Souza de Almeida (org.) – Escola de Serviço Social; História da arte no Brasil: textos de síntese, Angela Âncora da Luz (org.), Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira e Sonia Gomes Pereira – Escola de Belas Artes; Neurologia para o clínico, Marleide da Mota Gomes e José Luiz de Sá Cavalcanti (orgs.)– Instituto de Neurologia; e Dinâmica, controle e instrumentação de processos, Belkis Valdman, Rossana Folly e Andréa Salgado (orgs.) – Escola de Química.Data: 13 de novembro – quinta-feira às 18 horas. Local: Fórum de Ciência e Cultura, salão Moniz de Aragão, avenida Pasteur, 250, campus da Praia Vermelha. Informações: (21) 2541-7946 , www.editora.ufrj.br.

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Série Didáticos da Editora UFRJ

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Rodrigo Ricardo

RECICLA UFRJ

Ambientalmente responsá-vel, é este o título que a UFRJ quer em seu currí-

culo, nos próximos anos. Não à toa, as diretrizes do seu Plano Diretor 2020 apontam que a universidade deverá, obrigatoriamente, adotar o reuso das águas, a coleta seletiva de lixo, a economia de energia, o controle dos gases provocadores do efeito estufa, além de preservar as áreas de mangue e de Mata Atlântica existentes em seu campus.

Ao longo da história, os cuidados com o meio ambiente também são atingidos pela crônica fragmentação; significa que em uma unidade qual-quer, um departamento resolve iso-ladamente agir em seus espaços. Esta perspectiva começa a mudar a partir do projeto “Re-conhecer a UFRJ”, da Pró-reitoria de Extensão (PR5), que mapeia as diversas iniciativas de pes-quisa e soluções. Experiência de êxito, como a gestão de resíduos sólidos no Instituto de Química (IQ), torna-se projeto piloto para o “Recicla CT”, da Decania do Centro de Tecnolo-gia, avançando para outros centros acadêmicos. A largada das obras na revitalização, reurbanização e recu-peração dos canais do Cunha e do Fundão sinaliza a esperança de um futuro mais verdejante. Na direção de uma gestão ambiental institucional, em consonância com os tempos de planejamento, surgem idéias como o Parque Tecnológico de Reciclagem.

A superintendente-geral de Ex-tensão, Isabel Cristina Alencar de Azevedo, explica que o projeto ainda está sendo construído e di-

mensionado tecnicamente: “a área ainda precisa ser negociada junto ao Plano Diretor. Imaginamos um local para referência, com espaço para compostagem (processo de decom-posição para materiais orgânicos) e um grande centro de triagem de resíduos sólidos urbanos. No local, reciclaríamos computadores, além de transformar copinhos plásticos (polímeros) em madeira plástica. Por exemplo, o entu-lho de obras, por vezes estacionado no corredor quan-do se reforma al-gum laboratório, poderia ser levado para o parque e virar tijolo”.

Em outubro de 2006, após conhecer de perto a degradan-te rotina de meio milhão de brasi-leiros que sobre-vivem dos aterros sanitários (lixões), o presidente Lula institui o Decreto 5940. A medida prevê a separação dos resíduos re-cicláveis descartados por órgãos e entidades da administração pública federal – na fonte geradora e a sua destinação às associações e coopera-tivas de catadores. A lei acabou por catalisar vários processos na UFRJ. “Desde setembro, a gente já vinha se reunindo para mapear as iniciativas ambientais na instituição. O decreto acaba por nos animar, deslanchan-

do a coleta seletiva”, recorda Isabel Cristina, nomeada pela Reitoria para a implantação da legislação, em fevereiro de 2007, como presiden-te da Comissão de Coleta Seletiva Solidária, conhecida como “Recicla UFRJ”.

Logo no início do trabalho, perce-beu-se que o Núcleo de Solidariedade Técnica (Soltec), da Escola Politéc-nica (Poli) da UFRJ, também estava

radiografando a questão ambiental na universidade. “As ações parale-las representam um problema, pois não potencializam a criação de um projeto sintoniza-do. Neste caso, re-solvemos juntar as forças para evitar a duplicação de diag-nósticos”, explica Isabel, informando que a primeira fase de mapeamento na Cidade Universi-dade está realizada e dividida por áreas

temáticas (disponível em www.pr5.ufrj.br). “Isso nos permite a exe-cução de programas integrados e a articulação de diferentes áreas de conhecimento. Constatamos, por exemplo, que somente no CT exis-tiam sete laboratórios dedicados, há tempos, ao estudo da coleta seletiva. Além disso, no mesmo prédio, o Ins-tituto de Química – que pertence ao Centro de Ciências Matemáticas e da

Natureza (CCMN) – desde 2002, vem praticando a coleta seletiva. Pelo CT concentrar a maior pesquisa nesse tipo de gestão, e contar com expe-riência acumulada, o projeto piloto (o “Recicla CT”) aconteceu lá, mas a partir de setembro inaugura-se o “Recicla CCS” (do Centro de Ciên-cias da Saúde) para resíduos sólidos urbanos”, destaca a superintendente da PR5.

Resíduo zeroEntre 2002 e 2006, o Instituto de

Química recolheu 22 toneladas de lixo químico e urbano. O pioneirismo da unidade acabou se desdobrando no recente projeto “Gerenciamento de resíduos químicos e lixo urbano na universidade: construindo possibi-lidades e oportunidades”. Chegar ao resíduo zero é a meta do IQ. “O des-carte de rejeitos químicos tem o seu sucesso garantido na relação inversa à quantidade de material descartado, ou seja, quanto menor o descarte, maior o sucesso, pois denota a capa-cidade de gerenciamento, controle e reutilização dos reagentes”, explica Cássia Curan Turci, professora e diretora do IQ, analisando que, em função da natureza das atividades inerentes à química, realiza-se um enorme esforço para a atuação de maneira mais sustentável.

Antes de ser publicado o Decreto 5.940/2006 do Governo Federal, o IQ já havia iniciado a coleta seletiva. “Apesar da falta de apoio e de todas as dificuldades inerentes a um projeto que exige mudança de hábitos. Este programa precisava, como um dos

Meio Ambiente

“O descarte de rejeitos químicos tem o seu sucesso garantido

na relação inversa à quantidade de

material descartado, ou seja, quanto

menor o descarte, maior o sucesso, pois denota a capacidade

de gerenciamento, controle e reutilização

dos reagentes.”

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seus principais objetivos, desper-tar a consciência sócio-ambiental, de modo que a nossa comunidade abandonasse hábitos e passasse a promover atitudes contribuintes para a elevação da qualidade de vida em nossa região”, pontua Cássia Turci, destacando a união com a Comissão de Segurança do IQ, para o descarte adequado dos resíduos químicos gerados na unidade: “hoje, o pro-grama de coleta seletiva do IQ atua com a participação dos estudantes, servidores técnico-administrativos em Educação, professores e pessoas encarregadas pela limpeza, também com outros laboratórios do CT, ser-vindo de modelo para o ‘Recicla CT’ e atingindo uma de suas primeiras metas, a ampliação da experiência do IQ para toda a comunidade da UFRJ e adjacências”.

A proposta implementará, no IQ, soluções de reutilização, rea-proveitamento ou reciclagem para todo e qualquer material gerado na unidade, de forma sistemática e auto-sustentável. “Para que este objetivo seja alcançado, os bolsistas e técnicos de laboratório envolvidos no proje-to são capacitados a caracterizar e identificar reagentes químicos para serem utilizados em sala de aula, em disciplinas experimentais; a ar-mazenar adequadamente solventes e reagentes; a purificar solventes usados e reaproveitá-los; a implantar

sistemas de baixo custo para evitar desperdício; a separar pilhas e baterias; a identifi car o que pode ser aproveitado no e-lixo (sucata eletrônica); a treinar seus pares na solução proposta; além de produzir material didático para consulta”, afi rma a diretora do IQ, acre-ditando que pequenas mudanças nas práticas diárias, quando multiplicadas, poderão melhorar o meio ambiente de todo o campus, ainda mais se traduzidas em práticas educativas, treinamentos e conscientização da comunidade aca-dêmica.

Ângelo da Cunha Pinho, também professor do IQ, do Departamento de Química Orgânica, recorda que, no passado, os cuidados ambientais eram “frescura ou bobagem”. Os resíduos químicos eram enterrados ou jogados

na pia, indo parar na baía de Guanabara e, na seqüência, na cadeia alimentar. “Cheguei aqui em 1974 e, até então, estas quantidades eram pequenas. Hoje, os estudantes estão sendo orientados a não desperdiçar material durante as au-las práticas. Os reagentes são colocados em bombonas de plástico e, a cada três meses, são recolhidos e incinerados pelo Grupo Bayer, em Belford Roxo”, pontua o coordenador do projeto de gerenciamento de resíduos químicos, indicando que a universidade, hoje, não paga para queimar este material, em virtude do IQ oferecer cursos aos funcionários da empresa.

Lixo tecnológico Não raro, em meio aos 140 mi-

lhões de toneladas de material des-

pejado diariamente nos lixões bra-sileiros, soma-se o chamado lixo tecnológico. Os produtos eletrônicos obsoletos representam outra grave ameaça ambiental. Entre 1998 e 2002, o número de microcomputadores (ou PCs) multiplicou-se cinco vezes. Até aquela data, a quantidade destas máquinas girava em torno de 500 milhões aliados a 1,5 bilhão de celu-lares, no mundo todo. Somente um monitor colorido de raios catódicos detém cerca de três quilos de chum-bo, metal altamente tóxico à saúde.

Para Cássia Turci, um dos desafios contemporâneos é chegar a um acor-do acerca do que seja lixo e do que seja apenas produto de segunda mão. “No passado, a Companhia Munici-pal de Limpeza Urbana (Comlurb) estocava o e-lixo em cilindros de cimento, enviando-os para aterros especiais. Recentemente, a empresa passou a recolher esses materiais e devolver para o fabricante, para que este pudesse destinar pilhas, baterias e celulares para indústrias recicladoras”, explica a diretora do IQ, lembrando que, em princípio, no IQ realizava-se a coleta de pilhas e baterias para servirem de matéria-prima para algumas pesquisas, prin-cipalmente àquelas que objetivavam a recuperação de metais presentes em sua composição. “Agora, passamos ao descarte de lixo eletrônico, em conformidade ao Decreto 6087/2007

Seguindo em direção ao alojamento, na Cidade Universitária, pode se

observar um recanto de 17 hec-tares de beleza natural. Trata-se do Parque Frei Veloso, mais co-nhecido como Ilha do Catalão. Na década de 1990, o Conselho Universitário (Consuni) aprovou

a transformação do lugar em área de preservação ambiental, implantada em 1996. “Logo no início da criação do parque, fo-ram plantadas 40 mil mudas de espécies nativas da Mata Atlân-tica (ipê, tabaco, cedro). Em 2000, algumas empresas, para pagar multas compensatórias

por danos ambientais, também plantaram árvores na área de restinga”, explica a paisagista Beatriz Emilião Araújo, chefe do Horto Universitário da Pre-feitura Universitária (PU).

Ex-aluna da Escola de Belas Artes (EBA), Beatriz informa que o local abriga o trabalho

de campo de inúmeros cursos (Biologia, Geologia etc), além do treinamento do Exército. “Os incêndios espontâneos diminuí-ram. Eles aconteciam, em parte, por conta de pescadores que faziam pequenas fogueiras, mas houve um convencimento deles para evitarem tal prática. Como há plantas medicinais (aroeira, entre outras), o local também costuma receber visitas em busca destes elementos. Acredito que deveria haver uma manutenção contínua e, talvez, um pólo admi-nistrativo da UFRJ na Ilha do Ca-talão, articulado com iniciativas acadêmicas e com a comunidade”, defende a paisagista, pontuando que, pela existência de muitas árvores frutíferas, os pássaros foram atraídos para a região. Estima-se que existam aproxima-damente 80 espécies diferentes de aves, macacos e outros pequenos animais. Além disso, há animais exóticos, com o sagüi, que não pertence originalmente àquela fauna, mas, que abandonados no campus, acabaram se adaptando e espalhando-se pelo ambiente da Cidade Universitária.

Ilha do Catalão

Meio Ambiente

Separação do lixo no Centro de Tecnologia, Cidade Universitária.

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Revitalização do canal do Cunha

Para recuperar os canais, será usada uma draga ecológica que preserve de revoluções o fundo, recheado de materiais prejudiciais à saúde humana. “Vai haver medição constante das substâncias tóxicas e uma pulverização para transformá-las em gases inertes. Não posso as-segurar que essa área será balneável,

pois a qualidade da água depende de outras ações do Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), porém, esse passivo am-biental de hoje não existirá mais”, enfatiza Antônio da Hora.

O projeto básico de engenharia começou, em 1997, com o Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-gra-

duação e Pesquisa de Engenharia (Coppe), atualizado, agora, por empresas contratadas pelo governo estadual. “O objetivo é criar condi-ções para a circulação de marés nos canais, devolvendo a possibilidade de vida”, afirma Paulo César Ros-man, professor do Programa de Engenharia Oceânica do Coppe.

No final de agosto, durante o chamado Encontro das ilhas,

na Associação Cristã de Moços (ACM, da Ilha do Governador), com a presença da Reitoria da UFRJ, representantes do poder público e da empresa Supervia, o subsecretário estadual do Meio Ambiente, Antônio da Hora, an-tecipava a reportagem do Jornal da UFRJ. “A primeira intervenção nos canais do Cunha e do Fundão começará em outubro e levará dois anos, com o aporte de aproxima-damente R$ 180 milhões, cedidos pela Petrobras”.

A boa notícia acabou compro-vada, em meados de setembro, com o anúncio da confirmação do convênio de R$ 194 milhões entre a empresa e o governo do estado, que noticiou à imprensa o início das obras em 15 de outubro. A previsão para a execução do projeto é de 750 dias, prorrogáveis pelo mesmo período. A meta é a limpeza de dois milhões de metros cúbicos de detritos e obras de reparos na ponte Oswaldo Cruz, no cruzamento entre as linhas Amarela e Vermelha.

(que regulamenta, no âmbito da Administração Pública Federal, o reaproveitamento, a movimenta-ção, a alienação e outras formas de desfazimento de material eletro-eletrônico). Uma parte do material (impressoras, tevês, scanners, etc) terá destino no Laboratório de Infor-mática para a Educação (Lipe), onde será reutilizado o que for possível para montagem de computadores para as populações de baixa renda. Ainda não temos, no IQ e no Lipe, como absorver todo o material pro-duzido na UFRJ, mas podemos e de-vemos encontrar meios de aumentar este tipo de serviço para atender à comunidade”, almeja a professora.

Segundo ela, vários pesquisa-dores da UFRJ trabalham, ainda de forma isolada, em projetos ligados à qualidade do meio ambiente. Ela encara a divulgação desses trabalhos como fundamental para que todos se unam em torno de um mesmo propósito. “A questão da reutiliza-ção é essencial e inúmeras ações podem ser aplicadas na redução da geração de lixo, tanto urbano quan-to químico. Com a distribuição de uma canequinha (da campanha “IQ e o desenvolvimento sustentável – melhor reutilizar do que reciclar”) diminuímos o consumo de copinhos descartáveis”, exemplifica a profes-sora, citando que há trabalhos na UFRJ que já apresentam resultados

expressivos como o “Recicla CT” que une diferentes unidades, cuja “tendência é ampliar-se para toda a UFRJ. As mudanças que todos queremos ver, para termos um pla-neta mais saudável, dependem dessas pequenas iniciativas bem orientadas”.

Gestão e política pública

A chefe da Seção de Limpeza Urbana da Prefeitura Univer-sitária (PU), Carmen Odete, relata que a quantidade de lixo da UFRJ é variável. Dependendo da épo-ca do ano, a empresa responsável pela coleta de lixo transporta entre seis e 10 toneladas de resíduos para o aterro sanitário, por dia. “Recolhe-se esse material de segunda-feira a sábado e contamos com 30 homens para ‘varrição’ externa. Quatro uni-dades fazem coleta seletiva (CT, Xis-toquímica, PU e Coppead)”, aponta Carmen, para quem, “é preciso uma campanha massiva em educação ambiental, além de condições para a coleta seletiva como sacos transpa-rentes e um caminhão-gaiola”.

Isabel Cristina alerta que coleta seletiva não se resume à instalação de coletores e a distribuição de folhetos

informativos. Ações isoladas, apesar de bem intencionadas, podem, ao fi-nal, causar mais prejuízos. “Não bas-ta separar o material. Para onde você vai levá-lo e como? Sem gestão, que

não é criada num estalar de dedos, e s t as campanhas acabam causando descrédito junto à população”, avalia a superintendente da PR5, anunciando que se encontra em fase de conclusão, pelo L aboratór io de Diagnóstico em Opinião (Lado), le-vantamento acerca do perfil de com-

portamento da comunidade univer-sitária em relação ao meio ambiente. Tal material subsidiará a agência da Escola de Comunicação (ECO) para o desenvolvimento de campanhas publicitárias na medida em que as unidades já estejam preparadas para executar a coleta.

Mais do que cumprir o decreto presidencial, a UFRJ, por ser uma universidade pública, ambiciona criar um projeto de referência, que propicie uma prática nacional. “Há espaço e ambiente para a criação desta gestão de resíduo zero, mes-mo diante da complexidade de uma cidade universitária com inúmeras

“é preciso uma campanha massiva

em educação ambiental, além de condições para a coleta

seletiva como sacos transparentes e um caminhão-gaiola.”

especificidades. Além da ampliação da experiência do IQ, estamos nos mobilizando para a criação de um consórcio institucional (Petrobras, Fiocruz e outras entidades públicas) para potencializarmos o transporte e a triagem de materiais recicláveis da região” expõe Isabel, enumeran-do as cinco cooperativas populares, no entorno da Cidade Universitá-ria, desenvolvidas pela Incubadora Tecnológica de Cooperativas Popu-lares (ITCP), do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ. “Este trabalho deve ser valorizado e privilegiado. Esta-mos analisando a compra de um papa-lâmpadas (equipamento para descontaminação do mercúrio da lâmpada fluorescente). Quanto à projeção, entramos em contato com o comitê interministerial (Minis-tério do Desenvolvimento Social e Ministério das Cidades) para apresentarmos nossa experiência e constituir um plano nacional de atuação das universidades públicas. Há conversas com o Ministério da Educação para um encontro na-cional das Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes) para o debate referente à implantação do Decreto 5.940/2006”, avisa Isabel Cristina, vislumbrando que não se deve perder a perspectiva institucional de pensar a universidade como um todo.

