GALARD, Jean - A Beleza Do Gesto
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Vice-re;tor
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UN IVE RSIDA DE DE SÃO PA ULO
Suely Vilela
Franc o Mari a Laj olo
EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
A Beleza do Gesto
Uma Estética das Condutas
JEAN GALARD
Diretor-presidente Plinio Mart ins Fi lho
COMISSÃO EDITORIAL
Presidente José Mindlin
Vice-presidente Car10 s A lberto Barbosa Dantas
Adolpho José Mel1i
Benjamin Abda la Jún ior
Mari a Arminda do Nasciment o Arruel a
Nél io Marc o Vincenzo Bizzo
Ricardo Toledo S ilva
Diretora Editor;al Silvana Biral
Editoras-assistentes Marilena Vizentin
Car la Fernanda Fon tana
Mal'YAmazonas Leite de Barros
Tradução
Celso Faval'ello e Leon Kossovitch
Revisão Técnica
led:
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Título do original francês:
Lu Beullté dll geste: Por llneesthétiqlle des condllites
Tradução para o português feita a partir da edição da Prcsses deL 'Éco le Norma le Supér ieure, 1984.
Copyright © 1997 by Jean Galard
I" edição 1997
I " e dição , I " r eimprcssão 2008
Dados I nternacionais de Catalog ação na Pub licação (CIP)
(Câmara Bras il ei ra do Livro, S I' , B ra si l)
Galard, J ean, 1937-A Bel eza do Gesto: Uma Estéti ca das Condutas / Jean Gal ar d; tr adu ção
de Mary Amazonas Leite de Barr os. - 1. e d., I . reimpr . - São Paulo: Editor a
da Universidade de São Paulo, 2008. - (Críticas Poéticas, 7)
ISBN 978-85-314-0420-7
I. Estética I. Título. I!. Série.
97-4843 CDD-305.567
Indíces para catúlogo sisten1útico:
Para Alena
I. Estética: F ilosofia I 11.85
Direitos em língua portuguesa reservados ü
Edusp - Editora da Universidade de São Paulo
Av. Prof. Luciano Gualbcrto, Travessa.1, 374
6° andar - E eI. da Antiga Reitoria - Cidade Universitária
05S08-900 - São Paulo - SI ' - Brasil
Divisão Comercial: Te!' (11) 3091-400813091-4150
SAC (lI) 3091-291f - Fax (II)3091-4IS I
www.edusp.com.br-e-mail: [email protected]
Printed in Brazil 2008
Foi feito o depósito legal
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SUMÁRIO
Prefácio à Edição Brasileira11
Uma Arte, ao Pé da Letra19
Poética da Conduta
23
Ética do Signo39
A Economia dos Meios
49
A Ação Simbólica59
Parêntesis
73
Estética Romântica
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10
o Sentido do Insignificante
89
o Franqueamento do Gesto
103
Estéticas
119
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA
Muitas línguas - embora nem todas - utili
zam o mesmo termo para designar osmovimentos
do corpo portadores de significação e algumas
ações que são qualificadas de "gestos" em sentido
figurado. É neste sentido que considero um gesto,
por exemplo, o ato generoso graças ao qual este
ensaio pode ser hoje editado no Brasil, gesto de
hospitalidade da Universidade de São Paulo, que
repete outro, do passado, do qual eu já me benefi
ciara. A língua portuguesa e francesa jogam demodo semelhante com essa ambivalência da pala
vra "gesto" - o que constitui ao menos um elemento favorável a esta tradução.
Até que ponto as conotações da palavra "gesto",entendida no sentido figurado, são idênticas em fran
cês e em português? Para percebê-Io, é preciso umouvidobem treinado. Esta nota não pretende respon
der a tal questão. Apenas chama atenção para o fato
de que a palavra, em francês, tem um valor estéti-
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co. Só O emprego do masculino subsiste atualmen
te, mas ele parece ter conservado, no sentido figu
rado, tudo o que havia de glorioso nos dois empre
gos femininos, hoje em desuso, e que designavam, naIdade Média, seja a narrativa das façanhas de uma
personagem histórica, exaltadas pela lenda, sejam
as ações belas e memoráveis. Para ilustrar (por,apa
rentemente, não poder defini-Ia) a acepção dita "abstrata", os dicionários mencionam correntemente a
locução "fazer um belo gesto".
A existência ou a ausência numa língua de
uma palavra que expresse o gesto no sentido figu
rado tem, certamente, alguma significação antro
pológica. O mesmo acontece com a associação pos
sível dessa palavra com a que designa a beleza e
com ojuízo de valor implicitamente aplicado a esse
eventual par terminológico. Essas realidades lin
güísticas são, sem dúvida, interessantes sintomas
para um estudo das mentalidades. A atitude italia
na em relação ao bel gesto é, antes, laudativa, en
quanto a atitude alemã em relação ao schõne Geste
tende ao irônico. O gosto pelo belo gesto pressupõe
uma preocupação com as formas (ecom os códigos,até para desobedecê-Ios) que se encontra mais nos
franceses do que nos brasileiros, pois, segundoconsta, estes são mais suscetíveis a condutas "informais".
Mas este ensaio não tem como objetivo, de for
ma alguma, analisar o espírito de um povo, nem se
colocar sob a égide de uma sociologia comparativa,nem contribuir para uma história das mentalida
des. Ele não tem a intenção de fazer o saber posi
tivo avançar, por pouco que seja. Sequer teve o cuidado de definir um corpus. Caberia aqui um arrependimento?
13
São inúmeros os fenômenos históricos, os pe
ríodos, as instituições, que, cuidadosamente ana
lisados, permitiriam compreender melhor a sedu
ção, a gravidade e também os engodos da "beleza
do gesto". Para citar alguns modelos metodológi
cos, pense-se no trabalho de Maurice Pinguet, La
Mort volontaire au Japon (1984), que explora com
documentos as significações do "bem morrer", ou
no de Michel Foucault, que, em L'Usage des plai-
sirs eLe Souci de sai (1984), deslinda e interroga,
no núcleo da cultura greco-~atina, aquilo a quechama de "artes da existência". Pense-se também
nos inúmeros objetos de pesquisa designados, de
passagem, por Georges Duby, no que concerne aofenômeno da cavalaria; por Jacob Burckhardt ou
Philippe Aries, a respeito da sociedade da corte;
por Paul Bénichou em Morales du grand siecle
(1948). Renato Janine Ribeiro efetua um vivo panorama da ética-estética das cortes européias dos
séculos XVII e XVIII em A Etiqueta no Antigo Regi-
me: do Sangue à Doce Vida (1983).
Pode-se - e deve-se - acrescentar a esses gran
des exemplos (ocavaleiro, o sábio, o homem da corte, o herói corneliano), com os quais se fica em ex
celente companhia, alguns casos mais comprometedores: o dos "dândis" e dos "decadentes", o de um
d'Annunzio, o de um Marinetti, que são igualmenteinstrutivos ou mais cruelmente esclarecedores.
Mas, quando este pequeno livro procurava fa
zer surgir seu objeto (e não analisar um objeto"dado"), o desejo de saber se a conduta da vida
poderia ser, um dia, inteiramente estetizada, im
punha-se quase obsessivamente. Estava fora decogitação encarar um estudo aprofundado, dedicado a uma ou a outra dessas figuras: o ganho pare-
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cia demasiado incerto; o desvio, por demais longo.O passado só era interessante como reservatóriode "fatos e gestos" em que se pudesse escolher conforme a ocasião. É assim, parece, que a educaçãomoral tratava outrora o conhecimento do passado:ela descontextualizava os fatos históricos a fim detorná-Ios exemplares. Este ensaio, refratário à investigação historiadora, procurou agenciar algumas noções a partir das quais uma conduta belaseria dorauante concebível.
Projeto novo, capaz de ter sentido atualmente?Ou projeto "utópico", isto é, do qual nunca se en
contrará realização satisfatória em lugar algum?Programa radicalmente impossível, ou atualmente impraticável devido à civilização em que estamos, que é tecnicista e inteiramente votada aoprincípio de utilidade? Em seu Hagakure nyumon
(Introdução ao Hagakurê, 1968; traduzido para ofrancês sob o título Le Japon moderne et l'éthiquesamourai", 1985), Mishima imputava a causa deseu desespero à época em que vivia: "A atmosferade compromisso deste tempo deve-se ao fato de
que aquele que se esforça por viver e morrer nabeleza se destina a uma morte que terá toda aaparência da ignomínia, ao passo que aquele quesó aspira a uma vida e a uma morte que são, narealidade, repugnantes passa dias felizes". Nãoseria, antes, de modo totalmente intemporal que aconduta da vida (assim como a da morte) e a vontade de beleza se excluiriam mutuamente?
A arte, geradora de beleza (não apenas de deleite, mas de beleza trágica, sublime, surpreenden
te), tem, sobre a vida corrente, a vantagem de recorrer à ficção. Tudo, então, lhe é permitido. Elavive sob o regime da impunidade. Como afirma
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15
Diderot: "Não se tem pelos seres imaginários a deferência que se deve a seres reais". Por isso, apli
cam-se as invenções da arte às representações darealidade: "Não se deve fazer poesia na vida. Osheróis, os amantes romanescos, os grandes patriotas, os magistrados inflexíveis, os apóstolos da religião, os filósofos a qualquer custo, todos essesraros e divinos insensatos fazem poesia na vida,daí a sua infelicidade" (Salon, de 1767). "Eles sãoexcelentes para ser pintados", acrescenta Diderot.Fornecem após sua morte os temas de grandes quadros. Mas, enquanto vivem, causam não só a sua
própria infelicidade, como também a de outrem.Não cabe aqui retomar novamente o problema,
vasto, de saber se a arte pode ou não modelar avida, se ela deve ou não fazê-Io. Porém, uma vezque esta é exatamente a questão que subtende esteensaio, que nos seja permitido acrescentar aindauma ou duas observações, em tom interrogativo:talvez elas possam revelar uma incorrigível ingenuidade; talvez possam, pelo contrário, mostrarcomo uma estética das condutas não é ainda uma
questão fechada.Quando Diderot escreve que não se deve fazer
poesia na vida e que as grandes ações só convêmaos quadros, quando afirma em outra parte (emParadoxe sur le comédien) que o teatro aumenta oque ele representa e que a arte imita um mundoideal onde tudo é "grande, raro, maravilhoso e sublime", observa que nossa vida, por contraste, é"pequena, pobre, mesquinha e miserável". Resignar-se-á com essa comprovação? Será preciso atéconsentir em vê-Ia piorar sob o efeito de uma arteadversa, que difunde por toda parte doravante aimagem de um outro "mundo ideal", convidando a
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uma vida sempre mais uniforme e vulgar? De
qualquer modo, a questão da estética da vida se
propõe. Se não explicitamente, para definir as condições de uma conduta bela, será implicitamente,
na súbita tomada de consciência de que um gesto
foi ignóbil ou de que um destino foi desperdiçado.
Após os triunfos, no século XVIII,da doutrina
do "belo ideal", a "arte" e a "vida", durante dois
séculos, não deixaram de se situar, uma em rela
ção à outra, numa complexa relação de rivalidade,
como dois termos que, ao mesmo tempo, se aproximam necessariamente e se excluem fatalmente.
"Empregar seu gênio na vida e não na obra": estaé a ambição, proveniente do romantismo, que se
formula mais ou menos expressamente durante o
século XIXe que se repete cada vez mais obstina
damente no decorrer do século XX.Uma grande
parte da arte deste século parece mobilizada pela
intenção de apagar as fronteiras entre a obra e
seus entornos, entre a cena e o espectador, entre
a religião da arte e o mundo comum. A vasta des
cendência de Marcel Duchamp se esgota hoje na
compulsiva experimentação do que é "próprio daarte". Na perplexidade em que estamos agora
quanto à questão de saber o que a arte tem de es
pecífico ou distinto, duas hipóteses extremas aco
dem: terá a arte concluído o trabalho de apagar
suas fronteiras a ponto de ter-se abolido totalmen
te? Ou terá ela cumprido a ambição de estender
seus limites a ponto de ter conquistado (pelo me
nos a título simplesmente de "zonas de influência")todos os domínios da vida?
A questão da disseminação da arte, de sua "difusão" (de seu triunfo difuso), de seu ultrapassamento, produziu uma literatura tão ricamente
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17
ilustrada de propósitos retóricos que as noções de"Arte" e de "Vida" tornaram-se cada vez mais ne
bulosas. Pior do que inúteis: atravancadoras. Entretanto, a questão ética, por seu lado, continua a
se colocar, embora seja abandonada pela teoria.
Como conduzir a vida? Pergunta de todos os ins
'tantes, que requer, ao longo de nossos dias, prin
cípios diferentes daqueles açambarcados pelo dis
curso moral (tolerância, respeito pelos direitos do
homem). Talvez ela requeira, de fato, outra coisa
além de "princípios". Será que não se pode imagi
nar, em vez das leis que se supõem governando a
vida moral, uma arte do "pertinente", produzindopara cada situação singular o gesto que convém?
Kant, em Crítica do Juízo (§ 5) estabelece a distin
ção: "mostrar gosto em sua conduta (ou no julga
mento da de outros) é algo totalmente diverso do
que exteriorizar seu modo de pensamento moral".
Este é precisamente o ponto sobre o qual é interes
sante interrogar-se. Não está o exercício do gosto
na origem de nossas condutas mais inventivas?
Não será a repugnância o fator mais poderoso de
recusa das condutas degradantes? É preciso entender por "gosto" coisa diferente da expressão de
uma intuição obstinada: é exatamente o que acon
tece esteticamente, uma vez que se admite que o
gosto se cultiva. Nas páginas que se seguem, cogi
tar-se-á a eventualidade de uma ética renovada,
que procuraria, para nossos juízos e escolhas,
constituir, refinar, cultivar um gosto esclarecido.
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UMA ARTE, AO PÉ DA LETRA
A arte mais necessária, aquela para a qualcada instante oferece matéria e oportunidade, éentretanto de todas a mais rudimentar, a maisdesprovida de princípios conscientes, de categoriasestilísticas, de referências notórias: a arte do comportamento.
Saber encontrar, no momento oportuno, o gestoadequado; atribuir valor tanto à maneira quanto aoobjetivo; não se contentar com o respeito aos usosnem com as facilidades da sem-cerimônia; saber,com gestos mínimos, abrir o curso banal da existência à estranheza: alguns modos felizes de comportamento requerem uma compreensão que parece decorrer da mesma ordem estética que a do sentimento, inspirado, no pólo oposto, pela trivialidade deum malogro, pela deselegância de um procedimen
to, pela afetação de um modo de ser; mas estão longe de constituir objeto de reflexões há tanto tempofamiliares quanto as que se aplicam habitualmente
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às artes instituídas. Enquanto as análises cinema
tográficas, as concepções arquitetõnicas, as teorias
literárias florescem no luxo especulativo, a apreciação das condutas e das atitudes permanece subme
tida à indigente jurisdição da intuição.Todos os nossos atos são constantemente sus
cetíveis de se converter em gestos, de simbolizar
um modo de ser, um jeito de tratar os outros. É im
possível, até na solidão ou na inação, impedir que
a conduta tenha sentido (que signifique, por exem
plo, o isolamento, o recolhimento, por vezes a de
missão, a deserção), portanto, que seja, como uma
postura, expressiva. Esse conjunto de atitudes (deposturas ou imposturas), que adotamos inevitavel
mente a todo instante, não requereria uma verda
deira arte, que o avalie, o trabalhe, o recomponha?
