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UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO FACULDADE DE DIREITO Gabriela Rocha Dos Santos A CAPACIDADE SUCESSÓRIA DA CRIANÇA GERADA POR FECUNDAÇÃO ARTIFICIAL REALIZADA APÓS A MORTE DO GENITOR Passo Fundo 2011

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UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO FACULDADE DE DIREITO

Gabriela Rocha Dos Santos

A CAPACIDADE SUCESSÓRIA DA CRIANÇA GERADA POR FECUNDAÇÃO ARTIFICIAL REALIZADA

APÓS A MORTE DO GENITOR

Passo Fundo 2011

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Gabriela Rocha Dos Santos

A CAPACIDADE SUCESSÓRIA DA CRIANÇA GERADA POR FECUNDAÇÃO ARTIFICIAL REALIZADA

APÓS A MORTE DO GENITOR

Monografia apresentada ao curso de Direito, da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, sob orientação do professor Luis Christiano Enger Aires.

Passo Fundo

2011

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, professor Luis Christiano Enger Aires, deixo o meu especial agradecimento. Pelo tempo dedicado a minha pessoa, por todo auxílio, pelos ensinamentos, pelos livros emprestados, pelos conselhos e, principalmente, pela compreensão e incentivo à minha caminhada em busca da superação de metas. Também sou grata aos meus pais, Dirceu Lima dos Santos e Maria Rocha, por acreditarem em minha capacidade e força de vontade e por significarem um exemplo de superação, pois apesar de tantas adversidades, continuam vencendo obstáculos.

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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo analisar a capacidade sucessória da criança gerada por fecundação artificial realizada após a morte do genitor, tendo como enfoque principal a divergência entre o disposto no artigo 1.798 do Código Civil e o princípio da igualdade entre os filhos, previsto no parágrafo 6º do artigo 227 da Constituição de 1988. O método de procedimento utilizado é uma pesquisa bibliográfica em doutrinas, no ordenamento jurídico brasileiro e no direito comparado, sendo que o método de abordagem é o hipotético-dedutivo. Como resultado dessa pesquisa, conclui-se que, no Brasil, admite-se a inseminação post mortem, na medida em que o inciso III do artigo 1.597 da codificação civil atribui presunção de filiação a prole concebida nessa especial condição. Ainda, o legislador constitucional não prevê nenhuma exceção ao princípio da igualdade na filiação, de modo que a legitimidade sucessória prevista no artigo 1.798 da legislação civil deve ser estendida ao filho havido por fecundação póstuma. Porém, entende-se que esse só estará habilitado para receber a herança se existir autorização prévia e expressa do genitor quanto ao uso do seu material genético para depois da sua morte e se sua concepção ocorrer no prazo não superior a dois anos após a abertura da sucessão. Por ser descendente do falecido, concorre com os demais na herança como herdeiro necessário, daí que eventual necessidade de ação de petição de herança será proposta em face dos demais herdeiros, para a redistribuição do patrimônio hereditário, considerando-o para a partilha. Palavras-chave: Direito Sucessório. Inseminação artificial post mortem. Artigo 5º, inciso

XXX e artigo 227, parágrafo 6º, ambos da Constituição de 1988; artigo 1.597, inciso III e artigo 1.798, ambos do Código Civil.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 5

1 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FAMÍLIA E DA FILIAÇÃO .................................... 7 1.1 A origem da família e a sua evolução no decorrer da história............................................ 7 1.2 A família constitucionalizada ......................................................................................... 12 1.3 A situação dos filhos antes e depois do advento da Constituição Federal Brasileira de 1988 ............................................................................................................................................ 19

2 A CAPACIDADE SUCESSÓRIA DA CRIANÇA GERADA POR FECUNDAÇÃO ARTIFICIAL REALIZADA APÓS A MORTE DO GENITOR ..................................... 28 2.1 A procriação artificial como alternativa à procriação carnal ............................................ 28 2.2 A diferença entre capacidade civil e capacidade sucessória............................................. 33 2.3 A divergência entre o artigo 1.798 do Código Civil e o princípio da igualdade entre os filhos.................................................................................................................................... 38

3 O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO FRENTE A CAPACIDADE SUCESSÓRIA DA CRIANÇA GERADA POR INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL OCORRIDA APÓS A MORTE DO GENITOR ............................................................... 44 3.1 As circunstâncias para admissão da legitimidade sucessória da prole concebida por fecundação póstuma ............................................................................................................. 44 3.2 Os efeitos patrimoniais da vocação hereditária do concebido após a morte do genitor..... 51

CONCLUSÃO .................................................................................................................... 58

REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 60

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como tema principal a capacidade sucessória da criança

gerada por fecundação artificial realizada após a morte do genitor. No Brasil, existe uma

divergência entre o artigo 1.798 do Código Civil e o parágrafo 6º do artigo 227 da

Constituição 1988, o qual consagra o princípio da igualdade entre os filhos.

Ao prever que somente as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura

da sucessão possuem legitimidade para suceder, o referido dispositivo da legislação civil não

reconhece o direito sucessório do filho concebido por inseminação post mortem, pois não é

pessoa concebida e muito menos nascida à época da morte do autor da sucessão. Por outro

lado, o dispositivo constitucional em comento, considerando que o princípio da isonomia na

filiação não prevê nenhuma exceção legal à proibição do tratamento discriminatório entre os

filhos, reconhece direito à herança a prole havida nessa especial circunstância em igualdade

de condições com os demais filhos do de cujus. Nesse contexto, a legitimidade sucessória da

criança gerada por reprodução assistida homóloga ocorrida no período em que já havia

falecido o genitor é assunto controvertido no ordenamento jurídico brasileiro.

A escolha do tema deu-se em virtude dessa problemática em torno da capacidade

sucessória da criança gerada por procriação artificial realizada após a morte do genitor, pois

ainda que o inciso III do artigo 1.597 da codificação civil constitua uma cláusula aberta para a

legitimação do seu direito sucessório, na medida em que atribui presunção de filiação a prole

concebida nessa especial condição e o inciso XXX do artigo 5º da Constituição de 1988 tenha

elencado o direito a herança dentro no rol dos direitos e garantias fundamentais, bem como o

legislador constitucional não estabeleça nenhuma exceção ao princípio da igualdade entre os

filhos, o reconhecimento ou não da legitimidade sucessória do potencial descendente deve

levar em consideração várias questões, entre elas, a real vontade do genitor antes de morrer, a

família monoparental que resultaria da fecundação póstuma e a herança dos herdeiros já

existentes ou, pelo menos, já concebidos.

Tem-se como objetivo geral desenvolver um estudo aprofundado acerca do direito

hereditário do filho havido por técnica conceptiva post mortem, a fim de identificar quais dos

dispositivos legais melhor se aplica a situação do concebido após a morte do pai, ou seja, o

artigo 1.798 do Código Civil ou o parágrafo 6º do artigo 227da Magna Carta vigente, o qual

prevê o princípio da igualdade na filiação. Tem-se como objetivos específicos, pesquisar a

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origem e a evolução histórica da família, bem como a nova visão dessa construção cultural

sob os reflexos da nova ordem constitucional; analisar a situação dos filhos havidos dentro ou

fora do casamento e o princípio constitucional da igualdade na filiação; apresentar a evolução

histórica da procriação artificial e distinguir inseminação homóloga, heteróloga e post

mortem; analisar o direito hereditário da prole concebida por fertilização assistida ocorrida no

período em que já havia falecido o genitor, expondo a lei e o princípio relacionados a esse

assunto; demonstrar o dispositivo legal que melhor se aplica ao problema.

A presente monografia jurídica será elaborada através de uma pesquisa bibliográfica

em doutrinas, por meio da qual se realizará uma análise sobre a evolução histórica da família,

filiação, procriação artificial e as formas em que esta é realizada, a diferença entre capacidade

civil e capacidade sucessória e alguns institutos próprios do direito sucessório, tais como, a

ação de petição de herança e a substituição fideicomissária. Pesquisar o ordenamento jurídico

brasileiro, e buscar a lei e o princípio relacionados ao tema da vocação hereditária da criança

gerada por reprodução assistida homóloga realizada após a morte do genitor. Por último,

realizar-se-a uma pesquisa no direito comparado, a fim de encontrar situações que envolvam a

problemática da fecundação póstuma e analisar as decisões tomadas nesses casos. A coleta de

dados pertinentes ao tema, como, leis, decretos e notícia, em sites da internet também será

procedimento essencial ao desenvolvimento do trabalho.

No presente estudo será analisada a problemática acerca da legitimidade sucessória da

prole concebida por técnica conceptiva post mortem, a qual serão lançadas duas hipóteses

provisórias, uma relacionada ao disposto no artigo 1.798 da legislação civil e outra relativa ao

expresso no parágrafo 6º do artigo 227 da legislação constitucional em vigor, passando-se

depois a criticá-las com a finalidade se chegar à hipótese mais válida ao problema em questão.

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1 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FAMÍLIA E DA FILIAÇÃO

No transcorrer da história a família passou por uma evolução permanente, na medida

em que acompanhou o desenvolvimento das civilizações e a estas foi se amoldando. Trata-se

de uma construção da sociedade que se forma espontaneamente no meio em que vive e cuja

estruturação se dá através do direito, ou seja, é a partir da elaboração e da observância de

regras que conformam modelos de comportamento que a família se mantém organizada.

Ademais, todas as modificações ocorridas nessa construção cultural, no decorrer da história,

acabaram se refletindo na lei, tais como, o reconhecimento estatal de quaisquer estruturas

capazes de instituir uma família, a igualdade de direitos entre os cônjuges e entre os diversos

tipos de filiação.

1.1 A origem da família e a sua evolução no decorrer da história

Cumpre referir primeiramente os estágios pré-históricos da humanidade a fim de

esclarecer a origem e evolução da família. Engels, com base na classificação pré-histórica da

humanidade introduzida por Morgan, descreveu três épocas principais, quais sejam, o estado

selvagem, a barbárie e a civilização. As duas primeiras subdividem-se nas fases inferior,

média e superior, conforme os progressos obtidos pelo homem na produção dos meios de

existência. (ENGELS, 1985, p. 21).

Na fase inferior do estado selvagem, os homens viviam na natureza, alimentavam-se

de frutos, nozes e raízes e formaram a linguagem articulada. Na fase média, os homens

povoaram novos lugares, tomaram posse do fogo, começaram a se alimentar de plantas

cozidas e de animais que caçavam através das primeiras armas por eles inventadas, como a

clava e a lança. Na fase superior, aparecem o arco e a flecha, tornando os animais caçados um

alimento predominante e a caça uma atividade costumeira.

A fase inferior da barbárie começou com a introdução da cerâmica, a domesticação e a

criação de animais, o cultivo de plantas e continuou desta forma por toda a fase média. A fase

superior iniciou com a fundição do minério de ferro e já passou para o período da civilização,

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onde os homens continuaram aprendendo a elaborar os produtos naturais e também onde

ocorreu a invenção da escrita alfabética, sendo empregada para registros literários. Em tal

período, predominaram a indústria e a arte.

Considerando o estado selvagem descrito por Engels, mas tendo como enfoque

principal a origem da família e a sua evolução, pode-se afirmar que nesse período cada

homem unia-se a várias mulheres e cada mulher a vários homens, o que poderia ser

caracterizado como promiscuidade. Nesse sentido, Chaves afirma que:

Observando as origens dos povos orientais e alguns selvagens da Austrália e da América, estudos comparativos recentes fizeram, porém, surgir a teoria de que os primeiros homens teriam vivido em hordas promíscuas, unindo-se ao outro sexo sem vínculos civis e sociais. (CHAVES, 1991, p. 15).

Entretanto, “a promiscuidade, como se observa nos animais, como se nenhuma lei

tivessem, como se não houvesse a noção de parentalidade, não é um dado da realidade.”

(PEREIRA, 2003, p. 15). Não há provas diretas que comprovem ter existido uma época

primitiva em que imperava o comércio sexual promíscuo, pois desde as origens há interdições

e leis. Além disso, tratando-se dos indígenas, as relações entre um homem com várias

mulheres e entre o filho com sua mãe faziam parte da cultura desse povo, não sendo

considerada promiscuidade.

Na medida em que os homens foram evoluindo, passaram a se organizar em tribos

onde criaram a família em torno da mulher, formando-se o matriarcado, em virtude do qual,

os filhos e os parentes tomavam as normas e o nome da mãe. A figura materna era, portanto, a

base da família e tinha influência preponderante sobre a célula familiar, estando o homem em

uma situação de subordinação. Todavia, o matriarcado não poderia se firmar de maneira

estável, pois nessa forma de organização as mulheres uniam-se a vários homens

concomitantemente, sofrendo uma diminuição de sua fecundidade. Isso resultava o

enfraquecimento da tribo e, consequentemente, a dificuldade de defesa contra o inimigo

externo. Em virtude disso, surgiu o patriarcado trazendo maior possibilidade de procriação e

orientando as tribos no sentido do culto aos antepassados. Isso tornava mais fácil a

consolidação e a formação de tribos estáveis de caráter político. (CHAVES, 1991, p. 15-16).

A figura paterna emergiu como a base da família, simbolizando a autoridade suprema

dentro do grupo familiar. O homem, como pai e marido, era o chefe absoluto com direitos

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ilimitados sobre sua mulher e seus filhos e com a incumbência de administrar o patrimônio

familiar, auferindo, inclusive, toda a vantagem econômica obtida por seus membros.

Preponderava, portanto, a supremacia patriarcal, pois todas as decisões familiares estavam

centralizadas em torno da figura do patriarca, de modo que a mulher e os filhos ocupavam

uma posição de inferioridade no grupo familiar. Essa situação perdurou durante toda a fase

pré-industrial, somente sendo amenizada com o advento da revolução industrial.

Gomes, considerando o aspecto do desenvolvimento econômico, descreveu três fases

na evolução da família; a pré-industrial, a da revolução industrial e a do capitalismo

avançado. Na primeira, todos os membros do grupo familiar exerciam atividade agrícola,

produzindo quase tudo o que consumiam. Na segunda, predominou a produção fabril

exercida, principalmente, pelo trabalho das mulheres e dos menores dentro das fábricas. A

terceira, por sua vez, representa a atual fase, pois a família tem como principal função o

consumo. Em virtude dessa função, ocorre uma ampliação das tarefas de satisfação das

necessidades de seus membros, tais como, saúde, educação, alimentação, repouso e lazer.

Ademais, muitos desses serviços, que eram próprios das famílias, passaram a ser executados

por terceiros. (GOMES, 1984, p. 21-22).

Segundo o autor acima citado, na fase pré-industrial os homens formaram

comunidades rurais onde exerciam a atividade agrícola e a domesticação de animais. A partir

dessa forma de organização, surgiram famílias integradas por todos os parentes e com

finalidades de produção e procriação. Assim, exerciam atividade rural como forma de

subsistência e quanto maior era o número de seus membros maior era a força de trabalho, de

modo que o crescimento da família ensejava melhores condições de sobrevivência a todos.

Tais grupos familiares, além de constituídos por laços afetivos, também estabeleciam uma

vida em comum entre todos os membros. Entretanto, como já referido anteriormente, eram

marcados por um perfil hierarquizado e patriarcal.

Esse quadro não resistiu à revolução industrial, que fez aumentar a necessidade de mão-de-obra, principalmente nas atividades terciárias. Assim a mulher ingressou no mercado de trabalho, deixando o homem de ser a única fonte de subsistência da família, que se tornou nuclear, restrita ao casal e a sua prole. Acabou a prevalência do caráter produtivo e reprodutivo da família, que migrou para as cidades e passou a conviver em espaços menores. (DIAS, 2007, p. 28).

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No Brasil, nas primeiras décadas da colonização, preconizou-se uma política de

povoamento a qual foi marcada pela vinda de povoadores de Portugal para aumentar a

população da colônia brasileira. Como o casamento era um dos fatores que contribuíam para o

aumento populacional, a metrópole portuguesa restringiu o celibato religioso, pois este

diminuía os matrimônios.

Durante a colonização no Brasil, buscava-se que o casamento fosse celebrado

conforme as leis do Estado e da Igreja. Para tanto, deviam ser abolidas as práticas

matrimoniais indígenas, já que desfavoreciam a instauração do verdadeiro matrimônio, e tinha

de ser punido o concubinato, pois violava as leis civis e eclesiásticas. (SILVA, 1984, p. 30-

31).

Durante o período colonial, preconizou-se a indissolubilidade do matrimônio e a

superioridade do homem, como pai e marido, na medida em que a autoridade paterna e,

somente esta, escolhia o cônjuge da filha. Essas situações perduraram após a proclamação da

República, porém com o advento da Lei nº 6.515 de 26 de dezembro de 1977, permitiu-se a

dissolubilidade do casamento, e com a entrada em vigor da Constituição de 1988, estabeleceu-

se a igualdade de direitos entre os cônjuges.