Meio Ambiente

Separação do lixo no Centro de Tecnologia, Cidade Universitária.

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Rio de Janeiro, 29 d e s e t e m b r o d e 1968. Mais de 20 mil pessoas lotam o Maracanãzinho

empunhando cartazes, agitando ban-deiras e transformando o III Festival Internacional da Canção (FIC) em uma arena de batalha na qual o que menos importava, muitas vezes, era ouvir as músicas e ver as performan-ces dos artistas. Neste clima de “circo romano”, como definiu o jornalista e produtor musical Nelson Motta, os apresentadores oficiais Hilton Go-mes e Norma Blum se dirigem ao pal-co para divulgar o resultado da fase nacional do III FIC, transmitido ao vivo pela Rede Globo de Televisão. O anúncio da vitória da música “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque, era a senha para o início da mais furiosa e constrangedora vaia já dirigida a um grande compositor na história da Música Popular Brasileira (MPB).

No palco, o maestro Jobim, acom-panhado das intérpretes Cynara e Cybele, recebia 23 minutos de ensur-decedora vaia. Chico Buarque estava em turnê pela Itália, retornaria ao Brasil apenas para participar da fase internacional do III FIC, que também deu a “Sabiá” o primeiro lugar geral. Todos no Maracanãzinho já haviam consagrado, naquele momento, a canção “Pra não dizer que não falei de flores” – ou “Caminhando” – de Geraldo Vandré, a segunda colocada da fase nacional.

O contexto de forte repressão política no país e o cres-cimento das tensões sociais entre a s o c i e d a d e civil e o

Márcio Castilho

governo militar, chefiado pelo ge-neral Arthur da Costa e Silva, aju-dam a explicar o comportamento do público no ginásio. Em junho de 1968, alguns meses antes do festival, estudantes, intelectuais, políticos, movimentos sindicais e setores da Igreja Católica realizam, no Rio de Janeiro, a Passeata dos Cem Mil, a maior manifestação de oposição aos militares. Uma onda de protestos também sacudia o mundo naquele ano. Na França, os estudantes se alia-ram aos trabalhadores para reivin-dicar melhores salários e qualidade no sistema educacional. Nos Estados Unidos da América, cresciam os protestos contra a guerra do Vietnã. Neste conturbado contexto político, os versos de “Pra não dizer que não falei de flores” representavam um hino não oficial dos movimentos políticos e sociais contra a ditadura militar no Brasil.

Para Liv Sovik, professora do Pro-grama de Pós-graduação da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, a análise da reação do público e seu envolvimento com os festivais de música não pode prescindir de uma abordagem acerca do contexto de repressão política nos anos 1960. “A política foi acuada. Nessas circuns-tâncias, e na frustração de enfrentar um governo autoritário, o motivo dessa carga afetiva que se investiu nos festivais parece passar pela di-ficuldade de encontrar outra forma de encaminhar um protesto”, observa

Sovik, pesqui-

sadora da Cultura de Massa, com recorte na MPB.

Vandré, então com 34 anos, se apresentou no III FIC apenas com um violão. A música de dois acordes, apoiada em versos com forte cono-tação política, transformou o clima de histeria coletiva em um silêncio quase religioso da platéia. “Nas esco-las, nas ruas/ campos, construções/ somos todos soldados/ armados ou não. (...) Vem, vamos embora/ que esperar não é saber/ quem sabe, faz a hora/ não espera acontecer.” Millôr Fernandes, em depoimento extraído do livro 1968: o ano que não terminou (Nova Fronteira, 2006), de Zuenir Ventura, afirmou, 20 anos depois, que a música representava a “Marse-lhesa” brasileira. “É o hino nacional perfeito; nasceu no meio da luta, foi crescendo de baixo para cima, cantado, cada vez mais espontânea e emocionalmente, por maior número de pessoas. É a nossa Marselhesa.”

Impressão muito semelhante teve o presidente do júri do III FIC, o diplomata Donatello Grieco – autor de Viva a República (Record, 1989) e Napoleão e o Brasil (BibliEx, 1995) –, ao analisar o conteúdo da letra, mas em outro sentido. Enquanto ouvia Vandré, escrevia na ficha o termo “left ” (esquerda). As pressões vinham principalmente do general Luís de França Oliveira, secretário de Segu-rança da Guanabara, declarando que a música era um “achincalhe às Forças Armadas” e tinha uma cadência “do tipo Mao Tsé-Tung”. Em outra opor-tunidade, ao proibir a execução da música nas rádios, cunhou uma frase

que soaria profética: “Ela servirá de slogan para as manifestações

estudantis de rua”.Contrariando a von-

tade popular, o júri da TV Globo não

concedeu o primei-ro lugar do fes-

tival a Vandré. O compositor – que passou a ser um dos artistas mais visados pela re-pressão políti-ca, exilando-se

posteriormente no Chile – bus-

cou aplacar a fúria da platéia contra o

resultado justifican-do que “a vida não se

resume em festivais”. A tentativa não surtiu efeito. O

público acreditava que as vaias a Tom Jobim era a melhor forma de expressar a indignação contra a

decisão dos jurados. Não fosse o contexto de radicalização polí-tica, a platéia poderia observar que “Sabiá” também era uma refi-nada canção política. A letra de Chico era uma sutil referência às amarguras do exí-lio: “Vou voltar/ sei que ainda vou voltar/ para o meu lugar/ foi lá/ e é ainda lá/ que eu hei de ouvir cantar/ uma sabiá.”

Tu r í b i o S a n t o s , professor da Escola de Música (EM) da UFRJ, lembra bem da atmosfera que cercava os festivais de 1968, que estão completan-do 40 anos. Um dos principais violinistas da atualidade, com uma carreira reconhecida inter-nacionalmente, Turíbio afirma que a vigência de um regime autoritário curiosamente ajudou a impulsionar os festivais. “Havia uma espécie de revolta surda na MPB, meio camu-flada e com ligeiro ar de conspiração. Os festivais traziam a força da juven-tude. Havia também o convívio entre os músicos. Ao contrário do que a di-tadura queria, o festival congregava”, recorda o músico, que atuou como jurado no IV FIC, em 1969.

A disputa fi nal entre “Pra não di-zer que não falei de fl ores” e “Sabiá” esteve longe de ser a única polêmica do festival. O III FIC também fi cou marcado pelo episódio envolvendo a música “É proibido proibir”, de Cae-tano Veloso, e seu célebre discurso dirigido aos estudantes.

Vaias, ovos e tomatesA histórica apresentação de Ca-

etano, radicalizando a estética tro-picalista, aconteceu na f inal da etapa eliminatória em São Paulo, no dia 28 de setembro. Com rou-pas futuristas de plástico e colares de correntes, tomadas e pedaços de lâmpadas compondo o figurino, o compositor baiano entra no palco do Teatro da Universidade Católica de São Paulo (Tuca) para defender a música “É proibido proibir”, uma referência ao slogan utilizado pelos es-tudantes franceses em maio de 1968. Desde o início, uma grande parte dos estudantes mostrava estar disposta a interromper a anárquica apresenta-ção, reforçada pela desordem musical intencionalmente produzida pelos Os Mutantes e pela orquestra de Rogério Duprat. Muitos estavam na platéia para consagrar a música de Vandré,

História

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7Novembro 2008 UFRJJornal da

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que também participava das eli-minatórias paulistas.

Não demorou muito para que as vaias se transformassem em agressão, quando Caetano chamou ao palco Johnny Dandurand, um hippie norte-americano alto, que pulava e gritava frases ininteligíveis para a platéia. A resposta foi imediata. O público passou atirar dúzias de ovos, tomates e bolas de papel contra os músicos. Caetano não conseguiu mais cantar, mas não era o fim da performance. A música cedeu espaço para o seu desabafo, até hoje um dos mais polê-micos discursos da história da MPB: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir este ano uma música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado. Vocês são a mesma juventude que vai sempre, sempre, matar, amanhã, o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, absolutamente nada...” Cae-tano gritava mais alto que a platéia, enquanto Os Mutantes continuavam tocando de costas para o público. Numa clara polarização da música

popular brasileira, ele provocava as chamadas “brigadas musicais de es-querda”, comparando os estudantes que o vaiavam aos direitistas que espancaram os atores de “Roda Viva”, de Chico Buarque: “Se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos!”.

Liv Sovik destaca o caráter provo-cativo de “É proibido proibir”. Segun-do a pesquisadora, a música se alinha com outras canções tropicalistas, como “Domingo no parque” (Gilber-to Gil, 1967) e “Alegria, alegria” (Cae-tano Veloso, 1967), também inscritas em festivais, que causaram choque por sua proposta estética e por suas “implicações críticas a um discurso sobre um Brasil profundo, arraigado, popular”. Ao analisar “É proibido proibir”, a pesquisadora percebe uma tentativa de Caetano de evidenciar a face autoritária de ambos os lados, da direita e da esquerda. “Os festivais marcam a dificuldade que o público enfrentou em tragar o Tropicalismo. Caetano aponta a ditadura, a repres-

são e o autoritarismo como sendo de direita e também de esquerda. O tropicalismo faz uma costura que despedaça esse autoritarismo de ambos os tipos”, analisa Sovik.

A proposta estética revolucioná-ria do Tropicalismo havia chegado ao seu extremo naqueles conturbados meses de 1968, o que explica em parte a prisão de Gilberto Gil e de Caetano Veloso, em 27 de dezembro daquele ano, após a decretação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), e o exílio no ano seguinte.

Outros festivaisAlém do III FIC, outros festivais

em 1968, no eixo Rio–São Paulo, contribuíram para a renovação da MPB. Um dos mais importantes era o Festival de Música Popular Brasileira, naquele ano, chegava à sua quarta edição. Transmitida pela TV Record, a competição transcorreu em clima de cordialidade, colocando em cena o jovem baiano Tom Zé. O compo-sitor venceu o festival com a canção

“São, São Paulo, meu amor”. Outra composição do movimento tropicalista, “Divino maravilhoso”, escrita por Gilberto Gil e Caetano Veloso e interpretada por Gal Costa, conquistou o 3º lugar.

A mesma emissora também pa-trocinou a I Bienal do Samba, com-petição vencida por Elis Regina interpretando “Lapinha”, de Baden Powell e Paulo César Pinheiro. Por sua vez, a TV Tupi lançou, em 1968, o Festival Universitário da Canção Popular, do qual podiam participar apenas compositores universitários. A música “Helena, Helena”, de autoria de Alberto Land, fi cou em primeiro lugar com a interpretação de Taiguara.

“Os festivais botavam em relevo não somente o talento de composi-tores, mas também de intérpretes e arranjadores. Acredito que a com-petição na música também pode ser uma maneira de descobrir talentos na música popular e na clássica”, avalia Turíbio Santos, acrescentando que teve sua carreira impulsionada ao vencer um festival internacional, na França, em 1965, quando tinha apenas 22 anos.

“A v

ida

não

se re

sume em festivais”

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Ao mesmo tempo em que endossa as palavras de Iglesias, o decano comenta

as inovações incorporadas na pro-posta de Plano Diretor UFRJ 2020. Valladares, que presenciou o período conturbado da Reforma Universitária de 1968, mostra-se um entusiasmado com a proposta de Plano que terá a sua prévia apresentada no Conselho Universitário (Consuni), em breve.

“O ser humano tem dificuldade em aceitar o novo, mas precisamos sempre pensar em melhorar o que está estabelecido.” As palavras são de Almir Fraga Valladares, professor da Faculdade de Medicina e decano do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da UFRJ, comentando as críticas de Ricardo Iglesias, professor do Instituto de Biologia (IB), que, durante a abertura da XII Biossemana dissera que o IB precisava se modernizar.

Mudar para

crescer

Segundo o reitor Aloisio Teixeira lembrou, “este primeiro esboço será levado aos conselhos de centro, às entidades de representação, aos diretores, decanos e ao Consuni”. Já no dia 11 de dezembro, última reunião do colegiado máximo da UFRJ, no ano, será apresentado o documento “para ouvir opiniões, submeter–se a críticas, para que o Comitê Técnico do Plano Diretor

a proposta de Plano Diretor UFRJ 2020, Benetti afi rma que todo o trabalho está sendo feito no sentido “de quebrar o paradigma rodoviarista da Cidade Uni-versitária e criar um ambiente muito mais acolhedor”. Por isso, o comitê está elaborando propostas em três etapas, nos horizontes de 2012, 2016 e 2020. Elas prevêem, entre outras ações, a constru-ção de três centros de convivência que servirão como pontos de integração de toda a comunidade universitária: Centro de Ciências da Saúde (CCS); Centro de Tecnologia (CT) e Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza (CCMN); Humanidades, Ciências Sociais e Artes. Em cada um deles, deverão ser instala-dos refeitórios, alojamentos, pontos de comércio e espaços de lazer e cultura.

Para facilitar o deslocamento de pe-destres, os acessos à Cidade Universitária deverão ser ampliados. A começar pela ponte para a Linha Vermelha, partindo do eixo entre o CT e a Reitoria. A ligação vai benefi ciar a população que segue em direção ao Centro e às zonas Norte e Sul da cidade.

Segundo Carlos Antônio Levi, pró-reitor de Planejamento (PR-3), as con-dições para o empreendimento já estão adiantadas. “A saturação de nossa rota de saída da Cidade Universitária é um problema a ser enfrentado. Há uma negociação com a Petrobras e uma par-ticipação ativa do Governo do Estado, que também já manifestou sua posição favorável à construção da ponte”, afi rma o docente.

Também estão nos planos as par-cerias com o Governo Estadual para a construção de ramais da Supervia até

Pedro Barreto

possa trabalhar nos próximos três meses e, em março, enfi m, ser apresentado o esboço do Plano Diretor UFRJ 2020”.

Elaborado pelo comitê presidido por Pablo Benetti, urbanista e professor da

Faculdade de Arquitetura e Urba-nismo (FAU), o documentado

apresentará propostas que influirão

nas vi-das não

apenas de estudantes,

professores e técnico-adminis-

trativos, como tam-bém dirão respeito a todos

aqueles que freqüentam a UFRJ, residem nas imediações

ou simplesmente habitam a cidade e o estado do

Rio de Janei-ro. Isso porque,

s egundo Benetti, “o Pla-

no discutirá a re-lação da UFRJ com

a cidade, entre outros aspectos o da mobilidade

de sua população, além de programas de interesse mútuo da

universidade e das comunidades da Ilha do Governador, do Complexo da

Maré e todo o estado do Rio de Janeiro”.

Desenvolvimento daCidade Universitária

Debruçado, desde maio, no estudo do Plano de Desenvolvimento da Cida-de Universitária (PDCID), que integra

Gabriela D’Araujo/ Imagem UFRJ

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Bonsucesso e Ilha do Governador; da Linha 5 do Metrô, com conexão dos ae-roportos Antônio Carlos Jobim e Santos Dumont; de um terminal de barcas até à Ilha do Governador e, de volta, à Praça XV; além da criação do Maglev, um veí-culo leve sobre trilhos, com estações em diversos pontos da Cidade Universitária. O terminal central de ônibus deverá ser construído próximo ao Hospital Univer-sitário onde está concentrada a maior população não-universitária no campus.

Ainda pensando em promover o trân-sito de pedestres na Cidade Universitária, outro aspecto a ser alterado na paisagem do campus será o gabarito dos prédios, que deverão ter entre quatro e oito anda-res, em média. Respeitada a altura limite imposta pelo tráfego aéreo na região, não estão descartadas ainda construções mais elevadas.

A partir de informações colhidas pelo comitê técnico, a área necessária para abrigar as atividades acadêmicas de Ciências Humanas, Sociais e Artes, hoje predominantemente instaladas na Praia Vermelha, no Instituto de Filosofi a e Ciências Sociais (IFCS) e no Colégio de Aplicação (CAp), fi cariam nas proximida-des da Faculdade de Letras.

Pablo Benetti explica que o comitê tra-balha no sentido de redefi nir o desenho do campus em uma idéia de interdiscipli-naridade. “No mundo todo estão sendo quebradas as barreiras disciplinares e a UFRJ não pode fi car de fora. Veja o que está acontecendo no mundo a partir da excessiva confi ança nos economistas. A relativização dos saberes absolutos faz parte da nossa discussão. A universidade que não abre espaço para o questiona-mento é uma universidade burra. A UFRJ foi e continuará sendo uma universidade de vanguarda na medida em que consiga compreender o seu tempo. O que estamos fazendo não é um decreto de cima para baixo”, afi rma o professor, para quem, ainda, o meio ambiente é uma questão crucial na elaboração das propostas do Plano Diretor UFRJ 2020. “Uma ocupa-ção horizontal signifi ca menos qualidade do ar e menos áreas verdes. Quando o último plano diretor foi implementado, na década de 1970, não havia a preocupação com o meio ambiente. Hoje, ela é fundamental”, aponta Benetti.

Colaborações e parcerias

Ainda sobre a preservação e a recuperação do ecossistema da região, Benetti lembra as obras de recuperação dos canais do Cunha e do Fundão, realizadas em parceria entre a UFRJ, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Petrobras. O projeto, de R$ 194 milhões, vai promover o de-sassoreamento dos canais e permitir a desodorização, o restabelecimento do circuito original das correntes mari-nhas, além da recuperação da fl ora e

da fauna na região. “As obras vão be-nefi ciar não apenas a UFRJ, como toda a cidade. A universidade não deve ter vergonha de desempenhar o seu papel na sociedade”, comenta o urbanista.

O comitê técnico também espera atrair outras entidades dispostas a inves-tir na expansão. “Estamos em condições de potencializar essas ações e incorporar outras colaborações, apoios e recursos de outras fontes que podem garantir as ações do nosso Plano Diretor até 2020”, afi rma Carlos Antô-nio Levi. O pró-rei-tor revela, também, a intenção de criar uma usina geradora de energia pela quei-ma de lixo, projeto que já contaria com o interesse de Furnas Centrais Elétricas e da Eletrobrás, além da construção de uma subestação de propriedade da UFRJ, com a participa-ção da Petrobras. O investimento traria uma economia em torno de 30% a 40% no consumo de energia da universidade. “São soluções que podem qualifi car o fornecimento de energia e diminuir a pressão em nosso orçamento de custeio”, avalia Levi.