Talvez a noção de arte sugira uma intenção por
demais aplicada, concertada, para parecer compa
tível com a espontaneidade e a improvisação que
se supõem prevalentes na condução da vida. Mas
não será em nome de uma exigência estética quenotamos justamente essa inconveniência (essa in
compatibilidade) e que ficamos constrangidos, porexemplo, quando vemos alguém compondo sua
imagem ou calculando seus efeitos? Decorreriam
as atitudes afetadas de uma aplicação intempes
tiva da arte à vida? Não indicariam elas, antes,
pelo contrário, que nisso nos ativemos aos proce
dimentos de uma arte simplificada? Os escrúpulos
da atividade artística levam-na a desfazer as poses, os maneirismos, as construções mais estuda
das. A espontaneidade é uma das ambições da
arte; o natural, uma categoria estética.Villiers de l'Isle-Adam evoca "um cantor que,
junto ao leito de morte de sua noiva, e ouvindo a
21
irmã da moça desmanchar-se em soluços convul
sivos, não podia impedir-se de observar, apesar
da aflição, as falhas de emissão vocal observáveisnaqueles soluços e pensava, vagamente, nos exer
cícios apropriados para lhes dar mais corpo"!.
Villiers de l'Isle-Adam se empenha em persuadir
nos de que a dor ou a alegria não são menos in
tensamente sentidas quando sua expressão é con
tida do que quando ela se manifesta em ruídos
confusos. Nos seres que gostariam de se prescre
ver impulsos mais espontâneos, paixões mais
francas, mais sinceras, ele evidencia, pelo contrá
rio, uma fraqueza afetiva, conjecturando que lançam clamores para justificar-se de antemão pela
inércia na qual sentem que vão logo recair. A agi
tação emocional reivindica mentirosamente o
natural: reproduz "sinceridades correntes", "pantomimas convencionais".
Seé verdade que toda reação é socialmente mo
delada, que nossos gestos, inclusive os mais elementares, são educados, a arte que se dedicasse aeles não contradiria o "natural", substituiria uma
arte anterior, uma estética implícita, pouco consciente, que regula o porte e a atitude, a continên
cia e as conveniências, que subtende a exigência da
contenção, quando não do comedimento. Uma artedeliberada, associada às condutas, não teria como
objetivo opor seus eventuais refinamentos aos extravasamentos dos instintos; ela experimentaria
gestos inusitados, que a estética herdada exclui.É preciso entender aqui o "gesto" na maiorextensão do termo: não só no sentido próprio (os
1.Vill iers de l'Isle~Adam, "Sentimentalisme", Contes cruelfj, Paris, Garnier-
Flammarion , 1980, p . 180 .
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movimentos do corpo, os usos corporais), mas tam
bém na acepção figurada. Permanecer resoluta
mente exposto a um perigo, enfrentar um adversário mais forte, lançar-se em nome da honra numa
aventura sem esperança, é "agir pela beleza do
gesto" - como se um sistema estético, de princí
pios constantemente ativos, mas informulados, nos
incitasse a acreditar que a beleza nunca pode apa
recer tão bem como nas poses de desafio, nas rea
ções suicidas, no brilho e na gratuidade. Referên
cias tácitas determinam igualmente ojuízo dirigi
do ao gesto global que é todo o desenrolar de uma
vida: elas detêm os critérios segundo os quais umavida é "bem-sucedida" ou "malograda", fixam o
modelo das carreiras "exemplares", cristálizando,
ao mesmo tempo, o fracasso incontável das existências frustradas.
Tratar a conduta como uma arte. Postular
que ela pode, como o teatro ou a música, despren
der-se dos ideais estreitos, das estéticas correntes. As tentativas deste ensaio entendem o inte
resse estético segundo diversas definições concor
rentes, para explorar a cada vez a eventualidadede sua aplicação ao conjunto do comportamento.
Essas hipóteses desejam propor-se, como outras
abordagens, como sendo uma série de esboços
(como sendo uma seqüência de gestos). Longe de
atribuir a si mesma um campo de experiência
pré-constituído, um domínio de observação, a in
vestigação procede aqui de um desejo cujo obje
to não é comprovado, mas induzido; apoiando-se
num esquema analógico, ela infere a possibilida
de de provocar, no próprio curso da vida, a consistência formal ou a intensidade emocional, pró
prias da experiência artística.
POÉTICA DA CONDUTA
Que a apreensão estética da existência seja,
afinal, coisa comum, é o que atestam, por exemplo,
o uso corrente das noções de "rotina", "monoto
nia", "cinza", o enfado que se tem por levar uma
vida chinfrim, pobremente cotidiana, condenada à
chatice, ou ainda a extensão metafórica que às
vezes se dá à oposição da "prosa" à "poesia".A categoria do "poético" reivindica, desde o ro
mantismo, um campo de aplicação que excede a es
fera das palavras, inclui, para Chateaubriand, al
gumas práticas antigas (as festas, as peregrina
ções), estende-se, com George Sand, ao modo de
vida campestre em seu conjunto. Sartre, um século
depois, interpreta a maneira de ser africana, cele
brada por Senghor sob o nome de Negritude, como
a expressão de uma poesia de agricultores, oposta
a uma prosa de engenheiros! . Por mais distante
1. J.~P.8artre, "Orphée noir",Situations IIl, Paris, Gallimard, 1949, p. 265.
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24
que esteja dos temas românticos, Valéry destaca
um fato de linguagem ("Dizemos de uma paisagem
que é poética; dizemo-Io de uma circunstância davida; dizemo-Io às vezes de uma pessoa") e retoma
o postulado que este uso implica ("Sei que tem
poesia neste arranha-céu"2). Karel Teige, nos Ma
nifestos do Poetismo, declara preferir as vibra
ções que a vida oferece aos cinco sentidos às flores
destacadas da literatura: "poesia das tardes de do
mingo, das excursões, dos cafés iluminados, do ál
cool embriagador, dos bulevares animados, das ca
minhadas nos balneários, e ainda poesia do silên
cio, da noite, da calma e da paz"3.De que modo objetos, lugares, condições de
existência, seres, comportamentos podem parecer carregados de poesia? Se aí só existe uma
série de idéias feitas, como e por quem foramelas transmitidas?
Jean Lacouture ressalta que Malraux se empe
nhou em combates pelos chineses, vietnamitas,
espanhóis, enquanto se manteve à margem das
tribunas da Frente Popular. Observa também que
algo dessa atitude reaparece no terceiro-mundismoda esquerda dos anos 60, que prefere apaixonar-se
pelos palestinos ou vietnamitas a fazê-Io pelo pro
letariado francês. Ele conclui: "Debate sem fim, etalvez sem razão. Há os da infantaria e os da ca
valaria. Nômades e sedentários. Poetas e prosado
res"4.Repartir em variedades congeniais os poetas
2. Paul Valér:y'"Propos sur Ia poésie" e "Nécess ité de Ia poésie", Variété,
Pari s, Gal limard , 1957, Pléiade, tomo I, pp. 1362, 1386 .
3. Karel Teige, "Poétisme" (1924), Change (10):111,1972.
4. Jean Lacouture,André Malraux. Une Vie dans le s iêcle, Paris, Seuil, 1973,
pp.184·185.
25
e os prosadores segundo suas preferências, saben
do-se que gosto não se discute, é eliminar depres
sa demais o objeto do debate. Pelo contrário, querenovação de perspectiva não haveria, se as dife
rentes maneiras de viver e agir pudessem compa
rar-se, criticar-se, comentar-se conforme uma ter
minologia tão elaborada quanto a das análises do
discurso e, para começar, conforme a alternativa
da poesia e da prosa. Em vez de atingir uma
tipologia naturalista dos caracteres, essa transpo
sição das categorias literárias ofereceria a cada
um a liberdade de decidir sobre o tom, o gênero, o
registro nos quais ele escreveria sua vida. Um indivíduo, e até um grupo, escolheria comportar-se
de maneira poética ou consentir com a prosa, emvirtude das circunstâncias ou do estado de suas
convicções estéticas.
Suponhamos que a poesia, em vez de ser pri
meiramente uma coleção de objetos (verbais), seja
um processo cuja autonomia fosse suficiente para
que ele operasse de maneira semelhante nas cons
truções de palavras, nas disposições de objetos,
nas composições de gestos. Se a operação poéticaconsiste em algum funcionamento dos signos (e
não no uso de alguns signos), torna-se concebível
uma poética da conduta que não se deixe deter
pela evidente heterogeneidade das palavras e dos
gestos na tarefa de determinar as propriedadesdesse funcionamento.
Sem ambicionar exatidão (nem paralelismo
com a incerta essência da Poesia), sem outra ga
rantia que não seja o sucesso amplamente testa
do do esquema que Jakobson construiu para clas
sificar as funções da linguagem, tome-se como
ponto de partida a definição da função poética
---,.-
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26
por ele proposta - mesmo que se tenha depois
de explorar as deduções resultantes de uma de
finição diferente.A função poética põe em evidência o lado ma
terial dos signos; ela enfatiza as particularidades
sensíveis da mensagem, que então se refere prin
cipalmente a si mesma em vez de se dissolver, as
sim que utilizada em proveito da experiência
evocada ou da informação transmitida; ela organi
za as seqüências de signos de forma a manter o
caráter perceptível de sua construçã05. Quais os
processos que permitem obter essa visibilidade da
linguagem tornada "autotélica"? Em primeiro lugar, as "figuras", e talvez exclusivamente elas, se
esse termo for entendido com suficiente amplitu
de para designar tudo o que torna a linguagem
percebida enquanto tal, e não apenas o que se
afasta de seu emprego mais freqüente6•
O caráter perceptível de algumas seqüências
de signos manifesta-se no âmbito da conduta, as
sim como no da linguagem. Os "códigosdo savoir-
vivre" formavam outrora um rigoroso equivalente
dos tratados do bem falar ou do bem escrever. Suaexistência bastaria para provar que a conduta é
suscetível da mesma aproximação retórica que a
linguagem. Os gestos que eles codificavam consti
tuem a "visibilidade" da conduta, como as figuras
tornam possível a da linguagem.
5. Roman Jakobson, "Lingllistique et poétique", Essais de linguistique
générale, Par is , Minui t, 1963, p. 218.
6. Tzvetan Todorov, Poétique de Ia prose, Paris, 8elli l, 1971, p. 51;
Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage, Paris, Seuil , 1972, pp.
351-352.
27
Do mesmo modo que a análise literária teve de
combater o descrédito que era lançado sobre as
"formas" supostamente vazias quando prevalecia a
preocupação com um assim chamado "fundo", aanálise das condutas deveria começar por reabili
tar o gesto, que é freqüentemente depreciado porser considerado exterior e secundário em relação
à verdade das intenções. A intenção verdadeira
seria a que se concretiza em atos. A intenção seria
falsa, afetada, quando se contenta com gestos. O
ato e o gesto, entretanto, não se distinguem segun
do as intenções diferentes que os subtendem. Os
movimentos de um operário aparecem ora como
atos, ora como gestos, embora não se suponha que
a intenção que os dirige tenha mudado. São atos
enquanto não são descritos. São gestos desde que
despertem atenção. O gesto nada mais é que o atoconsiderado na totalidade de seu desenrolar, per
cebido enq"llantotal, observado, captado. O ato é o
que resta de um gesto cujos momentos foram es
quecidos e do qual só se conhecem os resultados.
O gesto se revela, mesmo que sua intenção seja
prática, interessada. O ato se resume em seus efei
tos, ainda que quisesse se mostrar espetacular ou
gratuito. Um se impõe com o caráter perceptível de
sua construção; o outro passa como uma prosa que
transmitiu o que tinha a dizer. O gesto é a poesiado ato.
A conduta se gestualiza por meio de figuras
que são parcialmente as mesmas inventariadas
pela teoria do discurso. A repetição poetiza os cos
tumes. A gradação caracteriza as carreiras bem
sucedidas, como também a antítese, os.sucessos
inopinados ou as quedas magistrais. A elipse assinala a liberdade de postura. A ironia mimetiza ati-
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tudes e, ao mesmo tempo, ordena índices que contradizem o sentido dessas mesmas atitudes. Osholocaustos, numa insurreição, constituem ora asmetáforas (quando devastam os edifícios oficiais),ora as metonímias (quando destroem bens privados) da simbólica revolucionária. Recusar umaperto de mão é uma litotes; (,)abraço é umahipérbole.
É verdade que algumas figuras do comportamento permaneceriam despercebidas (não existiriam enquanto figuras) se a linguagem não interviesse para ressaltá-Ias. Nenhuma conduta, talvez,
poderia se dar por elíptica, sem uma enunciaçãoque destacasse que "se queimaram as etapas". Tãodeterminante na ordem da poesia verbal, a repetição é um problema quando se trata dos gestos.Por um lado, ela é correntemente vivida comoumanecessidade infeliz: as tarefas comuns se repetemna monotonia. Todavia, ela aparece comoum fatorde poesia segundo a estética espontânea que rege,por exemplo, as narrações de anedotas, onde seutiliza comumente o imperfeito de reiteração. "Os
Surrealistas se reuniam todos os dias no Cyrano".O passado se torna tanto mais mítico quanto maishabitual ele tiver sido. "Maillol freqüentementesegurava o mijo quando voltava de Paris paraMarly-Ie-Roy, para melhor regar as grandes estátuas de seu jardim com esse elixir que tão bempatina os bronzes"7. Uma ocorrência que foi talvezúnica se enriquece quando relatada comoum rito.Brassai' conta que Picasso, na época em que mora~va na Rue La Boétie, trabalhava para Albert
7. Brassal, Conversations avec Picasso, Paris, Gallimard, 1964, p. 251.
29
Skira, cujo escritório ficava na casa ao lado: quando concluía um cobre, em vez de pegar o telefone,
fazia soar uma trombeta; Skira logo comparecias.Teria esse gesto o mesmo charme caso se supusesse que ele ocorreu sóuma vez? A reiteração desempenha um papel estético decisivo. Mas é precisoindagar se esse papel não lhe é conferido pelomodo verbal do imperfeito, se não resulta de umartifício de expressão mais do que de uma virtudepoética que estaria ligada à própria realidaderepetitiva, em suma, se a poesia das repetiçõesnão é inteiramente obra da linguagem.