No Brasil, mesmo com o ingresso da mulher no mercado de trabalho, tornando-se

também provedora do núcleo familiar e amenizando a posição do homem como chefe da

família, a sua situação de inferioridade perante o marido somente terminou com o advento da

legislação constitucional de 1988. Na sistemática da codificação civil anterior, o homem

mantém, com algumas pequenas restrições, a sua posição de chefe de família em oposição à

mulher, a qual foi incluída no rol dos relativamente incapazes, dependendo do marido para

poder exercer uma profissão. (WALD, 2002, p. 21). Durante a vigência da legislação civil de

1916 ainda existiam diferenciações discriminatórias entre os cônjuges, pois o homem

continuou sendo a autoridade suprema dentro do grupo familiar e, a mulher permaneceu

ocupando uma posição de subordinação perante o marido.

O Código Civil anterior também fazia referências preconceituosas com relação aos

filhos havidos fora do casamento e, tanto era assim, que somente era considerada legítima a

prole oriunda do matrimônio. A adoção também era dificultada e não era permitido o

reconhecimento dos filhos provenientes de relações adulterinas e incestuosas. As uniões entre

um homem e uma mulher só eram aceitas pela sociedade conservadora da época e só

ganhavam reconhecimento jurídico se fossem chanceladas pelo Estado através do casamento.

Nesse sentido, ainda que houvesse laços afetivos de amor e de carinho entre o casal com o

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objetivo de constituir uma família, esta só era reconhecida se fosse oficializada pelo

matrimônio. O intervencionismo estatal levou o casamento como regra de conduta, cuja

observância era a condição para o reconhecimento social e jurídico da família.

Os textos constitucionais que antecederam a Carta Magna vigente mencionavam que a

única forma de constituição da família legítima era através do casamento civil e que este era

indissolúvel. A primeira Constituição Brasileira outorgada em 1824 pelo Imperador D. Pedro

I nada dispôs sobre a família e o casamento. A segunda Constituição de 1891, sendo a

primeira da República, só reconhecia o casamento civil como forma de constituir a família

brasileira. Foi somente com a segunda Constituição da República de 1934 que os textos

constitucionais passaram a dar maior importância à família, na medida em que começaram a

dedicar capítulos a essa construção da sociedade. Entretanto, tanto a Constituição Brasileira

de 1934 quanto as demais de 1937, 1946, 1967 e 1969 só mencionavam o casamento

indissolúvel como o vínculo constituinte da família. (PEREIRA, 2003, p. 9-10).

Na medida em que a sociedade conservadora foi evoluindo, os vínculos existentes

entre um homem e uma mulher passaram a gozar de crescente proteção pelo Estado, ainda

que não chancelados pelo casamento. Todavia, foi somente com a entrada em vigor da

Constituição de 1988 que no Brasil os núcleos familiares não constituídos pelo casamento

ganharam efetiva proteção estatal reconhecendo, desta forma, uma realidade social antes não

admitida juridicamente. Nesse contexto, a referida legislação revolucionou o Direito de

Família e comprovou que o direito é dinâmico na medida em que acompanha a evolução da

sociedade.

A idéia de família para o direito brasileiro sempre foi a de que ela é constituída de pais e filhos unidos a partir de um casamento regulado e regulamentado pelo Estado. Com a Constituição de 1988 esse conceito ampliou-se, uma vez que o Estado passou a reconhecer “como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”, bem como a união estável entre homem e mulher (art. 226). Isso significa uma evolução no conceito de família. Até então, a expressão da lei jurídica só reconhecia como família aquela entidade constituída pelo casamento. Em outras palavras, o conceito de família se abriu, indo em direção a um conceito mais real, impulsionado pela própria realidade. (PEREIRA, 2003, p. 8).

A nova ordem constitucional ampliou o conceito de família e, tanto é assim, que nos

parágrafos 3º e 4º do artigo 226 permitiu ao Estado reconhecer e proteger as entidades

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familiares não constituídas pelo matrimônio, tais como, a união estável e a família

monoparental. A família deixou de ser singular para se tornar cada vez mais plural. Além

disso, foi a partir do advento da legislação constitucional de 1998 que efetivamente foi

reconhecida a igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges, conforme dispõe o parágrafo

5º do artigo 226, e a igualdade de direitos e qualificações entre os diversos tipos de filiação,

conforme prevê o parágrafo 6º do artigo 227. Essa é a família constitucionalizada, sendo a que

melhor traduz a realidade da família atual.

1.2 A família constitucionalizada

O Código Civil Brasileiro de 1916 regulava a família do início do século passado,

reconhecendo juridicidade apenas a união constituída pelo matrimônio. Quando da edição

dessa legislação, a sacralização da família era de tal ordem que havia uma única forma de

constituí-la, qual seja, pelo casamento. Nesse sentido, uma vez que a sociedade conservadora

não admitia a existência de vínculos extramatrimoniais, durante muito tempo o Estado resistiu

em reconhecer as entidades familiares formadas sem a sua chancela. Entretanto, diante do

número cada vez mais crescente de núcleos familiares havidos fora do casamento, em virtude

da liberalização dos costumes, já não era mais possível deixá-los em uma situação

marginalizada. Assim, a Constituição de 1988 passou a reconhecer e a proteger toda e

qualquer estrutura capaz de instituir uma família.

Na versão original da legislação civil de 1916, a família tinha um perfil patriarcal,

hierarquizado, matrimonializado, patrimonializado e heterossexual. Nesse contexto, o homem

manteve a sua posição de chefe da família, ocupando a mulher casada uma posição de

inferioridade. Somente assim era reconhecida a família formada pelos laços do matrimônio e

sua finalidade essencial era a conservação do patrimônio, necessitando, para tanto, ser

constituída por um par heterossexual e fértil a fim de pode gerar filhos como força de

trabalho. (DIAS, 2007, p. 43).

Na sistemática da codificação civil anterior, a família restringia-se as uniões

sacralizadas pelo casamento, impedindo-se a sua dissolução. Contudo, a única possibilidade

de romper com o matrimônio era o desquite, que cessava os deveres de fidelidade e de

manutenção da vida em comum sob o mesmo teto, mas não dissolvia o vínculo conjugal. As

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pessoas desquitadas ficavam impedidas de celebrar novo casamento e remanescia entre elas a

obrigação de mútua assistência, permanecendo o encargo alimentar em favor do cônjuge

inocente e pobre. Somente com a Emenda Constitucional nº 9 de 1977 e a Lei nº 6.515 de 26

de dezembro de 1977 que foi instituído o divórcio, acabando com a indissolubilidade do

casamento.

O legislador civil de 1916 fazia referências discriminatórias aos vínculos havidos fora

do matrimônio e aos filhos gerados por essas relações. Sobre esse aspecto, não eram

merecedoras do reconhecimento social e jurídico as uniões extramatrimoniais, bem como

eram considerados ilegítimos os filhos concebidos fora do casamento. Essas qualificações

preconceituosas eram punitivas e só serviam para excluir direitos.

Apesar de o Estado ter resistido em admitir as uniões extramatrimoniais, vínculos

afetivos começaram a surgir à margem do casamento, seja pelo desejo dos companheiros de

estabelecer uma vida em comum sem a chancela estatal ou pela vontade de formar uma

família sem a presença necessária de um dos genitores ou, até mesmo, em virtude da morte de

um deles. Mesmo com o surgimento desses vínculos, a família constituída pelo matrimônio

era a única que recebia reconhecimento e proteção do Estado, tanto que era considerada a

família legítima. Essa situação perdurou até o advento da nova ordem constitucional, pois

após a sua entrada em vigor toda e qualquer estrutura formada por uma unidade afetiva e pela

vida em comum entre seus membros passou a ser reconhecida como entidade familiar.

Guimarães posiciona-se neste sentido ao afirmar que:

Já não era mais possível, no final do sec. XX, conceber-se enganosamente, como única, a família formada por meio das núpcias, e a sua respectiva prole, tratada como legítima. Era necessário conceder adequada recepção jurídica a outros núcleos diferenciados compostos igualmente por pais e filhos, para que se fortalecesse e ampliasse a mencionada base social do Estado, descentralizando-se, assim, o papel monopolizador da família tradicional aquela advinda do matrimônio. (GUIMARÃES, 2001, p. 16).

Foi a partir da entrada em vigor da legislação constitucional de 1988 que os outros

núcleos familiares, além daqueles constituídos pelo casamento, passaram a merecer atenção

do Estado. Nesse contexto, a família-instituição foi substituída pela família-instrumento cujo

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papel principal é de suporte emocional aos seus integrantes, justificando o seu

reconhecimento e proteção pelo Estado.

Reconhecendo a família como um grupo social fundado essencialmente nos laços

afetivos e na vida em comum entre seus membros, fazia-se necessário ter uma visão pluralista

dessa construção cultural. Com a finalidade de atender essa visão, o atual texto constitucional

atribuiu reconhecimento jurídico a pluralidade de modelos familiares, alterando radicalmente

o sistema anterior e consagrando a isonomia entre as entidades familiares, havidas ou não pelo

matrimônio.

A Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu artigo 226, revolucionou o Direito

de Família, uma vez que reconheceu a existência de outras entidades familiares, que não a

simplesmente formada pelo casamento, rediscutindo a noção tradicional de família. Tal

dispositivo atribuiu amplo valor a família, como também concebeu reconhecimento jurídico a

outros núcleos familiares não constituídos pelo matrimônio. Ao estender o conceito de

família, a referida legislação constitucional passou a reconhecer juridicamente outras

realidades sociais que não podiam mais ser ignoradas.

Segundo o caput do artigo 226, “a família, base da sociedade, tem especial proteção

do Estado.” (2008, p. 87). Nesse sentido, a família é considerada base da sociedade, de modo

que o Estado não pode deixar de reconhecer como merecedora de proteção e atenção. Os

parágrafos 3º e 4º do referido dispositivo demonstram a ampliação no conceito de família, na

medida em que reconhecem como entidade familiar outras não constituídas pelo casamento.

A família considerada a base da sociedade e que tem proteção do Estado não é

somente aquela fundada no casamento, mas também aquela constituída informalmente, de

modo que ambas merecem a mesma proteção. Assim, a família mencionada no artigo 226

deve ser entendida no sentido amplo, levando-se em consideração a igualdade entre os

diversos grupos familiares e desconsiderando quaisquer tipos de discriminações, qualificações

ou designações depreciativas. (VELOSO, 1997, p. 86).

Uma vez que o referido dispositivo constitucional considera a família, e não o

matrimônio, como a base da sociedade, não há fundamento jurídico para o casamento ser a

única forma de se constituir uma família. Assim, nenhum vínculo de origem afetiva pode ser

excluído do âmbito jurídico, pois isso somente leva a exclusão de direitos daqueles que vivem

aos pares constituindo uma vida em comum, mas sem a chancela estatal. Tendo isso em vista,

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o constituinte de 1988 alargou o conceito de família para além daquela constituída pelo

matrimônio, assegurando proteção aos vínculos havidos fora dessa relação.

A nova ordem constitucional reformou profundamente o direito de família brasileiro,

alterando-o substancialmente. Não se tem mais aquela família organizada em uma estrutura

autoritária, com uma hierarquia bem definida e sob a chefia do homem. Não é mais possível

fazer distinções que diminuam ou discriminem as famílias oriundas de uniões estáveis ou

quaisquer outras formas de uniões capazes de instituir uma família. (VELOSO, 1997, p. 7).

Dispõe o parágrafo 3º do artigo 226, “para efeito da proteção do Estado é reconhecida

a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua

conversão em casamento.” (2008, p. 87). O parágrafo 4º do referido dispositivo expressa que

“entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e

seus descendentes.” (2008, p. 87). Nesse contexto, a Constituição de 1988 passou a

reconhecer como entidade familiar aquela constituída por união estável e a denominada

família monoparental, em que somente um dos pais é titular do vínculo familiar.

Ao reconhecer a união estável e os vínculos monoparentais como entidades familiares,

o atual texto constitucional nos parágrafos 3º e 4º do artigo 226, acabou com a ideia de ser o

casamento o único marco a identificar a existência de uma família. Em tais parágrafos foi

assegurada proteção à união entre um homem e uma mulher não sacralizada pelo matrimônio,

bem como as comunidades formadas por um dos pais com seus filhos. Considerar como

entidades familiares outros vínculos além dos constituídos pelo casamento e assegurar a sua

proteção pelo Estado corresponde, portanto, a garantia constitucional que não pode ser

limitada ou restringida pela legislação infraconstitucional.

Nesse sentido, é a posição de Dias ao afirmar que:

A consagração de entidades familiares e a proteção que lhes foi assegurada passaram a constituir garantia constitucional. Não podem sofrer limitações ou restrições da legislação ordinária. Não é possível sequer limitar direitos que já haviam sido consagrados em leis anteriores. A legislação infraconstitucional não pode ter alcance jurídico-social inferior ao que tinha sido estabelecido, originariamente, pelo constituinte, sob pena de ocorrer retrocesso ao estado pré-constituinte. É o que se chama de princípio da proibição de retrocesso social. (DIAS, 2007, p. 159).

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O direito positivo passou a reconhecer novas formas de constituição de núcleos

familiares, entre elas a união de fato entre um homem e uma mulher, denominando-a de união

estável. Assim, as uniões calcadas na estabilidade das relações e no seu reconhecimento

público passaram a ser reconhecidas como entidades familiares, passando a compor a base da

sociedade. A fim de atender essa nova realidade que se impôs, o direito admitiu a existência

dessa família constituída informalmente, estendendo-lhe proteção estatal.

O artigo 1º da Lei nº 8.971 de 1994 estabelecia prazo mínimo de cinco anos para a

configuração da união estável ao dispor que ”a companheira comprovada de um homem

solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo, que com ele viva há mais de cinco

anos, ou dele tenha prole, poderá valer-se do disposto na Lei nº 5.478, de 25 de julho de 1968,

enquanto não constituir nova união e desde que prove a necessidade.” (2001, p. 1). Ademais,

o parágrafo único do referido dispositivo estabelecia que “igual direito e nas mesmas

condições é reconhecido ao companheiro de mulher solteira, separada judicialmente,

divorciada ou viúva.” (2011, p. 1).

Entretanto, a legislação posterior apenas estabeleceu o conceito de união estável, nada

dispondo sobre o tempo mínimo necessário para a sua caracterização. Nesse sentido, o artigo

1º da Lei nº 9.728 de 10 de maio de 1996 previa que “é reconhecida como entidade familiar a

convivência duradoura, pública e contínua entre um homem e uma mulher, estabelecida com

objetivo de constituição de família.” (2011, p. 1). Tal lei, além de delinear as características

da união estável, também a concebeu como entidade familiar na mesma ótica da nova ordem

constitucional.

O Código Civil Brasileiro de 2002, em seu artigo 1.723, limitou a reproduzir o mesmo

conceito de união estável da legislação já existente. Tendo em vista o conceito legal de união

estável, pode-se dizer que ela surge do vínculo de convivência entre um homem e uma

mulher, calcado no comprometimento mútuo e no embaralhamento de patrimônios. Embora o

referido conceito abra um caminho vasto para a configuração da união estável, a relação entre

os companheiros não pode ser ocasional, devendo se prolongar no tempo. Além disso, a

publicidade da relação entre os conviventes remete a sua notoriedade perante a sociedade, de

modo que os companheiros passam a ser identificados como um casal. Não obstante tais

considerações sobre a união estável, o desejo de constituir uma família é o seu principal

elemento, pois remete a ideia da existência do vínculo de afetividade entre os companheiros e

o estabelecimento de uma vida em comum entre ambos, marcada pela parceira, projetos e

desejos.

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Nesse sentido, afirma Dias:

Com segurança, só se pode afirmar que a união estável inicia de um vínculo afetivo. O envolvimento mútuo acaba transbordando o limite do privado, começando as duas pessoas serem identificadas no meio social como um par. Com isso o relacionamento transforma-se em uma unidade. A visibilidade do vínculo o faz ente autônomo merecedor da tutela jurídica como uma entidade. O casal transforma-se em universalidade única que produz efeitos pessoais com reflexos de ordem patrimonial. Atenta o direito a essa nova realidade, rotulando-a de união estável. Daí serem a vida em comum e a mútua assistência apontadas como seus elementos caracterizadores. Nada mais do que prova da presença do enlaçamento de vida, do comprometimento recíproco, a exigência de notoriedade, continuidade e durabilidade da relação só serve como meio de comprovar a existência do relacionamento. (DIAS, 2007, p. 161).

Uma vez que a união estável adquiriu o status de entidade familiar, não há fundamento

social ou jurídico que justifique distinções discriminatórias com relação aos vínculos

existentes entre os companheiros. Assim, a partir do momento em que duas pessoas mantêm

um relacionamento afetivo, mediante comprometimento mútuo e com o objetivo de constituir

um lar, configura-se a união estável, considerada entidade familiar. Nesse contexto, tanto a

união estável quanto o casamento são instituições geradoras de família, como o mesmo valor

social e jurídico, sendo merecedoras da mesma tutela pelo Estado.

As famílias monoparentais, formadas pela convivência de um dos genitores e sua

prole, tornaram-se uma realidade jurídica merecedora do reconhecimento e proteção estatal.