Carlos Vainer, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Ur-bano e Regional (Ippur) da UFRJ, aponta o Serviço Nacional de Aprendi-zagem Comercial (Senac) como outro po-

tencial aliado. Vainer é o idealizador da proposta de construção de um hotel-escola, anexo a um grande centro de convenções na Praia Vermelha. “Aquela é uma região privilegiada para o turismo e para os negócios, mas que não conta com um espaço para esta fi nalidade”, opina o docente, que também é membro do comitê técnico do Plano Diretor UFRJ

2020.“O Serviço So-

cial do Comércio (Sesc) e o Senac são instituições com expertise nas áreas esportiva e cultural, mas não são as úni-cas. O importante é estabelecermos os conceitos. Essas par-cerias são possíveis, mas têm que passar antes pelo crivo das instâncias acadêmi-cas da UFRJ”, afi rma Pablo Benetti, que

sonha ainda com a participação da UFRJ nos eventos esportivos sediados na ci-dade: “tanto a Copa do Mundo de 2014, quanto os Jogos Olímpicos de 2016 são eventos importantíssimos para a nossa cidade. Primeiro precisamos saber que legados eles poderão deixar para a UFRJ. Um dos principais problemas da candi-datura do Rio para 2014 é a ligação do aeroporto internacional com a cida-

de. Todas as soluções para este problema passam pela Cidade Universitária. E nós queremos assim.”

Um dos projetos que abarca tanto a eventual realização da Copa do Mundo, os Jogos Olímpicos e o Plano de De-senvolvimento da Cidade Universitária é o Maglev-Cobra, trem de levitação sobre trilhos, elaborado por cientistas e pesquisadores do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe). No horizonte de 2014, o veículo interligaria o Aeroporto Internacional Tom Jobim (Galeão) até o Centro da cidade, passando pela Cidade Universitária. O projeto já tem R$ 4,7 milhões garantidos pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) para a construção de um modelo experimental de 114 metros.

Com recursos do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) e, possivelmente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o projeto seria incorporado ao Plano de Desenvolvimento da Cidade Universitária para, em um panorama ambicioso, substituir, gradativamente, os veículos utilizados hoje na locomoção de 12 mil pessoas na Cidade Universitá-ria. O trem pode ser movido a energia

solar ou a nitrogênio, o que, além de ser barato, pode ter o

excedente utilizado

Estudantes em intervalo de aulas, próximos ao prédio da Reitoria da UFRJ.

A relativização dos saberes absolutos faz

parte da nossa discussão. A universidade que não

abre espaço para o questionamento é uma

universidade burra. A UFRJ foi e continuará sendo uma universidade de

vanguarda na medida em que consiga compreender

o seu tempo.

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para a refrigeração dos vagões. Fora a vantagem ecológica, o projeto da Coppe geraria royalties também para a univer-sidade, caso seja adotado por outras empresas.

Docentes opinamPablo Benetti alerta para urgên-

cia da devolução dos questionários distribuídos às unidades com ques-tões referentes às suas necessidades pretendidas no Plano de Reestrutu-ração e Expansão (PRE), no qual está inserido o Plano Diretor UFRJ 2020. O Laboratório de Diagnóstico e Opi-nião da UFRJ (LaDO) também está realizando uma pesquisa de campo para avaliar os hábitos e anseios não somente de alunos, professores e téc-nico-administrativos, mas também de freqüentadores e vizinhos da Cidade Universitária. Os representantes da comissão contam com esses dados não apenas para a quantificação da área total necessária para a ocupação, como também para demandas de in-fraestrutura e de pessoal.

Na apresentação preliminar das diretrizes do Plano Diretor UFRJ 2020, realizada durante o evento comemorativo dos 88 anos da UFRJ, dia 8 de setembro passado, docentes, técnico-administrativos e represen-tantes dos estudantes e de sindicatos comentaram as propostas. Entre os professores, o tom de otimismo predominou. Apesar de todos refor-çarem a necessidade de pensar uma universidade menos fragmentada e

mais integrada, não apenas no as-pecto geográfico, como também no aspecto institucional, decanos e dire-tores explicitaram suas necessidades localizadas.

Ângela Rocha, decana do CCMN, lembrou que desde a Reforma Univer-sitária de 1968, o centro não conta com instalações próprias. “A gente tem que discutir onde ficarão as unidades do CCMN, que estão há 40 anos em insta-lações provisórias”, ressaltou a decana.

Almir Valladares, decano do CCS, destacou o antigo projeto de demolição da chamada “perna seca” do Hospital Universitário e apontou uma saída. “Nós temos um projeto já aprovado pelo nosso Conselho de Centro de fazer um grande pavilhão de salas de aula a ser construído naquele local. Com isso, teríamos espaço para abri-gar 4 mil alunos, quase mil a mais do que temos no momento”, explicou o professor. Para o decano, o pavilhão (ou aulário) seria a solução para as 1.342 novas vagas, para cursos pre-senciais diurnos e noturnos, previstas pelo PRE até 2012.

O otimismo do decano, porém, ressurge quando analisa o Plano Diretor em um contexto mais amplo. “Este plano trouxe uma discussão que, nos meus mais de 40 anos nesta universidade, não vi nesta profundidade. Ele desperta muitas resistências porque possibilita a discussão livre e democrática. Mas tem que ser dis-cutido livre e democraticamente, mesmo, justamente onde existe resistência, onde existe discussão”, concluiu Almir.

A ampliação do número de vagas e a criação de cursos de curta duração previstos

no Plano de Reestruturação e Expansão (PRE) são pontos de divergência entre o comitê e os críticos do PRE. Carolina Barreto, uma das coordenadoras do Diretório Central dos Estudantes (DCE Mário Prata), é uma das que criticam. “Uma das coisas mais caras para a gente é a questão da reestruturação acadêmica, essa lógica de estimular cursos de gradu-ação sem visar a profissionalização. Ao invés de democratizar o acesso, cria um funil ainda maior para o mercado de tra-balho. Todo mundo quer acesso univer-sal, mas não queremos uma universidade com cursos de três anos em bacharelado em Ciências da Terra e Patrimônio Na-tural ou em Geoprocessamento Remoto que, segundo o que sei, é um bacharelado em Google Earth. São cursos completa-mente inconsistentes, mais da metade deles pode ser cursado fora do CCMN”, opina a militante estudantil.

Carolina se refere ao primeiro curso interdisciplinar da universidade, aprova-do dia 3 de julho passado, pelo Consuni, mas que enfrentou resistências em sua deliberação. Os professores Luiz Antô-nio Cunha, da Faculdade de Educação (FE) e Rui Cerqueira, do Instituto de Biologia (IB), apresentaram parecer com restrições à consistência e à implantação do curso. Nelson Velho Faria, professor e

Reestruturação acadêmica marca a principal divergência

diretor do Instituto de Física (IF) rebate parcialmente as críticas: “a universidade é um lugar conservador, na qual a maio-ria das pessoas têm medo de mudar. Aqui é difícil criar coisas novas. Os cur-sos não devem ser criados para atender ao mercado de trabalho, formar pessoal para as empresas, mas sim para o conhe-cimento. Veja o meu caso, vivo da Física desde que me graduei”. No entanto, ele também aponta falhas em sua estrutura-ção. “Filosoficamente, este curso deveria ser o embrião do ciclo básico unificado do CT–CCMN para atender estudantes ainda em dúvida acerca de qual carreira seguir”, completa o docente.

Para Carolina, estudante da Escola de Comunicação (ECO), “o plano foi feito para atender às exigências do Reuni que quer, em última instância, promover o sucateamento das universidades públi-cas. De nada adianta criar novas vagas se não há infra-estrutura para atender a nova demanda. Já, hoje, existe grande precariedade nas instalações oferecidas para o atual número de alunos. A verba destinada pelo Reuni não será suficiente para atendê-los”, dispara a estudante.

Mesmo entusiasmado, Almir Valla-dares mostra-se cauteloso ao tratar o aumento de vagas. “Já existe dificuldade em oferecer conforto e ambiente adequa-do para os alunos atuais. No momento, o que estamos fazendo é uma ampliação dos blocos atuais para atender à deman-

Carlos Levi e Pablo Benetti em uma das reuniões do Comitê Têcnico do Plano Diretor UFRJ 2020.

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Filó/ Imagem UFRJ

Vista do prédio da Reitoria, onde se vê à direita o prédio da Faculdade de Letras (FL) e à esquerda, acima, o prédio do Centro de Tecnologia (CT).

da já esperada para 2009, mas não é o ideal. Temos muitas salas no subsolo do CCS cujo ambiente não é dos mais ade-quados. Para o futuro, podemos não ter estrutura física, pode faltar até mesmo equipamentos e pessoal. A universidade tem uma carência histórica de quadros docentes e de técnico-administrativos, o que não é culpa da atual gestão. Existe agora uma tendência de reverter um quadro de esvaziamento do serviço pú-blico que durou quase 20 anos, mas essa tendência precisa se confirmar. Algumas unidades do CCS estão otimistas e estão oferecendo novas vagas, isso tem que se concretizar para não termos dificuldades mais adiante”, completa o decano.

Para Carlos Antônio Levi, entretanto, as preocupações, mesmo que justas, são desnecessárias. Segundo o pró-reitor, a quantia de R$ 115 milhões, garantida pelo Reuni, até 2011, será suficiente para as metas estabelecidas neste período. Por ano, serão cerca de R$ 28 milhões, “sig-nifica um recurso bastante significativo. Nos últimos 15, 20 anos não chegamos a receber R$ 1 milhão por ano. Estamos falando de um montante que possibilita realizar investimentos em nossas ins-talações, transportes e energia elétrica, entre outros serviços, além de permitir a construção de novos prédios para qua-lificar os espaços para nossas atividades”, prevê o professor.

Levi aponta ainda para um cresci-mento de mais de 110%, nos próximos cinco anos, no orçamento de custeio. Ele explica que a verba de R$ 112 mi-lhões destinada a esses investimentos, em 2008, será de R$ 134 milhões, em 2009, R$ 150 milhões, em 2010, R$ 182 milhões, em 2011 e R$ 222 milhões, em 2012. “Neste sentido, estamos bastante confortáveis, pois para estas despesas, já vem sendo praticada uma expansão, que continuará crescendo de maneira gradual nos próximos cinco anos”, des-taca o pró-reitor.

Em relação ao quadro para atender a estrutura de novas vagas, Levi inten-ciona a contratação de 700 docentes até 2012 e de 1.600 servidores técnico-administrativos, metade de nível médio e metade de nível superior. Além disso, o pró-reitor pretende transformar os atuais professores substitutos em efetivos e recuperar as vagas geradas por exonera-ções, aposentadorias e falecimentos, en-tre outros motivos. “Essas contratações serão realizadas para garantir um salto quantitativo na relação entre professor e aluno. Todas as necessidades decorrentes da pressão produzida pela expansão po-derão ser adequadamente administradas por este conjunto de recursos colocados à nossa disposição”, afirma o docente, em referência aos recursos do Reuni, dispo-nibilizado pelo Governo Federal.

Plano de Ocupação e Uso da Praia Vermelha

Para Carolina, o Plano de Ocupação e Uso da Praia Vermelha (POUPV)

também atende à lógica dos cursos de curta duração. “Nós somos contra porque acreditamos que eles sejam a realização deste tipo de cursos, que são precários, em nossa avaliação. Além dis-so, a proposta de uso da Praia Vermelha, na realidade, é a cessão disso tudo para a especulação imobiliária. Vide os exem-plos do Canecão e do Bingo (atual loja Amoedo)”, avalia a estudante.

O presidente do Comitê Técnico do Plano Diretor UFRJ 2020, Pablo Benetti, discorda, mas não vê a ocupação da Praia Vermelha para fins acadêmicos como prioridade. “O risco sempre existe, já que infelizmente a universidade ainda não tem autonomia verdadeira. Acho extremamente difícil acontecer em um governo democrático, responsável. No meu ponto de vista, algumas edificações dali não têm grande valor arquitetônico e foram feitas com a mesma lógica de ocupação predatória daqui da Cidade Universitária. É uma loucura construir edificações de dois andares, tanto aqui, quanto na Zona Sul. Ainda estou pen-sando na ocupação da Cidade Univer-sitária e não me debrucei a fundo na questão da Praia Vermelha. Acho que é uma discussão que a gente deve come-çar”, avalia o professor.

Benetti também ressalta a neces-sidade de um debate acerca do Plano de Ocupação e Uso das Edificações e Terrenos Isolados (POUET). “A univer-sidade tem um patrimônio considerável e muitas das edificações são tombadas. Não se pode ter uma atitude leviana em relação a elas. Tem que ser pensado caso a caso. Na Escola de Música, por exemplo, a Leopoldo Miguez é uma das salas com melhor acústica da América

Latina. Temos uma responsabilidade muito grande e não podemos nos furtar de pensar nela”, pondera Benetti.

Carolina Barreto aponta ainda outra questão, segundo ela, problemática no PRE, que, entre outras, procura atender à exigência de 90% do índice de aprovação. “Para atingir um índice desses acho que somente com aprovação automática. Talvez nem isso resolva, já que o pro-blema da evasão tem muito a ver com a precariedade das políticas de Assistência Estudantil. Manter-se numa universida-de pública é caro, se gasta bastante com fotocópias, alimentação, transporte, moradia... As verbas destinadas à As-sistência Estudantil são tão deficitárias que a UFRJ, hoje, sequer possui um ‘bandejão’ (restaurante universitário). Como esperar que as pessoas concluam seus cursos se elas muitas vezes sequer têm dinheiro para se alimentar na uni-versidade? Evasão se combate com mais verbas para a Assistência Estudantil, não com uma meta irreal de um decreto-lei do Governo Federal”, ataca a dirigente.

Para Levi, os fatores de evasão tam-bém serão combatidos. “A falta de uma política de Assistência Estudantil é um fator que pode contribuir, mas certa-mente não é o único. Temos que cuidar de outros, como motivação, flexibilidade curricular e maior relação das carreiras com a realidade do mercado de trabalho contemporâneo. São fatores importantes a serem desenvolvidos combinados com Assistência Estudantil, que inclui uma oferta de alimentação e moradia subsidiada. O Restaurante Uni-

versitário da Faculdade de Letras já se mostra bem sucedido e justifica novas iniciativas neste sentido. A próxima será o Restaurante Universitário Central (ao lado do Hospital Universitário), já em fase de execução e previsão de conclusão para o próximo semestre letivo. Além disso, há a proposta de um restaurante e refeitórios de distribuição, atendendo a comunidade do CT e do CCMN e as unidades que se transferirão para aquela região. Ao lado dos refeitórios, deverão ser construídos alojamentos para dobrar a atual capacidade, que é de 500 vagas. São iniciativas de curto prazo que po-dem ser implementadas com agilidade”, exemplifica o pró-reitor.

Levi também prevê a oferta de refei-ções a baixo custo e de moradias sociais, além da continuação da distribuição de bolsas de estudo. Ele apresenta números da ordem de R$ 7,7 milhões, em 2008, que, com o aumento gradativo, devem chegar a 11 milhões, em 2010. Além disso, cerca de R$ 13 milhões por ano serão destinados ao programa de bolsas. “A política de subsídios foi aprovada pelo Consuni. O custo das refeições para os alunos será de R$ 2 reais. Há ainda a expectativa, bastante concreta, de assistência estudantil também para moradias. É possível administrar esses recursos para atender a esta demanda”, afirma o docente.

Novembro 2008UFRJJornal da

12 Universidade

O jaleco branco e a rotina de aulas e laboratórios do Centro de Ciências da Saú-

de (CCS), no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) e nas demais unidades de saúde da UFRJ, não representam a única coincidência entre os alunos de Fisioterapia, Fonoaudio-logia e Medicina. Por seguidos anos, os estudantes destes três cursos vêm alcan-çando excelência no Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), aplicado pelo Instituto Nacional de Es-tudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), do Ministério da Educa-ção. Os conceitos, sempre entre quatro e cinco (pontuação máxima), representam um conjunto de fatores, além, claro, da tradição bicentenária da Faculdade de Medicina (FM) da UFRJ, responsável por essas graduações.

“É fato histórico a faculdade contar com os melhores quadros da área da saú-de”, exalta o decano do CCS, Almir Fraga Valladares, professor do Departamento de Clínica Médica da FM, ressaltando a prática do ensino. “Em minha época de estudante, éramos o que se chama de ‘rato de enfermaria’ com uma relação in-tensa com o professor. Os resultados não chegam a ser uma novidade, além de re-lativos, pois não avaliam a totalidade dos alunos, que logo absorvem a cultura da instituição e criam raízes por aprender com quem, em sua ampla maioria, está ligado à própria FM seja como ex-aluno ou ex-residente”, explica o professor.

O Enade realiza-se por amostragem, avaliando uma parte dos ingressantes e dos formandos do curso. O mecanis-mo, que integra o Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior (Sinaes), substitui o antigo “Provão” (aplicado entre 1996 e 2003), acrescenta outros instrumentos como questionários para coordenadores de curso, levantamento socioeconômico e a impressão dos estu-dantes acerca do teste.

Bons resultados e carênciasO exame é obrigatório para os sele-

cionados e os bons resultados animam novos estudantes e impõem novos de-safi os. ”Todos comemoram por ser uma resposta ao nosso trabalho. Às vezes, há carências comuns ao serviço público, isto nos dá fôlego novo para continuar e lutar mais. Pretendemos que o nosso curso seja em tempo integral”, explica Leila Nagib, professora e coordenadora do curso de Fonoaudiologia da FM, demonstrando a necessidade, para tanto, de bolsas para os alunos, uma vez que muitos são moradores de municípios da Baixada Fluminense e cidades ainda mais distantes como Juiz de Fora (MG), por exemplo.

Criadas em 1994, as graduações em Fo-noaudiologia e em Fisioterapia ainda dis-põe de um quadro reduzido de professores, o que, de certa maneira, inibe a sua atuação em iniciativas tais como o Programa Saúde da Família (PSF). Para Leila Nagib, ”não se pode deixar o aluno sozinho em campo. É preciso um preceptor, entretanto o nosso corpo docente (23 professores) é pequeno para lecionar, pesquisar, participar de car-gos administrativos etc”.

Crítica semelhante à de Leila, faz Cícero Luiz de Andrade, professor e coordenador do curso de Fisioterapia, cobrando, do Governo Federal, mais investimentos em recursos humanos. ”Somos 21 pro-fessores, cerca da metade da quantidade ideal. Por outro lado, o resultado do Enade não nos surpreende. Em seleções para estágios e concursos, nossos alunos já se destacam. Atribuo o fato à UFRJ ofe-recer um ambiente diverso de ensino. Há laboratórios, acesso à literatura científi ca, em bibliotecas, e um complexo hospitalar extenso (são oito unidades de saúde). O fator de seleção também é relevante, o aluno já chega com certa bagagem, pois existe uma disputa no vestibular da UFRJ (7,1 candidatos por vaga), única instituição pública a oferecer o curso de Fisioterapia no Estado do Rio”, frisa Cícero.