Os recursos criativos do comportamento correm o risco de se revelarem por demais reduzidos,comparados com as possibilidades das artes de ficção e, mais especialmente, com os das artes depura linguagem. Algumas condutas podem ser ditas, mas não realizadas. Por exemplo, a imaginada por Coeteau: "o que eu pegaria numa casa tomada pelo fogoseria exatamente o fogo".A belezado gesto deriva aqui da ambigüidade da palavra"fogo", de seu simbolismo. Trata-se de um gesto
fictício, inteiramente constituído de um jogo depalavras. A passagem ao ato não só seria inútil(procura-se fogo tanto num incêndio quanto emqualquer outro lugar), como seria até impossível(não se transporta o fogo em estado puro: o que seretira do incêndio é este ou aquele objeto em chamas). É, portanto, à linguagem que se deve atribuir, ainda aqui, o poder de poetização que se exercita em um aparente proveito da conduta.
8. Id., p. 129.
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Deve-se generalizar? Propõe-se a questão desaber se a conduta não é irremediavelmente prosaica em relação aos achados a que se prestam aspalavras. Pode-se ficar tentado a responder que osgestos, enquanto tais, não são poéticos nem prosaicos, que o papel decisivo pertence à linguagem,que é por ela que a poesia acede ao comportamento, sendo este esteticamente neutro enquanto a literatura dele não se encarrega.
Um dia, Alfred Jarry mostrou de maneira brutal que um gesto aparentemente insensato adquire sentido de repente, no exato instante em que se
pensa pronunciar a expressão verbal que mais literalmente lhe corresponda. Tendo entrado numbar com seu aparato' habitual de armas de fogo, dáum tiro de revólver no copo de gelo, que se estilhaça. Em meio ao pânico geral, volta-se para umasenhora sentada perto e diz: "Muito bem, quebrado o gelo"', conversemos". A polissemia da palavra"gelo", como há pouco a da palavra "fogo"é essencial na constituição de tal gesto. Portanto, este nãoexistiria se não tivesse sido dito.
Na frase de Cocteau, os dois sentidos de "fogo"estão ligados por uma relação simbólica, a combustão física significando, de maneira convencional, aintensidade espiritual. Jarry, ao contrário, aproxima dois sentidos de "gelo" que não têm relação. O
pseudogesto de Cocteau possui um efeito "poético"que se pode julgar relativamente fácil; ele é apenasengenhoso, ao passo que o de Jarry é insólito e "surrealista". Mas ambos têm em COl;num fato de ilustrarem mais os poderes do verbo que os do gesto.
* Alfred Jarry dá um tiro de revólver num espelho. A l íngua francesa usa
a mesma palavra "glace" para espe lho e para gelo [N. daT .] .
31
É, portanto, verdadeiro, em certo sentido, quesó há poesia nos poemas (como só há aventura nos·romances, intriga nas narrativas, dramatização noteatro) e que um gesto talvez deva o essencial desua beleza ao talento com que é relatado. Entretanto, desde que não se minimizem esses privilégios da literatura, podem-se reconhecer os procedimentos de que ela dispõe para tentar fazê-Iosoperar alhures de outro modo. Apreendidos numgrau suficiente de abstração, eles aparecem comooperações estéticas, suscetíveis de se precisaremdiversamente segundo a substância da arte que os
emprega.O mais notável desses procedimentos é o queconsiste em restabelecer o sentido de algumas formas que os constrangimentos funcionais destinavam à insignificância. No texto artístico, comoafirma Iuri Lotman, "produz-se uma semantizaçãodos elementos extra-semânticos (sintáticos) da língua natural"9. A mesma operação que se encontra.na prática cinematográfica da câmara lenta ou docongelamento da imagem consistirá também, sob
outras modalidades, em romper o desenrolar daconduta, em reter a atenção em algum de seusmomentos, para conferir-lhe um sentido que o encadeamento dos atos dissolveria.
Greimas assinalou a ambivalência de algumasatividades corporais que, segundo a situação, têmestatutos semióticos opostos. Um movimento,abaixar a cabeça, por exemplo, pode parecer umenunciado gestual completo (saudar); pode, ao contrário, embora fisicamente idêntico, integrar-se
9. Iuri Lotman, La Structure du texte artis tique, Paris, Gallimard, 1973,
p.53.
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numa sequencia (passar por uma porta baixa).Tendo sido um enunciado, torna-se então um elemento que tem, antes de mais, o estatuto do
fonema, da unidade mínima que, reduzida a simesma, nada quer dizer. Movimento semelhantepode, portanto, se dar, quer para um programainteiro, dotado de significado, quer para umsubprograma, que Greimas compara à sílaba desprovida de significação. Neste caso, ele se limita aassegurar a transitividade da seqüência. Naquele,será dito intransitivo. Um movimento corporal,que era suscetível de constituir por si só um programa e, portanto, de se encontrar carregado de
sentido, se "dessemantiza" quando se incorporanum sintagma mais amplolo.
Por uma decisão terminológica que não é a deGreimas, mas que parece confluir com o uso da língua, consideremos como sendo gestos apenas osmovimentos do corpo que são intransitivos, que sãoprogramas inteiros. É preciso então admitir que osmesmos movimentos, quando se fundem numsintagma mais vasto, quando se dessemantizam,perdem o estatuto de gesto. Como não existe, ao
que parece, qualquer movimento que se encontresempre em posição semanticamente neutra, e tampouco existe algum que esteja definitivamente àmargem do processo de dessemantização, deve-seesperar que, no conjunto dos usos corporais, a classe dos gestos seja móvel. Um ator pode constituircomo gesto o movimento do braço que toma deempréstimo ao semeador: ele o ressemantiza in-
10. A . J . Greimas, "Condit ions d'une sémiot ique du Il londenaturel",Langages (10): 14-15, 1968; retomado em Du Senso Essais sémiotiques,
Par is, Seni l, 1970, pp. 49-91 , ver e spec ia lmente pp. 60, 65.
33
serindo-o em sua conduta, porque esse movimento nela não se integra como na do camponês quesemeia um campo. Do mesmo modo, um simples
espectador pode ressemantizar um elemento daconduta de outrem e ver, por exemplo, um "gestoaugusto"ll em que o semeador nem tem a sensaçãode ser augusto, nem sequer a de fazer gestos.
Isso dá conta de uma propriedade notável dogesto, a saber, que ele permite dizer, em virtude dariqueza semântica que pode ligar-se a qualquermovimento do corpo, mas resguardando-se do quetenha sido dito, devido à absorção sempre possíveldesse movimento num sintagma que o neutraliza.
A significação do gesto é sempre transmitida coma possibilidade de sua denegação. Um movimentoé capaz de se apresentar comoportador de um sentido autônomo facilmente legível e de desaparecerimediatamente na inocência de uma prática insignificante. Ele diz perfeitamente o que quer dizer,mas, de repente, cala-se, apaga-se, não é precisonele deter-se, ele nunca foi um gesto. As condutasde sedução freqüentemente jogam com essa ambigüidade: as proposições amorosas arriscam gestos
que sabem anular-se como tais se não obtêm a resposta esperada (então um carinho não passa deum toque casual, que não se queria um gesto). Éque todos os movimentos, todas as posturas estãoem condições de se mostrar intransitivos, masigualmente de se desembaraçar imediatamente desua carga semântica incorporando-se numa seqüência, seja pela efetiva construção ulteríor des-
11. Expres são bem conhecida na l íngua francesa . Victor Hugo: "L'ombre ISemble élargirjusqu'aux étoiles / Le geste auguste du semeur".
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sa, seja por uma simples mudança de pontuação
que faz aparecer um fragmento de seqüência onde
se poderia ter lido um enunciado completo. Alegaras coerções de uma ocupação é o meio mais banal,
por exemplo, de suprimir o sentido de uma parti
da, que lhe fora efetivamente conferido, mas que
se prefere anular. Indo embora, signifiquei meu
desacordo, minha inimizade ou minha indiferença;
entretanto, essa partida deixa de ser um gesto, sea seqüência do programa me solicitar alhures.
Para que a linguagem disponha de latitudes
semelhantes, seria preciso, por um lado, que uma
palavra pudesse deixar de ser uma palavra, queela se transformasse eventualmente em sílaba des
provida de significação, e que, por outro, uma sí
laba pudesse valer subitamente como uma pala
vra. A primeira condição, na verdade, é preenchi
da, pois é em relação à experiência lingüística que
Greimas definiu o fenômeno de dessemantização
para assinalar sua presença na ordem gestual; a
palavra ar anula-se como tal em par; que se anula por sua vez em parte, que se anula ainda em
repartirá. Mas e o processo recíproco? Que magiapoderia por ventura fazer supor o par na parte oubruscamente fazer entrar ar em par?'
A poesia é a arte dessas metamorfoses. Cha
memos agora de função poética o poder que tem alinguagem de variar a extensão dos elementos car
regados de sentido. Como exemplo de acrescenta
mento, podemos pensar nos artifícios de Queneau,provocando a absorção da matéria sonora de uma
palavra na de outra (volatilizando les Arts ao es-
o exemplo de Jean Galard escande lorl. IP01:t/. /porte/ e /rapportera/[N. da T.].
35
crever: "Nous lézards aimons les Muses"12'). Quan
to ao estreitamento das unidades, parece ser este
o objetivo dos procedimentos mobilizados commais
constância pelo que se convencionou chamar de
poesia. A repetição, multiplicando os enunciados
nos quais reaparece uma palavra, disjunge-a de
cada contexto, impede-a de fundir-se na seqüência
que ia confiscá-Ia. A aliteração cria unidades sig
nificantes interiores às próprias palavras. O esta
belecimento de correspondências inesperadas rea
nima as metáforas primitivas que inúmeras pala
vras contêm, mas que o uso havia extinguido, ou
então inventa etimologias fictícias, que deslocamos agregados costumeiros. Uma permanência for
mal ressaltada pela rima ou por uma assonância
produz um salto de nível que faz erguer a palavraalém do discurso linear. No extremo desse estrei
tamento, e como Leiris mostrou suntuosamente,
vogais e consoantes reencontram seu sabor, seu
perfume, sua qualidade tátil, enquanto os caracteres alfabéticos libertam toda a simbólica de seu
grafismo. "A poesia se desvanece e o sabá se con
gela quando letras e palavras retomam o seu lugarna ordem e tornam-se letras mortas após terem
sido energias cabalísticas de iluminação"13.
A semelhança se torna, portanto, exata entre
a poesia - que Jakobson define também como
uma linguagem na qual "a forma interior das pa
lavras, em outros termos, a carga semântica de
12. Raymond Queneau, Si tu ['imagines, Paris, Gallimard, 1952, p. 115.
O texto joga com a homofonia de lézards (lagartos) e le s art s (as artes)
[N. da T. ].
13. Michel Leiris, Biffures, Paris , Gallimard, 1948, ver o conjunto do capí-
tulo "Alphabet", pp. 38-71.
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II'
36
seus constituintes, encontra sua pertinência"14 _
e um certo tipo de comportamento que seria pre
ciso qualificar de gestual porque se caracteriza
pela abundância dos movimento ressemantizados.Esse tipo de comportamento é, evidentemente,
muito diferente do hábito de gesticular. Do mesmo
modo que a poesia verbal não é o simples acúmu
10 das unidades lingüísticas que a sensibilidade de
uma época já sobrecarregou de sentido, a conduta
determinada pela função poética não consiste em
uma multiplicação dos gestos, entendendo-se com
isso os movimentos já codificados pelo sistema de
comunicação em vigor.Trata-se, antes, de uma cri
ação de gestos, isto é, da liberação de movimentosainda não percebidos, devido ao deslocamento da
seqüência que os continha. Na situação mais favo
rável à atividade gestual, que é o teatro, a oportu
nidade dessa distinção é flagrante: a cabotinagem
se contenta com retomar, tais quais, os gestos tes
tados, enquanto a procura do ator visa a decompor
o comportamento nas unidades significantes quesão habitualmente imperceptíveis.
Aplicada à conduta, a função poética desman
tela o encadeamento pragmático dos movimentos;ela contraria a absorção dos meios pelo fim, doimediato pela perspectiva; ressalta a maneira de
agir, o método empregado, converte a escolha do
procedimento num verdadeiro objetivo.
Participar de uma votação ou abster-se dela.
Se é verdade que aí estão dois gestos, ambos entretanto não se apresentam imediatamente comotais.
Votar é primeiro um ato, que parece inteiramente
14. Roman Jakobson, "Linguistique et Poétique", op. cito
37
empenhado num esforço transitivo em favor de umresultado, em relação ao qual ele representa ummeio dessemantizado. A abstenção, ao contrário,
propõe-se de chofre como um gesto; ela concretizano instante o sentido que pretende atribuir à con
sulta enquanto tal. Ora, revela ao mesmo tempo
que a participação no voto é também ela um gesto; ressalta que a aceitação do sufrágio já é significativa de um assentimento dado ao sistema que
organiza a expropriação das responsabilidades; ela
põe em evidência que "votar, seja em que chapa for,
é votar pelo voto e já aceitar as instituições"15 .Por fácil que seja criticar a ineficiência dos
gestos demasiado puros, é preciso pelo menos reconhecer que são eles que fazem sobressair, por
contraste, que as condutas mais pragmáticas são,
por sua vez, compostas por gestos esquecidos.Jacques Vaché, dizem, nunca estendia a mão.
Esse outro gesto de abstenção lança uma significa
ção renovada sobre o gesto contrário, salienta, bruscamente, no outro, o estranho hábito do aperto demão mecânico e ressemantiza um movimento que
comumente deixamos de reconhecer como gesto.
A poesia, seja ela verbal ou gestual, reanimaos signos extintos, para que toda prosa se torneassim mais viva.
15. Cf. Francis Jeansoll, Sartre dans sa uie, Paris, Senil, 1974, pp. 257-258.
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II
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ÉTICA DO SIGNO
Onde há catástrofe, grande ou pequena, principalmente pequena, sempre se encontram homensprovidenciais para organizar os salvamentos, canalizar os transeuntes, afastar os curiosos, distribuir conselhos: personagens enfáticos que aproveitam a oportunidade para gesticular.
Sempre, nos locais das catástrofes, sobretudodas grandes, testemunhas apressadas se convencem de que não têm nada a fazer ali, que aquilonão lhes diz respeito, que estão sendo esperadasem outro lugar, esquecendo imediatamente quesua fuga também terá sido um gesto.
As catástrofes ocorrem em qualquer lugar.Portanto, a todo momento realizamos um ou outrodestes gestos: ora o excesso de signo, o exagero, apresteza exibicionista, a solicitude indiscreta; orao signo da defecção, da demissão, da indiferença.