Sua constituição geralmente decorre da decisão de um dos membros da família, em virtude da

ruptura da vida conjugal ou em razão da vontade de ter uma união livre constituída somente

pelo genitor e sua prole. Entretanto, também pode decorrer em virtude da morte de um dos

pais. Tendo isso em vista, pode-se dizer que as famílias monoparentais podem surgir quando

da viuvez, separação, divórcio, pela adoção de um filho por pessoa solteira ou, ainda,

mediante inseminação artificial realizada por mulher solteira ou realizada com o material

genético do marido ou companheiro já falecido. Na maioria dos casos, são as mulheres que

exercem a chefia da monoparentalidade e, uma vez que geralmente arcam com todas as

despesas da família, necessitam de atenção e proteção do Estado.

A pessoa que vive sozinha com a sua prole tem encargos redobrados, pois além dos

cuidados que deve ter com o lar e com os filhos, também necessita buscar meios para garantir

o sustento da sua família. Em decorrência disso, torna-se imperioso reconhecer que as

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famílias monoparentais possuem uma estrutura mais frágil, necessitando de proteção pelo

Estado. (DIAS, 2007, p. 197). Com a finalidade de dar guarida a monoparentalidade, o texto

constitucional vigente, no parágrafo 4º do artigo 226, atribui-lhe o status de entidade familiar

reconhecendo juridicamente uma realidade que não podia mais ser ignorada.

Oriundo, o reconhecimento jurídico e a proteção pelo Estado não se limita aquelas

entidades familiares expressas nos parágrafos 3º e 4º do artigo 226. Nesse sentido, ainda que o

constituinte de 1988 somente tenha elencado a união estável e os vínculos monoparentais

como entidades familiares, toda e qualquer estrutura que forme uma unidade afetiva e

estabeleça uma vida em comum entre os membros é merecedora da atenção e proteção do

Estado.

A Constituição ao garantir especial proteção à família, citou algumas entidades familiares, as mais frequentes, mas não as desigualou. Limitou-se a elenca-las, não lhes dispensando tratamento diferenciado. O fato de mencionar primeiro o casamento, depois a união estável e, por último, a família monoparental não significa qualquer preferência nem revela escala de prioridade entre eles. Ainda que a união estável não se confunda com o casamento, ocorreu a equiparação das entidades familiares, sendo todas merecedoras da mesma proteção. (DIAS, 2007, p. 156-157).

A legislação constitucional em vigor não só tutelou os núcleos familiares constituídos

fora do casamento, acabando com a distinção entre família legítima e ilegítima, como também

consagrou a igualdade de direitos entre os cônjuges, bem como entre os diversos tipos de

filiação. A mulher deixou de ser mera colaboradora e companheira do marido passando a ter,

em conjunto com este, o poder de decisão na sociedade conjugal. E, foram atribuídos aos

filhos havidos fora do matrimônio ou por adoção os mesmos direitos e qualificações dos

filhos havidos dentro do casamento.

A família deixou de ter origem apenas no matrimônio e sofreu alterações, uma vez que

passou a estabelecer comunhão plena de vida entre os cônjuges, baseada na sua igualdade

quanto ao exercício dos direitos e deveres relativos à sociedade conjugal. O novo

ordenamento constitucional reforçou o princípio da igualdade entre o homem e a mulher, pois

determinou que a direção da sociedade conjugal será exercida por ambos os cônjuges, em

colaboração, e com vistas ao interesse da família.

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Ainda, mediante determinação do parágrafo 6º do artigo 227 da Constituição Federal

Brasileira de 1988 consagrando a igualdade entre os filhos, passou a ser vedada toda e

qualquer qualificação discriminatória relativa aos filhos havidos de relações

extramatrimoniais, por adoção, ou por quaisquer outras formas de relacionamento afetivo, no

qual são criados e educados por uma pessoa como se a ela pertencesse biologicamente.

Assim, foram eliminadas as designações preconceituosas com relação a filiação e foram

concedidos os mesmos direitos e qualificações a todos os filhos, independentemente da sua

origem.

1.3 A situação dos filhos antes e depois do advento da Constituição Federal Brasileira de 1988

Primeiramente cumpre referir que filiação consiste no laço de parentesco existente

entre o filho e seus pais, quando considerado ascencionalmente, ou seja, da prole para os seus

genitores. “De uma maneira ampla filiação significa o estabelecimento de uma relação de

parentesco, natural ou civil, entre a prole e seus respectivos genitores.” (GUIMARÃES, 2001,

p. 27). A filiação tem origem, portanto, na relação de parentesco entre a pessoa que nasce ou a

que é adotada e seus respectivos pais, como também entre filho e aquela pessoa que o criou e

o educou como se a ela pertencesse biologicamente.

Na filiação não importa mais a qualidade do filho que antigamente era determinada

pela circunstância de ter sido gerado dentro ou fora do casamento. Os diversos tipos de

filiação adquiriram reconhecimento jurídico após a entrada em vigor da Constituição Federal

Brasileira de 1988 que estabeleceu, no parágrafo 6º do artigo 227, o princípio jurídico da

isonomia na filiação ao dispor que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por

adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações

discriminatórias relativas à filiação.” (2008, p. 88). Esta orientação constitucional tratou de

vedar expressamente o tratamento diferenciado que vigorava no sistema legal anterior no que

se refere as diversas espécies de filiação.

Entretanto, até o advento desta legislação constitucional, os filhos eram catalogados de

forma absolutamente discriminatória e cruel, uma vez que eram classificados em legítimos,

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legitimados e ilegítimos. Os filhos ilegítimos eram divididos em naturais e espúrios. Estes

últimos, por sua vez, subdividiam-se em incestuosos e adulterinos. (DIAS, 2007, p. 318).

Essa classificação levava em consideração a circunstância de a prole ter sido

concebida dentro ou fora do matrimônio, mas legítimos eram aqueles filhos concebidos na

constância do casamento de seus pais. Os filhos legitimados, por sua vez, eram aqueles

gerados por pessoas não casadas uma com a outra, mas que, posteriormente a procriação,

celebravam o matrimônio. Ilegítimos eram aqueles filhos procriados por pessoas não casadas

uma com a outra. O sistema legal anterior preconizava a filiação legítima e extirpava a

ilegítima na medida em que somente atribuía reconhecimento jurídico aos filhos provenientes

do matrimônio. Assim, aos filhos decorrentes de relações extramatrimoniais eram negados

não só os direitos à identidade, aos alimentos e à herança, mas também o próprio direito à

sobrevivência.

Os filhos naturais eram aqueles nascidos de pais não casados entre si, não havendo,

todavia, impedimentos que os levassem para a classe dos espúrios. Os filhos espúrios eram

aqueles provindos de genitores que, ao tempo da concepção, possuíam algumas restrições, tais

como, o impedimento de parentesco em grau proibido, denominando-se os filhos de

incestuosos, o impedimento resultante de investidura em ordens sacras maiores ou de entrada

em ordem religiosa aprovada, chamando-se os filhos de sacrílegos, e o impedimento de

vínculo matrimonial, classificando-se os filhos de adulterinos. (VELOSO, 1997, p. 8).

A classe dos sacrílegos, que eram os filhos havidos por sacerdote ou freira,

desapareceu do direito brasileiro quando da separação entre a Igreja e o Estado. Assim, a

filiação sacrílega saiu da categoria dos espúrios, permanecendo somente a adulterina e a

incestuosa. No Brasil, o Decreto nº 119-A de 07 de janeiro de 1890 foi o marco da separação

entre o Estado e a Igreja, na medida em que estabeleceu a liberdade de culto religioso,

proibindo qualquer tipo de intervenção estatal na religião.

A filiação espúria era considerada aquela que provinha do “coito danado e punível”,

sendo esta expressão utilizada antigamente para designar o enlace entre um homem e uma

mulher surgido fora da relação matrimonial e impregnado de sérios impedimentos, ao tempo

da concepção da prole. Tais impedimentos relacionavam-se ao parentesco em grau proibido

entre os genitores e a impossibilidade de constituição do vínculo matrimonial, em virtude de

casamento anterior de um deles. A filiação incestuosa era aquela proveniente do primeiro

impedimento, ou seja, de pais proibidos de casar entre si, tendo em vista o grau de parentesco

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próximo entre eles. A filiação adulterina era aquela havida do segundo impedimento, isto é,

por qualquer dos cônjuges fora do seu casamento.

O incesto constitui comportamento social considerado repugnante, mas não reprimido

pela norma penal, de modo que não é definido como crime. Não obstante isso, o filho

incestuoso era punido civilmente, em virtude de ter sido concebido mediante um

comportamento social moralmente reprovável. Por outro lado, o filho adulterino veio ao

mundo condenado pelas normas penal e civil, as quais lhe imputavam responsabilidade pelo

ato praticado pelo genitor culpado. (GUIMARÃES, 2001, p. 32).

Diante do que foi exposto sobre as espécies de filiação, é evidente a forma

discriminatória e cruel que a doutrina civil anterior tratava desse assunto, uma vez que o

reconhecimento jurídico dos filhos levava por base tão somente as circunstâncias de como

foram gerados, dentro ou fora do matrimônio. A situação conjugal dos genitores refletia,

portanto, na identificação da respectiva prole, conferindo-lhe ou subtraindo-lhe o direito à

identidade. Havia a supremacia da filiação legítima sobre a pretensão de dignidade do filho

ilegítimo.

O tratamento legislativo preconceituoso com relação aos diversos tipos de filiação é

realçado no artigo 358 do Código Civil de 1916, na medida em que dispunha que “os filhos

incestuosos e adulterinos não podem ser reconhecidos.” (2010, p. 173). Nesse contexto,

embora o incesto ou o adultério tivesse sido praticado pelos pais, os filhos oriundos dessas

uniões eram considerados frutos infelizes e por isso eram punidos mesmo sem ter culpa.

Assim, o referido dispositivo sancionava os filhos pela pretença falta cometida pelos pais,

sendo aqueles os grandes perdedores uma vez que lhes era negado reconhecimento e

excluídos os seus direitos.

A doutrina e a codificação civil trataram de qualificar estes últimos- os espúrios- como filhos adulterinos ou incestuosos. De uma visão inicial, surge a idéia de que os mesmos deveriam carregar para o resto de suas vidas o pecado conjugal e familiar cometido por seus pais. Seriam frutos do adultério criminoso e do desvio moral no seio da relação familiar. Sustentariam incontinenti o fardo de seres humanos desprovidos de qualificação na órbita civil, obra de delito ou libertinagem de seus geradores. (GUIMARÃES, 2001, p. 31).

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Por outro lado, em face da vedação contida no artigo 358, é possível afirmar que o

legislador civil não impôs restrições à paternidade dos filhos naturais, de modo que apenas

estes podiam ser reconhecidos. Nesse sentido, uma vez que o referido dispositivo proclamava

que somente os filhos incestuosos e adulterinos não podiam ser reconhecidos, pode-se

concluir que a única possibilidade de reconhecimento da filiação ilegítima se dava com

relação aos filhos naturais. Essa posição foi reforçada pelo artigo 126 da Constituição

Brasileira de 1937 ao dispor que “aos filhos naturais, facilitando-lhes o reconhecimento, a lei

assegurará igualdade com os legítimos, extensivos àqueles os direitos e deveres que em

relação a estes incumbem aos pais.” (2011, p. 18).

O referido dispositivo constitucional estendeu aos filhos naturais o status de legítimos,

amenizando os inconvenientes de sua condição. Em virtude do mandamento contido no artigo

126, os filhos naturais, sempre que possível, deveriam ser equiparados aos filhos legítimos.

Essa tendência legislativa no sentido de melhorar a situação dos filhos ilegítimos também se

manifestou no reconhecimento dos filhos nascidos das relações adulterinas, cuja realidade se

tornava cada vez mais palpável.

Mesmo com a rigorosa proibição do artigo 358 do Código Civil de 1916, o legislador,

frente ao número cada vez mais significativo de proles geradas de relações extramatrimoniais,

procurou atenuar a vedação de reconhecimento dos filhos adulterinos. Assim, com o objetivo

de atribuir-lhes reconhecimento jurídico foram criadas legislações esparsas, tais como, o

Decreto-Lei nº 4.737 de 24 de setembro de 1942 e, posteriormente, a Lei nº 883 de 21 de

outubro de 1949. Entretanto, esse mesmo tratamento flexível não foi concedido às proles

advindas de relações incestuosas, pois desde o período primitivo estas sempre foram

interditadas.

As tribos dos aborígenes da Austrália, descritas pelos antropólogos como sendo dos

selvagens mais atrasados e miseráveis, estabeleciam para si próprias o propósito de evitar

relações incestuosas. (FREUD, 1999, p. 12-13). Nesse sentido, o horror ao incesto já se

constatava presente entre os povos primitivos, pois muitas tribos possuíam leis que proibiam o

relacionamento sexual entre os seus membros. As leis de interdições sexuais eram, portanto, o

meio apropriado para impedir o incesto, considerado uma grande preocupação dos povos

selvagens.

As tribos australianas subdividem-se em clãs, sendo que cada um era denominado

segundo o seu totem. Esse é um animal ou, mais raramente, um vegetal ou um fenômeno

natural. O totem é o antepassado comum do clã e, ao mesmo tempo, é o espírito guardião e

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auxiliar. Todos os integrantes do clã estão na obrigação sagrada de não praticar qualquer

conduta contra o seu totem. Em quase todos os lugares em que foram encontrados totens,

havia uma lei que proibia as relações sexuais entre os membros do mesmo clã. Trata-se da

“exogamia”, sendo esta uma instituição com forte ligação com o totemismo. (FREUD, 1999,

p. 13-14).

Uma vez que o totem é considerado o antepassado comum, todas as pessoas que

integram o mesmo clã são tratadas como parentes de sangue. Assim, a exogamia totêmica,

além de prevenir o incesto proibindo o relacionamento sexual entre parentes consanguíneos,

também impede as relações sexuais entre os membros do clã com o mais distante grau de

parentesco, pois estes são encarados como integrantes de uma única família. A lei de

interdição sexual entre os membros do mesmo clã representava, portanto, uma proibição ao

incesto, independente dos laços de sangue.

Diante do que foi exposto, pode-se afirmar que o incesto sempre foi visto por nossa

civilização como um fenômeno moralmente reprovável e, em virtude disso, admitia-se mais

facilmente o adultério, considerado menos danoso que o incesto. O adultério ora abordado não

é o feminino, mas sim o masculino, cuja prática quase sempre era tolerada no meio social. De

fato, desde o período da civilização havia o predomínio do homem dentro da família de modo

que, além de ser o único com o poder de romper os laços conjugais, também lhe era

concedido o direito à infidelidade conjugal, exercido cada vez mais amplamente na medida

em que a sociedade evolui. A mulher, por sua vez, quando recordava as antigas práticas

sexuais e tentava renová-las, era castigada rigorosamente. (ENGELS, 1985, p. 66).

As relações extramatrimoniais da mulher sempre foram tratadas com repúdio. No

Brasil, esse tratamento é realçado no artigo 364 da legislação civil de 1916 ao dispor que “a

investigação de maternidade só se não permite, quando tenha por fim atribuir prole ilegítima à

mulher casada, ou incestuosa à solteira.” (2010, p. 28).

É lamentável o descaso legislativo por que passaram os filhos incestuosos, uma vez

que ficaram impossibilitados de inscrever o nome de seus pais no respectivo termo de

nascimento, ficando em branco a paternidade biológica até a entrada em vigor da Constituição

de 1988 que eliminou todas as diferenciações até então existentes na filiação brasileira,

marcada pela transferência da culpa aos filhos das relações vividas por seus genitores.

(GUIMARÃES, 2001, p. 41).

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Entretanto, a Lei do Divórcio, Lei nº 6.515 de 26 de dezembro de 1977, trouxe

tratamento isonômico entre os filhos no que diz respeito ao direito sucessório, pois garantiu a

todos esses, o direito à herança em igualdade de condições. Nesse sentido, as proles advindas

de uma relação incestuosa passaram a ter os mesmos direitos sucessórios em relação as outras

espécies de filiação. A evolução legislativa no que se refere ao abrandamento da situação dos

filhos ilegítimos só prova que o direito não consegue se dissociar da realidade, marcada pelo

número cada vez mais crescente de proles advindas de relações extramatrimoniais.

O Direito, através de legislações esparsas, tais como, o Decreto-Lei nº 4.737 de 1942,

a Lei nº 883 de 1949 e a Lei nº 6.515 de 1977, amenizou a condição dos filhos adulterinos e

incestuosos na época em que ainda vigorava o artigo 358 da codificação civil anterior. Tal

dispositivo só trazia injustiça, pois impedia o reconhecimento da paternidade dos filhos

extraconjugais em virtude de atos cometidos por seus genitores, liberando esses das tantas

obrigações que teriam na condição de pais. O artigo 358 acabou sendo revogado pela Lei n°

7.841 de 17 de outubro de 1989.