Rodrigo Ricardo

Entre as carreiras mais disputadas no Concurso de Acesso aos Cursos de Gra-duação da UFRJ para 2009 - com relação candidato-vaga de 34,97 para o campus de Macaé e para o Rio de Janeiro, de 27,17 – a Medicina, sem dúvida, é a que requer grande preparação e bom desempenho no vestibular. A rotina dos futuros médicos é árdua. Gustavo Guimarães, aluno do 9º período, informa que, além das aulas e atividades do curso médico em horário integral, estuda, em média, mais duas ou três horas por dia. Ele não vê problemas com o Enade, acreditando que, “além de estar em jogo o nome da universidade, trata-se de uma oportunidade para a gente mesmo se avaliar”.

Refl exão e crítica constantePara Antônio Ledo Cunha, diretor da

FM, o que pode explicar o bom desem-penho da instituição por ele dirigida é um conjunto de fatores. “A qualifi cação, o empenho e a dedicação do corpo do-cente, certamente contribui, em muito, para os resultados. O fato da maioria de nossos professores estar envolvida com atividades de pesquisa ajuda no desenvolvimento do espírito crítico em nossos estudantes”, destaca o professor do Departamento de Pediatria da FM.

Além disso, Ledo avalia que seus estudantes já são selecionados antes mesmo de prestarem o concurso ves-tibular. “Como a procura pelos nossos cursos é grande, e as vagas limitadas, ingressam não somente os mais aptos segundo o sistema, mas, também, aqueles com maior desejo de serem aprovados e, portanto, com maior motivação. Porém, não adianta termos docentes qualifi cados e alunos com potencial elevado se não houver uma estrutura que facilite o aprendizado e a formação. Essa estrutura, apesar das difi culdades existentes em nossas unidades de saúde e, em especial na rede básica, ainda é, também, um

dos fatores que nos ajudam a melhor qualifi car nossos estudantes”, aponta o diretor.

Apesar de se mostrar satisfeito com os resultados das avaliações, Antônio Ledo afi rma que a refl exão e a crítica constante das estratégias político-pedagógicas da FM, aliam-se para o bom desempenho dos estudan-tes. Para ele, a participação discente nos processos da instituição, “principal-mente questionando e exigindo nosso compromisso”, é também uma razão para o bom desempenho. “Acredito que nossa capacidade de renovação também contribua para o êxito continuado nas avaliações”, avalia o professor.

Apesar do esforço de várias direções da escola médica da UFRJ, a formação dos estudantes ainda deixa transparecer aspectos do paradigma da racionalidade técnica ou biomédica. Antônio Ledo enfatiza que existe um grande esforço para o afastamento desta tendência, entendendo que a FM, assim como qualquer outra escola, “deva formar indivíduos que sejam não somente técnicos competentes, mas também, cidadãos responsáveis e conscientes de suas responsabilidades para com a sociedade”. Nesse sentido – entende o diretor – “que as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do curso médico, apontam a direção quando propõem que formemos médicos éticos, com características humanitárias, capazes de trabalhar em equipes multidisciplinares e, também, capazes de se atualizar cons-tantemente”.

Ledo informa, ainda, que uma das discussões atuais, relativas à graduação, “gira em torno de como tornar efetivas as DCN na formação de nossos alunos. Acreditamos seguir nessa direção, pro-curando formar um profi ssional de saúde cidadão com uma visão ao mesmo tempo abrangente do mundo, crítica, refl exiva e comprometida socialmente.”

Sem medo de prova

Antônio Ledo, diretor da Faculdade de Medicina, credita os bons resultados à qualificação, ao empenho e a dedicação dos corpos docente e discente da unidade.

Estudantes dos cursos

de Medicina, Fonoaudiologia

e Fisioterapia da UFRJ são destaques

em avaliação governamental.

Arte sobre foto - Imagem UFRJ

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13Entrevista

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evis

ta

Eduardo Portella

Um frisson contido se apossou de professores e estudantes quando ele chegou ao Salão Azul, no

térreo do prédio da Reitoria. Andar altivo, já sob o apoio de uma bengala, e derramando simpatia, Eduardo Portella estava visivelmente feliz ao reencontrar – exatamente no dia em que completava 76 anos, em 8 de outubro último – antigos colegas da Faculdade de Letras (FL) da UFRJ, onde é quase uma figura mitológica.

Intelectual de renome internacional que carrega, com orgulho, o título de

professor emérito da FL, ele também coleciona vasta folha de serviços dedicados ao desenvolvimento da instituição. Há 40 anos, por exemplo, criou a pós-graduação da Letras, a pioneira do Brasil

na área. Foi, ainda, seu diretor e representante no Conselho

Universitário (Consuni).Por tudo isso, aceitou sem hesitar o convite

para fazer a Conferência de Abertura do I Simpósio dos Programas de Pós-graduação

do Centro de Letras e Artes (CLA) da UFRJ. Depois de abordar o tema História, tradição

e conhecimento, durante quase uma hora, concedeu entrevista ao Jornal da UFRJ, no salão vizinho. Sem perder o garbo e a ironia refinada, como se fosse o primeiro compromisso do dia, falou animadamente sobre a sua juventude, contou histórias dos bastidores do poder – foi

ministro da Educação, Cultura e Esportes em 1979 – e revelou como passou de crítico

literário a ensaísta.

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14 Entrevista

Coryntho Baldez

Jornal da UFRJ: O senhor nasceu em Sal-vador, Bahia. Foram lá os seus primeiros estudos?

Eduardo Portella: Os primeiros estudos eu fi z em Feira de Santana (BA), onde pas-sei a infância. Fui para Recife (PE) depois, para concluir o secundário e entrar na Faculdade de Direito da Universidade Fe-deral de Pernambuco (UFPE). Na época, essa era a faculdade dos literatos, da velha tradição de Castro Alves, Rui Barbosa e outros. A Faculdade de Letras ainda não estava completamente institucionalizada. Na Faculdade de Direito havia muitos professores ligados à Literatura e percebi que minha vocação mesmo era Literatura e Filosofi a.

Jornal da UFRJ: O senhor também foi estudar na Europa?

Eduardo Portella: Sim, eu fi z um algo curioso. Fui para Madrid (Espanha) para cursar Filosofi a e Letras ao mesmo tempo em que fazia, em Pernambuco, o curso de Ciências Jurídicas e Sociais. E na Espanha convivi um pouco com Ortega y Gasset e, sobretudo, com Xavier Zubiri, que era o grande fi lósofo do momento. Nas Letras, destacavam-se Dámaso Alonso, cate-drático de Filologia Românica, e Carlos Bousoño, catedrático de Estilística.

Jornal da UFRJ: Foi possível conciliar esses dois cursos?

Eduardo Portella: Eu fazia todas as provas de segunda época em fevereiro. E como

Como membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), desde 1981, condenou a atual corrida às vagas na centenária instituição. “A ABL hoje dá status e uma verba mensal de cerca de 10 mil reais”, revelou. Em relação ao papel da universidade pública, frisou que ela reúne as condições para ser a vanguarda das grandes mudanças que o Brasil espera.

Atualmente, Eduardo Portella, além de dar aulas em cursos de pós-doutorado no Colégio do Brasil – instituição de ensino que criou – é diretor da revista Tempo Brasileiro e presidente do Fundo Internacional para Promoção da Cultura da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).

os professores da Faculdade de Direto, no fundo, eram literatos, eu tinha boas rela-ções com eles, que me facilitavam a vida.

Jornal da UFRJ: Que lembranças o senhor guarda dos seus pais? Eles também tinham esse pendor para a Literatura?Eduardo Portella: Sim, minha mãe era professora de Português no Ensino Médio. Já o meu pai era um comerciante espanhol. Ele chegou ao Brasil pequeno, trazido por um irmão que teve problemas na Espanha, no início do século XX, por ter fi cado ao lado da República.

Jornal da UFRJ: Quando a sua vocação literária se manifestou de forma clara?

Eduardo Portella: Muito cedo. Aos 14 anos já comecei a catar livros, a escrever

os primeiros textos. É um vírus para o qual não há antibiótico, ainda é um desafi o para as pesquisas médicas.

Jornal da UFRJ: A sua carreira pública também se iniciou muito cedo. Como foi isso?

Eduardo Portella: É verdade. Quando terminei a faculdade e voltei da Euro-pa, me meti na campanha de Juscelino e fui feito, com 23 anos, assistente do Gabinete Civil da Presidência da Re-pública, em 1956. Eu com essa idade e já no meio de Tancredo Neves, que era meu amigo, Negrão de Lima, Benedi-to Valadares, essas raposas mineiras. Quando me lembro, tenho uma espécie de medo retrospectivo. Aonde é que eu fui me meter!

Jornal da UFRJ: Sua experiência como crítico literário começa em Pernambuco?

Eduardo Portella: Sim, mas não foi regu-lar. Quando vim para o Rio, o famoso San Tiago Dantas, professor da Faculdade de Letras, comprou o Jornal do Commercio, em 1957, e prometeu fazer uma grande revolu-ção. Foi quando comecei a escrever críticas literárias regulares. San Tiago escreveu uma nota muito bonita no dia em que estreei. Era a época das críticas de rodapé e eu ocu-paria um espaço que tinha pertencido, no passado, a Sílvio Romero, a José Veríssimo. Como o jornal era muito grande, era preciso escrever um rodapé e tanto. Era preciso mais preparo físico do que intelectual.

Jornal da UFRJ: Em Pernambuco, o se-nhor freqüentava um círculo literário com

Um literato

sedutor

Coryntho Baldez

Novembro 2008 UFRJJornal da

15Entrevista

intelectuais como Gilberto Freyre, Mauro Mota, entre outros. Quais eram as princi-pais preocupações estéticas daquele grupo e como isso o influenciou?

Eduardo Portella: Uma preocupação regionalista. Moderna, mas não moder-nista. Gilberto Freyre, por exemplo, era um homem multidisciplinar. Ele escreveu novelas, poesias, ensaios, sem falar na sua Antropologia, que é revolucionária. Ele aproveitava certos elementos que ficaram à margem da Antropologia oficial, aquele chamado material marginal. Em nossa Antropologia, havia a influência de certo marxismo vulgar, que não estava à altura de Marx, um grande filósofo da história. Esse marxismo acentuava a visão através da perspectiva das relações de produção. Em meu primeiro artigo sobre Gilberto Freyre, escrevi que a grande revolução dele foi deslocar o eixo das relações de produção para o da produção de relações. Ele passou a incorporar em suas análises os ambientes escondidos, que, no entanto, pertencem às relações sociais e muitas vezes as determinam. Gilberto teve uma sensibilidade enorme para essas coisas. E também influenciou o romance do Nordeste. José Lins do Rego disse que se tornou romancista por causa dele. E Mau-ro Mota era um grande poeta. Eu era um garoto de 18 anos e bebia dessas fontes.

Jornal da UFRJ: Quando o senhor estréia em livro?

Eduardo Portella: O meu primeiro livro mesmo foi Dimensões 1, lançado pela José Olympio, em 1958, com prefácio de Gilberto Freyre. Foi aí que eu comecei. E como a crítica era predominantemente impressionista e tive meus professores de Estilística, trouxe um olhar diferente para o texto. Era um olhar preocupado em entender as razões secretas do texto poé-tico, enquanto meus antecessores falavam muito da biografia. Há pouco tempo, por exemplo, fiz um discurso na Academia Brasileira de Letras, quando o presidente Lula foi lá assinar o Acordo Ortográfico, recusando todas as leituras na base de que Machado de Assis era mulato, epilético, nasceu no Morro do Livramento. Isso não tem nenhuma importância, é racismo às avessas. Machado foi o “cara” que escreveu determinados livros que ninguém escre-veu, nem branco, nem preto, nem mulato. O estilo não tem cor, tem intensidades e nisso ele era bom.

Jornal da UFRJ: Como é a experiência de fazer crítica literária?

Eduardo Portella: Experiência interes-sante, mas me desencantei cedo com ela. É interessante ficar esperando o livro na esquina da publicação. Quando ele passa, o crítico o agarra. Depois eu me lembrei que o crítico, no fundo, fala a partir de um tribunal, como um juiz, uma con-dição que ninguém lhe outorgou. E ele fica lá dizendo este livro vale; este, não

vale. Eu não tenho nenhuma vocação para juiz.

Jornal da UFRJ: E as preferências pessoais na Literatura ajudam ou atrapalham o crítico?

Eduardo Portella: Atrapalham. Eu me lembro que uma vez a Clarice Lispector me pediu para fazer uma introdução do li-vro A hora da estrela (1977). Ela era minha amiga e gostava das coisas que escrevia sobre ela. Comecei a ler muito Clarice em um período e depois liguei para ela e disse: “vamos parar com essa história porque eu sou um crítico profissional. Você fica me viciando em você e eu não escrevo mais nada”. Realmente, Clarice tem um texto tão lindo, tão transparente, tão intenso, que chega a ser um problema quando a lemos para fazer comparações com outros autores.

Jornal da UFRJ: Além de Clarice, quais são as suas preferências literárias?

Eduardo Portella: Tenho um gosto diver-sificado, não sou um fundamentalista na Literatura. Gosto de Jorge Amado, que foi meu amigo, de Guimarães Rosa, de Drummond, de Manuel Bandei-ra. Aliás, acho que Bandeira merece uma recuperação crítica. Ele teve um grande momento e, depois que morreu, perdeu um pouco de presença. Mas é um grande poe-ta. Hegel dizia que o grande poeta é aquele que faz um grande poema. Gosto, sobretudo, de João Cabral. Não gosto dos poetas extrovertidos, melodramáticos, altisso-nantes, que promovem uma espécie de poluição sonora. Esses altissonantes de 1945 somente sabem berrar, é preciso pôr alguma coisa no ouvido para lê-los. Essa geração, para mim, foi um retrocesso na história da Literatura brasileira contem-porânea.

Jornal da UFRJ: Em sua obra, o senhor sempre lançava reflexões sobre a realidade brasileira. Foi por isso que Alceu Amoroso Lima afirmou que o senhor foi a primeira fi-gura da crítica literária “neomodernista”?

Eduardo Portella: O Alceu era muito generoso comigo. Eu estreei, com Di-mensões 1, e ele escreveu um artigo lindo. Se 30 anos antes ele havia escrito o artigo Romancista ao Norte, quando lancei meu primeiro livro ele escreveu a crítica que chamou de Crítico ao Norte. A referência anterior era ao livro A Bagaceira, de 1928, de um cara da Paraíba que eu, como baia-

no supersticioso, não posso dizer o nome porque dizem que dá um azar tremendo. Agora, eu fiquei muito orgulhoso na época quando o Alceu escreveu que eu era neomodernista. Mas, hoje, como acho que o modernismo não foi moderno, eu relativizo. Ele pensou no moderno, mas escreveu modernista. O próprio Alceu é tido como crítico do modernismo, mas é um crítico moderno, transpõe seus limites.

Jornal da UFRJ: Que críticas o senhor faz ao modernismo?

Eduardo Portella: O modernismo pau-lista foi criado sob o calor do café, não somente porque estava muito quente, como porque tinha um preço muito bom na Bolsa de Valores.

Jornal da UFRJ: Foi depois que o senhor se desencantou com a crítica literária que bus-cou compreender e interpretar o Brasil?

Eduardo Portella: Sim, passei a ser um ensaísta. Eu me sinto muito bem no ensaio. Não é um gênero formal, todo

fechadinho. Ele tem maleabilidade. Mesmo ocupando várias funções ao longo da vida, nun-ca deixei de ler e escrever. Fiz muitos artigos. Quando fiz as contas por temas, descobri que tenho oito livros prontos. Estou agora dan-do um polimento neles para, daqui a dois meses, lançar o primeiro.

Jornal da UFRJ: O senhor foi eleito em 1981 para a Acade-

mia Brasileira de Letras. Como tem sido a convivência nessa instituição ao longo do tempo?

Eduardo Portella: É uma instituição heterogênea. Talvez não tanto como o Congresso Nacional, mas lá existem pessoas muito diversas. Há poetas que eu não reconheço como poetas e críticos que eu não reconheço críticos. É minoria, talvez quatro pessoas que não devessem estar lá.

Jornal da UFRJ: Por que há tantas can-didaturas à ABL? Pertencer à instituição passou a ser sinal de status?

Eduardo Portella: Concorreram à última vaga 22 candidatos. Além do status, pas-sou a ser um bom negócio fazer parte da ABL. Na sessão de terça, o jetom é de 500 reais e na da quinta-feira é de mil reais. Ainda há uma verba de representação de três mil reais por mês. A soma chega a cerca de 10 mil reais mensais. É mais

do que o meu salário de professor titular emérito aposentado da UFRJ, que é de cerca de cinco mil reais.

Jornal da UFRJ: O senhor ocupou várias funções públicas, entre elas a de ministro da Educação, entre 1979 e 1980. Que medida dessa época destacaria?

Eduardo Portella: Há uma que me deixa imediatamente contente. Fiz o primeiro quadro de carreiras e salários de professores do Ensino Superior, que antes não havia. Também implantei o Edurural (Programa de Educação Básica para o Nordeste Brasileiro), que era uma suplementação de salário de professores da zona rural, que ganham uma ninharia, o que é um desestímulo permanente. E outra ação importante a destacar é que, quando assumi, o Petrônio Portella, que era ministro da Justiça e meu amigo, quis me pôr sob censura. Eu disse que não aceitava censura. A única que eu admitia era a da crítica literária, que fiz durante algum tempo. Fora dessa, nenhuma.

Jornal da UFRJ: Saiu do Ministério por esse motivo?

Eduardo Portella: Eu saí numa greve da UFRJ. O governo queria que eu engros-sasse. Em discurso no Congresso, declarei que o meu lugar era na outra margem do rio, com os professores. E veio aquela outra frase que ficou folclórica: “Não sou ministro, estou ministro”.

Jornal da UFRJ: O senhor também criou a CBD, a Confederação Brasileira de Desportos?