O cuidado com a imagem que se dá de si mesmo é uma preocupação que embaraça, comprome-
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40
tendo a credibilidade dessa imagem e que muitas
vezes acaba por transmitir um sentido diferente do
que devia ser mostrado: em vez de ser a persona
gem que se queria aparentar, revela-se o pretensioso que se é. Mas, se é imediata a denúncia da
cabotinagem, da mania de se oferecer como espe
táculo, não existe, inversamente, uma palavra que
designe a consciência insuficiente das significações
que se produzem "involuntariamente", por exem
plo, quando um silêncio é uma aprovação suben
tendida do que dizem os outros, quando a simplespresença física marca uma solidariedade tácita
para com os circunstantes ou quando consentimos
com as atitudes mais vis a pretexto de que a intenção significante pode ser suspensa.
Aprender a produzir signos exatos; saber me
dir os signos que sempre se emitem: pode-se con
ceber uma ética que consistiria num bom uso dos
signos e que aproveitaria a experiência adquiridanesse sentido pela atividade artística.
Roland Barthes, por exemplo, várias vezes,levou suas análises semiológicas até o limiar de
uma moral explícita. Em Essais critiques, ele es
boça uma "moral da roupagem de teatro"l. Em
Mythologies, ele declara que o exame dos proces
sos empregados pelo cinema de reconstituição his
tórica "pode nos introduzir numa moral do signo"2.Se se reconhece que o comportamento cotidi
ano e a conduta inteira de uma vida são compostos
de elementos significantes, é preciso admitir queuma tal moral semiótica se aplicará a todos os as-
1. Roland Barthes, Essais critiques, Paris, Seuil, 1964, pp. 53~62.
2. Roland Barthes, Mythologies, Par is , Seui l, 1957, p. 28.
41
pectos desse comportamento, ao conjunto dessa
conduta. Ora, sua expressão elaborar-se-á apro
ximando-se ao máximo (é o que acontece em
Barthes) da experiência teatral, cinematográfica,fotográfica, literária. Parece, portanto, que a con
duta da vida pode regular-se por uma axiologia
de origem estética.
O mais das vezes, quando a arte e a moral não
são separadas nem inseridas em campos de expe
riência heterogêneos, é da moral (por exemplo,
política) que se esperam as normas que orientarão
a produção artística. Aqui, ao contrário, a prova
artística ou, mais precisamente, a escolha esteti
camente fundada entre os diversos estatutos dosigno que podem ser utilizados pela arte fornece
seus princípios à moral.
Que toda a vida moral se defina comoum bom
uso dos signos é o que o estoicismo já pretendia.
Mas ocorre, hoje em dia, que a reflexão sobre o sig
no tem seu terreno predileto na análise do espaço
literário, do fato pictórico ou cinematográfico, isto
é, do que é preciso chamar o domínio artístico, en
quanto os procedimentos semióticos que ali se ex
perimentam não interessam à vida cotidiana emseu conjunto. O refinamento de nossas avaliações
morais depende doravante, pois, dos sucessos da
investigação estética.
Tudo se dá, aliás, como se a moral estabeleci
da se regulasse por uma concepção do signo que
determinou uma certa literatura ou uma certa pin
tura em seu esforço, agora fora de moda, de repro
dução da realidade. Não pertenceriam os valores
morais de franqueza, sinceridade, autenticidade a
um sistema que, esteticamente, exigiria a fidelida
de da expressão, a verdade, a exata semelhança?
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42
Há uma moral, como há uma estética, que privile
gia a função referenciaI. Importa saber com queme do que se trata; é preciso primeiramente satis
fazer à necessidade de elucidar o que é o outro, oque se pode esperar dele, o que ele possui verda
deiramente. O hipócrita fornece signos que supostamente traduzem as qualidades que sua alma
contém; mas ele não fornecerá "a própria coisa". O
mal moral se encarna na figura do escroque, quenão tem a propriedade real dos bens que sua atitude significa, e se desenvolve em todas as formas
de "representação fraudulenta" enumeradas porErving Goffman em La Mise en scene de Ia vie
quotidienne3. Essa axiologia, moral aomesmo tem
po que estética, pressupõe uma separação cortan
te entre o que pertence à ordem dos signos e arealidade verdadeira à qual eles remetem.
Pode-se imaginar uma generalização semiótica,
totalmente estranha a essa concepção e que não
deixa mais nada fora da rede significante. Desapa
rece a distinção que dispunha, de um lado, os gestos deliberados, as confissões de intenção, a comu
nicação ratificada e, do outro, as condutas "insignificantes" e, ao mesmo tempo, as atividades "sérias"
às quais as pessoas se entregariam sob o impacto
da coerção ou das obrigações, distinção que separa
va também a cena social (o espetáculo dos signos) e
os bastidores (outilitário). Ora, com o desaparecimento desse dualismo, é a possibilidade de muitas
astúcias ideológicas que desmorona, na medida em
que o mito, segundo Barthes, consiste em empregar
3. Erving Goffman, La Mise en s cene de Ia u ie quo tidienne , Paris, Minuit,1973, vaI. I.
43
signos, mascarando-os enquanto tais, "naturalizan
do-os", ou em utilizar conotadores que convêm ape
nas a significações denotadas.O primeiro princípio de uma moral semiótica
imporia, portanto, o reconhecimento do signo onde
ele está, ou seja, em toda parte. Ele recomendariaarrancar as condutas ditas funcionais de sua
pseudo-insignificância, para afirmá-Ias em seuvalor simbólico.
Existe em Barthes, paralelamente a essa exi
gência, um dever de discrição concernente à inten
ção significante. A moral da roupagem de teatro
proscreve a hipertrofia da função histórica, a dabeleza formal, a da suntuosidade. De um modo
geral, a moral do signo recusa "o luxo das formas
significativas", a tentação "de tornar pesada a sig
nificação de qualquer caução da natureza".
Ver-se-á a intervenção simultânea desses dois
princípios tomando-se livremente como referência
a oposição do estilo aristocrático ao estilo burguês,como a evoca Erving Goffman ao retomá-Ia, por
sua vez, de Adam 8mith4. O estilo burguês divide
a vida, por um lado, em atividades profissionais,em que se trata de produzir com brilho índices de
competência, de prestígio ou riqueza, por outro
lado, em atividades privadas em que reinam a
parcimônia, o conchavo secreto, a mediocridade
sem importância. O estilo aristocrático mobilizatodas as atividades menores comumente abando
nadas ao insignificante para nele incorporar os
signos do caráter, do poder e da distinção. Uma
semelhante exigência de perfeição "espetacular"
4. Id. , p. 39.
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:1
I li!
44
(que possa ser exibida, como acontece com qualquer signo) refere-se desta vez às circunstâncias
mais banais e a cada detalhe do comportamentocorrente. Esses dois estilos de vida se opõem, por
tanto, primeiramente quanto à extensão que atribuem ao mundo dos signos. Opõem-se ao mesmo
tempo pelo grau de ênfase com que cada um os
dota. Um se extenua na sobrecarga, no inchaço, no
pesadume: ele não concebe o ensino sem as posturas professorais, a medicina sem a redundância
das poses doutorais, a indústria sem o aparato dos
emblemas do dinamismo. O outro acena um fugi
dio sinal para quem quiser compreender.Os termos "burguês" e "aristocrático" são, evi
dentemente, inadequados para designar esses dois
estilos hoje. Em relação ao repertório dos concei
tos que qualificam, por exemplo, os estilos pictóri
cos, aquele de que se dispuser para a apreciação
dos estilos de vida será marcado pela penúria,como se não fosse admitida ali a existência de umobjeto de pensamento.
Conviria, porém, uma qualificação para resu
mir os dois primeiros princípios de uma moral dosigno de acordo com as sugestões de Barthes. Ater
se à sobriedade do signo, à nitidez de seu valor
convencional, deixar-lhe a leveza de sua arbitrarie
dade, é admitir uma exigência estética de rigor5• O
outro princípio, por sua vez, impõe o reconheci
mento de que todo gesto, todo ato, por furtivo que
seja, toda atitude, mesmo "não-intencional", toda
conduta, mesmo "privada", todo arranjo secreto e
toda preparação nos bastidores são portadores de
5. Roland Barthes, Essais critiques, op. cit ., p. 142.
45
significação exatamente como as poses públicas, as
atitudes expressamente destinadas à comunicação,
as grandes cenas apresentadas sob as luzes da ribalta. Para essa moral, não há deslizes, nem ges
tos semanticamente neutros, nem recurso possível
para a desculpa de se ter infringido o sentido deuma conduta "só desta vez". Tal consciência inexo
rável, aliada à vontade de rigor precedentemente
definida, põe em ação uma moral que merece em
dobro a denominação de rigorismo, por mais que
se queira dissociar esse termo de qualquer idéia de
austeridade. Por praticar muito precisamente esta
ética, André Breton incorreu na censura de ter-seimiscuído de maneira constante e intratável na
vida de seus companheiros, ainda que ninguém lhe
negasse o direito à intransigência quando só setratava da literatura dos outros ou da vida públi
ca do grupo surrealista.
Haveria, portanto, por um lado, uma moral
fundada no papel representativo do signo. Ela re
prova a hipocrisia comouma aparência enganosa:
o comportamento manifesto do hipócrita exprime
disposições internas, uma benevolência por exemplo, uma simpatia, uma cortesia, que não estãocontidas na realidade do caráter. O signo represen
tativo pode ser falso: a expressão nem sempre cor
responde à verdade que deve ser traduzida. Mes
mo quando o signo é verídico, a reprovação pode se
manifestar, por exemplo, a propósito do servilismo
que exprime uma alma baixa: a baixeza, a covar
dia, o egoísmo são referentes reprovados. Existem
aqui, portanto, ao mesmo tempo dois tipos de con
denações possíveis: a que se refere à tradução infiel da realidade interior, e a que se refere à tra
dução fiel de uma realidade inconfessável.
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É possível uma outra moral, não mais funda
da nessa função de duplicação tradicionalmente
atribuída ao signo. Imaginemos que a conduta não
mais seja compreendida como a exteriorização deuma natureza íntima, que não seja mais suposta
comomanifestação de um ser interior, que não seja
mais um índice de um temperamento, mas que sedê apenas por aquilo que ela é na pura exteriori
dade: uma forma produtora de um sentido, uma
configuração significante que é supérfluo referir a
uma origem substancial. Permanece a possibilida
de de uma avaliação. Independentemente do valoratribuído ao referente, independentemente tam
bém da veracidade do significante, a crítica visa
rá à própria forma do signo e, notadamente, suas
"hipertrofias" como diria Barthes. Por exemplo, o
comportamento servil é desprezível, não porque
exprime uma alma de escravo ou porque represen
ta falsamente uma disposição obsequiosa que estaria ausente, mas porque ele superalimenta ossignos da obsequiosidade. O servilismo é a redun
dância da obsequiosidade. Domesmo modo, o com
portamento enfatuado é desprezível, não porqueexprime a vaidade ou porque representa falsamen
te uma importância que se empresta a si mesmo
e que não se possui, mas porque é a inflação dos
signos de segurança. A suficiência é uma segurança redundante.
O gesto "falso", por conseguinte, não é mais o
que remete mentirosamente a uma intenção que
deveria corresponder-Ihe e que falta. A intençãopode efetivamente existir, e é justamente na me
dida em que ela está ali, patente, demasiado presente, previamente fixada, que o gesto será percebido como falso. A conduta afetada não é a condu-
47
ta insincera, mas a que domina um sentido deci
dido de antemão, devidamente reconhecível, como
"a competência profissional", "a jovialidade", "a
descontração". Pouco importa, a essa altura, queos recursos expressivos sejam hauridos num repertório tradicional ou que sejam renovados de formaa chocar os hábitos. Tanto faz que se repita sua
respeitabilidade ou que se reafirme sua marginalidade se a intenção assim exibida preexistir ao
comportamento, que se reduz a um papel representativo e se corrompe sob o efeito da preocupa
ção com a comunicação. Toda conduta é significan
te e, talvez, "comunique" um sentido. Mas, quan
do este é isolável, quando uma fórmula o resume,pode-se considerar, de maneira análoga, que a conduta é falsa, ritualizada, dominada pela função de
comunicação, semioticamente imoral.Esta moral tem como condição o reconheci
mento da aptidão de outrem para compreender os
signos. Sua virtude dominante é a inteligência
aquela que é preciso demonstrar para escolher os
signos mais precisos, e aquela de que é precisoacreditar que o outro esteja provido. Sua genero
sidade é postular em todos a inteligência mais sensível e preferir o risco de deixar perder um bom
número de signos demasiado discretos à insistên
cia, aos gestos ressaltados.
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A ECONOMIA DOS MEIOS
A contenção e a discrição, a recusa da ênfase,
da hipertrofia dos signos, tal é a condição da qua-
lidade do gesto, em culturas, aliás, em tudo opos-
tas. Longe do universo mental do classicismo eu-
ropeu, nos astecas, nessa sociedade da consumação
que Georges Bataille situou "moralmente em nos-
sos antípodas"l, a ética, contudo, prescrevia a me-
dida, a ponderação, ela reprovava os trasbordamen-
tos de atividade tanto quanto a inaçã02• "Aocami-
nhar pelas ruas e estradas, ande comcalma e tran-
qüilidade, não levante os pés alto demais, não cor-
ra... Fale com calma, pausadamente, com uma voz
bem empostada, nem demasiado baixo, nem dema-
siado alto, não fale depressa demais, nem alto de-
mais, não urre como um impudente." A ética dos
1. Georges Bataille, La Part maudite, Paris , Minuit, col . Points, 1967, p. 88.
2. Christian Duverger, La Fleur Zétale, économie du sacri{ice azteque, Paris,
Seuil , 1979, pp. 59·68.
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antigos mexicanos caracteriza-se pela desconfiança quanto aos movimentos passionais e pela repug
nância da gesticulação. Ela obedece a um princípioque Christian Duverger formula assim: "Em todaação, um resultado ótimo deve ajustar-se a umadespesa energética mínima". Duverger consideraque essa ética da parcimônia deriva de uma "preocupação draconiana com a economia generalizada"que os astecas teriam herdado de seu período deerrância num ambiente hostil. Todavia, ele observa, por outro lado, que ainda no século XIII "é oardor guerreiro que os mexicanos valorizavam aci
ma de tudo", ao passo que, no século XV, eles zombam "do quachic, o soldado valoroso, mas fogoso,que se atirava à frente do combate sem refletir sobre o perigo". Uma "conquista de cultura" operouse entrementes; constituiu-se uma "moral econômica" que os hábitos ancestrais, portanto, não explicam inteiramente. Como compreender então essareprovação da gesticulação agitada? Duverger sugere brevemente uma razão para isso. "O gesto écalibrado porque a sociedade asteca é uma socie
dade de signos [...] Para não interferir nessa redesemiótica, o gesto utilitário deve, portanto, passarabsolutamente despercebido, isto é, reduzir-se àeficácia." Da ética austera, submetida às condiçõesda sobrevivência, que reprova o desperdício, sepassou, em suma, a uma ética dorigor propriamente semiótico.