Com o objetivo de melhorar a situação das proles advindas de uniões

extramatrimoniais, algumas decisões judiciais passaram aceitar o reconhecimento do filho

adulterino por um dos genitores, desde que esse não tivesse vínculo conjugal. Nesse contexto,

se o filho fosse gerado por pai casado e mãe solteira, caberia a essa exclusivamente o direito

de declarar o seu nascimento. (GUIMARÃES, 2001, p. 47).

Até o advento da Lei do Divórcio, a única possibilidade de romper o casamento era

através do desquite, que não dissolvia o vínculo matrimonial. Com a finalidade de abrandar a

condição dos filhos adulterinos, enquanto ainda não era possível dissolver a sociedade

conjugal, foi promulgado o Decreto-Lei nº 4.737 de 24 de setembro de 1942 que, no artigo 1º,

estabeleceu que “o filho havido pelo cônjuge fora do matrimônio pode, depois do desquite,

ser reconhecido ou demandar que se lhe declare a sua filiação.” (2011, p. 1).

O referido dispositivo permitiu que a prole adulterina fosse reconhecida ou

demandasse o seu reconhecimento, desde que isso fosse feito após a decretação do desquite.

Entretanto, omitiu-se quanto à extinção do vínculo matrimonial em virtude da morte de um

dos cônjuges, impossibilitando o filho extraconjugal de ver reconhecida a sua paternidade

pelo genitor adúltero que não tivesse efetuado o seu desquite antes de falecer, ou antes da

morte de seu cônjuge.

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Assim, falecendo o cônjuge sem que tivesse se desquitado do genitor adúltero, esse

não poderia reconhecer a prole havida fora do casamento, bem como não seria permitido ao

filho adulterino pleitear o seu reconhecimento, ainda que dissolvida a sociedade conjugal pela

morte. O mesmo ocorreria no caso de falecimento do genitor adúltero sem que tivesse se

desquitado do cônjuge, pois o filho adulterino não poderia ser reconhecido judicialmente

pelos seus herdeiros, como também não poderia pleitear judicialmente o seu reconhecimento

contra os herdeiros do gerador, na forma do artigo 363 do Código Civil de 1916.

Com o objetivo de solucionar o problema trazido pela legislação de 1942 aos filhos

adulterinos, foi editada a Lei nº 883 de 21 de outubro de 1949 que no caput do artigo 1º

possibilitou qualquer dos cônjuges, depois de dissolvida a sociedade conjugal, reconhecer a

prole havida fora do matrimônio, bem como permitiu ao filho extraconjugal pleitear o seu

reconhecimento. Previa o caput do artigo 1º da referida lei que “dissolvida a sociedade

conjugal, será permitido a qualquer dos cônjuges o reconhecimento do filho havido fora do

matrimônio e, ao filho a ação para que se lhe declare a filiação.” (2011, p. 1). Nesse contexto,

dissolvido o vínculo matrimonial pela morte de um dos cônjuges, o filho adulterino poderia

ser reconhecido ou pleitear o seu reconhecimento, ainda que o genitor adúltero não tivesse

efetuado o seu desquite.

Assim, falecendo o cônjuge sem que tivesse se desquitado do genitor adúltero, esse

poderia reconhecer o filho extraconjugal, bem como seria permitido ao filho adulterino

pleitear o seu reconhecimento, pois já fora dissolvido o vínculo matrimonial pela morte. Por

outro lado, Guimarães apresenta o seu ponto de vista ao alegar que “mesmo que o genitor

adúltero não tivesse efetuado seu desquite, e caso viesse a falecer, ensejaria o reconhecimento

judicial de sua prole, via de seus herdeiros, nos moldes adotados pelo art. 363 do Código

Civil.” (2001, p. 53). Com fundamento nesse mesmo dispositivo, o filho adulterino também

poderia pleitear o seu reconhecimento judicial contra os herdeiros do gerador adúltero.

A problemática trazida pelo caput do artigo 1º da Lei nº 883 de 1949 foi no sentido de

permitir a mulher adúltera o reconhecimento do filho havido fora do matrimônio, uma vez que

permitia qualquer dos cônjuges o reconhecimento da prole adulterina. Tal disposição

contrariava o artigo 364 da legislação civil de 1916, pois esse proibia a investigação de

maternidade que tivesse por fim atribuir prole ilegítima a mulher casada ou incestuosa a

solteira.

A fim de atenuar o conflito entre as referidas normas, a doutrina e a jurisprudência

admitiram, em um primeiro momento, que somente o pai adúltero poderia reconhecer o filho

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extraconjugal, ficando a mulher adúltera impedida de exercer esse mesmo direito.

(GUIMARÃES, 2001, p. 55). A aplicação do caput do artigo 1º da Lei nº 883 de 1949 foi

restringida ao reconhecimento da filiação extraconjugal decorrente tão somente do adultério

masculino, melhor aceito pela sociedade durante a vigência da codificação civil anterior.

Ademais, o artigo 338 do Código Civil de 1916 obstaculizava mais ainda o

reconhecimento do filho extraconjugal pela mulher adúltera ao dispor que “presumem-se

concebidos na constância do casamento: I- os filhos nascidos 180 (cento e oitenta) dias, pelo

menos, depois de estabelecida a convivência conjugal (art. 339); II- os nascidos dentro dos

300 (trezentos) dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal pela morte, desquite, ou

anulação.” (2010, p. 27). Nesse sentido, não era permitido à mulher casada reconhecer a prole

extraconjugal havida nessas condições, pois tal filiação presumia-se concebida na constância

do matrimônio sendo, portanto, considerada legítima por força do artigo 337 do mesmo

diploma civil o qual estabelecia que “são legítimos os filhos concebidos na constância do

casamento, ainda que anulado (art. 217), ou mesmo nulo, se se contraiu de boa fé (art. 221).”

(2010, p. 27).

A presunção atribuída pelo artigo 338 é relativa, de modo que admitia prova em

contrário. Assim, o marido poderia impugnar a legitimidade da filiação com base no disposto

no artigo 340 da legislação civil de 1916 o qual previa que “a legitimidade do filho concebido

na constância do casamento, ou presumido tal (arts. 337 e 338), só se pode contestar,

provando-se: I- que o marido se achava fisicamente impossibilitado de coabitar com a mulher

nos primeiros 121 (cento e vinte e um) dias, ou mais, dos 300 (trezentos) que houverem

procedido ao nascimento do filho; II- que a esse tempo estavam os cônjuges legalmente

separados.” (2010, p. 27). Só ao marido cabia, exclusivamente, impugnar a legitimidade da

filiação conforme se podia entender do artigo 344 do mesmo diploma civil o qual estabelecia

que “cabe privativamente ao marido o direito de contestar a legitimidade dos filhos nascidos

de sua mulher (art. 178, parágrafo 3º).” (2010, p. 27).

Tendo em vista que o caput do artigo 1º da Lei nº 883 de 1949 não revogou o artigo

364 da codificação civil anterior, a fim de minimizar as incompatibilidades existentes entres

tais legislações a jurisprudência e a doutrina, num segundo momento, passaram a admitir que

a mulher casada, mediante separação de fato por um período já prolongado, teria o direito de

reconhecer o filho oriundo de nova relação. (GUIMARÃES, 2001, p. 59).

Diante do que foi exposto, é evidente a considerável evolução legislativa pela qual

passou a filiação brasileira, principalmente no tocante aos filhos adulterinos. Entretanto, foi

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somente com o advento da ordem constitucional de 1988 que os diversos tipos de filiação

passaram a receber tratamento igualitário, sendo-lhes assegurados os mesmos direitos e

qualificações. Nesse contexto, a filiação passou a ser identificada pela existência do vínculo

afetivo entre a prole e os genitores, não mais importando a origem do filho.

A Lei Maior não tem preferidos, não elegeu prediletos, não admite distinções em razão de sexo, aboliu por completo a velha ditadura dos varões a acabou, definitivamente, com a disparidade entre os filhos, determinando a absoluta igualdade entre eles, proibindo, inclusive, os designativos que funcionavam como autêntica maldição. As denominações discriminatórias relativas à filiação não podem mais ser utilizadas. Filho, de qualquer origem ou procedência, qualquer que seja a natureza da filiação, é filho, simplesmente filho, e basta, como os mesmos direitos e deveres de qualquer outro filho. (VELOSO, 1997, p. 87).

Atualmente é vedado todo e qualquer tratamento discriminatório entre os filhos,

conforme previsão do artigo 227, parágrafo 6º, da Constituição de 1988 que consagra o

princípio da igualdade entre eles. Tal princípio não pode se aplicar somente aos filhos havidos

dentro da relação do casamento ou fora dela, por adoção ou por quaisquer outras formas de

relacionamento afetivo, no qual são criados e educados por uma pessoa como se a ela

pertencesse biologicamente, mas também deve abranger os filhos gerados por reprodução

assistida, seja ela homóloga, heteróloga ou post mortem. Nesse sentido, independente da

forma de concepção do filho é preciso que seja tratado em igualdade de condições com os

demais.

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2 A CAPACIDADE SUCESSÓRIA DA CRIANÇA GERADA POR FECUNDAÇÃO ARTIFICIAL REALIZADA APÓS A MORTE DO GENITOR

O enorme avanço científico na área de reprodução humana permitiu o

desenvolvimento de técnicas para a procriação, independentemente do contato sexual. Os

métodos artificiais de concepção humana vieram substituir o processo natural de procriação

insuficiente e, tendo em vista o princípio constitucional da igualdade entre os filhos, as

crianças geradas nessa condição não podem receber tratamento diferenciado das havidas pela

forma natural.

2.1 A procriação artificial como alternativa à procriação carnal

O desejo de ter filhos não se reduz a reprodução, mas também está vinculado ao desejo

de constituir uma família. Quando esta aspiração legítima do casal não pode ser alcançada

pela forma natural, utiliza-se a procriação artificial. Assim, as técnicas artificiais de

concepção humana são utilizadas pelos casais que desejam fundar uma família, porém não

conseguem através da procriação carnal uma vez que um parceiro ou ambos sofrem com

problemas de fertilidade que os impossibilitam gerar.

A primeira inseminação artificial humana ocorreu na Idade Média, sendo que primeiro

foi realizada a inseminação homóloga e depois a heteróloga. Diz-se fecundação artificial

homóloga quando realizada com o material genético proveniente do próprio marido ou

companheiro e, heteróloga, quando feita com o esperma de um terceiro sujeito estranho ao

casal, ou seja, de um doador. No início o desenvolvimento da técnica artificial de concepção

humana foi muito lento e, tanto era assim, que a aceleração na sua utilização só ocorreu após

duas descobertas nos anos de 1932 e 1945. A primeira descoberta em 1932 foi feita por Ogino

e Knauss os quais, descrevendo as diferentes fases do ciclo menstrual, conseguiram

determinar com precisão o período fecundo da mulher e a segunda descoberta em 1945 foi

realizada pelo biologista Jean Rostand, o qual percebeu que os espermatozoides submetidos

ao frio, através do emprego do glicerol, poderiam se conservar por muito tempo sem alterar a

sua viabilidade. (LEITE, 1995, p. 31-32).

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Após essas descobertas, a fecundação artificial homóloga e heteróloga passaram a ser

mais utilizadas tornando-se uma medida eficaz para tratar certas infertilidades que

impossibilitavam muitos casais de conseguirem naturalmente a gravidez. Trata-se de uma

forma alternativa à procriação carnal, sendo o último recurso para superar os casos de

esterilidade, visto que os centros de procriação artificial somente devem submeter um casal ao

processo de inseminação artificial quando não houver outro tratamento capaz de contornar a

infertilidade. Isso se justifica uma vez que a finalidade da reprodução medicamente assistida é

dar filhos artificialmente ao casal estéril. Assim, a criação de seres humanos fora desse

objetivo conduziria na coisificação da criança, como um produto encomendado e depois

entregue.

Quanto ao reconhecimento à mulher solteira do direito de ser inseminada

artificialmente para satisfazer o desejo de ter um filho, Leite afirma que se a finalidade da

procriação artificial é atenuar a esterilidade do casal, a admissão de mulheres solteiras

alteraria a concepção da fecundação artificial. Nesse sentido, tal aceitação redundaria em

reconhecer à inseminação artificial como um modo de conveniência deixado à liberdade de

cada um, ou seja, como um recurso que deita suas raízes no puro egoísmo. A procriação

artificial é, antes de tudo, um remédio à esterilidade do casal. (LEITE, 1995, p. 152-153).

A aceitação do pedido de uma mulher solteira para ser artificialmente inseminada

possibilitaria o nascimento de um órfão de pai, trazendo maior desvantagem para a criança,

pois o parentesco ficaria mutilado na linha paternal. Entretanto, a família monoparental que

resultaria da fecundação artificial, decorrente da solicitação de uma pessoa solteira,

atualmente é uma realidade jurídica merecedora do reconhecimento e proteção estatal,

conforme pode ser verificado no parágrafo 4º do artigo 226 da Constituição de 1988. Nesse

contexto, embora existam argumentos que justifiquem a inadmissibilidade da procriação

artificial por mulheres solteiras, o que realmente deve ser levado em consideração é o desejo

de ter filhos e de fundar uma família.

Na inseminação homóloga o material genético pertence ao próprio casal, sendo

utilizada naqueles casos em que o par é fértil, porém não consegue procriar por meio do

contato sexual. Na inseminação heteróloga o material genético é de outrem, ou seja, de um

doador fértil, sendo utilizada naqueles casos de esterilidade do marido. Com o avanço dessas

técnicas de procriação artificial, o nexo existente entre sexo e reprodução foi afastado. (DIAS,

2007, p. 196).

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Ambas as técnicas de reprodução assistida são recursos que auxiliam na superação da

infertilidade, possibilitando a procriação de uma criança por outros meios independentes do

ato sexual. Sua utilização por casais que não conseguem fecundar através da procriação carnal

é uma realidade cada vez mais frequente. Nesse sentido, diante dos problemas de

infertilidade, os casais não deixam de recorrer à fecundação artificial, quer à homóloga, quer à

heteróloga.

Em relação à inseminação homóloga, são diversas as considerações que atuam na

decisão de um casal que recorre a essa técnica artificial de concepção humana. Tais

considerações tanto podem ter caráter eminentemente médico quanto eminentemente pessoal.

As anomalias que atingem os espermatozoides anulando a possibilidade de fecundação é um

exemplo de consideração com caráter eminentemente médico. Por outro lado, o prazo fixado

pelo casal para atingir naturalmente a sua aspiração legítima de ter filhos através da

procriação carnal e a sua importância para a vida dos parceiros é um exemplo de consideração

com caráter eminentemente pessoal.

A inseminação heteróloga deve ser considerada como última medida diante da impotência do terapeuta de tratar certas infertilidades maiores. Trata-se, sempre vale lembrar, de um tratamento paliativo que 50% dos pacientes rejeitam por razões culturais, religiosas ou mesmo psicológicas. (LEITE, 1995, p. 39).

A procriação artificial heteróloga somente deve ser empregada após frustradas as

diferentes tentativas de tratamentos médicos para combater a esterilidade do casal. Esta

também é a posição do Conselho Federal de Medicina ao dispor nos Princípios Gerais da

Resolução nº 1.957 de 2010 que “as técnicas de reprodução assistida (RA) têm o papel de

auxiliar na resolução dos problemas de reprodução humana, facilitando o processo de

procriação quando outras terapêuticas tenham se revelado ineficazes ou consideradas

inapropriadas.” (2011, p. 2). Sendo assim, uma vez que a inseminação heteróloga utiliza o

material genético de terceiro, tem sido alvo de muitas controvérsias e de rejeição por grande

parte dos parceiros responsáveis pela infertilidade.

Na fecundação artificial heteróloga, a utilização do material genético de uma terceira

pessoa é decisiva. Assim, alguns centros de procriação artificial estabelecem uma série de

exigências para a aceitação do doador de esperma, tais como, idade mínima, ser casado, já ter

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sido pai de pelo menos uma criança, consentimento da esposa e comprovação da fertilidade.

Entretanto, existem centros que não exigem nenhuma condição para o doador e outros que

somente exigem que ele seja solteiro.

A Resolução nº 1.957 de 2010 do Conselho Federal de Medicina determina que “a

escolha dos doadores é de responsabilidade da unidade. Dentro do possível deverá garantir

que o doador tenha a maior semelhança fenotípica e imunológica e a máxima possibilidade de

compatibilidade com a receptora.” (2011, p. 4). Tal resolução também estabelece que

“obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e

embriões, bem como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores,

por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para os médicos, resguardando-

se a identidade civil do doador.” (2011, p. 3).

Conforme o disposto na referida resolução, a escolha dos doadores de esperma é

realizada pelos centros de procriação artificial e, na medida do possível, tais unidades devem

procurar doadores que possuam características físicas semelhantes ou próximas daquelas

apresentadas pelo parceiro do casal solicitante. Depois de escolhido o doador pelo centro, a

sua identidade e as suas coordenadas não serão divulgadas ao casal solicitante, ficando sob

sigilo do responsável pela unidade. Na realidade, nem mesmo a identidade da receptora do

material genético poderá ser conhecida pelo doador.