Eduardo Portella: É verdade. O mi-nistério que ocupava era de Educação, Cultura e Esportes e ainda respondia pela Ciência e Tecnologia, que não tinha pasta específica. Acabei ficando com quatro ministérios numa época de transição. E quando o presidente João Figueiredo me convidou para a função, disse que eu seria o ministro da abertura. Eu acreditei. Havia um grupo do sistema militar, ligado ao Geisel, que deixou a Lei da Anistia, que o Figueiredo estava obrigado a cumprir. Mas no dia em que anistiei o Darcy Ribei-ro quase caí. Houve uma cena cômica. O presidente Figueiredo ia a Buenos Aires visitar o colega dele, o general Videla, um “gorilão” daqueles violentos. Antes de se despedir, ele me disse: “Ministro, o senhor pode ter uma conversa com o ge-neral Medeiros?” Era o ministro-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI). Respondi que sim e logo em seguida me deparei com o Medeiros. Disse a ele que o presidente tinha sugerido uma conversa. Ele, então, sugeriu ir ao meu ministério e me ofereci para ir ao dele. Se o Medeiros fosse ao meu gabinete e me visse com professores em greve, com jogadores de futebol querendo profissionalização, es-taria perdido. Na sua sala, ele me recebeu cheio de formalidades e disse que tinha

“Quando vim para o Rio, o famoso

San Tiago Dantas, professor da

Faculdade de Letras, comprou o Jornal

do Commercio, em 1957, e prometeu fazer uma grande

revolução. Foi quando comecei a escrever críticas

literárias regulares.“

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16 Entrevista

uma coisa chata para dizer. Então, me perguntou se eu havia anistiado Darcy Ribeiro. Fiquei tranqüilo, porque achei que tinha cometido uma “gafe” maior, e falei que não havia anistiado Darcy Ribeiro. Ele ficou eufórico e replicou que eu tinha anistiado sim. Eu repeti que não. Aí ele puxou a barriga para trás, abriu a gaveta e pegou uma portaria assinada por mim e perguntou quem a tinha assinado. Respondi: “Eu!” “Ora, e como afirmou que não o anistiou?”, ele perguntou de novo. Então eu disse que, como cidadão brasileiro e bacharel em Direito, conheço as leis do meu país. E anistiei, na forma da Lei, vários outros, como Leite Lopes e Maria Yeda Linhares.

Jornal da UFRJ: Com essa experiência em funções públicas, o senhor poderia dizer como o poder vê a Educação?

Eduardo Portella: O poder em geral não dá muita bola para a Educação. Ele acha que há investimentos mais rentáveis. O poder tem uma mentalidade bancária, de relação custo-benefício. E o retorno em áreas como Educação e Cultura não é claro e objetivo. Se houver uma política de investimentos bem feita nessas áreas, se elas forem democratizadas, a socieda-de muda de nível. Normalmente, nessas áreas, os investimentos não são contabili-záveis, palpáveis, são considerados saltos no escuro. Não há briga, por exemplo, para ocupar o Ministério da Cultura porque ele não tem orçamento, portanto, não tem poder.

Jornal da UFRJ: Se o senhor voltasse a ser ministro da Educação hoje, qual seria a sua primeira medida?

Eduardo Portella: Buscaria ampliar o orçamento para a Educação. Fora daí, ficar fazendo discursos ou promessas, não adianta. Bastaria o dinheiro desviado pela corrupção para resolver o problema da Educação.

Jornal da UFRJ: O senhor recebeu o título de professor emérito da Faculdade de Letras da UFRJ, em 1999. Mas não quis recebê-lo de imediato. Por quê?

Eduardo Portella: Porque, na época, José Vilhena não correspondia ao meu ideal de reitor, não possuía condições técnicas para a função. Em segundo lugar, havia uma subserviência diante do poder federal que também não correspondia a tudo que fiz na vida e que continuo acreditando. De-pois, assumiu a Reitoria o Carlos Lessa, a quem respeito muito, e cessaram os impedimentos.

Jornal da UFRJ: E como é a sua relação com a Faculdade de Letras da UFRJ?

Eduardo Portella: Muito intensa. Eu im-plantei o seu Programa de Pós-graduação há 40 anos. Fui membro do Conselho de Pesquisa e Ensino para Graduados

(CEPG) quando ele tinha uma força muito grande, integrei o Conselho Universitário e também fui diretor da Faculdade de Letras.

Jornal da UFRJ: O senhor é também um estudioso da questão universitária brasi-leira. Como avalia a universidade pública brasileira e qual deveria ser o seu papel?

Eduardo Portella: Ela deve ter um papel de vanguarda, puxar o processo de mu-dança, mas com a cobertura do governo. Certa vez, para arranjar verba para a uni-versidade, sugeri que o estacionamento fosse pago e que se cobrasse pela marca do carro. Aí, a turma da UNE (União Nacional dos Estudantes), que depois ficou fechada comigo, disse que eu era mi-nistro Robim Hood, que tirava dos ricos para dar aos pobres. Eu gostei.

Jornal da UFRJ: En-tão, a universidade precisa mudar, mas em que sentido?

Eduardo Portella: Em todos os sentidos e imediatamente. Pri-meiro, na estrutura curricular. Os currículos estão com os sinais trocados. Depois, promover maior integração, as unidades se aproximarem mais. Recentemente, orientei a tese de uma moça, chamada Maria Aparecida, que é da Escola de Belas Artes (EBA). Ela fez um doutorado em Letras com a tese sobre baianos na Escola de Samba. Tinha o lado plástico e o lado cultural. Então, é preciso integrar e compreender que a estrutura do conhecimento mudou muito no mundo. Também é fundamental desburocratizar. Aquela história da transformação do ca-tedrático em chefe de departamento não resolveu o problema da democratização.

Eu próprio achei que a solução poderia ser por aí.

Jornal da UFRJ: Hoje, há quem busque novas formas de organização dessa estru-tura acadêmica?

Eduardo Portella: Diante da figura au-toritária do catedrático antigo, a idéia do departamento se apresentava como uma possível descentralização ou despersona-lização. Mas começaram a eleger gente que fazia a mesma coisa que o catedrático. Então, não funcionou. Essa é uma questão em aberto.

Jornal da UFRJ: E como produzir um saber transdisciplinar nesse contexto?

Eduardo Portella: Te-mos tudo para estar na vanguarda da produ-ção do saber transdis-ciplinar. É só juntar as pontas.

Jornal da UFRJ: Como as novas tecnologias podem ajudar nisso?

Eduardo Portella: É um instrumento de trabalho fundamental, uma conquista tecno-

lógica, mas o computador não pensa por nós e não pensará enquanto for uma estru-tura binária. O pensamento está na terceira margem do rio. E graças a Deus que o computador não pensa por nós, senão estaríamos demitidos historicamente.

Jornal da UFRJ: Que reflexão o senhor deixaria para o jovem estudante no Brasil?

Eduardo Portella: Primeiro, fazer opções profissionais adequadas para, no futuro, não trabalhar em algo que não suporta. Depois, estar aberto para o convívio transdisciplinar. É preciso abrir a legislação

para que determinado diploma possa valer numa área afim. Esse intercâmbio mais sis-temático entre as áreas do conhecimento é fundamental.

Jornal da UFRJ: E hoje, quais as suas prin-cipais atividades?

Eduardo Portella: Às segundas dou aulas em um doutorado e um pós-doutorado, criados por meio de um convênio com a UFRJ e uma instituição que criei com muita ambição. O nome dela é Colégio do Brasil, que lembra Collège de France, Colegio del Mexico, que se transforma-ram em grandes instituições de ensino. Dirijo também a revista Tempo Brasileiro, fundada por mim e outros amigos, em 1972. Ela sai até hoje com periodicidade trimestral. Inclusive, nos períodos áureos da repressão, criamos cursos paralelos em nossa editora. Em 1968, por exemplo, orga-nizamos um curso sobre Herbert Marcuse, que era o papa da insurreição estudantil. Depois veio o Gustavo Corção, um líder da direita, e escreveu um artigo dizendo que aquilo era a ressurreição do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), atiçando os militares.

Jornal da UFRJ: Fecharam a sede da revista?

Eduardo Portella: Eu estava em casa gripa-do e atendi a um telefonema. A informação que recebi era a de que a fachada tinha sido destruída com uma bomba e já havia equipes de rádio, jornal e tevê no local. Quem cometeu o ato deixou a inscrição CCC (Comando de Caça aos Comunistas) em uma das paredes da sede da revista, que ficava em Laranjeiras, na rua Gago Couti-nho, 61. Isso aconteceu em 1969.

Jornal da UFRJ: E qual foi sua reação?

Eduardo Portella: Fui para lá e dei uma entrevista à imprensa responsabilizando Gustavo Corção como o autor intelectual do crime. Voltei para casa e fiquei bom da gripe. Um amigo chegou a me dizer que raiva era ótimo para curar gripe.

Jornal da UFRJ: Faltou falar sobre suas atividades na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

Eduardo Portella: O destino mexe muito com a gente, no meu caso para o bem. Um amigo que havia sido ministro da Educação da Espanha, quando foi eleito diretor, me convidou para o cargo de diretor-adjunto da Unesco lá. Como ele viajava muito e, depois, se licenciou, assumi muitas vezes a direção geral. Depois de deixar a direção e voltar para o Brasil, fui eleito, quase por unanimidade, em 1998, para presidente da Conferência Geral da Unesco, que é o cargo supremo da Organização. Essa foi uma grande alegria que tive. Hoje, sou presidente do Fundo Internacional para Promoção da Cultura.

“Eu implantei o Programa de Pós-graduação da Faculdade

de Letras há 40 anos. Fui membro

do Conselho de Pesquisa e Ensino para Graduados

(CEPG) quando ele tinha uma força muito grande.”

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Márcio Castilho

As transformações do capi-talismo no cenário atual vêm colocando no centro

do debate a seguinte questão: quais as dinâmicas e fatores que levam algumas sociedades a se tornarem mais produtivas do que outras? Na lógica do capitalismo industrial, certamente a resposta passaria pelo aumento da capacidade industrial, mais empregos, melhores salários e, conseqüentemente, inclusão social. Porém, outra corrente teórica vem buscando definir um novo tipo de mobilização produtiva que vai além desse modelo tradicional centrado no regime de acumulação capitalista, que tem a grande indústria como pólo estruturante da vida econô-mica.

No lugar de uma produção res-trita ao chão da fábrica, entram em cena outros elementos organizados em torno da dinâmica da vida e do trabalho imaterial. Essa nova dimen-são está descrita nos estudos acerca do chamado “capitalismo cognitivo”, “capitalismo das redes”, “biocapi-talismo” ou ainda “bioeconomia”. A despeito da multiplicidade das definições, a produtividade se daria, partindo dessa hipótese, em variáveis intangíveis, tais como a importância da comunicação, da linguagem, da livre circulação do conhecimento e de novos movimentos de luta que começam a se organizar indepen-dentemente da relação capital e trabalho.

Para Giuseppe Cocco, professor da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ e coordenador do Laboratório Território e Comunicação (Labtec), a passagem do capitalismo indus-trial para a fase da bioeconomia reconfigura principalmente o papel do trabalho, do conhecimento e das novas tecnologias de informação e comunicação. Segundo ele, nesse novo modelo, as empresas funcio-nam cada vez mais em dinâmicas de terceirização do trabalho e cadeias ou redes de fornecedores. Para ilustrar o conceito, Cocco usa como exemplo a fabricação de artigos de consumo, como uma armação de óculos ou um par de sapatos, cujo valor material da produção não corresponde a mais do que 5% do total investido. Os 95% restantes, afirma o pesquisador, estão relacionados com a dimensão simbó-lica da dinâmica produtiva. As novas variáveis incluem “a organização da logística, o desenho, a rede de comer-cialização, o marketing e uma série de elementos intangíveis, que dizem respeito ao próprio funcionamento das redes”.

As estratégias de mercado de uma multinacional como a Nike também ajudam a exemplificar a valorização

Biocapitalismo e a construção do comumdo imaterial e a forma como esta nova produção se distingue comple-tamente dos elementos da cadeia de valor do período industrial. “A Nike não vende o par de tênis, mas uma forma de vida. Muito mais que o pro-duto, a empresa vende uma maneira de vestir, de se comunicar, de pensar, buscando capturar as formas de vida dos jovens da periferia do Rio ou de

Los Angeles. O objetivo é reduzir a amplitude dos mundos possíveis a apenas um: o mundo da Nike. Tudo isso é absolutamente comunicação”, afirma Giuseppe Cocco.

Espaço públicoO papel do conhecimento, nesse

cenário, é fundamental para a cons-trução de uma nova política do es-

paço público e de transformação dos movimentos de luta na sociedade. Surgem novas dinâmicas de partici-pação social que, se não substituem os partidos políticos e organizações sindicais como canal privilegiado das dinâmicas reivindicativas, colocam em cena outros modos de mobiliza-ção e cooperação produtiva que não passam mais pelo capital.

Sociedade

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Barbero em entrevista exclusiva ao Jornal da UFRJ.

Segundo Cocco, não haveria esse deslocamento sem a integração das novas tecnologias de informa-ção e comunicação. O pesquisador observa, por exemplo, a força dos movimentos em defesa do software livre ou copyleft (forma de usar a legislação de proteção dos direitos autorais com o objetivo de retirar barreiras à utilização, à difusão e à modificação de uma obra criativa)

que surgem como crítica e, ao

mesmo tempo, alternativa de so-cialização ao modelo de difusão da Microsoft, empresa emblemática, segundo ele, desse novo tipo de ca-pitalismo.

“Durante o fordismo, a crítica social vinha do sindicalismo. No momento atual, o maior inimigo da Microsoft e do seu modelo de copywright (direito sobre a cópia) é o movimento do copyleft, quer dizer, liberdade sobre a cópia. A acumu-lação da riqueza da Microsoft vem da capacidade de acelerar a difusão e diminuir a socialização. Ou seja, a idéia é difundir o software para qualquer tipo de hardware, mas im-pedir que se abra o pacote. Somente quando abro o pacote, percebo que a socialização é a condição para que ele continue melhorado na dinâmica do próprio uso”, descreve o coordenador do Labtec.

Para ele, a diferença entre esses dois modelos está na construção da política do espaço público. Enquanto uma empresa como a Microsoft per-cebe o espaço público como mercado, os novos movimentos de socialização se relacionam com a esfera pública na perspectiva da construção do comum. Esse movimento - salienta

o pesquisador - ocorre gradualmen-te na sociedade a partir de lutas e negociações. Alguns avanços, no entanto, já podem ser observados no caso brasileiro. Segundo ele, um indicativo desse novo quadro de re-lações produtivas é o entendimento acerca da necessidade de criação de um sistema de proteção social que vá além da condição de o cidadão ter um emprego formal. Outro é a discussão sobre a política de cotas para estudantes negros como uma das propostas de democratização do acesso ao Ensino Superior: “o maior movimento colocando a questão da expansão das vagas para estudantes de baixa renda nas universidades é a po-lítica de cotas, que surgiu dos cursos pré-vestibulares comunitários. E eles funcionam em um modelo de copyleft , porque é um trabalho voluntário, de luta e produção ao mesmo tempo”.

Outros movimentos sociais des-pontam nesse cenário a partir da criação de novas redes de solida-riedade potencializadas pela livre circulação do conhecimento. É o caso dos projetos mantidos pelo grupo cultural Afroreggae e pela Central Única das Favelas (Cufa), organi-zadas como novos canais de reivin-

dicações na sociedade, apontando outros caminhos de integração. Para Ivana Bentes, professora e diretora da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, pesquisadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC), a comunicação vem sendo usada cada vez mais como ferramenta estraté-gica de transformação social. Os novos modos de produção da informação redimensionam o próprio conceito de cidadania.

“As novas batalhas no campo da comunicação passam pela gratuidade e criação de mecanismos para mais grupos sociais tenham acesso à infor-mação e à tecnologia. Não o fetiche tecnológico, mas como a Internet, a televisão a cabo e outras ferramentas podem se estruturar para aumentar a produtividade social e contribuir para que todos se comuniquem mais. Os movimentos sociais começam a discutir, de maneira mais consciente, esse tipo de democracia mais repre-sentativa”, afirma Ivana, citando a importância do debate acerca das tevês comunitárias, do provedor público de Internet e do acesso à telefonia gratuita.

As transformações atingem tam-bém a questão da propriedade in-

Barbero em entrevista exclusiva ao Jornal da UFRJ.

Márcio Castilho

As indústrias do tempo pre

Na aquisição de um computa-dor, um telefone ou qualquer eletrodoméstico, a pergunta

do cliente é praticamente obrigatória ao vendedor da loja: “qual o tempo de garantia do produto?” Os certifi cados que acom-panham as notas fi scais e os manuais de instrução não fi cam mais esquecidos em al-gum lugar. Perdê-los pode signifi car dor de cabeça e um grande prejuízo no bolso em

um mercado no qual os bens de consumo são fabricados para durar cada vez menos. Saudosismo extremado de quem não troca seu “velho” celular de dois anos atrás pelos sedutores modelos com bluetooth (especifi cação industrial para áreas de redes pessoais sem fi o) ou percepção de que os cidadãos que resistem a ingressar nesta era do BlackBerry (aparelhos com funções de editor de textos, acesso à Internet, e-mail e

tecnologia IPv6) podem se tornar obsoletos pelo avanço da tecnologia?

Essas questões da contemporaneida-de permeiam o pensamento do teórico espanhol radicado na Colômbia Jesús Martín-Barbero, uma referência na linha dos estudos culturais na América Latina. No início de setembro, quando esteve no Rio para ministrar disciplina aos estu-dantes do Programa de Pós-graduação da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, Barbero concedeu entrevista exclusiva ao Jornal da UFRJ em que refl etiu acerca do sistema econômico e o papel dos meios de comunicação. Mais do que fazer grandes generalizações, o professor da Universi-dade de Guadalajara, no México, indica caminhos que renovam os estudos sobre a trama de mediações que a relação entre comunicação, cultura e política articula na sociedade.

Barbero afirma que a modernidade promove uma nova relação de tempo que em nada se assemelha com as representa-ções de um tempo cíclico, como ocorria no passado. Hoje o teórico percebe uma nova temporalidade baseada na “obsolescência acelerada” dos bens de consumo e das próprias instituições. Segundo o acadêmico, o sistema econômico e os meios de comu-nicação são os grandes fabricantes desse tempo presente, oferecendo ao público uma

novidade cada vez mais efêmera. Enquanto que, no passado, os produtos eram fabrica-dos no sentido da longa duração, a lógica atual do mercado trabalha sem perspectiva de futuro, levando as pessoas a trocarem constantemente de carro, computador e telefone. “O que permite ao sistema funcio-nar é a obsolescência acelerada. As coisas são fabricadas para durar um determinado tempo. Em alguns casos, o mínimo possível. Se nós não trocamos de produtos, o sistema se paralisa”, afi rma o teórico espanhol.