O mínimo de movimento para obter o máximode conseqüência: a qualidade do gesto é funçãodessa relação de parcimônia. A impressão de ele
gância, mas também a de inteligência ou de poderprovêm do contraste entre a agitação mais reduzida e a amplitude do resultado alcançado.
51
A gesticulação emocional representa a inversãodessa relação. Afirmando que a sinceridade, para
ser justa, pressupõe que sejamos "sóbrios nos gestos, escrupulosos nas palavras, reservados nos entusiasmos, contidos nos desesperos", Villiers del'Isle-Adam imagina uma passagem ao ato dessepreceit03• Maximiliam de W, abandonado por suaamante, que o considera desprovido de sensibilidade, volta para casa, senta-se à mesa de trabalho,lixa as unhas; escreve alguns versos sobre um valeescocês cuja lembrança lhe vem por acaso, percorrealgumas páginas de um livro novo; depois se levan
ta e, tendo fechado as cortinas, pega seu revólver,mata-se depois de ter sorrido e dado de ombros.Esse efeito, de que os dândis fizeram seu ideal,
exerce um fascínio que se encontra em paragensbem distantes do dandismo: nos autores de ready-
made, por exemplo. Pois, contentando-se com umamudança na orientação de um objeto, com um levedeslocamento, com uma transformação de nome,Marcel Duchamp talvez satisfizesse sua "preguiça";ele talvez perseguisse uma empresa de derrisão;
mas, ao mesmo tempo, aplicava um projeto concertado de conversão das energias Ínfimas4•
Nessa chave da economia dos meios, o mutismo do gesto terá um alto rendimento. A parcimônia de linguagem é sempre bela. O gesto silencioso e medido, desencadeando por si só a transformação de sentido de uma situação, representará,portanto, um caso notável do efeito estético, pelomenos como ele é aqui encarado.
3. Villiers de l'Isle-Adam, "Sentimentalisme", Contes cruels, Paris, Garnier~Flammarion , 1980, p . 187 .
4 . Gil be rt L as ca ul t, "Le s P etites é ne rg ie s e t I a pui ss ance tim ide", Mareei
Duchamp, VAre (59): 3-7, 1974.
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Brummel passa diante de destacamento ao
mesmo tempo que o príncipe de Gales, com quem
ele está estremecido, e finge acreditar que a saudação das tropas se dirige a ele5. Sem nenhuma
palavra, sem esforço, utilizando economicamente
um dispositivo simbólico já montado, Brummel
torna soberbamente evidente que não se pode se
quer imaginar que tanto aparato seja destinado a
um simples príncipe.
Do mesmo modo, o gesto discreto de JulesValles, evidenciando subitamente a verdade de um
lugar:
Jules Val les t rabalhava na Rotonde da Rue d 'Hautefeuil le .
Num canto de mesa, o insurre to escrevia seus artigos incendiár ios
em meio de graves jornalistas do Monde e professores de Sorbonne
que beb iam copos de água com f lo r de laranjeir a. Nada de licor ; só
se podia fumar na sobreloja. Terminado o artigo, Valles saía na
ponta dos pés fazendo o gesto de tomar água benta6 .
Do café à igreja: se essa metáfora é bem-suce
dida, isso não se dá a despeito dos poucos recursos
que aí se empregam, mas em razão justamente
dessa contenção, em proporção direta da discriçãoque se adotará, por exemplo, ao se persignar. Épreciso imaginar aqui algum gesto quase impercep
tível, que quer e não quer ser surpreendido.
Ainda que os usos corporais sejam perfeita
mente capazes de desenvolver, por si sós, uma sim
bólica infinitamente variada, podem também enri
quecer-se tomando como coadjuvante um objeto,
entre os que já estão mais fortemente carregados
5. Emilien Carassus, LeMythe du dandy , Paris, A. Colin, 1971, p. 121.
6. Pierre Labracherie, La \ fi e quo tidi enne de la boheme l it térai re au XIX"
siecie, Paris, Haehette, 1967, pp. 3·7.
53
de sentido, e separando-os, assim, de seu quadro ou
de seu manejo habituais. Um gesto mínimo encon
tra então prolongamentos rápidos numa simbólicapreviamente traçada. Ele pode atingir, ademais,
uma polivalência de sentido tão exatamente instan
tânea que nenhuma tradução verbal dele pareça
concebível; daí a impressão ainda maior de poupan
ça de energia, pois o pensamento tropeça ao enunci
ar de pronto ou mesmo ao desatar exaustivamente
o sentido complexo que se pressente e que um sim
ples gesto pôde produzir com facilidade.
Milan Kundera, em La Vie est ailleurs, conta
que seu jovem herói quer chamar a atenção de umilustre poeta, que tarda a responder à admiração
que lhe é dedicada. Perdendo a paciência, Jaromil
põe-se a pilhar as cabines telefônicas, reúne uma
coleção de fones, empacota-os e os envia ao poeta. O
fone com o fio cortado foi anteriormente designado
como"o tipo de objeto que, separado de seu quadro
habitual, produz uma impressão mágica e pode le
gitimamente ser qualificado de objeto surrealista".
Sua utilização, no episódio das relações com o ilus
tre poeta, transferirá ao gesto uma pluralidade desentidos possíveis (apelo suplicante ou, ao contráio,
interrupção orgulhosa de uma vã espera) justifi
cando a expressão pela qual Jaromil define sua re
messa: "um gesto carregado de poesia"7.
Esse emprego de objetos com simbolismo pré
constituído tem um efeito tão seguro que se pres
ta a algumas facilidades de repetição, que são o
academismo dogesto, como o de queimar uma ban
deira. Dá-se com um gesto o que se dá com um
7. Milan Kundera, La Vie est ailleurs, Paris, Gallimard, 1973, pp. 119, 191-
194.
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quadro: não é necessário que se tenha encontrado
seu semlhante para que ele produza um sentimen
to de déjà vu. Kundera não deixa de ser irônico
acerca das impressões poéticas de Jaromil.Um "motivo", por seu sentido próprio, não ga
rante a excelência da obra em que figura, assim
como ele não basta, se banal, para corrompê-Ia. Ao
estereótipo que consiste em queimar uma bandei
ra, é interessante comparar um outro gesto, utili
zando-se o mesmo emblema, também com intenção
de protesto, porém mais duramente ofensivo a des
peito de sua aparência mais pacífica: o de um ra
paz que foi detido, no fim dos anos 60, pela polí
cia, em Santiago do Chile, por ter lavado a bandeira norte-americana na frente da embaixada dos
Estados Unidos.
Um gesto, para atingir a plenitude de sentido
de que uma verdadeira obra de arte é capaz, de
modo nenhum precisa conter implicações infinitas.
Pelo contrário, suponhamos que estas sejam pou
co numerosas e límpidas para a intuição; imagine
mos que uma posição analítica se presuma capaz
de traduzir logo em algumas palavras esses signostão abertamente inteligíveis; pelo fracasso inespe
rado da intenção discursiva se reconhecerá a jus
teza do gesto.
Este gesto, por exemplo, o último, sem dúvida,
de Alfred Jarry (André Breton dizia que, a partir
de Jarry, "a diferenciação tida por muito tempocomo necessária entre a arte e a vida seria contes
tada, para acabar aniquilada em seu princípio"B):
transportado para o hospital La Charité, da água-
8. André Breton, Anthologie de l'humour noir, Paris, Ed. du Sagittaire, 1940,
pp. 168-169.
55
furtada miserável onde vivia e onde um dia foi
descoberto paralisado das duas pernas, Jarry, às
vésperas de sua morte, quando o médico Saltas lhe
pergunta o que lhe daria mais prazer, pede um palito de dentes.
Alusão ao "banquete da vida"? Ação de graças
pelas migalhas de um pseudofestim? Cinismo sé
rio? .. Ou ironia, de antemão, em relação aos co
mentários, fatalmente canhestros, acumulados de
noções por demais amplas, de referências elásti
cas, pretendendo captar a singularidade de um
gesto que, afinal, de maneira não menos evidente
e igualmente incerta, dispensava a metafísica e
nada queria "dizer"?O contraste entre a extrema simplicidade do
gesto e sua riqueza simbólica é suscetível de au
mentar infinitamente, sem que seja necessário
imaginar uma complicação desmedida de seu sen
tido, contanto que o gesto se simplifique até a abs
tenção. Pois a verdadeira ausência de movimento
se torna ela mesma, eventualmente, um gesto. O
hábito de Jacques Vaché de nunca estender a mão
não deixava, certamente, de ter sentido, de manei
ra até bastante brutal.
Há alguns anos, jornais relatavam na França
minúsculos atos de sabotagem ou de fraude a que
se atribuíam um alcance "revolucionário" e que
queriam mover uma "verdadeira arte nova". Recei
tas simples permitiam viajar gratuitamente pelaSNCF (Société Nationale des Chemins de Fer
Français) ou de metrô, paralisar a produção da
empresa em que se trabalha, provocando nela,
pela contrafação dos documentos, planejamentos
ou registros contábeis, inextricáveis incidentes. O
intuito era quebrar os regulamentos, o sistema de
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controle minucioso, a hierarquia permanente, e
isso com gestos mínimos cuja simplicidade con
trastava com a perturbação que criavam. Por que
esses furtos, essas pequenas fraudes, essas vinganças sorrateiras dão a impressão de que o ges
to aqui é menos ainda que mínimo, miserável?
No mesmo momento, na Itália, praticava-se
o que se chamou "a desobediência civil". Por
exemplo, tendo o preço da passagem de ônibus
aumentado (mas não os salários), o protesto con
siste, não em deixar de pagar, mas em adquirir
a passagem pelo preço anterior. A recusa fica
desse modo mais bem marcada, a desobediência
mais nítida, a abstenção finalmente mais completa do que viajar de graça.
A comparação desses dois tipos de conduta
evidencia que, para se apreender a qualidade do
gesto segundo a perspectiva de uma economia dos
meios, convém precisar algo importante: não é a
quantidade objetiva de parcimônia que se deve le
var em conta, mas o efeito de simplicidade. A be
leza do gesto, por definição, mostra-se; é de sua
essência manifestar-se e até, em certa medida,
dar-se como espetáculo. A fraude, sendo secreta, o
desembaraço, que dissimula seus procedimentos,
a sabotagem sub-reptícia situam-se, na realidade,
no oposto desse efeito.
Freud utiliza essa noção de parcimônia em O
Chiste e Suas Relações com o Inconsciente. Anali
sando diversos procedimentos pelos quais as mes
mas palavras tomam diversos sentidos, ele consi
dera que "uma tendência à compressão, ou melhor,
à parcimônia, domina todas essas técnicas". Ora,
Tzvetan Todorov, por sua vez, acha que é preciso
afastar a validade dessa noção na explicação dos
57
fenômenos do espírit09• A propósito de um exemplo
de duplo sentido citado por Freud (tendo sido um
dos primeiros atos do reinado de Napoleão III o deconfiscar os bens da família de Orléans, fez-se a
esse respeito um trocadilho: "É o primeiro vôo' da
águia"), ele se pergunta se a parcimônia no esforço
físico, que teria sido necessária para pronunciar
duas palavras em vez de uma, não é amplamente
compensada pelo dispêndio de esforço mental ne
cessário para que se ache uma palavra muito bem
apropriada aos dois sentidos visados. Ele acrescen
ta que a fragilidade desse conceito de parcimônia
não escapou ao próprio Freud, que, quando o apre
senta, confessa que algumas economias realizadas
pela técnica do espírito
[ .. .] lembram-nos talvez as das donas de casa que perdem
tempo e dinheiro com transporte, na esperança de, num mercado
distante, pagar por seus legumes alguns centavosmenos. Queeco
nomias realizaria, portanto, o espírito com sua técnica? Ele pou
pa a reunião de algumas palavras novas que, na maior par te do
tempo, teriam sido facilmente encontradas; em compensação, o es
pírito deve se esforçar por procurar a palavra capaz derevestir os
dois pensamentos; muitas vezes, até, é preciso procurar, primei
ro, para um de seus pensamentos, uma expressão poucousual mas
suscetível de realizar sua fusão com o segundo. Não seria mais
simples, realmente mais econômico,exprimir os dois pensamen
tos tais comose apresentam, sob o risco de não encontrar para eles
expressão comum?Não estaria a parcimônia de palavras mais do
que compensada por um suplemento de dispêndio intelectual?
Parece que essa discussão não teria objeto se
ficasse entendido de chofre que o chiste chama a
9. Tzvetan Todorov, Théories du symbole, Paris, Seuil , 1977, pp. 311-315.
* Em francês {{voZ" significa ao mesmo tempo "vôo" e "furto", resumindo exa
tamente ao opini ão púb li ca sob re o ges to de Napoleão 111[N. da T .] .
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atenção de Freud por seu efeito estético (do contrário, como se efetuaria a seleção dos exemplos?) e
que esse efeito não se mede de modo algum poruma parcimônia positivamente verificável, masantes, segundo a impressão de desafogo que provoca. Ocorre que o máximo esforço é requerido paradar à imagem a maior simplicidade: assim ocorrena dança. A "economia" estética tem a particularidade de começar nada economizando; puro dispêndio, dissipação das energias, o jogo consiste aquiem dilapidar o esforço físico e mental para chegara um mínimo - contrastando esse mínimo com os
inesperados abalos de sentido que ele desencadeia.O efeito estético, por definição, é pura aparência.Se, por hipótese, ele for relacionado com a noçãode poupança, será preciso então imaginar uma espécie de jogo com poupança, uma economia representada, uma poupança fingida, não sendo o objetivo economizar realmente forças, mas produzir, demodo tão custoso quanto necessário, a forma maissimples para evidenciá-Ia em sua relação com osentido mais pleno.
A AÇÃO SIMBÓLICA
Há, portanto, um "efeito" do gesto, que não sereduz aos resultados que se esperam de um ato. Ogesto se mostra. Ele tem sentido, ao marcar umtempo de pausa no encadeamento dos atos. Há, emqualquer gesto, algo suspenso que dá margem àrepercussão simbólica, ao valor de exemplo.
A ação militante recorreu por vezes a um modode intervenção que procede por gestos. Foi o queaconteceu freqüentemente, nos anos 60, em paísestão diversos quanto o Japão, o Uruguai ou os Países Baixos. Os Estados Unidos, particularmente,foram palco de numerosas manifestações dessetipo, das quais Jerry Rubin, que foi um de seusatores, fez uma relação em Do it1•
Quando os trens de G. 1.'s transportavam astropas com destinação à estação militar de Oak-
1. Jerry Rubin, Do it, Ed. Simon and Schuster, 1970; trad. fr. , Paris , Seuil ,1971.
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land, O Comitê Vietnã de Berkeley tentou opor-seà sua passagem. Os trens continuaram seu cami
nho até o dia em que os militantes conseguiram
bloquear um comboio. Sua imobilização não excede alguns minutos. Osmilitantes pacifistas logose
dispersam, espalham-se pelas ruas de Berkeley
como combatentes vitoriosos, proclamando haver
detido o transporte das tropas: "Detivemos de vez
a máquina de guerra em seus trilhos"2. Duas com
preensões do acontecimento entram em choque.