O anonimato com relação ao genitor biológico serve tão somente para protegê-lo, na

medida em que impede qualquer tentativa de pesquisa sobre laços de filiação. Embora na

fecundação artificial heteróloga a contribuição do doador seja bastante significativa, o pai

legal deve ser o marido da mulher. Assim, não é possível considerar pai da criança nascida

por procriação artificial o fornecedor de esperma, devendo-se reconhecer tal condição àquele

que empenha a sua vida para educar e criar o filho como se a ele pertencesse biologicamente.

(LEITE, 1995, p. 151).

Uma vez que a inseminação heteróloga utiliza o material genético de um doador,

argumentos são levantados contra essa técnica artificial de concepção humana. Tais

argumentos relacionam-se a intervenção de um terceiro na união física exclusiva do casal e a

relação existente entre a receptora e o doador entendida como adultério. Essas considerações

são mal colocadas, pois a fecundação heteróloga independe do relacionamento sexual entre a

mãe e o doador e não há qualquer exterioridade ao casamento, na medida em que o marido

consente com a reprodução assistida realizada com o material genético de um terceiro,

demostrando que a decisão de recorrer à técnica resultou do comum acordo entre o casal.

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O maior argumento invocado contra a inseminação homóloga continua sendo a ideia de que ela configura um desvio injustificado do processo natural do ato sexual. A alegação, entretanto, não procede, nem tem condições de vingar, na medida em que considerarmos a inseminação homóloga como uma forma de tratamento aceitável, decorrente de uma indicação clínica. Quando existe a intenção de procriação, que ocorre em uma relação estável, a intervenção é aceitável. (LEITE, 1995, p. 154).

Outro argumento levantado contra a procriação artificial é a inadmissibilidade do

recurso à técnica por casais inférteis enquanto existirem crianças aptas à adoção. Essa objeção

também é mal colocada, pois a adoção é uma questão social, afeta a responsabilidade do

poder público e, portanto, não está relacionada com a fecundação artificial a qual diz respeito

à decisão do marido e da mulher sobre o desejo comum de ter um filho.

Diante do exposto, embora existam manifestações contrárias à fecundação artificial,

esta é considerada, antes de tudo, como uma forma médica de ajuda aos casais que sofrem

com problemas de esterilidade. Assim, além da inseminação homóloga e heteróloga, há

também a técnica conceptiva post mortem, que emprega sêmen ou esperma congelado após a

morte do doador.

A inseminação artificial post mortem, também chamada intermediária, porque não é homologa nem heteróloga, é a inseminação de uma mulher realizada com o esperma de seu marido, após a morte deste. É uma nova possibilidade de reprodução factível a partir do congelamento do esperma. (LEITE, 1995, p. 154).

A fecundação póstuma é uma espécie de inseminação artificial homóloga, pois utiliza

o material genético do próprio casal, com a particularidade de que a mulher é inseminada com

os gametas do seu finado marido ou companheiro. Tal método artificial de concepção humana

vem sendo utilizado principalmente naqueles casos em que a viúva ou a companheira deseja

gerar um filho do marido ou companheiro já falecido.

A procriação artificial realizada após a morte do genitor ocorre em casos bem

específicos. Nesse sentido, um homem atingido por uma doença grave como câncer nos

testículos pode, antes da instauração do tratamento médico, conservar o seu material genético

em um banco de esperma a fim de preservar a sua fertilidade. A possibilidade de recolher o

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material genético existe uma vez que o tratamento da doença, geralmente de longa duração,

dificilmente consegue obter a cura e se acompanha de esterilidade. Assim, como o homem

que congelou o seu esperma pode vir a falecer, faculta-se a viúva reclamar a devolução do

material genético para empregá-lo na inseminação artificial homóloga. (LEITE, 1995, p. 154-

155).

Um pedido desta natureza pode ser recusado, pois, ainda que o inciso III do artigo

1.597 do Código Civil admita a fecundação póstuma na medida em que atribui presunção de

filiação a prole concebida nessa especial condição, a devolução ou não do material coletado

deve levar em consideração várias questões, tais como, a real vontade do genitor antes da sua

morte, a família monoparental que resultaria da inseminação póstuma, a herança dos herdeiros

já existentes ou já concebidos e, principalmente, o direito sucessório do potencial

descendente.

Por outro lado, uma vez que no Brasil admite-se o uso da técnica conceptiva post

mortem, pode advir resposta positiva quanto a exigência de uma mulher para que lhe seja

entregue o sêmen armazenado pela clínica de reprodução assistida a fim de inseminar-se com

o esperma do marido ou companheiro já falecido. É em torno dessa possibilidade que surge a

problemática da capacidade sucessória da criança concebida nessas especiais circunstâncias.

2.2 A diferença entre capacidade civil e capacidade sucessória

A possibilidade de gerar um filho através da fecundação artificial post mortem traz a

tona uma grande discussão em torno da capacidade sucessória da criança concebida nessa

condição. Contudo, uma vez que o ordenamento jurídico brasileiro não possui lei específica

regulando essa matéria, há muitas dúvidas no que diz respeito ao direito sucessório da criança

gerada por inseminação realizada após a morte do genitor. Antes de tratar essa problemática,

buscando possíveis respostas na legislação brasileira, é preciso distinguir a capacidade

sucessória da capacidade de fato.

A capacidade civil é a aptidão que tem uma pessoa para exercer, por si, os atos da vida civil; é o poder de ação no mundo jurídico. A legitimação ou capacidade sucessória é a aptidão específica da pessoa para receber os bens deixados pelo de

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cujus, ou melhor, é a qualidade virtual de suceder na herança deixada pelo de cujus. (DINIZ, 2010, p. 45).

Conforme a autora acima citada, a capacidade sucessória não se confunde com a

capacidade civil de modo que uma não extingue a outra. Entretanto, há situações em que uma

pessoa pode ter capacidade para exercer os direitos sucessórios, mas ser incapaz para praticar,

por si própria, os atos da vida civil. Igualmente, uma pessoa pode não ter capacidade para

suceder no patrimônio hereditário deixado pelo falecido, mas gozar de plena capacidade civil.

Diniz afirma que o indigno enquadra-se neste último caso, pois, embora não sofra diminuição

na sua capacidade para exercer os atos da vida civil, é incapaz de suceder na herança deixada

pela pessoa em relação à qual é considerado indigno. (DINIZ, 2010, p. 45).

A indignidade é uma pena civil que a lei impõe ao herdeiro acusado de atos praticados

contra a vida e a honra do de cujus ou de seus familiares mais próximos ou contra a liberdade

do autor da herança. Os casos de indignidade estão taxativamente cominados no artigo 1.814

do Código Civil, o qual prevê que “são excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários: I-

que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste,

contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou

descendente; II- que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou

incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro; III- que, por

violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor

livremente de seus bens por ato de última vontade.” (2008, p. 237). Não são admitidas outras

situações de indignidade senão essas enumeradas no referido dispositivo.

O caput do artigo 1.815 da referida legislação dispõe que “a exclusão do herdeiro ou

legatário, em qualquer desses casos de indignidade, será declarada por sentença.” (2008, p.

237). E, prevê no parágrafo único do dispositivo sob comento que “o direito de demandar a

exclusão do herdeiro ou legatário extingue-se em quatro anos, contados da abertura da

sucessão.” (2008, p. 237). Isso significa que o afastamento do herdeiro indigno da sucessão só

ocorre mediante procedimento judicial intentado pelos legítimos interessados, dentro do prazo

de quatro anos contados a partir do falecimento do de cujus.

A lei civil brasileira admite no artigo 1.818 o perdão do herdeiro faltoso pelo autor da

sucessão ao dispor que “aquele que incorreu em atos que determinem a exclusão da herança

será admitido a suceder, se o ofendido o tiver expressamente reabilitado em testamento, ou

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em outro ato autêntico.” (2008, p. 237). Prevê o parágrafo único do referido dispositivo que

“não havendo reabilitação expressa, o indigno contemplado em testamento, do ofendido,

quando o testador, ao testar, já conhecia a causa da indignidade, pode suceder no limite da

disposição testamentária.” (2008, p. 237).

O perdão do indigno pelo de cujus deve ser expresso, pois não existe tácito ou

presumido, e deve ser concedido por testamento ou outro ato autêntico, como a escritura

pública. A inclusão do herdeiro culpado no testamento do ofendido, quando este já tinha

conhecimento do ato criminoso ou reprovável, corresponde a perdão e reabilitação de maneira

que o indigno recebe a sua deixa testamentária. (MONTEIRO, 2009, p. 68).

A indignidade do herdeiro resulta, portanto, na sua exclusão da sucessão e,

consequentemente, na destituição do direito hereditário. Isso ocorre, pois a lei presume que o

de cujus gostaria de privar da herança o sucessor que praticou contra ele ou contra os seus

familiares mais próximos atos delituosos ou reprováveis. Quanto aos efeitos da indignidade,

Monteiro afirma que:

O reconhecimento judicial da indignidade produz os seguintes efeitos: a) o excluído da sucessão é obrigado a restituir os frutos e rendimentos que dos bens da herança houver percebido (art. 1.817, parágrafo único); b) são pessoais os efeitos da exclusão. Os descendentes do herdeiro excluído sucedem, como se ele morto fosse antes da abertura da sucessão (art. 1.816); c) o excluído da sucessão não terá direito ao usufruto ou à administração dos bens, que a seus sucessores couberam na herança (art. 1.816), nem à sucessão eventual desses bens (art. 1.816, parágrafo único); d) são válidas as alienações de bens hereditários, e os atos de administração legalmente praticados pelo herdeiro excluído, antes da sentença de exclusão; mas aos co-herdeiros subsiste, quando prejudicados, o direito de demandar-lhe perdas e danos (art. 1.817); e) o herdeiro excluído terá o direito a reclamar indenização por quaisquer despesas feitas com a conservação dos bens hereditários, e a cobrar os créditos que lhe assistam contra a herança (art. 1.817, parágrafo único). (MONTEIRO, 2009, p. 68-69).

Uma vez declarada por sentença a incapacidade sucessória do herdeiro indigno, este

tem o dever de devolver os frutos e rendimentos que percebeu do patrimônio hereditário. Isso

ocorre, pois o efeito da decisão declaratória da indignidade retroage a data da abertura da

sucessão, de modo que a posse que o herdeiro culpado exerceu sobre a herança é considerada

de má-fé a partir da morte do de cujus. Os efeitos da indignidade só atingem o herdeiro

faltoso, de maneira que as consequências dos seus atos não se estendem aos seus

descendentes, os quais herdam o acervo hereditário como se o indigno fosse morto antes da

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abertura da sucessão. É natural que a lei proíba o herdeiro excluído de usufruir e administrar

os bens recebidos por seus descendentes. E, esses mesmos bens não são recebidos pelo

indigno no caso de falecimento de um dos seus descendentes aquinhoados. Embora o

reconhecimento judicial da indignidade retroaja à data da abertura da sucessão, as alienações

de bens hereditários e os atos de administração praticados pelo herdeiro excluído antes da

sentença de exclusão serão válidos em decorrência do direito de terceiros, aos quais se

presume estarem de boa-fé nas transações efetuadas com o indigno. Entretanto, uma vez

comprovada a má-fé do terceiro, serão ineficazes as operações de que tenha se envolvido.

Quanto ao direito de indenização pelas despesas feitas, Monteiro afirma que “trata-se de

aplicação do conhecido princípio segundo o qual a ninguém é lícito se locupletar à custa

alheia, embora em detrimento de possuidor de má-fé, como o indigno.” (2009, p. 69-70). Não

obstante tais efeitos da decretação judicial de exclusão, a principal consequência da sentença

que declara a indignidade é, sem dúvida, a destituição do direito sucessório.

Para apurar a capacidade sucessória é preciso observar a ocorrência dos seguintes pressupostos: 1º) Morte do de cujus, porque só nesse momento é que a propriedade e a posse da herança se transmitem aos herdeiros legítimos e testamentários. 2º) Sobrevivência do sucessor, ainda que por fração ínfima de tempo, dado que a herança não se transmite ao nada. 3º) O herdeiro precisa pertencer à espécie humana, dado que só o homem e as pessoas jurídicas por causa dos homens podem adquirir causa mortis. 4º) Título ou fundamento jurídico do direito do herdeiro, pois para herdar deve atender à convocação do testador ou da lei. (DINIZ, 2010, p. 46-49).

O primeiro pressuposto expressa o princípio da saisine previsto no artigo 1.784 da

codificação civil, o qual dispõe que “aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo,

aos herdeiros legítimos e testamentários.” (2008, p. 235). Nesse contexto, somente a partir da

morte do de cujus que a propriedade e a posse do patrimônio hereditário transferem-se aos

seus sucessores. Tal transmissão ocorre de pleno direito e tudo se transfere como estava no

patrimônio do falecido, ou seja, os seus bens e as suas obrigações.

O segundo requisito determina a existência de sucessor à época da morte do autor da

herança, pois o artigo 1.798 da legislação civil estabelece que só as pessoas vivas ou já

concebidas no momento do falecimento do de cujus poderão suceder na herança deixada por

ele. Assim, se o sucessor morrer antes do autor da herança perderá a sua capacidade

sucessória. Por outro lado, se o herdeiro for concebido após o falecimento do autor da

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sucessão mediante inseminação artificial post mortem, o reconhecimento ou não da sua

capacidade sucessória será tratado nos próximos tópicos.

O terceiro pressuposto revela que a herança só pode ser transferida para pessoas físicas

e jurídicas, visto que apenas estas podem ser sujeitos de direito. Nesse sentido, animais ou

seres inanimados não possuem capacidade para adquirir o patrimônio hereditário. Não

representa violação a esse preceito conceder a herança ou o legado a uma pessoa com a

obrigação de cuidar de determinada coisa, pois nesse caso o herdeiro instituído é um ser

humano e os cuidados com o bem ou animal são encargos que lhe foram impostos como

condição para suceder no acervo hereditário. (DINIZ, 2010, p. 49).

O quarto e último requisito significa que só podem herdar aquelas pessoas previstas na

lei como sucessoras do falecido e as pessoas por ele indicadas no testamento. Segundo Leite

(2004, p. 37-38), a sucessão que resulta da lei é denominada de sucessão legítima e a que

resulta da vontade do de cujus, manifestada no testamento, é chamada de sucessão

testamentária. Desse modo, as pessoas não expressas na lei ou no testamento não herdam, pois

lhe falta título ou fundamento jurídico do direito do herdeiro.

Em relação à capacidade para suceder dispõe o artigo 1.798 do Código Civil que

“legitima-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da

sucessão.” (2008, p. 236). Ou seja, só as pessoas vivas ou já concebidas na ocasião da morte

do falecido possuem capacidade para receber o patrimônio hereditário deixado por ele. Assim,

da interpretação extraída do referido dispositivo conclui-se que só os nascidos e nascituros

podem ser sucessores.

Embora o nascimento com vida seja o marco inicial da personalidade jurídica, são

respeitados os direitos sucessórios do nascituro, desde a sua concepção, pois desde esse

momento já começa a formação do novo ser. Nesse contexto, os nascituros podem suceder

tanto na sucessão legítima quanto na testamentária, porém a eficácia da sua vocação

hereditária ficará dependente do seu nascimento. Dessa forma, no que se refere aos seus

direitos e interesses o nascituro é considerado como nascido. (GONÇALVES, 2008, p. 51).

Nascituros são as pessoas já concebidas, mas que ainda se encontram dentro do ventre

da mãe. Somente adquirem personalidade jurídica e capacidade sucessória a partir do

momento do nascimento com vida. Entretanto, se o nascituro vier a morrer, não lhe será

conferida personalidade, bem como não haverá aquisição de direitos. “Nesse caso, a herança

ou quota hereditária será devolvida aos herdeiros legítimos do de cujus, ou ao substituto

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testamentário, se tiver sido indicado, retroagindo a devolução a data da abertura da sucessão.”

(GONÇALVES, 2008, p. 52).

Tendo em vista que o artigo 1.798 dispõe que só os nascidos e os nascituros possuem

legitimidade para suceder, isso significa que a criança gerada por fecundação artificial post

mortem não herdará. Por outro lado, considerando o princípio da isonomia na filiação,

previsto no artigo 227, parágrafo 6º, da Constituição de 1988, não se pode ignorar o direito

sucessório da prole concebida nessa especial circunstância. Nesse sentido, verifica-se uma

divergência entre as referidas normas, de modo que é necessário identificar, a partir da análise

dos argumentos invocados em defesa de cada uma, qual deve prevalecer frente à capacidade

sucessória do filho gerado por inseminação póstuma.

2.3 A divergência entre o artigo 1.798 do Código Civil e o princípio da igualdade entre os filhos

Segundo o artigo 1.798 da codificação civil, podem ser sucessores do de cujus os

indivíduos já nascidos ou, pelo menos, já concebidos no exato momento da morte do autor da

herança. Da interpretação literal extraída do dispositivo, estão excluídos do patrimônio

hereditário os filhos concebidos por procriação artificial realizada após a morte do genitor,

visto que não eram concebidos e nem mesmo nascidos no momento da abertura da sucessão.