Em seu livro “Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia”, publi-cado no Brasil pela Editora UFRJ (2001), Barbero já salientava a impossibilidade de o mercado promover vínculos entre os sujeitos, pois “opera anonimamente mediante lógicas de valor que implicam trocas puramente formais, associações e promessas evanescentes que somente en-gendram satisfações ou frustrações, nunca, porém, sentido”. O autor complementa que os meios de comunicação de massa, como outro poderoso fabricante do tempo presente, contribuem para agravar essa transformação na sociedade. Isso porque os veículos jornalísticos tendem a lidar com a informação mais por razões econômicas (audiência) do que propriamente pelo seu valor em termos de interesse público. Afi r-ma Barbero ao Jornal da UFRJ: “a notícia

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telectual. Segundo Ivana, há uma crescente mobilização dos movimen-tos sociais em defesa do domínio público. Para discutir essa questão, a ECO realiza entre os dias 15 e 17 de dezembro o Fórum Livre de Direito Autoral. Os intelectuais Michael Har-dt e Antônio Negri, autores do livro Império (Record, 2005) e o escritor Yann Moulier Boutang, um dos mais atuantes pensadores do capitalismo cognitivo, foram convidados a participar. “Há uma necessidade de a lei ser repensada a partir das mudanças tecnológicas e das novas ciências sociais que estão concebendo esse conceito de comum”, informa a pro-fessora. A pauta inclui desde a discussão sobre a disseminação do download para uso pessoal até o aspecto da reproduti-bilidade das obras por editoras de livros e gravadoras de disco.

Ivana destaca que o problema da propriedade intelectual atinge também o meio acadêmico. Critica, por exemplo, a “criminalização” de uma produção da própria universidade, ou seja, a proibição de cópias para fi ns educativos de artigos e livros produzidos pelos professores.

Contra- informaçãoNeste cenário do capitalismo

informacional, no qual arquivos de

áudio e vídeo são compartilhados livremente pela Internet, a informa-ção tende a ser cada vez menos cen-tralizada. Na avaliação de Giuseppe Cocco e de Ivana Bentes, apesar da apropriação das novas tecnologias pelos grandes conglomerados de comunicação, a Internet permite aos usuários estabelecerem novas formas de participação social, au-mentando a capacidade de produ-ção da contra-informação.

Cocco aponta como a web foi ins-trumento importante, como discurso contra-hegemônico, para reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2006. “A reeleição de Lula foi feita contra um partido de oposição: a grande mídia brasileira. Todos os meios de comunicação fizeram, a partir da crise política de 2005, uma campanha contra Lula de maneira violentíssima, mas não consegui-ram impor sua opinião por causa da Internet. No âmbito da classe média, mais sensível a esse tipo de mídia, isso rompeu com a hege-monia dos jornais e da televisão”, considera o pesquisador.

Ivana afirma, embora as tecno-logias favoreçam a concentração do poder, ao mesmo tempo, abrem

possibilidades de articulação entre o indivíduo isolado, fragmenta-do e as redes coletivas, citando o exemplo das listas de discussão na Internet. Nesta era da velocidade da informação, a diretora da ECO reconhece a predominância do tempo sobre o espaço na produção das notícias, com a valorização das matérias produzidas em tempo real, porém ressalta que “a Internet é, ao mesmo tempo, veneno e antídoto, pois também traz a possibilidade de recontextualização e a capacidade dos indivíduos se organizarem em rede. Os movimentos sociais estão fazendo isso, cumprindo esse papel de produzir contra-informação, de reforçar as redes sociais exis-tentes”.

Desemprego ou novos estatutos de trabalho?

Outro aspecto discutido nes-se cenário de mudanças é uma possível redução dos postos de trabalho a partir do processo de automação propiciado pelas novas tecnologias. Cocco defende que a questão do desemprego deve ser vista sob outro ângulo na fase atual do capitalismo. Segundo ele,

não é mais o conceito de emprego formal, construído pela ideologia da época industrial, que está em discussão no chamado capitalismo do conhecimento. “No capitalismo atual, toda nossa vida é mobilizada. Há a multiplicação das condições e dos estatutos do trabalho. A relação salarial é fragmentada seja porque você pode ser assalariado ou não, mesmo sendo sempre produtivo, seja porque a própria condição salarial pode ter estatuto diferente: contrato de duração determinado, aluguel de trabalho por parte de empresas especializadas, trabalho precário, informal...” Essa idéia, complementa Giuseppe Cocco, altera a própria noção do cidadão como simples consumidor. O pesquisador cita o exemplo dos caixas automáticos ou serviços bancários pela Internet. “Em um caixa eletrônico, você está na dupla condição de usuário e produtor. O emprego bancário não pára de cair e é proporcional à sofisticação do que você pode fazer com a Internet, em casa. Nela você não tem um serviço dado. Você vai procurar seu serviço. É você quem consome e produz”, avalia o professor.

As indústrias do tempo preque durava um mês, uma semana, atual-mente dura nem sequer um dia, porque não é o valor interno do fato que importa, mas o seu valor noticioso, um valor agregado pelo meio. Não valorizamos a notícia pelo número de pessoas que afeta ou em que profundidade afeta. Aqui estamos ante ao que eu chamaria de uma perversão”.

O intelectual utiliza o termo “perversão” por considerar a informação matéria-prima para a cidadania. No entanto - prossegue Barbero -, diante da tendência dos jornais impressos em competir com a web, não for-necendo elementos sufi cientes para a com-preensão dos acontecimentos cotidianos, os meios massivos perdem a sua capacidade de formular debates capazes de fortalecer a sociedade civil. Esse fenômeno gera o que o autor chama de uma “sociedade autista” que não se conecta com nada e que não tem o mínimo de memória.

Lutas e negociaçõesApesar da força do sistema econômico,

que opera na lógica da rentabilidade em detrimento da construção de uma rede de solidariedade social, e da visão crítica em relação ao papel dos media, Barbero acredita no poder da comunicação como espaço estratégico de construção da cidada-nia. Discordando da idéia de futuro como repetição do presente, em uma crítica ao

radical pessimismo de Francis Fukuyama em O fi m da história (Rocco, 1992), o teó-rico enfatiza a existência de um espaço de luta e de intervenção social contribuindo para a criação de uma “institucionalidade nova”. Essas novas redes de solidariedade estão presentes, segundo ele, nas emissoras de rádio e de televisão comunitárias, nas manifestações artísticas que expressam a pluralidade das culturas populares, como os grafi -teiros, na música jovem, através do rock e do rap, ou nos movimentos sociais.

Atento a “novos senti-dos do social e novos usos sociais dos meios”, Barbero defende um deslocamento metodológico no sentido de valorizar o papel do outro, do receptor como sujeito ativo no processo comunicacional. “Não podemos arbitra-riamente dizer que somente uns poucos podem fazer e os demais, apenas consumir. Sabemos que nem todo mundo nasceu para ser artista, mas todo mundo pode fazer algo, desde que se criem condições para isso. O problema é que os governos não fazem políticas de Estado, de médio e de longo prazos. Se não há um mínimo de prazo, a política vira puro marketing. Vendo a meus

eleitores uma coisa que não vou poder dar um dia. Esse não é somente um problema latino-americano ou terceiro-mundista. Na Europa é igual. Os políticos são, em geral, imediatistas”, observa Martín-Barbero.

TV Pública e o papel das universidadesAinda acerca da potencialidade dos

meios de comunicação como instrumen-to de fortalecimento da cidadania, Barbero acre-dita que a experiência da TV Pública pode ser positiva no sentido de refazer os vínculos socie-tários. Ressalta, no entan-to, que sua implantação não deve prescindir de um vigoroso debate que incorpore demandas do público. A busca de no-vos conteúdos que valo-

rizem a participação dos telespectadores é necessária - afi rma o teórico -, para trans-formar a TV Pública em uma rede voltada aos interesses da comunidade, evitando, assim, tentativas de manipulação por parte de governos e partidos.

“Pensar não haver nenhum tipo de dependência de partidos que estão no go-verno é idealismo absoluto. Mas defendo um projeto que permita incorporar, pouco

a pouco, os meios comunitários para que essas produções sejam inseridas na televisão pública. É preciso qualidade, mas não quali-dade puramente técnica ou estética, mas de conteúdo também, que não seja excludente, elitista, populista tampouco. Creio que é um projeto muito difícil, muito delicado e que vai necessitar tempo”, observa o professor.

Jesús Martín-Barbero nasceu em Ávila, na Espanha, mas reside na Colômbia desde 1963. Foi professor visitante da Cátedra Unesco de Comunicação na Universida-de Autônoma de Barcelona, na Uni-versidade Puerto Rico, na Universidade de São Paulo (USP) e na Escola Nacional de Antropologia do México. O professor destaca a importância de as Instituições de Ensino Superior resgatarem o sentido da universalidade. Para ele, o modelo letrado das universidades é excludente e não se comunica com o restante da sociedade.

“A universidade poderia estender-se mais sobre a sociedade, porque tem lin-guagem limitadíssima. Fundamentalmen-te é letrada, mas a maioria das pessoas não o é. São visuais, gestuais. A universidade tem que comunicar - e se comunicar é atuar com todas as culturas que não cabem na universidade. Se não é assim, a universida-de vai morrendo, porque a sociedade vai para outro lado”, afi rma o teórico.

sente

“É preciso qualidade, mas não qualidade puramente técnica ou estética, mas de conteúdo também,

que não seja excludente, elitista,

populista tampouco. “

Jesús Martín-Barbero

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20 Internacional

Bruno Franco

O neoliberalismo morreu?

Como na metáfora da bola de neve, que começa tímida e rola montanha abaixo, ganhando vulto até tornar-se assustadora, a crise iniciada no mercado imobiliário norte-americano afetou o sistema bancário e de

resseguros dos Estados Unidos. Como não poderia deixar de ser, em um sistema econômico internacional interligado e interdependente, os apuros vividos pela maior economia do planeta repercutem em todos os continentes, lançando o mundo em um período de tensão, incertezas e prejuízos.

De acordo com Reinaldo Gonçalves, professor do Instituto de Economia (IE) da UFRJ, a principal causa da crise é “a desregulamentação do sistema financeiro nos Estados Unidos, principalmente, no caso dos bancos e dos fundos de investimento. Deixaram soltas as feras do capitalismo, o que ele tem de mais predador”, acredita o professor.

O Estado norte-americano começou a oferecer sua mão forte à mão trêmula do mercado com a estatização das empresas de financiamento hipotecário, Fannie Mae e Freddie Mac. A decisão prevê a injeção de US$ 200 milhões nas empresas, que, juntas, controlam metade do mercado de hipotecas nos EUA, estimado em US$ 12 trilhões. Para melhorar a confiabilidade do setor imobiliário, o presidente norte-americano George W. Bush sancionou o Ato de Recuperação Econômica e Moradia de 2008.

A concordata pedida pelo banco Lehman Brothers adveio da obstinação de seu presidente Richard Fuld, que considerou baixas as ofertas de compra feitas pelo banco inglês Barclays, em um cenário adverso, já delineado com a venda do banco Bear Sterns ao JP Morgan. O que há de comum entre essas instituições americanas? Todas estavam profundamente envolvidas com a securitização de títulos de hipoteca.

No entanto, cerca de dez mil funcionários do Lehman conseguirão manter seus empregos, pois, após o anúncio da concordata, o Barclays fechou a aquisição da sede do Lehman Brothers, em Nova York, e de sua unidade de corretagem, em um negócio de US$ 1,75 bilhão. Com isso, o Barclays adquiriu as partes lucrativas do banco, evitando sua carteira de negócios no mercado imobiliário.

Saindo da letargia, o banco central americano, Federal Reserve (FED), socorreu a American Investment Group (AIG), com um aporte de 85 bilhões de dólares. O vultoso auxílio à AIG foi elogiado pelo ministro da Fazenda brasileiro, Guido Mantega, pois esta “é uma grande empresa de seguro, que tem impacto na economia internacional. Acho que foi adequado e, com isso, há uma acalmada na crise financeira” - opinou o ministro ao jornal Estado de São Paulo.

Para Mantega, o papel do FED não é salvar todas as empresas, mas evitar proble-mas que afetem todo o sistema, dando início a uma quebradeira geral. De acordo com Fernando Ferrari – professor de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - o aporte de US$ 85 bilhões para a AIG é fundamental, pois ela é fornecedora de credit default swaps (derivativos que protegem o próprio sistema bancário frente à inadimplência dos fornecedores) para o sistema bancário. Segundo Reinaldo Gonçalves, a acertada intervenção “foi uma pílula amarga para o governo republicano e para os conservadores nos EUA”.

Jim O´Neill, economista do Goldman Sachs e criador da sigla Bric (que reúne as iniciais de Brasil, Rússia, Índia e China, países considerados por ele como os emergen-tes de maior destaque no cenário futuro da economia mundial), afirmou ao Estado de São Paulo que a crise confirmará se o “B” de Bric é mesmo merecido, e que, para

O mundo convulsiona-se em mais uma crise, oriunda de um dos setores mais desregulamentados da economia: o mercado financeiro. Os mecanismos de Estado mais uma vez são acionados para corrigir os desatinos produzidos pela “mão invisível” do mercado.

tanto, o Brasil precisará garantir seu crescimento econômico, mesmo com a queda no preço das commodities (produtos primários, cotados internacionalmente, como a soja e o petróleo).

O´Neill se mostrou otimista quanto à força e estabilidade atuais da economia brasileira e afirmou que uma possível desaceleração da economia chinesa seria mais danosa ao Brasil do que a turbulência econômica norte-americana.

O mundo reage à criseEm uma ação concertada, bancos centrais de diversos países anunciaram, dia 8 de

outubro, cortes em suas taxas de juros, objetivando conter a desaceleração da economia mundial causada pela crise financeira. O FED anunciou o corte dos juros de 2% para 1,5% ao ano. O Banco da Inglaterra decidiu pela redução da taxa de juros do país em 0,5 pontos, para 4,5%. O Banco Central Europeu (BCE), por sua vez, reduziu a taxa básica de juros da União Européia de 4,25% para 3,75%. Os bancos centrais da Suécia e da Suíça reduziram suas taxas de 4,75% para 4,25%, e de 3% para 2,50%, respectivamente. O governo chinês reduziu a taxa básica de juros do país em 0,27 pontos, de 7,20% para 6,93% ao ano. A exceção foi o Banco Central japonês que manteve sua taxa inalterada, em um patamar já considerado baixo.

O Brasil não ficou inerte face à crise. No dia 6 de outubro, Guido Mantega e Henrique Meirelles, presidente do Banco Central, anunciaram duas medidas de en-frentamento: a abertura de uma linha de crédito adicional com a compra de títulos pelo governo em troca de dólares e o reforço em R$ 5 bilhões de uma linha de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ao setor exportador.

A crise expôs as fragilidades e contradições do sistema financeiro que sinalizam para uma maior regulamentação dos fluxos financeiros internacionais. No entanto, “países, como o Brasil, nos quais há forte dominância financeira, não devem aceitar a reestruturação mais efetiva do sistema. Portanto, é provável que as lições desta crise sejam assimiladas somente por um número restrito de países. Esperemos que os Estados Unidos e a Europa Ocidental estejam neste grupo. Estes compõem o núcleo central dos sistemas monetário e financeiro internacional”, analisa Reinaldo Gonçalves.

Fernando Ferrari lamenta que não haja consenso acerca de como o referido siste-ma deve ser reestruturado, mas ressalta que os economistas heterodoxos defendem a criação de um International Market Maker, em conformidade com as idéias de John Maynard Keynes (influente economista britânico do século XX, cujas idéias colo-caram em questão as doutrinas econômicas vigentes em sua época), “por exemplo, para assegurar a liquidez internacional necessária à expansão da demanda efetiva mundial e para coibir a livre mobilidade dos fluxos especulativos de capital”.

A blindagem da economia brasileiraEmbora a Bolsa de Valores do Estado de São Paulo (Bovespa) tenha registrado

quedas acentuadas em seus pregões e o real tenha se desvalorizado bastante face ao dólar (o que prejudica importadores, mas beneficia os exportadores brasileiros), o jornal inglês Financial Times, referência mundial em Economia, afirmou, dia 9 de outubro: é esperado que o Brasil saia relativamente ileso da crise financeira global.

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21Internacional

No entendimento do Financial Times, ainda que investidores estrangeiros estejam retirando dinheiro da economia brasileira para cobrir perdas em outros mercados (é comum em tempos de crise, que, ao perceberem perdas em economias fortes, os investidores desfaçam investimentos em mercados de maior risco, como o de países emergentes, dentre os quais, o Brasil), os bancos brasileiros estão menos vulneráveis do que os norte-americanos.

No entanto, Reinaldo Gonçalves não acredita na proclamada blindagem da eco-nomia brasileira. “É uma blindagem de papel crepom. O Brasil tem dois cenários de fragilidade. O primeiro deriva da forte presença de estrangeiros no mercado de capitais do país. Mais de um terço das ações estão em suas mãos (mais precisamente 35,1%). Portanto, turbulências no mercado internacional de capitais refl etem aqui diretamente. Além disso, o mercado de capitais no Brasil é subdesenvolvido. Mais de 40% do vo-lume de negócios depende de apenas duas empresas (Petrobras e Vale do Rio Doce). Estas empresas, por seu turno, dependem totalmente do mercado internacional de commodities”, explica o economista.

Ferrari indica que o recrudescimento dos desequilíbrios de balanço de pagamentos em transações correntes e o arrefecimento do crescimento econômico, tanto para 2009 quanto para 2010, são conseqüências imediatas e futuras da crise. “Não há economia, em mundo globalizado e ‘fi nanceirizado’, imune à crise de liquidez norte-americana e à recessão dos EUA”, avalia o economista.

Salvação bilionáriaA medida mais esperada e mais importante no afã de solucionar a crise foi a apro-

vação, pelo Congresso dos EUA, de um pacote de auxílio estatal ao setor fi nanceiro proposto pelo FED, orçado em US$ 700 milhões. Os congressistas estadunidenses, preocupados com as repercussões junto aos contribuintes e eleitores da aprovação de um investimento de dinheiro público de tal monta (5% do Produto Interno Bruto – PIB), foram reticentes na negociação (Jim Burning, senador pelo estado de Ken-

tucky, chegou a chamar o pacote de “socialismo fi nanceiro, algo não-americano), mas terminaram por aprová-lo, elevando-o mesmo ao montante de US$ 850 bilhões.

Para Reinaldo Gonçalves, a morosidade do Congresso em aceitar o pacote de intervenções pro-posto pelo FED refl ete a força das instituições estadu-nidenses, que adiciona a qualquer pacote de resgate do setor fi nanceiro esquemas de punibilidade dos responsáveis e a sociedade civil exija o controle sobre o uso dos recursos públicos no resgate. “No Brasil as instituições frágeis e a ‘qualidade’ dos grupos dirigentes geram políticas ‘rápidas’, porém oportunistas, injustas e inefi cazes. No caso dos EUA, a morosidade refl ete virtudes da sociedade”, critica o professor.