Para uma, esse gesto é totalmente irrisório; ele
não tem conseqüência quanto ao prosseguimento
da guerra. Para a segunda, ele prova subitamen
te que a máquina não é invencível. Naquela, umaduração contínua contém momentos que agem uns
sobre os outros, passo a passo, segundo uma cau
salidade transitiva; nesta, o instante exemplar não
está inserido no encadeamento temporal, despoja
se de qualquer eficiência sobre o futuro próximo eergue-se intransitivamente como uma referência
firme para um futuro indefinido. Todos os atos re
feridos em Do it pressupõem que se admitiu a va
lidade dessa concepção do tempo, que substitui o
rendimento linear pela influência paralela.
Por isso é difícil avaliar a eficácia de ações semelhantes: a própria noção de eficácia, a idéia de
medir os efeitos adquiridos, pertencem provavel
mente a uma outra ordem de avaliação diferente
daquela que um gesto, enquanto tal, pode ressaltar. Pela mesma razão, o destino do movimento
pacifista em seu conjunto não deve ser apreciado
segundo a consideração de sua degenerescência
2. Id., pp. 32-36.
61
efetiva. É verdade que J erry Rubin, mais tarde,
refugiou-se na espiritualidade absconsa e no
psicologismo bioenergétic03• É verdade que Tom
Hayden fez uma campanha eleitoral no mesmoestilo de seus adversários dos anos 60 e que
Eldrige Cleaver arregimentou pessoas em favor do
exército american04• Mas os gestos outrora bem
sucedidos conservam sua vida própria e seu valor
de exemplo, apesar das abdicações que se segui
ram. Vale para o belo gesto o mesmo que para aobra realizada: a ausência de efeito imediato ou os
absurdos ulteriormente proferidos pelo autor não
legitimam sua depreciação retrospectiva.
Os atos dessa espécie convertem-se em gestosporque parecem comportar em si mesmos sua jus
tificação. Bastante ricos de sentido para não serem
indiferentes ou gratuitos, só têm por objetivo pro
duzir o acontecimento que os resume. Não formam
o meio de uma finalidade exterior, mas têm em
sua própria realização sua razão suficiente.
Seria bom demais que esses simples gestos ti
vessem rigorosamente os mesmos efeitos de uma
longa paciência. As ações contadas emDo it visam
à repercussão espetacular imediata. É duvidoso
que tenham tido, em profundidade, a influência
que Jerry Rubin, por outro lado, lhes atribui:·"Podíamos mudar o curso da história num só dia.
Numa hora. Num segundo. Pela intervenção deci
siva no momento decisivo". A euforia que Rubin
manifesta com tanta constância não provém pro
vavelmente apenas do contraste entre os meios
que ele emprega e o resultado obtido, mas de uma
3. Les Temps modemes , (361-362): 202 e S5., 1976.
4. Id. , pp. 75 e S5.; 87-88.
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verdadeira suspensão do princípio de realidade. O
benefício revolucionário antecipado é pelo menos
incerto; o militantismo refletido teria boas razões
para avaliá-Io como nulo.Será, entretanto, irremediavelmente aberran
te a simplificação, alegremente agressiva, que con
siste em confundir o brilho do gesto e a ação efi
caz? Há, em Do it, um episódio no qual se realiza
a inteira substituição da realidade pelo desejo: o
do anúncio, nas ruas de Nova Iorque, do fim da
guerra do Vietnã, vários anos antes que a paz setenha tornado efetiva, numa barafunda tão convin
cente que a polícia, acrescentando seu próprio tu
multo, parece ter-se juntado à festa. "Ninguémparecia lamentar o fim da guerra. É ainda mais
surpreendente que ninguém tenha tido a idéia de
perguntar quem ganhara"5. Quando a resignação,
a inércia do hábito, o bloqueio da imaginação con
tribuem, por sua vez, para a perpetuação da rea
lidade histórica, como negar, em contrapartida,
qualquér poder à ficção em ato, à ruptura das ro
tinas e ao próprio simulacro da esperança? A pro
clamação do fim da guerra era irrealista como um
jogo, mas obrigava a realidade a se enunciar, porseu turno, como uma má ficção. Quando projeta
essa farsa muito séria, Jerry Rubin não se com
praz apenas em imaginar a satisfação instantânea
de um desejo inútil; tem em vista o efeito de cho
que que a interrupção de um sonho produz e a ati
va repulsa que dela resulta quando o chamado da
verdade toma um aspecto brutalmente paradoxal:
"Seria preciso que Nixon se mexesse para vir tran-
5. Jerry Rubin, op. cit., pp. 138·140.
63
qüilizar na tevê o povo americano e dizer que a
guerra continua".A dicotomia que reserva ao "ato" os privilégios
da eficácia e qualifica de simples "gesto" qualquerconduta presumida estéril domina há tanto tempo
o pensamento espontâneo que os recursos próprios
do gesto são dificilmente diferenciados. Contudo,
a celebração antecipada do fim da guerra e uma
manifestação pacifista comum,ainda que se limitem ambas a se oferecer como espetáculo, não se
reduzem à mesma coisa. "Nossa celebração arran
cava as pessoas de seus hábitos. As que eram fa
voráveis à guerra não sabiam como se defender
contra aquele ataque psicológico. Não a podiamignorar comoteriam ignorado cartazes que diziam:
Abaixo a guerra." A natureza particular do gesto
subversivo requer um princípio específico de apre
ciação, levando em conta a novidade e a simplicidade dos meios empregados, a desproporção entre
a iniciativa e suas repercussões, a desorientação e
a anarquia resultante desse desequilíbrio, abrin
do assim uma dimensão que não é redutível, nem
todavia inteiramente heterogênea, àquela da ação
militante razoável.Embora o gesto possa ser exemplar sem visar
a efeitos tão ruidosamente espetaculares, ele é
indissociável de uma intenção de parecer ou mos
trar, por onde já se introduz, aiqda que discretamente, a idéia de espetáculo. É nesse ponto que
ele está mais sujeito à crítica. Talvez seja aqui,
ao mesmo tempo, que evidencia seu pleno senti
do. O exagero que Jerry Rubin traz à espetacula
rização da conduta é, a esse respeito, uma (ltil
ampliação da teatralidade elementar deteetávelem qualquer gesto.
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Quando a Comissão das Atividades Antiameri
canas abre um inquérito sobre o Comitê Vietnã de
Berkeley, Rubin, chamado a Washington para tes
temunhar, prepara-se "como para uma esti"é~ naBroadway" ..Sua chegada ao Congresso, com,? édescrita em Do it, é uma verdadeira entrada em
cenas. Envergando um traje de ópera com os bol
sos atulhados de panfletos e brochuras, atravessa
o saguão frustrando divertidamente as objeções
dos guardas que pretendem reprimi-Io. "Os projetores e as câmaras ronronaram. Fazíamos nossa
entrada. Dei a volta na sala, sentindo meu público..." Um dos advogados é expulso da audiência e
preso. Seus colegas levantam-se, em protesto, desistem e saem da sala um a um. "Víamo-nos sem
advogados. Era realmente um golpe duro. Aquelescanalhas de advogados nos roubavam a cena." Ter
a cena, no caso, é captar a atenção geral de modo
que a atitude que se apresenta adquira o alcance
do que Rubin chama "mito". Alguns anos depois,"os yippies iam servir-se da Convenção Democra
ta e de suas pompas teatraIs para construir seus
tablados e encenar o mito; íamos afanar o papelprincipal dos democratas, a imprensa só se inte
ressaria por nós, e o espectro yippie ia começar aassombrar a América"?.
Entre este ser imaginário que é o mito e o in
divíduo ou o grupo que o simboliza, a relação é a
mesma que a existente entre a personagem e o
ator. Analisando essa relação de representação,
Louis Jouvet excluía a possibilidade de a persona-
6. Id., pp. 61.63.
7. Id. , p. 83 (o movimento )'ippie f orma u ma sínt ese d o esquerd ismo e dacorrente hippie).
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gem, comoo herói, alguma vez "se encarnar": viva,
mas inacessível, a irrealidade é sua naturezas.
Essa irrealidade, longe de diminuir a sedução ou
o assombro que exerce, é, antes, a sua condição. Opróprio Jerry Rubin, tão confiante contudo na pos
sibilidade de realizar o mito, bem observa a irre
dutível distância que o separa de seus agentes oca
sionais: "Omito ultrapassa sempre o que o fundou.
O mito do Che é muito mais poderoso que o indi-'víduo Che Guevara"9.
Ora, esse acesso do real ao estatuto do imagi
nário necessita de algumas mediações, que são averdadeira fonte do mito. Este deriva menos de
um dado inicial, cujo conteúdo seria favorável a
essa transfiguração, do que dos procedimentos que
entram em ação na narrativa mitológica ou na
imagem lendária. Isso explica que os detalhes que
pareciam os mais prosaicos alcancem um dia o
prestígio simbólico - e torna-se plausível a reco
mendação yippie de fazer de cada pequeno aconte
cimento um elemento mítico1o. Esses procedimen
tos, por diversos que sejam, conforme se trate de
uma narrativa épica, de uma efígie, de uma reportagem televisiva, reduzem-se, essencialmente, a
abstrair fragmentos instantâneos, cuja irrealidade
mágica resultará do seu simples destacamento de
um conjunto contínuo.
"Todojornalista é um dramaturgo: ele pega a
vida e faz dela uma peça de teatro"11. É que ele
8. Louis JOl1vet, Témoignages sur le théâtre, Paris , Flammarion, 1952, pp.
175,177.
9 . Je rry Rubin . op. cit., p . 83.
10. Id.•p. 128.
11. Id.•p. 106.
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não pega toda a vida; o que retém dela se encon
tra, por isso mesmo, liberto dos encadeamentos
pragmáticos e se torna disponível para os jogos
do imaginário. A transformação mítica de umepisódio qualquer exige, para toda encenação,essa seleção isolante, que o relatório mais escru
puloso, como também o mais sumário, realiZa)necessariamente.
O ato de alcance mítico implica, portanto, um/fracionamento do tempo; a descontinuidade é sua
condição. A propósito das grandes manifestaçõesrelatadas por Rubin, um testemunho exterior a Do
it revela que "os combates de rua paravam assim
que as equipes de televisão saíam para o almoço"12.A partir dessa observação desmistificadora, podese contentar em concluir que o espetáculo assim
dado só tinha o sentido de servir à ambição de apa
recer dos participantes, o vedetismo dos protagonistas, a vaidade de reter por um instante os olha
res de um público. Uma interpretação menos res
trita detectaria talvez em tal preocupação da "mídia" a necessidade de produzir, não só diante dos
outros, mas também para si, essa mutação da rea
lidade evanescente em acontecimento, da continui
dade cotidiana em lenda, que sua intervenção ga
rante automaticamente. Permanece o fato de que,
ao submeter-se a esse tipo de mediação, que é for
çosamente intermitente, a conduta se fragmenta:
às grandes cenas, fechadas sobre si mesmas, sucede-se apenas a trivialidade dos entreatos.
Preparando com o Comitê Nacional de Mobili
zação a manifestação antiguerra de outubro de
12. Les Temps modernes, op. cit ., p. 274.
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1967 em Washington, Rubin imagina um "cenário"
em que, de provocação em proibição, deve desenvolver-se "o dramático enfrentamento da Liberda
de contra a Repressão". Devido ao número imenso dos manifestantes, à estimulante intransigên
cia governamental, à embriaguez de sentir que omundo inteiro tem os olhos fixados sobre si, o co
mício se torna uma sublevação, sua eclosão será
invencível. "O governo é obrigado a transigir. E, no
final, tomamos o Pentágono!"13. Uma liberdade de
imaginação completa, exercendo-se relativamente
a uma conjuntura ideal, concebe a tomada do
Pentágono como um fim. O mais gigantesco edifício administrativo, a mais implacável máquina de
guerra, apesar da proteção de tropas especializa
das, sucumbe ao cerco de manifestantes desarma
dos que conseguem invadi-lo. E essa proeza não
suscita, aparentemente, nenhuma conseqüência.
Apocalipse ou apoteose, é um resultado.
O cúmulo do prosaísmo, isto é, da falta de sen
sibilidade ao mito, é atingido quando o espírito
conserva, em meio a uma situação excepcional, a
preocupação com as coerções cotidianas, como entre essas Mães de Família que consentem em par
ticipar da manifestação contra o Pentágono,
contanto que tenham tempo de voltar para casa
para o jantar14. O prosaísmo aqui não provém de
alguma indignidade afeita à preocupação de se alimentar. Não resulta, tampouco, da interrupção
deliberada de uma proeza que prometia infinitos
prolongamentos. Reside, ao contrário, no apego às
13. Jerry Rubin, op. cit., p. 68.
14. Id., p. 72.
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obrigações costumeiras, na ansiedade da tarefa
próxima: na recusa das descontinuidades. A obser
vância da disposição mítica consiste, para Rubin,nessa mesma circunstância, em provocar a inter
rupção mais cortante. "Juramo-nos escapar, namedida do possível, de qualquer prisão, mas era
preciso um fim teatral para a tomada do Pentágono"15.Deixar-se prender, para um manifestante
inflamado pela lenda, é a melhor maneira de as
sistir a um autêntico cair de cortina e, por conse
guinte, de conferir retroativamente ao lapso detempo que precede uma completeza fabulosa.
A conduta dirigida pela inspiração mítica, destacando, assim, de qualquer seqüência possível
atos instantaneamente suficientes, parece, portanto, comprazer-se com uma perfeita esterilidade. E
é esse exatamente o agravo comum dirigido aos
fatores de perturbação simbólica: sua agitação épura pantomima, seus lances fulgurantes só visam
e conseguem ser imagem, esses fantoches e esses
fogos-fátuos não mudam nem perturbam coisa al
guma, sua turbulência carnavalesca é uma de
monstração de impotência, e todo esse exibicionismo é tão inútil quanto uma revolução de brincadei
ra. Régis Debray, crítico severo das atitudes inú
teis, denuncia nesses termos o maio estudantil de
1968, "que foi para a Revolução o que o onanismoé para o ato sexual"16.