Além do referido dispositivo, há outros argumentos que defendem a impossibilidade

da criança gerada por técnica conceptiva post mortem herdar. Tais argumentos relacionam-se

a circunstância do filho concebido nessa condição prejudicar ou excluir o direito dos outros

herdeiros já existentes ou já concebidos no momento da abertura da sucessão. A existência de

um filho reconhecido judicialmente após a morte do genitor modificaria substancialmente a

ordem de vocação hereditária.

Se o falecido não tinha filhos, deixando somente cônjuge sobrevivente e ascendentes do primeiro grau, pai e mãe vivos, a herança seria partida em três cotas iguais, nos termos dos artigos 1.836 e 1.837 do Código Civil, no entanto havendo ação de investigação de paternidade post mortem julgada procedente, restariam excluídos da sucessão os ascendentes, enquanto o cônjuge, a depender do regime de bens (cf. art. 1.829, I, do CC) poderia ou não concorrer com o descendente reconhecido judicialmente. (ALBUQUERQUE FILHO, 2010, p. 6).

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Em se tratando da fecundação artificial post mortem provocaria a necessidade de o

ordenamento sucessório levar em consideração os direitos e os interesses dos potenciais

descendentes que poderiam vir a nascer após a morte do autor da herança. Segundo Leite, a

ordem jurídica não teria como prever tal situação de eventualidade e esta nem é a sua

finalidade. Por isso, deveriam ser elaboradas disposições legislativas no sentido de não

reconhecer capacidade sucessória à criança concebida por técnica conceptiva humana

realizada após a morte do genitor. (LEITE, 1995, p. 155).

Além do que, há outro entendimento no sentido de que o filho concebido após o

falecimento do genitor, através de fecundação artificial homóloga, teria possíveis transtornos

psicológicos na medida em que não seria criado em uma estrutura familiar formada por ambos

os pais. O desejo da mulher de procriar para além da morte do seu marido ou companheiro

resultaria a formação da família monoparental, constituída somente pela genitora e a sua

prole. Em tal entidade familiar o filho viveria apenas com a mãe, sem a presença necessária

do pai.

Ainda que a família monoparental seja reconhecida como entidade familiar pela

Constituição de 1988, não se poderia atribuir à mulher o direito de fazer nascer um órfão de

pai. Nesse contexto, a monoparentalidade resultante da inseminação póstuma traz maior

desvantagem para a criança, na medida em que o seu parentesco ficaria reduzido a uma só

linha. Leite também considera desaconselhável a adoção da técnica conceptiva post mortem,

ao afirmar que essa provoca graves perturbações psicológicas não só em relação à criança,

mas também em relação à mãe. De acordo com o autor, é possível que a viúva tome a

iniciativa de fazer nascer uma criança tão somente para preencher o vazio deixado pelo seu

marido. Além disso, a viuvez e a sensação de solidão vivida pela mulher podem prejudicar o

desenvolvimento psico-afetivo da prole. (LEITE, 1995, p. 155).

Também há o entendimento de que o filho gerado por reprodução medicamente

assistida post mortem só estaria habilitado para receber a herança se a utilização do material

genético pela viúva ou companheira, para empregá-lo na inseminação homóloga, tivesse sido

expressamente permitido pelo autor da sucessão antes de morrer. Nesse sentido, o Conselho

Federal de Medicina estabelece na Resolução nº 1.957 de 2010 que “não constitui ilícito ético

a reprodução assistida post mortem desde que haja autorização prévia específica do (a)

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falecido (a) para o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação

vigente.” (2011, p. 5).

A resolução também prevê que “no momento da criopreservação, os cônjuges ou

companheiros devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos

pré-embriões criopreservados em caso de divórcio, doenças graves ou falecimento de um

deles ou de ambos, e quando desejam doá-los.” (2010, p. 4). Assim, a criança concebida

através da procriação artificial realizada após a morte do genitor somente terá direito a

herança se existir autorização prévia e expressa do de cujus quanto ao uso do seu material

germinativo para após o seu falecimento.

O consentimento expresso do autor da sucessão quanto à utilização do seu material

fecundante para após a sua morte deve ser manifestado em vida, através de ato autêntico,

documento escrito ou testamento e, é imprescindível à legitimação e a legalização da técnica

conceptiva post mortem fazendo com que o potencial descendente seja inserido no âmbito do

direito sucessório. Entretanto, argumentos são invocados no sentido de que a simples morte

do de cujus atuaria como causa revogadora do consentimento prestado quanto ao uso do

material preservado.

Embora exista essa objeção defendendo a ineficácia da autorização prévia e expressa

do autor da herança quando do advento da sua morte, uma vez que a intimidade sexual do

casal é comum a ambos, a decisão de procriar mediante fecundação artificial depende do

comum acordo entre os parceiros. Nesse contexto, em princípio, não se poderia reconhecer

direito à herança ao filho concebido post mortem, se o autor da sucessão não permitiu ou

simplesmente omitiu quanto à utilização do seu material genético para após o seu falecimento.

Entretanto, o ato contraditório, como testar em favor do potencial filho, revoga a negativa ou

o silêncio anterior fazendo com que o concebido após a morte do pai possa reclamar a sua

parte no patrimônio hereditário.

O inciso III do artigo 1.597 da legislação civil estabelece presunção de paternidade ao

dispor que “presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos havidos por

fecundação artificial homóloga mesmo que falecido o marido.” (2008, p. 227). Tal dispositivo

atribui o direito à presunção de filiação a criança concebida por inseminação post mortem, de

modo que o pai dessa prole será o marido da mãe. Entretanto, ainda que o artigo sob comento

seja considerado uma cláusula aberta para a legitimação do direito sucessório da criança

gerada por fecundação póstuma, na medida em que a considera filha do marido falecido, a

utilização dessa técnica médica deve ser expressamente consentida por este. Caso contrário, a

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prole concebida pelo método conceptivo post mortem terá direito a presunção de filiação,

porém não será inserida no âmbito do direito sucessório.

Embora o inciso II do artigo 1.597 expresse que os nascidos até trezentos dias

subsequentes à dissolução da sociedade conjugal pela morte presumem-se filhos do casal, a

fecundação póstuma pode ocorrer em período posterior a esse, persistindo a presunção de

paternidade, conforme prevê o inciso III do mesmo dispositivo. Cumpre referir, ainda, que

ambos os incisos do artigo 1.597 aplicam-se a união estável, considerada como entidade

familiar pela Magna Carta vigente e devendo ser equiparada ao casamento.

No que se refere aos embriões excedentários, ou seja, aqueles gerados por técnicas

artificiais de concepção humana, mas que ainda não foram introduzidos no ventre materno,

Albuquerque Filho afirma que no caso da inseminação póstuma ainda sequer há embrião no

momento do falecimento do genitor, de modo que essa situação não envolve a problemática

dos embriões excedentários, principalmente quanto a presunção estabelecida no inciso IV do

artigo 1.597 da legislação civil ao dispor que presumem-se filhos do casal os “havidos, a

qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção

artificial homóloga.” (2008, p. 227). (ALBUQUERQUE FILHO, 2010, p. 3).

Não obstante essa consideração, devem ser atribuídos os mesmos direitos e

qualificações tanto aos filhos provenientes de embriões excedentários, gerados por reprodução

assistida homóloga, quanto aos filhos havidos por técnica conceptiva post mortem. O

princípio da igualdade entre os filhos, previsto no artigo 227, parágrafo 6º, da Constituição de

1988, aplica-se não só aos filhos concebidos dentro do matrimônio ou fora dele, por adoção,

ou por quaisquer outras formas de relacionamento afetivo, no qual são criados e educados por

uma pessoa como se a ela pertencesse biologicamente, mas também aos filhos gerados por

procriação artificial, independente da forma em que esta é realizada.

A nova ordem constitucional não previu nenhuma exceção legal à proibição do

tratamento discriminatório entre os filhos. Assim, a elaboração de disposições legislativas no

sentido de impedir que o filho concebido por inseminação artificial póstuma seja descendente

de primeiro grau do falecido e, consequentemente, herdeiro do genitor pré-morto redundaria

em ato atentatório à igualdade de condições com os demais filhos do de cujus. Ademais, o

inciso XXX do artigo 5º da Constituição de 1988 prevê o direito a herança dentro do rol dos

direitos e garantias fundamentais. Diante do exposto, não cabe ao legislador

infraconstitucional criar norma ou regra que implique a extinção de direitos e garantias do

filho gerado por fecundação artificial realizada após a morte do genitor.

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A possibilidade da utilização da técnica conceptiva post mortem e, consequentemente,

do reconhecimento do direito sucessório da criança concebida nessa especial condição é ainda

maior quando o casal ou companheiros planejaram ter um filho e, por circunstâncias

imprevisíveis, um deles acabou falecendo. Esse projeto manifestado quando vivos ambos os

cônjuges ou companheiros, não pode deixar de ser executado após a morte prematura e

inesperada de um deles, pois o desejo de procriar não se extingue com a morte.

(ALBUQUERQUE FILHO, 2010, p. 9).

O desejo quanto à realização de um projeto parental pode ter sido manifestado em vida

do casal, mas, por circunstâncias alheias a vontade dos parceiros, somente venha a se

concretizar após a morte do marido ou companheiro. Assim, não se pode ignorar a

possibilidade de a mulher concretizar um planejamento familiar iniciado em vida, dos

cônjuges ou companheiros, e que atende perfeitamente ao melhor interesse da criança, na

medida em que lhe seja atribuído iguais direitos de família e de sucessões em comparação

com os demais filhos do gerador pré-morto.

Em atenção ao princípio da igualdade na filiação, não será o fato de o genitor ter

falecido antes da concepção do filho que irá afastar a sua capacidade sucessória. Tal princípio

está acima de qualquer lei ordinária, devendo sobre ela prevalecer. Nesse sentido, o artigo

227, parágrafo 6º, da Magna Carta vigente deve ser aplicado em face do direito sucessório da

criança gerada por técnica conceptiva post mortem, de modo que o artigo 1.798 do Código

Civil deve ser interpretado em conformidade com o referido dispositivo constitucional a fim

de abranger a legitimidade sucessória do concebido após a morte do pai.

Diante de tudo o que foi exposto, é evidente a divergência entre o artigo da

codificação civil e o dispositivo constitucional que consagra o princípio da igualdade entre os

filhos. A possibilidade de a viúva ou companheira poder conceber um filho através da

utilização do material genético preservado do seu finado marido ou companheiro, faz com que

surja uma problemática em torno da vontade de procriar artificialmente para além da morte e

dos efeitos jurídicos da fecundação póstuma no âmbito do direito sucessório.

Ainda que o inciso III do artigo 1.597 da legislação civil admita a inseminação post

mortem, na medida em que atribui presunção de filiação a prole concebida nessa especial

condição, não há no ordenamento jurídico brasileiro lei específica que regule a vocação

hereditária da criança gerada por fecundação póstuma. Essa temática está aberta em nosso

direito e sujeita a duas interpretações, as quais estão relacionadas ao disposto no artigo 1.798

da codificação civil, que não reconhece o direito sucessório da prole havida por técnica

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conceptiva post mortem, pois não é pessoa concebida e muito menos nascida à época da morte

do autor da sucessão, e ao expresso no artigo 227, parágrafo 6º, da Constituição de 1988 que,

em atenção ao princípio da igualdade na filiação, reconhece direito à herança ao filho gerado

nessas especiais condições. Diante de tal divergência, torna-se necessário definir qual dos dois

dispositivos deve ser aplicado quanto à capacidade sucessória do concebido por procriação

artificial realizada após a morte do genitor.

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3 O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO FRENTE A CAPACIDADE SUCESSÓRIA DA CRIANÇA GERADA POR INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL OCORRIDA APÓS A MORTE DO GENITOR

No Brasil, admite-se a inseminação artificial post mortem na medida em que o inciso

III do artigo 1.597 do Código Civil atribui presunção de filiação a prole concebida nessa

especial condição. Assim, como o doador que preservou o seu material genético para uso após

a sua morte será considerado pai da criança gerada por fecundação póstuma, o referido

dispositivo configura uma cláusula aberta para legitimação do direito sucessório do filho

concebido por essa técnica médica.

3.1 As circunstâncias para admissão da legitimidade sucessória da prole concebida por fecundação póstuma

Uma vez que o artigo 1.597, inciso III, da codificação civil atribui presunção de

filiação a prole concebida por reprodução assistida homóloga ocorrida mesmo que após o

falecimento do marido da mãe, pode-se dizer que em tal dispositivo há uma autorização

implícita quanto à utilização da inseminação póstuma. O artigo sob comento também constitui

uma cláusula aberta que recepciona a licitude da técnica conceptiva post mortem entre

companheiros, parceiros homo-afetivos e terceiros que constituem uma relação informal, pois

a presunção de paternidade atribuída pelo inciso III do artigo 1.597 da legislação civil não se

dá exclusivamente em relação ao marido da genitora, mas sim em relação ao doador dos

gametas, ou seja, a pessoa que preservou o seu material genético para uso depois da sua

morte.

Na França já se permitiu a procriação artificial realizada após o falecimento do

genitor, independentemente de permissivo legal. Nesse sentido, Albuquerque Filho afirma

que, em agosto de 1981, Corine Richard e Alain Parpallaiz apaixonaram-se, passando a

conviverem. Poucas semanas depois da união, Allain começou a ter sintomas de câncer nos

testículos e, antes de se submeter à quimioterapia a qual o ameaçava com a esterilidade, optou

em depositar o seu esperma em uma clínica de conservação, para usá-lo futuramente. Corine e

Allain resolveram se casar, porém dois dias depois da celebração o marido faleceu. Passaram-

se alguns meses e a viúva foi até a clínica a fim de ser inseminada artificialmente com o

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sêmen do seu finado esposo, porém os responsáveis pela empresa negaram o pedido alegando

falta de previsão legal. Corine recorreu ao Tribunal de Crétil, na França e, ainda que neste

país não houvesse lei que autorizasse a fecundação póstuma, foi proferida decisão

condenando a empresa restituir o material genético reclamado, impondo também cláusula

penal por eventual demora. (ALBUQUERQUE FILHO, 2010, p. 1).

Uma vez que não existe um direito comum a todos, pois as normas variam de acordo

com os costumes, tradições, religiões, raças e condições econômicas de cada país, a utilização

do direito comparado tem grande importância na medida em que possibilita o operador fazer

uma pesquisa jurídica comparativa entre o direito estrangeiro e o nacional, obtendo novas

perspectivas e argumentos que o simples conhecimento do seu próprio direito não lhe

permitiria.

O papel formador do direito comparado não mais precisa ser revelado. Ele possibilita ao estudante novas aberturas, fazendo-lhe conhecer outras regras e sistemas diferentes dos seus. Ele permite ao jurista um melhor conhecimento e uma melhor compreensão do seu direito, cujas as características particulares se evidenciam, muito mais, através de uma comparação com o estrangeiro. (ANCEL, 1980, p. 17).

O direito comparado existe desde a antiguidade e, tanto é assim, que a Lei das XII

Tábuas, a primeira legislação escrita em Roma, foi redigida como base na legislação

estrangeira, inclusive nas leis gregas. Mais tarde, outros sistemas jurídicos foram construídos

através dos ensinamentos tirados de outras legislações, tal como ocorreu com as leis

portuguesas as quais influenciaram visivelmente a criação do ordenamento jurídico brasileiro.

O direito comparado, em certas situações nas quais há dúvida quanto à norma que

deve ser aplicada no caso concreto, possibilita confrontar a ordem pública nacional com o

direito estrangeiro a fim de identificar situações semelhantes e analisar a decisão que foi

tomada. É o que ocorre quando a viúva ou companheira reclama a devolução do material

genético do de cujus para emprega-lo na inseminação homóloga e não há previsão legal

autorizando a realização da técnica conceptiva post mortem. Nesse caso, é possível recorrer ao

direito estrangeiro a fim de identificar se já foram proferidas decisões relativas à fecundação

póstuma. Nesse sentido, Albuquerque Filho cita mais uma situação na qual se permitiu a

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viúva gerar uma prole mediante procriação artificial realizada com o material fecundante do

seu finado esposo.

Há o registro de uma matéria veiculada no Diário de Notícias, na qual um oficial

falecido em Taiwan teve o seu esperma retirado, mais de dois dias depois da sua morte, para

que a noiva pudesse gerar um filho seu mediante inseminação artificial. Em um primeiro

momento, o Ministro da Defesa havia recusado o pedido da noiva, contudo, diante da pressão

popular, acabou cedendo. (ALBUQUERQUE FILHO, 2010, p. 2).