Para Gonçalves, o capitalismo é intrinsecamente instável e injusto. E novas crises virão. “Somente a ‘imbecilidade esférica’ (aquela visão que sob qualquer ângulo é imbecil) gera argumentos do tipo ‘o mundo é cruel e, portanto, não há alter-nativas’. Da mesma forma que a perplexidade é a filha mais velha da ignorância (não há por que ficar perplexo com a atual crise internacional), a resignação é a filha mais velha da pusilanimidade. Lamentavelmente, no Brasil, a trajetória de ‘conciliação e reforminhas’ deriva, em boa medida, da combinação de ignorância, resignação e pusilanimidade, dispara o professor.

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22 Constituição

Plástica abusiva

Bela ou fera, fato é que a Carta Magna produzida há duas décadas foi o espelho de acirrados conflitos presentes na sociedade brasileira daquela época. Ao mesmo tempo em que assegurou a iniciativa pri-vada como pilar de organização da sociedade e limitou a indesejável amplitude da reforma agrária, a

Constituição garantiu o monopólio público sobre atividades econômi-cas estratégicas e proclamou como direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho e a moradia. A tensão entre esses dois pólos nunca cessou nesses 20 anos, o prejuízo nítido ficou para a face cidadã da Carta. Até hoje, foram aprovadas 62 emen-

das constitucionais – uma média de três por ano – e existem mais de 400 projetos no Senado Federal e 1.200 na Câmara dos Deputados que propõem mais mudanças.

Proposta polêmicaPara o jurista Fábio Konder

Comparato, professor da Universi-

dade de São Paulo (USP), o Brasil vive um dilema: ou avança em di-reção a uma Constituinte originária ou mantém a ilegitimidade de um processo ininterrupto de emendas congressuais. Em entrevista ao Jor-nal da UFRJ, Comparato argumenta que a Assembléia Revisora atende à necessidade de profunda reforma

Coryntho Baldez

Ela chegou aos 20 anos bastante retocada, foi até mesmo desfigurada. Ao nascer, em 5 de outubro de 1988, na agonia da ditadura militar, foi coroada a rainha da nova fase de legalidade democrática e festejada por muitos como a Constituição Cidadã – a mais avançada que o Brasil já tivera. Inversamente, o conservadorismo preocupava-se com o possível excesso de direitos, individuais e coletivos, inscritos na Lei Maior. No campo da esquerda, alguns a viram como uma grande “sacada” do regime autoritário, que teria usado o processo constituinte para fazer uma transição por cima, ratificando o moto perpétuo brasileiro de mudança sem ruptura da ordem social.

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23Constituição

política – “esse é o pressuposto in-dispensável ao cumprimento dos objetivos fundamentais do nosso Estado republicano declarados no Artigo 3º da Constituição”. Pela proposta, as decisões da Assem-bléia, que funcionaria por prazo determinado, seriam submetidas a referendo popular. Uma Constituinte originária, segundo ele, romperia com o monopólio que se arroga o Congresso Nacional para reformar a Constituição por meio de emen-das. “Ao abusar desse privilégio, os congressistas ferem o princípio da legitimidade democrática e muitas vezes recaem em decisões em causa própria”, condena o jurista.

Professor da Faculdade de Direi-to (FD) da UFRJ, José Ribas Vieira, lembra que as mais de 60 emendas constitucionais até aqui aprovadas foram de iniciativa do Poder Execu-tivo Federal. E diz que a Assembléia Constituinte procurou limitar o poder de emendar a Carta (Artigo 60), criando formalidades para im-pedir que ela fosse constantemente flexibilizada. “Lamentavelmente, essa proteção da estabilidade cons-titucional não foi concretizada. Na verdade, o que ocorreu nesses 20 anos foi uma profunda reforma, ferindo os limites impostos pelo poder constituinte originário”, frisa Ribas, doutor pela universidade francesa de Montpellier I.

Embora respeite bastante o pensamento de Fábio Konder Com-parato, Ribas afirma que o jurista propõe uma ruptura institucional não autorizada. “O que temos de defender, com base no Artigo 14 acerca da representação polít i-ca, é o fortalecimento de formas plebiscitárias ou de referendum para questões centrais que afetam a sociedade brasileira”, propõe o professor, que atua nas áreas de Crítica Jurídica e Direito Consti-tucional. Para ele, a experiência do referendum do porte de arma – “não pelo seu resultado” – de-monstraria que o melhor caminho para a sociedade brasileira seria o de uma democracia deliberativa e procedimental, segundo o conceito desenvolvido pelo pensador alemão Jürgen Habermas.

Pragmatismo se impõePara Wadih Nemer Damous

Filho, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Rio de Janeiro, a proposta de Konder Comparato é boa, mas apenas do ponto de vista doutrinário. “O ideal é que tivéssemos uma Assembléia originária e constituída para o úni-co fim de revisar a Constituição”, assinala o presidente da OAB-RJ. Afinal, ele concorda que a Carta Magna é tratada, hoje, como uma

espécie de estorvo por elites que querem fazer valer o seu interesse de classe. “Muitos artigos originais foram desfigurados e isso é inédito no mundo”, frisa o advogado. Mas esse é um problema que se resolve na esfera da atividade política – completa Damous Filho, para quem a proposta de Fábio Konder Com-parato ficará no rol das boas idéias inviáveis para a atual conjuntura: “Todos os exemplos de Constituinte

Ao fazer um balanço dos 20 anos da Constituição Federal, o professor da Faculdade de Direito da UFRJ, José Ribas

Vieira indaga se, de fato, o Brasil vive hoje um impasse institucional. Segundo ele, o texto original da Carta Magna é resultado do legado do pensamento constitucional construído a partir de 1945 – após a II Guerra Mundial – que valorizou os Direitos Humanos, no plano internacional, e apontou para o fortalecimento dos Direitos Funda-mentais, na organização interna dos países. “Temos a emblemática Lei Fundamental, de 1949, que consagrou o princípio da dignidade humana na Alemanha. A sociedade brasileira não teve condições históricas para receber esse pensamento constitucional valorativo de 1945 em razão, principalmente, de nosso Estado de exceção, que vai de 1964 a 1985. A Constituição Federal de 1988, portanto, representa a busca de um tempo perdido”, analisa José Ribas.

Ao consolidar os valores do pensamento pós-45, José Ribas considera natural que ela expresse o que houve de mais

avançado na nossa Teoria Constitucional, desde a fundação do Es-tado brasileiro, no início do século XIX. Contudo, ele lembra que a Carta, de princípios bastante avançados do ponto de vista mundial, é promulgada em momento internacional completamente modifi-cado devido “ao adensamento da internacionalização econômica e à ruptura ideológica provocada pela queda do muro de Berlim, em 1989”.

A maré liberalizante que veio em seguida, na década de 1990, mudou eixos econômicos importantes da chamada Consti-

tuição Cidadã. Mas José Ribas ressalta que, ao contrário da experiên-cia portuguesa, logo após a Revolução dos Cravos, que levou a uma Constituição socializante, em 1976, a nossa Lei Maior não estava pautada por um projeto de ordem econômica definido. “Apontava, por exemplo, para a conciliação da livre iniciativa com o respeito ao trabalho e apoio às médias e pequenas empresas”, observa o professor. O que havia, na verdade, era um indicativo para fortalecer a empresa nacional e o monopólio de exploração de recursos naturais. “As re-formas neoliberais quebraram esse espírito da empresa nacional no texto constitucional. Hoje, com a descoberta de recursos petrolíferos nas áreas de pré-sal, estamos diante da necessidade de protegê-los e de rediscutir o marco regulatório de flexibilização do monopólio imposto pelo projeto neoliberal”, propõe José Ribas.

O professor defende o fortalecimento dos movimentos sociais para democratizar, efetivamente, a sociedade brasileira

e reverter as mudanças operadas na Constituição, não apenas na ordem econômica, mas em alguns direitos sociais – “como na parte da Seguridade Social”. Se não houver resistência, ele teme, ainda, ataques que desfigurem completamente o Artigo 7º da Carta, que trata dos direitos trabalhistas.

Por outro lado, aponta importantes conquistas constitucionais ainda em vigor. Entre elas, o fortalecimento do Ministério

Público Federal como instrumento de defesa dos interesses coletivos e difusos e a consolidação da Defensoria Pública como órgão de assis-tência jurídica gratuita aos setores marginalizados da sociedade.

exclusiva, no curso da história, se deram em momentos de ruptura revolucionária e esse não é o caso do Brasil.”

O presidente da OAB-RJ é de opinião que a Carta promulgada em 1988 era avançada e não ex-pressava a verdadeira correlação de forças da sociedade brasileira. Diz que o pragmatismo, sob a égi-de do neoliberalismo, acabou se impondo pelas inúmeras emendas

ao texto original. E acrescenta que uma norma legal não tem força para se sobrepor à realidade, ou seja, há discrepâncias entre o que a lei prevê e a sua concretização na vida social. “O processo histórico e as forças vivas da sociedade são as garantias da efetivação de direitos”, avalia Damous Filho.

Apesar das emendas, o advogado não acredita que a Constituição Cidadã tenha sido completamen-te despedaçada. “Ela é bastante avançada do ponto de vista das instituições públicas brasileiras, retrata os três poderes funcionando normalmente. Sem falar no capítulo dos Direitos Sociais”, frisa Damous Filho, lamentando que haja um descompasso entre essas previ-sões constitucionais e as pressões da sociedade – “que deveriam ser maiores” – para concretizá-las.

Vale o escrito?Pedro Cláudio Cunca Bocayuva,

historiador e assessor da Fede-ração de Órgãos para Assistên-cia Social e Educacional (Fase), aponta um vício de origem na Assembléia Constituinte, que, se-gundo ele, não nasceu soberana e acabou delegando ao Congresso Nacional poderes excessivos de revisão constitucional. “Será que, por isso, podemos realizar uma manobra institucional, por dentro da lógica das emendas, para deter, em definitivo, esses atentados ao poder soberano do povo?”, pergun-ta Cunca Bocayuva, referindo-se à proposta de Fábio Konder Com-parato.

A construção da democracia, para ele, não pode prescindir das conquistas parciais escritas no texto original. “Controvérsia semelhante marcou o debate acerca das refor-mas de base e a ampliação da demo-cracia antes de 1964, face aos limi-tes e restrições da Constituição do pós-guerra”, relembra o historiador, doutor em Planejamento Urbano e Regional pela UFRJ. Existe o risco de tentar avançar sem ter por base uma superação sustentada real, o que pode mais regredir que avançar – avalia o assessor da Fase.

A questão da mobilização para o resgate das conquistas democráti-cas passa pela capacidade de defesa organizada de direitos, frisa Cunca Bocayuva, acrescentando que as derrotas não se resolvem por saltos sem que as forças sociais estejam em movimento. Considera necessá-rio, ainda, reagir contra o “esbulho perpetrado pela sanha neoliberal das emendas, o que somente pode ser realizado com uma cultura polí-tica que coloque na ordem do dia o ato de fazer valer o que foi escrito, única condição para avançar”.

Em busca do tempo perdido

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24 Petróleo

Rodrigo Ricardo

O Brasil pós pré-sal

Dádiva de Deus”. A afirmação vem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sempre que ques-

tionado acerca da descoberta do pe-tróleo da camada do pré-sal. Contudo, antes mesmo da efetiva extração desse novo veio do ouro negro, inúmeras vozes clamam pelos nacos da fortuna submersa. As reivindicações ressoam. Até mesmo o Ministério da Cultura requisita 1% para sua pasta. Em meio à celeuma, idéias de consenso como um fundo soberano para ser rever-tido à Educação ou à erradicação da miséria no Brasil. Na esteira das po-lêmicas, a gestão destes recursos, a possível criação de uma estatal para comercializar a produção do pré-sal e a mudança do marco regulatório (Lei 9.478, de 1997). A expectativa é de que os amplos debates para as definições das incógnitas tomem força a partir de 30 de outubro, data prevista para a comissão interministerial apresentar seu relatório. Entre tantas propostas, a preocupação com o meio-ambiente aparece timidamente, mesmo que seja o principal atingido pelo uso, ao que parece, ainda por algumas décadas, da mais poluente matriz energética da atmosfera do planeta.

Durante recente encontro, em Brasília, Luiz Pinguelli Rosa, profes-sor e diretor do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ, su-

Os mega campos de ouro negro provocam o imaginário. Esperanças jorram do inconsciente

nacional, a maior delas é que a riqueza reverta-se para a população. No caminho, interesses, questões

ambientais e muitas dúvidas.

geriu a destinação de parte dos lucros do pré-sal para trabalhos dedicados à energia alternativa. “Nesta reunião, a proposta foi muito bem recebida pelo presidente Lula e por outros membros do governo. O problema é saber o que

vai acontecer depois”, avalia Pinguelli Rosa, explicando o porquê da posição governamental ainda em suspenso. “Estão todos impactados pela atual crise financeira, o próprio preço do pe-tróleo está caindo muito (no auge das

quedas das bolsas, o barril chegou a ser cotado em U$S 77,70)”, afirma o pro-fessor, também secretário-executivo do Fórum de Mudanças Climáticas, órgão ligado à Casa Civil da Presidência da República.

Nos próximos anos, padrões de consumo e a utilização de combustíveis fósseis, além do crescimento demo-gráfico, serão determinantes para o aumento ou o decréscimo dos gases do efeito estufa, tidos como responsá-veis pelo aquecimento global. Entre as previsões mais negativas para 2100 - do Painel Intergovernamental de Mudan-ças Climáticas (IPCC), da Organização das Nações Unidas (ONU) -, está o cenário sem tecnologias limpas e o atendimento das necessidades energé-ticas com o uso intensivo de petróleo, gás e termeléticas.

Pinguelli aponta que, isoladamente, o Brasil não tem força suficiente para mudar o vigente paradigma energético da humanidade. “Há uma mentali-dade, em especial da classe média, que mantém este quadro. Talvez toda esta crise, possa alterar esta visão de consumo”, torce o diretor da Coppe, pontuando que, embora o pré-sal acabe por reforçar um predatório modelo, este potencial não pode ser ignorado. “É um momento oportuno para que sejam revistos e repensados vários pontos, inclusive, em uma nova estatal. É comum que uma empresa

Sterferson Faria /Agência Petrobras de Notícias

Agência Petrobras de Notícias

A chamada camada pré-sal é uma faixa que se estende ao longo de 800 quilômetros entre os Estados do Espírito Santo e Santa Catarina, abaixo do leito do mar, e engloba três bacias sedimen-tares (Espírito Santo, Campos e Santos). O petróleo encontrado nesta área está a profundidades que superam os 7 mil metros, abaixo de uma extensa camada de sal que, segundo geólogos, conservam a qualidade do petróleo.

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25Petróleo

cuide da exploração e outra da gestão. Não se trata de criar outra Petrobras. O chamado marco regulatório também não serve mais, pois permite que as empresas estrangeiras acabem ficando com a maior parte dos lucros”, expõe Pinguelli, alertando que é preciso apos-tar nos fundos, mesmo que a melhoria da Educação não dependa somente de recursos, mas de políticas que acabam “esterilizadas para alimentar a ciranda financeira e o superávit primário”.

Mais debatesWalter Issamu Suemitsu, decano do

Centro de Tecnologia (CT) da UFRJ, acredita que a sociedade tem que ampliar as discussões para decidir os destinos dos dividendos do pré-sal. “As previsões apontam que estas reservas gerarão trilhões de dólares. Todo este dinheiro precisa ser aplicado no de-senvolvimento de políticas públicas, principalmente nos sistemas de Edu-cação e Saúde, além de saneamento básico e na aplicação de energias novas e renováveis. É preciso abrir o debate, que envolve várias áreas de conhecimento, inclusive com a realização de audiências públicas”, ressalta o professor da Escola Politécnica (Poli) da UFRJ.

Além de defender a abordagem in-terdisciplinar da questão, Walter Issamu teme resistências ao investimento em pesquisas alternativas. “Há resoluções da Agência Nacional de Petróleo (ANP) prevendo que os recursos advindos de petróleo e do gás sejam revertidos apenas para pesquisas destas áreas. Isto, por exemplo, não pode acontecer. Em relação aos fundos, tudo vai depender do modelo de administração adotado, além de exigir uma atenta fiscalização”, entende Issamu, admitindo dúvidas acerca de vários aspectos, em especial, a respeito da proposição norueguesa para uma empresa que comercialize o petró-leo do pré-sal. “Não sei, lá se vive uma monarquia, precisamos de um grande debate”, aponta o decano do CT.

O futuro Eldorado estende-se entre o litoral dos estados do Espírito Santo e de Santa Catarina, uma região de apro-ximadamente 800 quilômetros. As jazi-das estão abaixo de uma espessa camada de sal, em média, a sete mil metros de profundidade. As primeiras avaliações técnicas estimavam cerca de cinco bi-lhões de barris de óleo. Meses depois, a ANP previu 33 bilhões. Atualmente, já se aponta a existência de 100 a 338 bilhões de barris. “Por enquanto, tudo é especulativo, ainda é muito cedo para se delimitar o gigantismo desses campos em fase inicial de descobertas”, elucida o geólogo Giuseppe Bacoccoli, professor integrante do Programa de Engenharia Civil do Coppe, constatan-do que a efetiva extração do petróleo do pré-sal ainda demandará alguns anos.

Ex-funcionário da Petrobras, em-presa na qual trabalhou até 1997,

Bacoccoli recorda que a inauguração da produção do pré-sal foi meramente simbólica. “Extrair petróleo da camada de pré-sal não se trata de novidade. Em 1986, já se fazia isto na Bacia de Campos. Agora, avista-se um enorme potencial e, provavelmente, o volume de barris não será trivial. Há um longo trabalho pela frente e, antes mesmo de saberem o valor do prêmio, as pessoas já querem retirá-lo. E, o pior, nem ao menos compraram o bilhete da loteria”, compara o pesquisador da Coppe, que não vê com bons olhos as propostas que vêm sendo apresentadas. ”Em princípio, não se deveria mudar nada na presente legislação do petróleo, na qual empresas e mecanismos já fun-cionam. Outra estatal, tecnicamente, é inviável, pois já há a Petrobras que tem experiência, conhecimento e tec-nologia. Quanto ao dinheiro, precisa ser alocado no orçamento público. O próprio governo já detém braços, como a ANP e outros organismos, para controlar e fiscalizar a produ-ção”, defende o pesquisador.