Entretanto, a oposição demasiado evidente en
tre a esterilidade das posturas espetaculares e a
virtude agente do trabalho paciente precisa ser
15. Id., p . 80.
16. Régis Debray, Les Rendez-uous manqués, Paris, SeuiI, 1975, pp. 123 e 55.
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sensivelmente retificada. A convicção de que os
atos destinados exclusivamente ao efeito do espe
táculo não são inofensivos se fortalece, em Rubin,
todas as vezes que o adversário se apressa preci
samente em esvaziá-Ios de sua significação simbó
lica. Enquanto ele reivindica que o inculpem por
ter urinado no muro do Pentágono, é por vadiagem
que será preso17. Numa faculdade ocupada pelos
estudantes, em que está em jogo nada menos que
derrubar o governo, as detenções são caracteriza
das como ataque à propriedade privada18. A mais
dura resposta que as encenações subversivas de
vem temer é a de se verem convertidas em infrações menores: não é esta a prova de que sua eficá
cia específica ia residir naquilo que contém demais
especificamente teatral? Por outro lado, o retorno
publicitário que o poder estabelecido, por sua vez,
não se priva de recolher de uma bela atitude gra
tuita, o rendimento demagógico que ele extrai de
uma infinitesimal reforma, o benefício que o Prín
cipe assegura para si sabendo aparecer, o efeito
muito real que ele obtém distribuindo ninharias,
toda essa potência oriunda da imagem contradiz oorgulhoso dualismo que desejaria opor a atividade
fecunda às esterilidades masturbatórias. Debray
admite, de passagem, que existe uma "eficácia re
lativa do simbólico". Concessão oportuna, quando
se propõe, como ele faz, incluir a gesticulação es
querdista no fenômeno global que é a "sociedade do
espetáculo"; pois essa perversão geral não precisa
ria tanto ser vilipendiada se permanecesse sem
17. Jerry Rubin, op. cit., p . 80.
18.Id., p . 129 .
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conseqüência. A comum transformação do ato emimagem, da vontade em pose, do projeto em mitoseria apenas deplorável se representasse simples
mente a impotência. A irritação que suscita indica sem dúvida que se trata de outra coisa.
O apego ao mito não é, necessariamente, esterilizante. No jogo de um modelo voluntariamentesimplificador, condutas eventualmente fecundasidealizam seu objetivo, depuram seus motivos.Seria ousadia pretender que toda ação verdadeiraimplicasse uma escrupulosa consciência de suasrazões, uma visão exata da complexidade de seusobjetivos. É, antes, presumível que esforços perse
verantes pudessem ter por incitação e por sustentáculo o mais esquemático símbolo. Por que a tomada do Pentágono seria um mito menos eficiente do que a da Bastilha, ou a ocupação da Sorbonnedo que a libertação do Santo Sepulcro?
Um ato se torna espetacular quando um iníciomarcado, uma realização nítida, a ênfase de suaexpressividade o tornam uma unidade plena designificação. Ao apressar-se em amaldiçoar a idéiade espetáculo, reduzindo-a à de ineficiência, cai-seno engodo semelhante ao de opor os verdadeirosatos às vãs palavras: o mesmo que esquecer os.poderes da linguagem. A reprovação que atinge cadavez mais dogmaticamente o que se denomina a sociedade do espetáculo visaria com mais direito alguns sentidos que ali se exprimem, os estilos queali prevalecem. A abjeção que as palavras podemsignificar não motiva a depreciação da linguagemenquanto tal. Do mesmo modo, o desprezo dos outros que se manifesta no blefe de alguns atos nãojustifica que seja censurada a capacidade que tema conduta de formar imagem.
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Infelizmente, não é freqüente que um ato simbólico saiba contentar-se em ser exemplar. Ambicionando ao mesmo tempo os méritos da ação di
reta, ele abandona o verdadeiro teatro pela comédia do afã, defende-se de ser puro espetáculo e resvala para o estardalhaço. Maio de 1968 representaria talvez ainda hoje um mito mais vivaz se selimitasse a criar a imagem de um abalo inédito,em vez de querer, além disso, dar-se a ilusão deinstigar uma clássica revolução proletária. Quando vitupera as falsas aparências esquerdistas,Régis Debray não é nada convincente se pretendecensurar as demonstrações espetaculares, que não
são tão vãs quanto diz, para melhor louvar o rigordo trabalho estratégico, o qual, como se sabe, nemsempre, tampouco ele, termina onde pensava ir.Mas a diatribe é justa se atribui à impostura umateatralidade que crê dispor de outros meios alémdaqueles que a cena oferece, e se nisso tudo se trata, mais precisamente, de opor-se à confusão dosgêneros.
As manifestações simbólicas dos anos 60 tiveram muitas vezes a virtude de contar, incondicio
nal e exclusivamente, com os poderes do espetáculo. Mesmo que tenha acontecido a seus autoressuperestimá-Ios, pelo menos não tentavam acreditar que os paralelepípedos tenham o mesmo efeito que as granadas, nem que as imagens que inventavam possam chocar outra coisa além dasimaginações. Daí, por exemplo, nos amigos deRubin, o interesse ingenuamente confessado pelapublicidade que a imprensa e a televisão lhes reservava e a estranha indiferença pelas seqüências
próximas das ações que empreendiam. Aoprocuraragir apenas pelo exemplo, eles se encontravam
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mais aptos a utilizar plenamente todos os seusrecursos dramáticos.
O pensamento espontâneo opõe a aparência do
gesto à seriedade do ato, a esterilidade das gesticulações à eficiência do trabalho invisível, a ilusãodo simbólico à realidade prática. Evitar-se-á substituir essa dicotomia simplista pela confiança ingênua nos poderes do gesto. Concedamos que elenão tem eficácia alguma. Mas nem por isso é desprovido de alcance.
Durante os Jogos Olímpicos de Munique, em1972, dezenas de milhões de espectadores puderam assistir pela televisão a um gesto ao mesmotempo muito simples e muito ativo. Ao término de
uma prova, durante a execução do hino nacional,o vencedor balançava ostensivamente sua medalhadando as costas à tribuna oficial. Seria preciso,para minimizar o alcance desse gesto e negar-lheo peso de um ato verdadeiro, ignorar também afunção dos ritos, dos cerimoniais, das festividadesorganizadas. Era apenas um gesto, ele tinha umainfluência apenas simbólica. Mas seria a realidade, cujo prestígio ele minava, de outra ordem? Seria inconseqüente admitir que os emblemas e asinsígnias, os concursos, os aparatos, são autênticos fatores de pressão, e acreditar que a arte desubvertê-los tem a inutilidade das gesticulações.
PARÊNTESIS
A teatralidade, o cálculo do rendimento espetacular, podem faltar em inúmeras condutas quedeverão sua qualidade a virtudes mais secretas. Aescolha dos exemplos evocados até aqui restringiuse aos gestos concertados: assim se reduziu o desígnio que se formara inicialmente. À margem desses gestos deliberadamente emitidos para outrem,
desenvolvem-se condutas mais fluidas: atitudesgraciosas ou gratuitas, comportamentos soberanos,sem preocupação com o efeito. Mas, querendo-seconsiderá-los exemplos, experimenta-se a dificuldade que há em citar uma conduta.
Não se menciona uma conduta como se podecitar um texto. Uma obra de linguagem se atribuium começo e um fim; ela é separável das contingências que ac~mpanharam sua elaboração. Presta-se a uma reatualização a cada vez que se a relê.
Limita-se eventualmente a algumas palavras, queencontram uma significação no instante em que se
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enunciam. Uma conduta, ao contrário, ganha sen
tido a partir de uma situação que não tem contor
nos assinaláveis e que, por esse fato, não se repe
tirá. Seus inícios são fugidios, seu fim é impreciso. Não só o tempo que ela implica não é delimitável, como também é intimamente solidária do
espaço empírico em que se situa. Seu sentido de
pende do lugar e dos arredores, dos parceiros, doscomparsas ou das testemunhas ocasionalmente
presentes - componentes cujos limites são impossíveis de ser estabelecidos.
Longe de se caracterizar pela incapacidade de
invenção, o comportamento pode seguramente pro
duzír acontecimentos análogos a um chiste; masele o fará englobando tantas alusões a circunstân
cias tão fugidias que sua obra, efêmera, dificilmen
te se deixará captar pela análise. Esta pesa num
texto porque ele permanece e, num achado verbal,
porque se repete. Ela fica desamparada diante da
fugacidade de uma situação vivida, como a musi
cologia ficaria se nenhuma música pudesse serreouvida.
Uma composição musical se apresenta como
um objeto preciso. Sua execução por um intérprete,ainda que seja menos fácil definir o que lhe é próprio, possui, contudo, por sua vez, uma existênciadistinta. Porém, e as circunstâncias dessa execu
ção? A escolha da obra, a do lugar e do momento
podem ter uma qualidade criativa que depende de
uma arte verdadeira: arte da situação, do acontecimento, do comportamento coletivo. Mas como tra
çar os limites dessa situação? E comodescrever tal
momento sem deslizar do relatório à reinvenção?
Por razões possivelmente diferentes, mas demaneira igualmente radical nos dois casos, a des-
75
crição malogra na restituição da qualidade exatade uma obra de comportamento, do mesmo modo
que o fariam as palavras se devessem mostrar o
aspecto de uma pintura ou a aparência de um
monumento. É quase tão desconcertante ter de ci
tar comoexemplo uma conduta quanto se ver obri
gado a resumir um quadro.Ora, remeter à experiência direta tampouco
é praticável: nesse caso, aqui não se visita, nãose reserva e nada se reitera. Embora a lingua
gem se esquive, é impossível dispensar esse re
curso aproximativo.
Algumas condutas serão, conseqüentemente,
privilegiadas; não em virtude de suas qualidadesintrínsecas, mas simplesmente porque são menos
incômodas de ser citadas do que todas as outras.
São aquelas que se destacam da continuidade am
biente por um começoe um fim relativamente cla
ros, por uma auto-suficiência que permite isoláIas. Uma conduta se relata tanto melhor quanto
mais comprimida estiver no tempo, mais intencionalmente distinta de seu contexto, mais deliberadamente visível: será evocada tanto mais facilmen
te como exemplo, quanto mais já tiver adquirido o
estatuto do "gesto". Por essa razão, categorias que
a pura reflexão estética não teria talvez retido
como essenciais passam acidentalmente a ocupar
um lugar central. Assim, a referência às "ações
exemplares", que correspondia à simples comodi
dade da citação (poisjá tinham, literalmente, qua
lidade de exemplos), acarretou uma valorização do
teatral e do espetacular que conviria retificar.Porém, essa inclinação à teatralidade ou a pro
pensão ao espetacular não seriam apenas o gostodo gesto, levado à exacerbação? E não se deveria
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pôr até mesmo esta idéia de gesto, agora, em questão? Atribuindo-lhe um papel preeminente, a presente reflexão se concedeu uma facilidade: entre
todas as condutas, ela restringiu seu interesseàquelas que se abstraíam do fluxo (do vago)corrente e que se autodesignam por sua intransitividade.
Ao mesmo tempo, privilegiando o gesto, essareflexão sobre a arte das condutas oferecia a simesma a vantagem de encontrar tacitamente acaução de uma teoria estética já constituída: a quese elaborou há cerca de dois séculos e que conserva com freqüência, ainda hoje, a aparência de uma
verdade intemporal. Pois tudo acontece como se adoutrina romântica tivesse sido construída expressamente para se aplicar em particular ao gesto.
ESTÉTICA ROMÂNTICA
Tzvetan Todorov demonstrou que a doutrinacontida nos escritos de Karl Philipp Moritz,August Wilhelm Schlegel e Novalis permanecepresente até no pensamento de Sartre, Blanchotou Barthes1 . Ele a resume com os traços seguintes:1.valorização do processo de produção, sendo preferido o momento de formação ao resultado forma
do, ao produto acabado; 2. recusa da função externa: a beleza reside na intransitividade de uma coisa realizada em si mesma; 3. afirmação da necessária coerência interna da obra de arte; 4. vontade sintética de uma fusão entre a forma e o conteúdo, entre a matéria e a idéia; 5. afirmação deque o sentido da obra é indizível: as idéias que elaencerra são intraduzíveis em linguagem comum,
1. Tzvetan Todorov, Théories du symbole, Paris, Seuil, 1977; "La Réflexion
sur Ia littérature dans Ia Franca contemporaine", Poétique (38), Paris,
8euil , 1979.
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sendo a interpretação, portanto, infinita. Segundoos textos teóricos do romantismo alemão, "essescinco traços característicos (produção, intransitividade, coerência, sintetismo, expressão do indizí
vel) aplicam-se ora ao belo em geral, ora à arte,ora ao que não é senão um meio dela, mas meioemblemático: o símbolo romântico". Basta conside
rar ponto por ponto esse corpo de princípios parase verificar que ele convém ademais admiravelmente ao gesto.
Seria esse "momento de formação", preferidopela estética romântica ao "resultado já formado",o gesto criador, oposto à obra realizada? O primeiro princípio dessa doutrina se aplica, portanto,mais imediatamente, ao próprio gesto do que àpoesia, à arte ou ao símbolo; ele só terá validadeem relação a esses na medida em que forem concebidos como materialização de um gesto. Por isso,a pintura gestual, nos anos 40 de nosso século,dará a si mesma palavras de ordem que parecemdemarcar os preceitos românticos. Ela desejará"revalorizar o ser em ato em relação aos produtosdo ato"; "o gesto livre do artista sobre a tela seráconsiderado o fim em si da pintura"2. Klee, Kan
dinsky, Hartung serão tidos como os "longínquosprecursores" de uma "revolução estética" cuja teoria se encontra, na realidade, claramente formulada desde o fim do século XVIII. Recentemente, aarte conceitual, a body art, a land art se aplicaram, por sua vez e segundo o mesmo princípio, adestituir o objeto acabado de seu estatuto de obra,em proveito do gesto que o precede, a transferir ao
2. Margit Rowell, La Peinture, legeste, l'action, Paris, Klincksieck, 1972, pp.9-10.
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desenrolar do ato a atenção que se fixa comum enteem seu resultad03.
É escusado procurar demonstrar que a idéia
de intransitividade convém à essência do gesto,pois é precisamente com essa idéia que este se viudefinido, quando foi preciso distingui-Io do at04•
Poder-se-ia dizer, com Lukács, que "o gesto é aúnica coisa que se completa em si mesma"5, seessa fórmula não conviesse igualmente, palavrapor palavra, à concepção romântica da beleza.Para Moritz, "o belo não exige um fim fora de simesmo, pois ele é tão realizado em si mesmo quetodo o fim de sua existência se encontra em si
mesmo ... A essência do belo consiste em sua realização em si mesma"6. Não se deveria, por conseguinte, remeter à ideologia romântica toda a sedução que pode exercer o gesto quando ele é como odescrevemos: esgotando-se em sua atualização,indiferente aos resultados, exemplarmente erguido fora do encadeamento temporal?