Diante do exposto, pode-se afirmar que outros países também já admitiram a

inseminação post mortem em determinados casos. Todavia, no Brasil a utilização da técnica

médica somente deve ser permitida se o falecido deixou consentimento prévio e expresso

quanto ao aproveitamento do seu material germinativo para uso depois da sua morte. Esta

também é a posição do Conselho Federal de Medicina ao estabelecer na Resolução nº 1.957

de 2010 que “não constitui ilícito ético a reprodução assistida post mortem desde que haja

autorização prévia específica do (a) falecido (a) para o uso do material biológico

criopreservado, de acordo com a legislação vigente.” (2011, p. 5). A resolução também prevê

que “no momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros devem expressar sua

vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados em

caso de divórcio, doenças graves ou falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam

doá-los.” (2010, p. 4).

A autorização prévia e expressa deixada pelo falecido quanto à utilização do seu

material genético para depois da sua morte atua como causa legalizadora da fecundação

póstuma. Entretanto, no dia 22 de junho de 2011, nasceu em Curitiba um bebê concebido após

a morte do pai, sem que este tivesse deixado consentimento expresso quanto ao

aproveitamento do seu material fecundante para uso após o seu falecimento. De acordo com a

notícia publicada pela Gazeta do Povo em 21 de junho de 2011, a professora Kátia Adriana

Lenerneier, de 39 anos de idade, deu luz a Luiza Roberta, gerada mediante reprodução

assistida homóloga ocorrida após a morte do genitor Roberto Jefferson, o qual foi atingido

por um câncer, cujo tratamento trazia o risco de 30% a 80% de deixá-lo estéril. Em virtude

disso, o casal decidiu conservar o esperma de Roberto, porém este não deixou autorização

expressa quanto ao uso do seu material genético para após o seu falecimento. Entretanto,

como a própria família de Roberto reconheceu que ele consentia com a inseminação post

mortem, Kátia conseguiu uma liminar da Décima Terceira Vara Cível da Comarca de Curitiba

para realizar o procedimento.

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Em casos particulares, tais como, quando a família do de cujus atesta que este, antes

de morrer, desejava constituir uma família com a viúva ou companheira, a prova testemunhal

pode ter o condão de substituir o consentimento expresso do genitor quanto à utilização do

seu material depositado para após o seu falecimento. Entretanto, é preciso ter muito cuidado

com a análise da referida prova, pois a mesma pode possibilitar à mulher, em conluio com um

parente próximo do falecido que reconheceu a permissão deste quanto à fecundação póstuma,

fazer nascer um filho, única e exclusivamente para ter acesso ao patrimônio hereditário

deixado pelo autor da sucessão, quando tal prole é considerada herdeira necessária deste.

A legitimidade sucessória da criança gerada por fecundação artificial realizada após a

morte do genitor é assunto controvertido no ordenamento jurídico brasileiro, de modo que há

dúvida se o concebido após a morte do pai tem ou não direito de suceder na herança deixada

por ele. Embora haja uma abertura no sistema jurídico brasileiro no sentido de permitir a

técnica conceptiva post mortem, na medida em que o inciso III do artigo 1.597 da codificação

civil atribui presunção de filiação a prole havida nessa especial condição, há autores que

entendem que mesmo existindo essa autorização implícita quanto ao uso da técnica médica,

não se pode reconhecer direito à herança ao concebido após a morte do autor da sucessão.

Leite afirma que a fecundação póstuma é uma prática fortemente desaconselhável,

pois poderia provocar vários problemas de herança e de sucessão na medida em que o direito

precisaria levar em consideração os potenciais descendentes que poderiam vir a nascer após a

morte do de cujus, sendo que esse não é o seu objetivo. Em virtude disso, o autor defende que

as crianças geradas mediante inseminação homóloga realizada após a morte do genitor, não

sejam consideradas para os fins da herança e sucessão deste último. (LEITE, 1995, p. 155).

Ainda, ao dispor que somente as pessoas nascidas ou já concebidas no momento do

falecimento do de cujus poderão suceder na herança deixada por ele, o artigo 1.798 do Código

Civil também não reconhece o direito sucessório da prole havida por reprodução assistida post

mortem, pois não é pessoa concebida e muito menos nascida à época da morte do autor da

herança.

Por outro lado, o inciso XXX do artigo 5º da Constituição de 1.988 prevê o direito a

herança no rol dos direitos e garantias fundamentais e o parágrafo 6º do artigo 227 da

Constituição Federal de 1988 estabelece o princípio da igualdade entre os filhos, o qual não

prevê nenhuma exceção legal à proibição do tratamento discriminatório entre esses. Nesse

contexto, a impossibilidade do reconhecimento do filho concebido por inseminação artificial

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póstuma como herdeiro do genitor pré-morto redundaria em ato atentatório à igualdade de

condições com os demais filhos do falecido.

Uma vez que o referido dispositivo constitucional não prevê nenhuma exceção ao

princípio da igualdade na filiação, o disposto no artigo 1.798 da codificação civil deve ser

interpretado em conformidade com esse princípio a fim de estender legitimidade sucessória

aos potenciais descendentes que poderiam vir a nascer após a morte do autor da sucessão.

Além disso, conforme referido anteriormente há uma abertura na legislação brasileira

no sentido de admitir a fecundação póstuma, na medida em que inciso III do artigo 1.597

estabelece que o pai da prole gerada nessa especial condição será o doador do material

genético. Assim, se a ordem jurídica abre para permitir a técnica conceptiva post mortem,

também deve abrir para garantir todos os direitos decorrentes da realização da técnica médica.

O dispositivo em comento constitui uma cláusula aberta para a legitimação do direito

sucessório da criança concebida por procriação artificial ocorrida após a morte do genitor,

somente podendo ser fechada em virtude de motivos que justifiquem a exclusão do direito

hereditário dessa prole, tal como, a negativa ou a ausência de autorização prévia e expressa do

falecido quanto à utilização do seu material genético para depois da sua morte. Conforme

posição do Conselho Federal de Medicina expressa na Resolução nº 1.957 de 2010, a

inseminação póstuma somente será lícita se existir permissão prévia e expressa deixada pelo

falecido quanto ao aproveitamento do seu material fecundante para uso depois da sua morte.

O filho gerado nessa condição será descendente de primeiro grau do genitor pré-morto e,

consequentemente, herdeiro necessário deste.

Por outro lado, a negativa ou a ausência de consentimento expresso do falecido quanto

à utilização do seu material germinativo para após o seu falecimento, torna ilícita a realização

da fecundação post mortem, de modo que a prole concebida nessa circunstância será

descendente de primeiro grau do genitor pré-morto, porém não terá o direito de suceder na

herança deixada por ele. Entretanto, a ilicitude na realização da fecundação póstuma permite a

prole prejudicada buscar a reparação dos danos que sofrer, através da propositura de ação

indenizatória em face da genitora e dos profissionais que a auxiliaram a procriar utilizando-se

o esperma do falecido.

A negativa ou a falta de autorização expressa do doador quanto ao aproveitamento do

seu material genético para uso depois da sua morte atua como causa excludente da

legitimidade sucessória do filho concebido por reprodução assistida post mortem. Assim

como no caso da sentença judicial que declara a exclusão do herdeiro indigno, em virtude de

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atos delituosos ou reprováveis praticados contra o de cujus ou contra os seus familiares mais

próximos, a negativa ou a ausência de consentimento expresso quanto ao uso do material

fecundante preservado, também resulta na destituição do direito hereditário da prole

concebida após a morte do genitor, não em razão de uma conduta praticada por aquela, mas

pelo simples fato de a fecundação póstuma ter sido realizada de forma ilícita.

Em princípio, não se poderia reconhecer a legitimidade sucessória da criança gerada

por procriação artificial ocorrida no período em que já havia falecido o genitor, se este não

permitiu ou simplesmente se omitiu quanto à utilização do seu material fecundante para

depois da sua morte. Entretanto, o ato contraditório a negativa ou ao silêncio, tal como, testar

em favor do potencial filho, garante que este possa reclamar a sua parte na herança.

Além do consentimento expresso, o qual torna lícita a reprodução assistida homóloga

realizada após a morte do autor da sucessão e atribui legitimidade sucessória a criança gerada

nessa especial condição, deve ser fixado um prazo máximo de espera para a concepção do

filho a fim de limitar no tempo tal hipótese e garantir, concomitantemente, a segurança

jurídica em relação aos herdeiros existentes ou concebidos até o momento, na medida em que

não terão que esperar indefinidamente por uma possível prole, e o direito sucessório do

potencial filho gerado após a morte do pai.

Ao deixar a autorização expressa quanto à utilização do seu material genético para

depois da sua morte, o genitor deverá fixar prazo não superior a dois anos para a realização da

inseminação post mortem e concepção da prole ou, na falta dessa estipulação, deve ser

aplicado, por analogia, o prazo máximo de dois anos, contados a partir da abertura da

sucessão, previsto para a concepção da prole eventual de terceiro, de acordo com o inciso I do

artigo 1.799 c/c o parágrafo 4º do artigo 1.800 da codificação civil. (ALBUQUERQUE

FILHO, 2010, p. 21).

O referido prazo é estipulado em favor de terceiros, ou seja, em benefício dos

herdeiros já existentes ou já concebidos até o momento na medida em que não terão que

esperar indefinidamente por uma possível prole. Assim, não pode o genitor, ao deixar a

permissão prévia e específica quanto ao uso do seu material germinativo para após o seu

falecimento, estabelecer prazo superior a dois anos para a concepção do potencial descendente

por técnica conceptiva post mortem, salvo se obter o consentimento dos sucessores já

existentes ou, pelo menos, já concebidos.

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Se a concepção do filho por fecundação póstuma ocorrer dentro do prazo de dois anos

após a morte do genitor, aquele terá direito de suceder na herança deixada por este. Todavia,

se decorridos dois anos após o falecimento do autor da sucessão, não for concebida a prole

por técnica conceptiva post mortem ou, mesmo sendo concebida dentro do referido prazo, vier

a nascer sem vida, extingue-se a sua capacidade sucessória. Isso fecha a porta que está aberta

no ordenamento jurídico brasileiro para a legitimação do direito sucessório do filho gerado

por reprodução assistida homóloga realizada após a morte do genitor, razão pela qual é

possível excluir os direitos hereditários desse descendente. Ainda, o prazo para a concepção

do potencial filho não se confunde com o prazo que este dispõe para reclamar a parte que lhe

cabe na herança. O primeiro é menor e permite de pronto o reconhecimento da legitimidade

sucessória do concebido após a morte do pai.

Permitir que a inseminação póstuma ocorra anos ou décadas após a abertura da

sucessão, já que o esperma do falecido pode ficar preservado por muito tempo e só depois ser

utilizado, afeta a segurança jurídica dos herdeiros já existentes ou pelo menos já concebidos,

pois a qualquer tempo, depois da morte do autor da sucessão, poderia ser gerado um filho seu,

o qual seria incluído na ordem de vocação hereditária como herdeiro necessário.

Além disso, a não fixação de prazo máximo de espera para a concepção da prole por

reprodução assistida post mortem conduz a coisificação da criança gerada nessa especial

condição, pois a qualquer momento, após a abertura da sucessão, a genitora poderia utilizar o

material genético do falecido para emprega-lo na fertilização assistida homóloga, fazendo

nascer uma a criança com a única finalidade de usá-la como artifício para adentrar na herança

deixada pelo de cujus.

Diante do exposto, é prejudicial para o direito sucessório a espera indefinida de uma

possível prole, de modo que deve ser fixado o prazo máximo de dois anos para a sua

concepção. Ademais, sendo a criança gerada nessa especial condição filha do falecido, por

evidente concorre com os demais na herança como herdeira necessária, daí que eventual

necessidade de ação de petição de herança será proposta em face dos demais herdeiros, para a

redistribuição da herança, considerando-a para a partilha.

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3.2 Os efeitos patrimoniais da vocação hereditária do concebido após a morte do genitor

O disposto no artigo 1.798 do Código Civil deve ser interpretado em conformidade

com o expresso no inciso III do artigo 1.597 da referida legislação e com o estabelecido no

parágrafo 6º do artigo 227 da Constituição de 1988 a fim de estender legitimidade sucessória

ao potencial descendente que pode vir a nascer após a morte do autor da herança.

Segundo o Enunciado nº 267 aprovado pela III Jornada de Direito Civil “a regra do

art. 1.798 do Código Civil deve ser estendida aos embriões formados mediante o uso de

técnicas de reprodução assistida, abrangendo, assim, a vocação hereditária da pessoa humana

a nascer cujos efeitos patrimoniais se submetem às regras previstas para a petição da

herança.” (2001, p. 17).

Através da petição de herança, o filho gerado por inseminação artificial ocorrida após

o falecimento do genitor recorre à contenda judicial para obter os bens que compõem o seu

acervo hereditário. Conforme referido no tópico anterior, tal ação é proposta em face dos

demais herdeiros do de cujus, para a redistribuição da herança, considerando para a partilha o

concebido após a morte do pai.

Uma vez que a petição de herança é mais específica para o reconhecimento dos filhos

até então não reconhecidos ou até então desconhecidos, nessa ação quase sempre se discute a

qualidade de herdeiro. Assim, um filho que não tenha sido reconhecido ou cuja existência era

desconhecida pode propor ação de petição de herança para garantir a sua condição jurídica de

herdeiro. Embora possua natureza declarativa, pois visa o reconhecimento judicial da

qualidade de herdeiro, também possui índole reivindicatória na medida em que objetiva a

restituição dos bens hereditários que pertencem ao autor da ação.

Segundo o disposto no artigo 1.824 da codificação civil “o herdeiro pode, em ação de

petição de herança, demandar o reconhecimento de seu direito sucessório, para obter a

restituição da herança, ou de parte dela, contra quem, na qualidade de herdeiro, ou mesmo

sem título a possua.” (2008, p. 237). Qualquer herdeiro excluído de concorrer ao patrimônio

hereditário pode propor ação de petição de herança para buscar o reconhecimento da

qualidade de herdeiro, bem como para reaver a herança, no todo ou em parte, em face da

pessoa que a detém, na qualidade de herdeiro.

O artigo 1.825 da referida legislação estabelece que “a ação de petição de herança,

ainda que exercida por um só dos herdeiros, poderá compreender todos os bens hereditários.”

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(2008, p. 237). A herança é uma universalidade de direito transmitida a todos os herdeiros,

desde a abertura da sucessão. A ação de petição de herança pode ser exercida por só um

herdeiro contra a totalidade do patrimônio hereditário.

De acordo com o expresso no caput do artigo 1.826 do Código Civil “o possuidor da

herança está obrigado à restituição dos bens do acervo, fixando-se-lhe a responsabilidade

segunda a sua posse, observado o disposto nos arts. 1.214 a 1.222.” (2008, p. 237). Julgada

procedente a ação de petição de herança proposta em face do possuidor dos bens hereditários,

este ficará obrigado a restituir os bens do acervo, fixando-se a sua responsabilidade segundo a

sua posse de boa ou má-fé. As consequências advindas da responsabilidade do possuidor da

herança, em razão da boa ou má-fé, são tratadas pelos artigos 1.214 a 1.222 da legislação em

comento.

Se possuidor de boa-fé: 1.Tem direito aos frutos percebidos (art. 1.214). 2. Deve restituir os pendentes e os colhidos com a antecipação, ao tempo em que cessar a boa-fé (art. 1.214, parágrafo único). 3. Os frutos naturais e industriais reputam-se colhidos e percebidos (art. 1.215). 4. Não responde pela perda ou deterioração da coisa a que não der causa (art. 1.217). 5. Tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis, podendo levantar as voluptuárias (art. 1.219). Se possuidor de má-fé: 6. Responde por todos os frutos colhidos e percebidos, bem como pelos que deixou de perceber sem culpa (art. 1.216). 7. Responde pela perda ou deterioração da coisa a que não der causa (art. 1.218). 8. Só lhe serão ressarcidas as benfeitorias necessárias (art. 1.220). 9. Na indenização das benfeitorias o reivindicante tem o direito de optar entre o seu valor atual e o seu custo (art. 1.222). (LEITE, 2004, p. 121).

O parágrafo único do referido dispositivo prevê que “a partir da citação a

responsabilidade do possuidor se há de aferir pelas regras concernentes à posse de má-fé e à

mora.” (2008, p. 237). Até a citação, presume-se a boa-fé do réu, pois como este ainda não

tem ciência da ação de petição de herança pode alegar ignorância quanto aos direitos do autor.

Entretanto, após a citação, o réu passa a ter conhecimento da ação que foi proposta em face

dele e por isso não pode invocar desconhecimento dos direitos do autor. A partir desse

momento, se o réu resistir à pretensão do autor responderá como possuidor de má-fé.

Segundo o disposto no caput do artigo 1.827 da codificação civil “o herdeiro pode

demandar nos bens da herança, mesmo em poder de terceiros, sem prejuízo da

responsabilidade do possuidor originário pelo valor dos bens alienados.” (2008, p. 237). O

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parágrafo único do referido dispositivo prevê que “são eficazes as alienações feitas, a título

oneroso, pelo herdeiro aparente a terceiro de boa-fé.” (2008, p. 237).