Em meio aos palpites numéricos, registre-se que as reais reservas bra-sileiras são da ordem de 14 bilhões de barris. O maior produtor mundial, a Arábia Saudita, detém 264 bilhões. Bacoccoli acredita que o pré-sal abre uma nova fronteira de existência do petróleo, com perspectivas a se prolongar entre 20 e 30 anos. Esta possibilidade acontece, justamente, no momento em que outras áreas começam a entrar na curva des-cendente. “No Recôncavo Baiano, a produção já declinou em cerca de 60%. A Bacia de Campos, descoberta em 1974, também apresenta quedas”, analisa o professor, defendendo a manutenção dos royalties aos muni-cípios atingidos pela atividade: “tra-ta-se de compensação aos impactos

socioambientais causados aos locais que acabam por servir como bases operacionais. Em Macaé, por exem-plo, embora as plataformas estejam a mais de 100 quilômetros da costa, a pacata cidade transformou-se em metrópole com tráfico de drogas, prostituição etc.”

Ciclos e legislaçãoAcerca dos imaginados fundos,

Giuseppe Bacoccoli recorda que experiências semelhantes sofreram desvios de rota. “A extinta Contri-buição Provisória de Movimentação Financeira (CPMF) nunca chegou à Saúde. Infelizmente, isto não costuma funcionar. Outro exemplo foram os recursos para melhorar as condições das estradas com a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) incidente sobre a importação e a comercialização de petróleo e seus derivados”, reporta o pesquisador, lamentando que a energia nacional, primordialmente de hidrelétricas, seja suja. “Essas descobertas au-mentarão as emissões de dióxido de

carbono (CO2) e, conseqüentemente, o círculo do petróleo. Do ponto de vista ambiental, os efeitos serão ne-gativos”, preconiza o professor.

Após o fim do monopólio estatal, em 1997, com a alteração da Cons-tituição Federal, promulgou-se a Lei 9.478/97. “Com o pré-sal, há outra re-alidade. Os leilões da ANP precisam parar imediatamente”, alerta Pedro da Cunha Carvalho, diretor da Asso-ciação dos Engenheiros da Petrobrás (Aepet), frisando que se trata de uma legislação contraditória, na qual se prevê, a quem encontrar o petróleo, assumi-lo como propriedade. “Esta riqueza não pertence às empresas ou ao governo, transitório por natureza, mas ao povo e ao Estado brasileiro. Não precisamos de uma nova estatal de qualquer tipo, somente se for para virar um cabide de empregos”, critica Carvalho, que trabalhou 27 anos na Petrobrás. “Aproveitando a baixa das bolsas, o governo poderia recomprar as ações da empresa, a maioria delas (67%) está em mãos particulares”, aponta o engenheiro.

Sterferson Faria /Agência Petrobras de Notícias

Bruno Veiga /Agência Petrobras de Notícias

Novembro 2008UFRJJornal da

26 Cultura

Bruno Franco

Um povo semPÁTRIA

Considerados um problema social na Europa e constituindo uma minoria de pouca visibilidade no Brasil, atualmente, se reconhece os ciganos deram uma

contribuição visível e importante à história do Rio de Janeiro.

As meninas, Cristina e Violetta Djeordsevic, nadavam na praia com outras duas jovens, quando se afo-garam. Somente Violetta e Cristina não conseguiram ser resgatadas do mar a tempo, e seus corpos ficaram estendidos na areia, cobertos por toalhas, à espera da polícia. Os ba-nhistas presentes não se comoveram com a tragédia. “Enquanto os corpos estavam na areia, pessoas tomavam banho de sol ou almoçavam a pou-cos metros do local”, escreveu o jornal italiano La Repubblica.

O ocorrido gerou manifestações de jornalistas, políticos e mesmo de religiosos. Em seu blog, o arcebispo de Nápoles Crescenzio Sepe escre-veu que “a indiferença não é uma emoção para os seres humanos”.

A tragédia ocorreu em uma con-juntura particularmente difícil para os ciganos residentes na Itália. O primeiro-ministro Silvio Berlusco-ni, em seu atual mandato, anunciou uma série de medidas repressivas para com a comunidade rom (termo difundido na Europa para designar quaisquer grupos ciganos, sejam rom ou não), como um recensea-mento e o recolhimento de impres-sões digitais.

A discriminação pelo governo

Es p a lh a d o s p e l o mundo, minoria onde quer que estejam,

os ciganos são vítimas históricas do preconceito, da intolerância e da xenofobia. Essa sistemática perseguição, tantas vezes esquecida ou ignorada, voltou a ser discutida após a morte de duas meninas ciganas, no balneário italiano de Torregaveta, n o s a r re d o re s d e Nápoles, dia 19 de julho.

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27Cultura

repercute na sociedade, e acampa-mentos ciganos têm sido atacados na Itália, na medida em que essa minoria é associada à elevação dos índices da criminalidade.

Para Tommaso Vitale, sociólo-go e professor do Departamento de Sociologia e Pesquisa Social da Universidade Milano Bicocca, há uma ligação muito pequena entre a comunidade cigana e o aumento da criminalidade e a proposta de Berlusconi consiste em demagogia. “O preconceito europeu contra os ciganos está relacionado a políticas de segregação, que marginalizaram os ciganos, produzindo mais hosti-lidade e ódio”, esclarece Vitale.

Um povo cosmopolitaComo explica Vitale, a popu-

lação rom não existe além de sua designação, que não é somente uma qualificação exterior. “O nome rom se inscreve em uma montagem intelectual fluida entre a autode-terminação nacional e a cidadania transnacional. É uma designação institucional, emergente de uma crí-tica das designações anteriores, uma denominação que valoriza a auto-designação de um grupo de pressão dominante”, ensina o professor.

De acordo com o sociólogo ita-liano, por trás do termo rom há um projeto político implícito, que não é partilhado nem conhecido pelos membros das múltiplas comuni-dades ciganas: “é a idéia de uma minoria transnacional, que reforça a idéia de nação errante, que não se submete a uma prova de realidade histórica. Nós podemos, portanto, observar que as instituições inter-nacionais criaram a demanda de um estatuto de exceção para os ciganos pela escolha de uma def inição étnica transeuropéia, sem propor solução jurídica emanada de uma verdadeira tradição política.”

De acordo com Felipe Berocan Veiga, pesquisador associado do Laboratório de Etnografia Metro-politana (LEMetro), do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, existem três grandes grupos ciganos que, por sua vez, possuem suas subdivisões: “os da Península Ibérica, os calon. Os do Leste Europeu, os rom, e os sinti, majoritários na França e na Ale-manha. Mesmo entre os subgrupos há muitas diferenças”, explica o antropólogo.

Não há consenso entre os sub-grupos acerca de suas origens. Al-guns citam o Egito, outros a Índia, a hipótese mais aceita. O fato é que os ciganos são cosmopolitas, por excelência. “Eles dizem: minha pátria é onde os meus pés estão”, ressalta Berocan.Ciganos no Rio de Janeiro

No Brasil, terra de imigrantes, onde a tolerância é maior, a assimila-ção cultural menos traumática e confli-tos explosivos relacionados a minorias étnicas, praticamente inexistem, os ciganos são pouco mencionados pela mídia ou pela academia.

Contudo, não significa invisi-bilidade ou irre-levância social desse contingente étnico. Fato cons-tatado desde o começo das pes-quisas de Marco Antônio da Silva Mello, chefe do Departamento de Antropologia Cultural do IFCS e coordenador do LEMetro, em 1979, quando seus estudos et-nográficos leva-ram-no ao bairro do Catumbi e aos ciganos.

Segundo Mello, o Catumbi consti-tui, no tecido urbano do Rio de Janeiro, aquilo que se chama de Cidade Nova. “Área de expansão da cidade antiga, Valongo, Praça XV, subindo pelo eixo da rua da Carioca, pela Matacavalos, hoje rua do Riachuelo, você vai em direção à Cidade Nova, já chamada assim no século XIX e no começo do século XX”, explica o professor.

O Catumbi era um bairro mul-tiétnico, nele residiam por-tugueses, aço-rianos, italianos de Cosenza e Brescia, armê-nios, espanhóis e ciganos, emi-grados da Pe-nínsula Ibérica, chamados ca-lons. “Todos do bairro sabiam onde moravam os ciganos, sa-biam a impor-tância que eles tinham para o bairro, e que estavam lá cen-tenariamente”, relata Mello.

Os ciganos sempre estive-ram à frente do processo de expansão, na medida em que a cidade crescia na direção dos acampamentos localizados na perife-ria da cidade. Conforme relata Mello, os ciganos estavam presentes na rua da Constituição, na época chamada justamente de rua dos Ciganos, na rua da Quitanda, na Praça Tiradentes,

no Campo de Santana, na rua Emília Guimarães, na rua do Chichorro.

Chamou a atenção do pesquisador que a maioria absoluta dos ciganos das ruas do Chichorro e Emília Guimarães trabalhava como oficial de justiça.

“Tentei iniciar uma pesquisa, mas na época ninguém se in-teressava por minorias ét-nicas urbanas. Havia apenas um grupo que estudava judeus e era formado por judeus mi-litantes. Em São Paulo, existiam grupos que es-tudavam italia-nos e japone-ses. No Vale do Itajaí, a colônia alemã era ob-jeto de estudo. No entanto, ou-

tros grupos, como o dos libaneses, fo-ram deixados de lado. Não há grandes estudos sobre eles”, lamenta Mello.

Presentes na literatura e na pinturaAo voltar de seu pós-doutorado na

Universidade de Paris X (Nanterre) e ter contato com Marc Bordigoni - professor da Universidade de Aix-en-Provence, estudioso dos temas ciganos, que se impressionara com a insólita relação entre esse grupo, con-

siderado pária, e o aparelho do Estado brasi-leiro – Mello decidiu voltar a pesquisar o tema, contan-do com a co-laboração dos colegas Felipe Berocan Vei-ga e Patrícia Brandão Cou-t o, t a m b é m pesquisadora associada do LEMetro.

Bus cando material ico-nográfico e bi-bliográfico, o grupo acabou por encontrá-los na literatura dos viajantes,

do século XIX, como por exemplo, na de Saint-Hilaire, e nas gravuras de De-bret. “Nessas gravuras eles apareciam, curiosamente, como comerciantes de escravos e feitores. Casas abastadas, mulheres bem-vestidas, tudo na Ci-dade Nova. Eles não tinham nenhuma invisibilidade. A presença dos ciganos

era conspícua e ostensiva. Inclusive dando nome a ruas, largos e praças”, informa Mello.

Em um dos primeiros romances urbanos brasileiros, Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, publicado em 1854, os ciganos são descritos, com seus anéis, brincos, faixas, dentes de ouro, bengalas encastoadas de ouro. Tantos relatos trouxeram a estranheza dessa presença, tão clara, não ter sido objeto de estudo siste-matizado, sociológico e etnográfi-co. Mas, aconteceu. Mello Moraes, cronista e médico, havia registrado casamentos e cânticos, descritos na obra Ciganos do Brasil: cancioneiro e canções, de 1886.

Em 1892, Adolfo Coelho publica, em Portugal, estudos sobre o calão, Os ciganos de Portugal, a linguagem dos calon. Em 1936, José Oliveira China publica, no Brasil, Os ciganos do Brasil, subsídios históricos, etno-gráficos e lingüísticos.

Retomando e aprofundando a questão cigana como objeto de estudo das Ciências Sociais, Mello, Berocan, Patrícia Brandão e Miriam Alves publicaram o artigo Ciganos da Cidade Nova e o aparelho judici-ário de Estado, na revista francesa Études Tsiganes, número 21. A pes-quisa fora apresentada, dois anos antes, no colóquio Ciganos e Medi-terrâneo: instituição como espaço de encontro (no original, Tsiganes et Mediterranée: Institution comme espace de rencontre).

O artigo despertou atenção, pois essa atuação destacada dos ciganos como funcionários de Estado, ofi-ciais de Justiça “contradiz o estere-ótipo social negativo que atravessa o mundo, de Norte a Sul, de Leste a Oeste: chamam-lhes ladrões, vagabundos, nômades”, af irma Mello, que lembra, assim como há o estereótipo negativo, também há o positivo, de amantes fervorosos, românticos, bons músicos, grandes artistas circenses.

Mello destaca que os ciganos do Catumbi mostraram grande inte-ligência sociológica ao encontrar um nicho no aparato fundamental de Estado, que é o Poder Judiciário. “Antigamente, quando os juízes assu-miam, eles se dirigiam aos cartórios e neles, os tabeliães indicavam-lhes pessoas de confiança para exercerem a função de oficial de Justiça, para fazer cumprir seus mandados. Nesse contexto, nas varas cíveis apareciam os ciganos. Enquanto esse ofício foi transmitido de pai para filho, os ciganos foram numerosos nos qua-dros do Judiciário, tanto no âmbito estadual quanto no federal, ainda que muitos continuem a exercê-lo, atualmente, mediante concurso pú-blico”, explica o professor.

Dia nacional do CIGANOEm 2006, o presidente

Lula sancionou decreto criando o Dia Nacional do Cigano, a ser celebrado em 24 de maio. Este é o dia de

Santa Sara, não reconhecida como santa pela Igreja

Católica (era uma escrava egípcia que acompanhava

Santa Maria Salomé e Santa Maria Jacobé). Não há

consenso nessa devoção. A santa padroeira dos ciganos do Catumbi, calon, é Nossa

Senhora das Graças. Devotos de Santa Sara são os ciganos kalderash, um grupo dentre

os rom.

“O preconceito europeu contra os ciganos está

relacionado a políticas de

segregação, que marginalizaram os

ciganos, produzindo mais hostilidade

e ódio.”

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Bruno Franco

Emigrado para o Brasil com sua família, quando

tinha apenas seis anos de idade, o lisboeta

Antônio Vieira (1608-1697)

tornou-se nome emblemático na

literatura e na política, tanto no Brasil, quanto em

Portugal.

Residindo em Sal-vador, onde seu pai trabalhava

como escrivão, o menino Antônio formou-se em uma escola jesuíta, explica-se as-sim seu ingresso posterior, aos 15 anos, na Companhia de Jesus. Estudou Teologia, Lógica, Metafísica, Matemática e Economia, tornou-se professor de Retórica e de Teologia, além de ser ordenado sacerdote.

Além da vocação religiosa, padre Antônio Vieira demonstrou, ao longo de toda sua vida, notável talento lite-rário, responsável por vasta e fecunda obra do Barroco em língua portuguesa, bem como incansável ativismo político, contribuiu decisivamente, como esta-dista, em Portugal, e como missionário, no Brasil, ao resguardo de direitos individuais e pela redução das desi-gualdades.

De acordo com Cleonice Berardinelli, especialista em Literatura e professora emé-rita da Faculdade de Letras da UFRJ, “o grande prega-dor contribuiu de modo expressivo para alterar o tratamento dado no Brasil do seu tempo, não somente aos nossos in-dígenas, mas também aos negros”. Chamado de Paiaçu (grande pai) pelos índios, Vieira – atuante em missões nas províncias do Maranhão e do Grão-Pará – combateu a sua exploração e, de igual modo, defendeu a abolição da escrava-tura dos negros.

Perseguido pela InquisiçãoO sacerdote clamou ainda pelo fi m

da distinção entre cristãos-novos (judeus convertidos ao catolicismo, em geral, para fugir à perseguição), os demais cristãos e pela concórdia com o povo judaico.

A pregação em favor dos judeus lhe inseriu no centro de um cisma entre jesuítas e dominicanos e, quando estes últimos prevaleceram, teve contra si a desconfi ança e a animosidade do Tri-bunal do Santo Ofício da Inquisição. Perdida a queda de braço, Vieira foi encarcerado, primeiramente, na cidade do Porto e, depois, em Coimbra. Em 1667, chegou a ser proibido de pregar, condenado a internamento em casas da Companhia de Jesus e impedido de viajar ao Brasil, seis meses depois, essa pena seria revogada. Em 1671, quando os judeus foram novamente expulsos do reino, padre Antônio Vieira não hesitou

em defendê-los. Quando, em 1675, foi fi nalmente absolvido pela Inquisição, o jesuíta retirou-se dos negócios públicos portugueses.

Segundo dona Cleonice, a Literatura Portuguesa reivindica para si a obra de padre Vieira, por ser ele de nacionalidade portuguesa, fi lho de pais portugueses. “Mas também não é de se esquecer que viveu a maior parte da vida no Brasil. Digamos, para conciliar, que é um autor luso-brasileiro”, pondera a professora.

Vieira escreveu mais de 500 cartas, reunidas em três volumes; o livro de profecias Clavis prophetarum (Chave dos profetas). Os Sermões, escritos por ele, constituem obra-prima do Barroco e, dentre eles, destacam-se o Sermão da sexagésima e o Sermão pelo bom suces-so das armas de Portugal contra as da Holanda.

Este último relaciona-se com a inva-são de Pernambuco pela Holanda, que o

ocupou de 1630 a 1654. Na ocasião, Viei-ra sustentou a polêmica opinião de que Portugal deveria entregar a região aos holandeses, devido aos altos custos da guerra e a pujança militar do inimigo. No sermão, o padre “interpela diretamente a Deus, cobrando-lhe por ter abandonado aqueles que realmente o amavam e o veneravam, expondo-os a um possível desastre militar e, conseqüentemente, político”, relata Berardinelli.

Um homem de EstadoVieira – que após a Restauração do

trono português, em 1640 (encerrando período no qual Portugal e Espanha tiveram um só monarca) fora nomeado pregador régio por D. João IV – serviu como embaixador junto à Holanda, em 1646, com objetivo de negociar a devo-lução das terras nordestinas.

Antes disso, em 1643, já envolvido com questões políticas e diplomáticas,

Vieira apresenta ao rei o documento “Miserável estado do reino e a neces-sidade que tinha de admitir os judeus mercadores”. Ainda em defesa do povo judaico, escreve, três anos mais tarde, “Proposta a favor da Gente da Nação”.

Defensor de uma forte política mer-cantilista por parte de Portugal, Vieira incentiva a criação da Companhia Geral do Comércio do Brasil, com o monopó-lio do comércio de bacalhau, de azeite, de vinho e de trigo.

A despeito de sua inegável contribui-ção religiosa, literária e política, Antônio Vieira tem o fi nal de sua vida conturbado pela sua mais obstinada adversária: a In-quisição, mesmo após ter sido absolvido das acusações de heresia. Com o restabe-lecimento do Tribunal do Santo Ofício, em 1681, estudantes da Universidade de Coimbra, felizes com o retorno da Inquisição, celebram queimando a efígie de padre Antônio Vieira.

O grande pregador