Se os bens da herança foram alienados, o autor da ação de petição de herança pode

demandar a sua restituição, ainda que em poder do adquirente, sem prejuízo da

responsabilidade do possuidor originário pelo valor dos bens alienados. Além disso, uma vez

provado que o terceiro não tinha conhecimento que estava adquirindo bens de um falso

herdeiro, ou seja, de um possuidor com aparência de herdeiro, tal alienação é eficaz, pois é

preciso proteger o terceiro adquirente de boa-fé. Nesse caso, o autor da petição de herança

pode buscar a responsabilização do possuidor originário pelo valor dos bens alienados.

Por fim, de acordo com o expresso no artigo 1.828 da legislação em comento “o

herdeiro aparente que, de boa-fé, houver pago um legado não está obrigado a prestar o

equivalente ao verdadeiro sucessor, ressalvado a este o direito de proceder contra quem o

recebeu.” (2008, p. 237). Se o herdeiro aparente de boa-fé pagou um legado, estará isento de

reponsabilidade quanto ao reembolso, pois cumpriu à determinação do testador a qual, em

princípio, é de sua incumbência. Nesse caso, o verdadeiro herdeiro terá o direito de reagir

contra o legatário, buscando deste a restituição do que recebeu indevidamente.

Todos os dispositivos acima citados regulam a petição de herança e se aplicam aos

efeitos patrimoniais da vocação hereditária da prole gerada por fertilização artificial realizada

no período em que já havia falecido o genitor. Tal ação deve ser proposta pelo concebido após

a morte do pai dentro do prazo prescricional de dez anos, contados a partir da abertura da

sucessão.

Outra possibilidade de garantir que o potencial filho tenha acesso aos bens hereditários

seria nomeá-lo como herdeiro testamentário por substituição fideicomissária. Em princípio,

tal instituto destina-se transferir patrimônio para uma terceira pessoa ainda não concebida ao

tempo da morte do testador, contudo, em favor de quem tem ele intenção de atribuir bens.

Entretanto, a substituição fideicomissária também pode ser instituída em favor do potencial

descendente que pode vir a nascer após a morte do autor da sucessão, a fim de assegurar que

seja considerado sucessor deste.

A negativa do genitor quanto à utilização do seu material genético para depois da sua

morte, implica na exclusão antecipada da capacidade sucessória da criança gerada por

inseminação post mortem. Ao contrário do herdeiro indigno, o qual é afastado da sucessão

mediante sentença judicial que declara a sua exclusão em virtude de atos praticados contra a

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vida e a honra do de cujus ou de seus familiares mais próximos ou contra a liberdade do autor

da herança, a negativa deste quanto ao aproveitamento do seu material fecundante para uso

após o seu falecimento provoca a destituição antecipada do direito sucessório da prole

concebida por fecundação póstuma, não em razão de uma conduta praticada por aquela, pois

não há conduta de alguém que ainda não nasceu, mas pelo simples fato de a técnica médica

ter sido realizada de forma ilícita, já que requer autorização prévia e expressa do falecido.

De acordo com o disposto no artigo 1.951 do Código Civil “pode o testador instituir

herdeiros ou legatários, estabelecendo que, por ocasião de sua morte, a herança ou o legado se

transmita ao fiduciário, resolvendo-se o direito deste, por sua morte, a certo tempo ou sob

certa condição, em favor de outrem, que se qualifique de fideicomissário.” (2008, p. 242).

Na substituição fideicomissária, o testador, denominado fideicomitente, estabelece

que, por ocasião da sua morte, os bens hereditários serão transferidos a uma terceira pessoa,

chamada de fiduciária, a qual terá a obrigação de conservar os bens e depois restituí-los a

possível prole, classificada como fideicomissária. Embora o potencial filho do autor da

sucessão possa ser nomeado como herdeiro testamentário por substituição fideicomissária,

ocorrendo o seu nascimento com vida, por ser descendente do falecido, concorre com os

demais na herança como herdeiro necessário, ou seja, sucessor eleito pela lei e com direito a

legítima, isto é, uma parcela mínima de cinquenta por cento do acervo hereditário.

O caput do artigo 1.952 da legislação em comento prevê que “a substituição

fideicomissária somente se permite em favor dos não concebidos ao tempo da abertura da

sucessão.” (2008, p. 242). Esse dispositivo reforça a idéia de que a substituição

fideicomissária pretende beneficiar a prole futura. Assim, pode ser chamado a suceder o

potencial filho gerado por técnica conceptiva post mortem, pois não é pessoa concebida ao

tempo da morte do testador.

Segundo o disposto no caput do artigo 1.953 da codificação civil “o fiduciário tem a

propriedade da herança ou legado, mas restrita e resolúvel.” (2008, p. 242). Ainda que o

fiduciário adquira o domínio dos bens hereditários, a propriedade sobre estes é resolúvel, de

modo perdura até o implemento da condição resolutiva, qual seja, o nascimento com vida do

fideicomissário, pois apenas nesse momento se constitui o direito deste à herança do testador,

resolvendo-se o direito do fiduciário. Aqui também se aplica o parágrafo único, do artigo

1.952 da referida legislação, o qual estabelece o nascimento do fideicomissário como marco

para a aquisição da propriedade dos bens fideicomitidos. O mesmo acontece na situação do

herdeiro necessário, pois ainda que tenha ocorrido a partilha dos bens hereditários e cada

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herdeiro tenha recebido a parte que lhe cabe no acervo, a partir do nascimento com vida da

prole gerada por fecundação póstuma, constitui-se o seu direito hereditário. Nesse caso,

eventual necessidade de ação de petição de herança será proposta em face dos demais

herdeiros a fim de que a cota recebida por estes retorne ao monte hereditário para a

redistribuição da herança, considerando para a partilha o concebido após a morte do pai.

Tanto o fiduciário quanto o fideicomissário recebem os bens diretamente do fideicomitente (o testador). A passagem do fiduciário ao fideicomissário apenas se opera materialmente entre eles. Juridicamente, o fideicomissário recebe os bens por direito causa mortis do autor da herança. Enquanto ele não receber os bens, será titular de um direito eventual. (VENOSA, 2011, p. 304).

Se o fiduciário renunciar os bens hereditários defere-se ao fideicomissário o poder de

aceitá-los, exceto se o testador estabeleceu disposição em contrário. Essa previsão está

contida no artigo 1.954 da codificação civil e reforça a idéia de que os bens fideicomitidos são

transmitidos ao fideicomissário pelo próprio testador, como herdeiro deste, e não pelo

fiduciário.

Pode ocorrer de o fiduciário renunciar os bens recebidos e ainda não existir a prole

eventual nomeada como fideicomissária. É o que poderia acontecer se o fiduciário

renunciasse os bens hereditários, sem que ainda existisse o filho gerado por fecundação

póstuma, instituído como fideicomissário. Nesse caso, os bens seriam deferidos a um

administrador, aguardando-se o prazo máximo de dois anos, contados a partir da abertura da

sucessão, para a concepção ou não do descendente do testador. Os poderes do administrador

seriam apenas de mera administração, de modo que não assumiria a função do fiduciário.

Além disso, como essa hipótese não está prevista na lei, cabe ao testador estabelecê-la

expressamente. (VENOSA, 2011, p. 310).

Se o fiduciário alienar os bens fideicomitidos, impossível se torna a sua restituição

para o fideicomissário. Em virtude disso, o testador pode gravar os bens hereditários com

cláusula de inalienabilidade, a fim de impedir a sua alienação por parte do fiduciário. Caso

contrário, alienados os bens, estes poderão ser reivindicados pelo fideicomissário, a partir do

seu nascimento com vida.

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Embora a propriedade do fiduciário seja restrita e resolúvel, isso não o impede de

dispor dos bens hereditários, exceto se foram gravados com cláusula de inalienabilidade.

Inexistindo gravame sobre o direito do fiduciário e sendo alienados os bens, a partir do

momento em que se verificar a substituição, a herança transfere-se ao fideicomissário, o qual

pode reivindicar os bens fideicomitidos em poder de quem quer que seja, pois o terceiro que

adquire esses bens sujeita-se a contingência de ver resolvido o seu direito. (MONTEIRO,

2011, p. 255).

Se o fideicomissário renunciar os bens hereditários, caduca a substituição

fideicomissária de modo que a propriedade desses bens passa definitivamente para o

fiduciário, exceto se diversamente haja disposto o testador. Nesse sentido, dispõe o artigo

1.955 da legislação civil que “o fideicomissário pode renunciar a herança ou o legado e, neste

caso, o fideicomisso caduca, deixando de ser resolúvel a propriedade do fiduciário, se não

houver disposição contrária do testador.” (2008, p. 242). A resolução da substituição

fideicomissária também poderia ocorrer pela não utilização do material genético do testador

dentro do prazo de dois anos após a abertura da sucessão, consolidando-se, nesse caso, a

propriedade no fiduciário, conforme dispõe a parte final do artigo 1.958 da legislação em

comento.

É perfeitamente aplicável, por analogia, o prazo de dois anos para a concepção da

prole eventual nomeada fideicomissária, nos termos do parágrafo 4º do artigo 1.800 do

Código Civil. Do mesmo modo, extingue-se o direito do fideicomissário se, no prazo máximo

de dez anos, ele não toma a inciativa para receber os bens fideicomitidos. (VENOSA, 2011, p.

312).

O próprio testador deve estabelecer prazo não superior a dois anos para a concepção

do potencial descendente nomeado fideicomissário. Todavia, caso não fixe o referido prazo,

aplica-se, por analogia, o prazo máximo de dois anos, previsto para a concepção da prole

eventual de terceiro, constante no inciso I do artigo 1.799 c/c o parágrafo 4º do artigo 1.800

da legislação civil. Conforme referido anteriormente, tal prazo é estipulado em favor de

terceiros de modo que o testador somente poderá fixar prazo superior a dois anos para a

concepção do potencial filho nomeado fideicomissário se obter o consentimento dos herdeiros

já existentes ou já concebidos até o momento.

O artigo 1.956 da legislação em comento prevê que o fideicomissário recebe os bens

fideicomitidos com os acréscimos e cômodos feitos pelo fiduciário. Este não tem direito de

ser indenizado pelas benfeitorias realizadas, porém, eventualmente, poderá ser ressarcido

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quanto às despesas extraordinárias na conservação dos bens, as quais ultrapassem a esfera do

previsível. Além disso, o fiduciário também responde por culpa ou dolo no caso da perda ou

deterioração dos bens fideicomitidos. (VENOSA, 2011, p. 311).

O artigo 1.957 do Código Civil expressa que “ao sobrevir à sucessão, o

fideicomissário responde pelos encargos da herança que ainda restarem.” (2008, p. 242). As

despesas feitas pelo fiduciário com a conservação dos bens fideicomitidos e que ainda não

tenham sido liquidadas, ficam sob responsabilidade do fideicomissário, quando lhe for

passados os bens.

O artigo 1.959 da referida legislação estabelece que “são nulos os fideicomissos além

do segundo grau.” (2008, p. 242). O artigo 1.960 prevê que “a nulidade ilegal prejudica a

instituição, que valerá sem o encargo resolutório.” (2008, p. 242). Isso significa que é nula a

instituição fideicomissária que passe da pessoa do fideicomissário. Porém, se o autor da

sucessão instituir fideicomisso além da pessoa do fideicomissário, essa disposição valerá

somente até a pessoa do fideicomissário.

Exemplificativamente, é nula a disposição do testador estabelecendo que, por ocasião

da sua morte, os bens hereditários serão transmitidos ao fiduciário, o qual terá a obrigação de

conservar e depois restituir para o potencial filho nomeado fideicomissário, o qual deverá,

caso venha a nascer com vida, transferir os bens para outra pessoa. Entretanto, se o testador

estabelecer disposição nesse sentido, esta somente valerá até o fideicomissário.

Todas as situações acima citadas são apenas hipóteses decorrentes da nomeação do

potencial descendente como herdeiro testamentário por substituição fideicomissária, pois,

conforme já referido anteriormente, sendo ele filho do falecido, concorre com os demais na

herança como herdeiro necessário. Assim, existindo autorização expressa deixada pelo genitor

quanto à utilização do seu material genético para depois da sua morte e ocorrendo a

concepção da prole no prazo máximo de dois anos após a abertura da sucessão, esta será

herdeira necessária. A instituição do potencial filho como herdeiro testamentário por

substituição fideicomissária serviria, portanto, para garantir que seja considerado sucessor e

para que tenha acesso aos bens hereditários, pois a partir do seu nascimento com vida

concorreria com os demais na herança como herdeiro necessário.

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CONCLUSÃO

Através do estudo explanado, verifica-se que no ordenamento jurídico brasileiro existe

uma autorização implícita quanto à realização da fecundação artificial post mortem, na

medida em que o inciso III do artigo 1.597 do Código Civil atribui presunção de filiação a

criança concebida nessa especial condição, considerando-a filha do marido da genitora.

Entretanto, a presunção de paternidade não se dá exclusivamente em relação ao marido

falecido, mas sim em relação a pessoa que preservou o seu material genético para uso depois

da sua morte. Sendo filha do falecido, o dispositivo em comento constitui uma cláusula aberta

para a legitimação do direito sucessório da prole gerada por inseminação póstuma.

Assim, ainda que o artigo 1.798 da legislação civil não reconheça o direito hereditário

do filho havido por técnica conceptiva post mortem, pois não é pessoa concebida e muito

menos nascida à época da morte do autor da herança, a legitimidade sucessória prevista em tal

dispositivo deve ser estendida ao potencial descendente que pode vir a nascer após a morte do

genitor, pois o parágrafo 6º do artigo 227 da Constituição de 1988 não prevê nenhuma

exceção o princípio da isonomia na filiação, de modo que o concebido após a morte do pai

deve suceder na herança deixada por este em igualdade de condições com os demais filhos do

de cujus. Além disso, o inciso XXX do artigo 5º da Magna Carta Vigente prevê o direito a

herança dentro do rol dos direitos e garantias fundamentais.

Todavia, a criança gerada por procriação artificial realizada após a morte do genitor,

somente estará habilitada para receber o patrimônio hereditário se existir consentimento

expresso deixado pelo falecido quanto ao aproveitamento do seu material germinativo para

uso depois da sua morte. Em conformidade com a posição do Conselho Federal de Medicina

na Resolução nº 1.957 de 2010, a autorização prévia e expressa quanto à utilização do

material preservado para após o falecimento torna lícita à fecundação póstuma, atribuindo

legitimidade sucessória a prole concebida nessa especial condição. Por outro lado, a negativa

ou a ausência de permissão expressa do genitor quanto ao uso do seu material fecundante para

depois da sua morte, torna ilícita a reprodução assistida post mortem, razão pela qual se pode

excluir o direito sucessório do filho gerado nessa circunstância.

Ao deixar o consentimento expresso, o genitor também deve fixar prazo não superior a

dois anos para a concepção do potencial descendente. Porém, na falta dessa estipulação, deve

ser aplicado, por analogia, o prazo máximo de dois anos previsto para a concepção da prole

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eventual de terceiro, de acordo com o inciso I do artigo 1.799 c/c o parágrafo 4º do artigo

1.800 da codificação civil.

Uma vez que o referido prazo é estipulado em favor de terceiros, ou seja, em benefício

dos herdeiros já existentes ou já concebidos até o momento não pode o genitor, ao deixar a

permissão prévia e específica quanto ao uso do seu material genético para após o seu

falecimento, estabelecer prazo superior a dois anos para a concepção do potencial filho por

técnica conceptiva post mortem, salvo se obter o consentimento dos sucessores já existentes

ou, pelo menos, já concebidos.

O prazo máximo de dois anos para a concepção do potencial descendente por

inseminação post mortem serve para limitar no tempo a utilização dessa técnica médica e,

portanto, garantir ao mesmo tempo a segurança jurídica em relação aos herdeiros existentes

ou concebidos até o momento e o direito sucessório do potencial filho gerado após a morte do

pai. Nesse sentido, se decorridos dois anos após a abertura da sucessão não for concebida a

prole ou, mesmo sendo concebida dentro do referido prazo, vier a nascer sem vida, extingue-

se a sua capacidade sucessória.

Diante do exposto, existindo autorização expressa deixada pelo genitor quanto ao

aproveitamento do seu material genético para uso depois da sua morte e ocorrendo a

concepção da prole no prazo não superior a dois anos após a abertura da sucessão, esta terá

direito de suceder no patrimônio hereditário. Ainda, por ser filha do falecido, a criança gerada

por fecundação póstuma concorre com os demais na herança como herdeira necessária, daí

que eventual necessidade de ação de petição de herança será proposta em face dos demais

herdeiros, para a redistribuição do patrimônio hereditário, considerando-a para a partilha.

Outra possibilidade de garantir que o potencial descendente seja considerado sucessor

e tenha acesso aos bens hereditários seria nomeá-lo como herdeiro testamentário por

substituição fideicomissária. Esta é apenas uma hipótese, pois ocorrendo o seu nascimento

com vida, por ser descendente do falecido, concorre com os demais na herança como herdeiro

necessário, ou seja, sucessor eleito pela lei e com direito a legítima, a qual equivale a uma

parcela mínima de cinquenta por cento do acervo hereditário.

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