Requer-se da obra de arte que ela possua umcaráter sistemático, em que a finalidade interna(ou coerência) compense a ausência de finalidade
externa. Para definir essa propriedade, que atribuià obra poética e que nega aos discursos prosaicos,Moritz procede por comparação e recorre à distinção entre a dança, organizada de maneira internapela medida, e a marcha7 - como se esse novo
3. Frank Popper, Art , act ion et part icipa tion. L'Ar ti st e e t Ia créat iui té
aujourd'hui, Paris, Klincksieck, 1980.
4 . Cf. supra, pp. 27, 32-33.
5. Cito por Michel Maffesoli , La Conquê te du prê sent , Paris, P.D.F., 1979,
p.176.6. Cito por Tzvetan Todorov , Théories du symbole, ap. cit ., p. 188.
7. Id., p . 191 .
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princípio tivesse em suma, também ele, sua apli
cação mais clara e mais imediata no domínio dos
gestos. Seria preciso, sem dúvida, suspeitar-se
igualmente da presença da ideologia romântica naatração da volta ao passado, no desejo de contem
plar o destino, nessa atitude que amiúde se mani
festa em Nietzsche, por exemplo ("Gosto dos ani
versários, das noites de São Silvestre ... Adqui
re-se uma visão segura, uma espécie de escorço do
passado, toma-se a resolução com um coração mais
audaz e mais firme a retomar caminho"B),que con
siste em emprestar à vida a autonomia de uma
forma orgânica, a coerência de uma obra ou a or
ganização de um gesto.O tema romântico da fusão dos contrários re
cobre uma quantidade excessiva de oposições para
que se empreenda aqui o estabelecimento, a respei
to de cada uma delas, do papel sintético que o gesto
está particularmente em condições de desempe
nhar. Deixando-se de lado aquelas que a história
das idéias fez definhar (mas o gesto não seria no
tavelmente indicado para reabsorver a antinomia
da "alma" e do "corpo"?) ou aquelas cujo alcance,
talvez erroneamente, tenha sido negligenciado neste estudo (mas - falho ou não - não representa
ria o gesto o mais flagrante encontro do "conscien
te" e do "inconsciente"?) só reterá a oposição "for
ma"/ "conteúdo", "matéria"/ "idéia" ou, segundo
uma terminologia que parece hoje mais precisa,
"significante"/ "significado"; não apenas porque ela
ocupa um lugar importante na doutrina românti-
8. Carta a sua mãe, ci tada por Dani el Halévy, Nietzsche, Paris, Grasset,
1944, reed. 1977, pp. 71.72; "El e passa a noi te de São Sil vestre relendo
suas composições dejuventude", p. 222.
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ca, comotambém porque a estética não parou, até
os dias de hoje, de apresentar a unificação dessescontrários como uma tarefa essencial da arte. Ora,
se essa exigência sintética recomenda, como seumeio mais seguro, que a relação entre o significan
te e o significado seja "motivada", onde se encon
trará uma possibilidade mais exata do que no ges
to? Que discurso se organizará algum dia, para sig
nificar o amor, de uma maneira mais bem "moti
vada" que o beijo ou que uma conduta generosa?
Enfim, o último princípio da estética românti
ca, segundo o qual as palavras da linguagem co
mum não podem traduzir o conteúdo de uma obra
de arte, aplica-se por sua vez diretamente ao gesto. Este, com efeito, não menos que a arte, possui
a propriedade de exprimir as coisas sem as enun
ciar, sem que elas sejam ditas. Não apenas a sua
significação é sempre transmitida com a possibili
dade de denegação, como se observou acima9, mastambém lhe é facultado, devido à simultaneidade
de seus aspectos, mostrar em conjunto significa
ções contraditórias que a linguagem não poderiacondensar tão intimamente - como na crise his
térica em que "a doente, com uma das mãos, segura o vestido contra o corpo (enquanto mulher), ao
passo que com a outra mão se esforça em arrancá
10 (enquanto homem)"lo. Os gestos que já foram
evocados para ilustrar o que se chamava então
efeito de parcimônia11 conviriam igualmente como
exemplos do símbolo comodefine a estética român-
9 . Cf . supra, pp. 33-34.
10. Freud, Les Fantasmes hystériques et leur relation à la bisexualité, trad.
fr.em Névrose, psychose et perversion. Paris, P.UF., 1973, p. 155.
11. Cf. supra, pp. 50, 56-58.
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tica: eles se captam num "relance", "num só lan
ce"12e a percepção instantânea de sua forma liber
ta a superabundância de seu sentido - de modo
que a linguagem cotidiana, incapaz de esgotar essariqueza, é ademais impotente para restituir o equi
valente de um tal contraste13. Suponhamos de pas
sagem que isso se deva talvez ao seu aparecimen
to tão indizivelmente carregado de sentido que o
gesto de outrem suscita, com excessiva freqüência
de nossa parte, a pobre resposta que é a repetição:
enquanto replicamos as palavras com outras que
as prolongam, devolvemos um gesto, como se fos
se preciso anulá-Io, desfazer-se dele.
É importante destacar a afinidade que o cul
to do gesto mantém com uma doutrina formulada
há já duzentos anos. Não que seja preciso considerar essa doutrina como "falsa", nem mesmo como"caduca". Mas não é inútil tomar consciência da
limitação que ela engendra. As condutas que ela
incita privilegiar deixarão, por conseguinte, de
aparecer como sendo as únicas dignas de interesse estético.
Essa limitação é particularmente marcada
pela própria natureza da concepção romântica. O
12. Friedrich Creuzer, citado por Tzvetan Todorov, Théories du symbole , op.
cit., p. 254.
13. Nietzsche, de Bonn, onde então vivia, vai a Colônia. "Tendopedido o en
dereço de um locador, foi conduzido, talvez por um engraçadinho, a uma
casa de tolerância. Entrou no salão público, e logo se viu cercado pelas
mulheres despidas. No meio do salão, um piano aberto. 'Fui diretamen
te ao piano', contou ele, 'como o único ser que t inha alma naquele cômo
do.' Ele sentou-se, colocou as mãos no teclado e fez explodir uma das po
derosas improvisações que seus amigos admiravam. As mulheres, estupefatas , ouviam. Nietzsche levantou-se de repente e saiu, deixando-as
perturbadas." Citado por Daniel Halévy, op. cit., pp. 75-76.
princípio de intransitividade fraciona a conduta ereserva a seus diversos momentos uma qualidade
desigual, pois os instantes que ele caracteriza, realizados em si mesmos, inúteis e belos, deixarão
estender-se, no triste intervalo que os separa, lon
gos períodos fatalmente transitivos. A menos queum estetismo voluntarista decida que cada mo
mento será vivido como se representasse uma to
talidade acabada e simbolizasse um destino. Para
defender essa atitude, será preciso nada menos
que a concentração crispada em si de um Malraux:certo dia, ele estava no elevador com sua mulher
quando ela lhe pediu que fizesse a gentileza delivrá-Ia de um dos muitos pacotes que a atrapalha
vam; ele se recusou a pegá-Io, considerando incom
patível com a sua personagem carregar um pacote14.Mas, mesmo quando uma vigilância implacá
vel - e condições de existência privilegiadas
permite conferir a cada instante a completeza do
gesto, de quanta certeza de gosto não se precisa
para se compor, de um só lance, toda uma vida,com a coerência que, por outro lado, essa estética
exige!
Enquanto a música ou a pintura toleram a in-terrupção e não se alteram por ter de depender da
disponibilidade de seus instrumentos e de seusmateriais, enquanto a poesia não enfrenta de for
ma alguma o fracasso quando chega a uma pausa,a um branco, ao silêncio, a conduta tem a particu
laridade de nunca poder ser suspensa: ela conti
nua a tomar sentido e não-sentido, a derivar no
14. Relatado por Alain Malraux, Les Marronniers de Boulogne, Paris, PIou,1978, p. 174.
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informe, a consumir o seu tempo contado, mesmo
quando a arte que ela requer se retira. Ora, impo
tente para se protelar, a conduta é, além disso,refratária ao arrependimento. Ela não é suscetível
de retoque. Nenhuma correção realizável, nenhu~
ma retomada do trabalho passado, nem da ociosi
dade, nem mesmo da volta ao esboço.Nenhum cor
te possível, diferentemente das artes que podemsuprimir um fragmento mal-sucedido, ao contrário
até, ao que parece, de todas as outras artes, emque é sempre possível anular uma obra malfeita e
recomeçar tudo sobre novas bases. Aqui, os arrependimentos permanecerão sem efeito: teria sido
preciso parar ali, era preciso partir naquele mo
mento. O erro de gosto, a inabilidade na execuçãosão irremediáveis. Uma lentidão no acabamento
de um episódio (uma visita, uma viagem, uma li
gação), e não só esse erro é irreparável no futuro,
mas corrompe o passado, embota o que o precedeu,
contamina para sempre por retroação os mais felizes começos.
É verdade que o artista das condutas, por maisdedicado que esteja a essa ansiedade do irreversí
vel, dispõe de um recurso para temperá-Ia. Pois seo fenômeno de retroação, que submete o que está
terminado às influências do presente, pode chegar
à paradoxal corrupção do passado, permitirá porvezes, igualmente, sua emenda. Sartre, em Les
Mains sales, dá vários exemplos desses retornos de
sentido que afetam o que já aconteceu. Hoederer
não mais existe, mas sua morte será o que o Parti
do quiser que ela seja: assassinato político, se
Hoederer for um adversário, crime passional,
quando for reabilitado. Por sua vez, Hugo, o assassino, num último gesto, fixa o sentido dessa morte:
ele reivindica a responsabilidade por seu crime e
preserva sua vítima de tornar-se um cadáver anô
nimo, um dejeto do Partido. Dir-se-á que apenas o
sentido flutuou e que, pelo menos, o acontecimento
permaneceu intransformável? Mas o acontecimentoem si reduz-se a nada: foi um acidente, acaso con
tra o qual justamente Hoederer se revoltou inven
tando in extremis uma mentira. O gesto ulterior de
Hugo dá enfim a Hoederer "a morte que lhe con
vém". Uma porta aberta com um chute: nesse ins
tante, o homem que foi assassinado dois anos antes
morre por suas idéias em vez de morrer por acaso.
Mas a liberdade de recompor o passado, que é,
numa tal perspectiva, a licença mais tentadora,poderia perfeitamente ser também a mais perigo
sa. É verdade que Sartre maneja uma distinção
entre a piedosa intenção de Hugo e as operações
cínicas do Partido. Todavia, em nome de que inti
midade será um mais apto que outro para decidir,
no que se refere a Hoederer, que tal é "a morte quelhe convém"? Milan Kundera, ao contrário, assimi
la expressamente, por reservar-Ines a mesma des
confiança, o indivíduo que retoca sua vida e o par
tido político que reinventa a história. Em Le Livredu rire et de l'oubli, Mirek queria se conceder, para
completar seu destino que se aproxima do fim, o
direito de que dispõe o romancista de reescrever
ou de suprimir um episódio insatisfatório. Mas a
mulher, a quem outrora amou, e de que se enver
gonha, obstina-se em figurar em sua juventude e
não se deixa apagar. A existência retorcida de
-Zdena, que atravanca a vida de Mirek, é análoga
finalmente à do próprio Mirek, que não convém ao
Partido. Em ambos os casos, a coerência do todopressupõe que seja eliminado o detalhe refratário:
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um homem aqui, uma lembrança lá. Portanto,
sempre é possível que um sentido retrospectivoremodele, como a história coletiva, um destino in
dividual; mas isso se dará à custa da morte e doesquecimento.
Como conceber uma estética das condutas que
escape a tais esquemas? Duas eventualidades po
dem se oferecer: uma que consiste em tomar sis
tematicamente o contrapé da ideologia romântica,
a outra em escolher por princípio categorias que
lhe sejam radicalmente estranhas.
O esteta romântico queria momentos de exce
ção, começos radicais (a partida do aventureiro, a
do emigrante, a efervescência da Grande Noite),acabamentos irrevogáveis (o adiamento da demis
são, a suspensão das atividades, o suicídio). Ser
lhe-á oposta a reabilitação da banalidade, a acei
tação do cotidiano, a dignidade transitiva do tri
vial, a digressão do transitório. Ele se impunha o
dever de viver sem tempos mortos e intensificar o
mínimo instante. Prefere-se agora percorrer com
displicência as monotonias diárias. Nunca perdia
de vista que cada um de seus gestos empenhava a
imagem global de sua vida. Objetando-lhe a fórmula de Cioran: "só descobrimos sabor no cotidia
no quando nos furtamos à obrigação de ter um des
tino", é pela obstinação no insignificante e no des
cosido que se fará doravante valer o direito de serum homem comum.
Essa atitude, que Pascal Bruckner e Alain
Finkielkraut descreveram paramentando-a com
uma surpreendente sedução15, não será ainda, ape-
15. Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut, Au Coin de Ia rue, l'aventure, Pa-
r is , Seuil , 1979.
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sar de tudo, bastante próxima das posturas que ela
rejeita? Aplicando-se metodicamente a inverter oromantismo, ela o lembra constantemente, como
um contrário obsessivamente presente - quandonão retoma certos traços para os transpor do subli
me ao frívolo, do espetacular ao minúsculo, na in
tenção de "democratizar" o direito à aventura.Em vez disso, postular-se-á, antes, mais uma
vez, que a atividade artística está para desempe
nhar, em relação à estética das condutas, o papel de
modelo e que ela pode sugerir princípios mais inteiramente afastados das seqüelas do romantismo.
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II
o SENTIDO DO INSIGNIFICANTE
Tudo o que se chama Arte, aqui e ali, ou
trora e agora, é por demais disparatado para que
uma função artística geral oriente esse heteróclito
e flutuante conjunto. Uma obra por si mesma é
ocasião de prazeres tão múltiplos e, para o mesmo
.sujeito, de abalos afetivos tão variados que uma
investigação, que se dedicasse à definição da fun
ção estética, deveria interrogar-se imediatamentesobre o estranho desejo que a faz postular uma tão
improvável unicidade de princípio.
Deixando-se de lado tal ou qual obra (sem dú
vida, setores inteiros das Belas-artes), que serão
excluídas do campo de aplicação da fórmula pro
posta, pode-se tentar definir uma função, que não
se deve apressadamente crer especificamente es
tética, a qual, decerto, não é a única a reger as
operações reputadas artísticas, maS que pode
exemplificar-se de modos bastante semelhantes
em artes bastante diferentes, para que, ao mesmo
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tempo, possa supor-se que seja consistente com
uma função original, que a qualifique provisoriamente de estética.
É uma função de desfocalização, para se resumir numa palavra e para não se recear situá
Ia em posição negativa relativamente ao que a
precede. Estão em primeiro lugar a focalização
da atenção, a consciência seletiva, a discrimina
ção do essencial e do acessório, do significante e
do insignificante, do sentido e do acaso, da figu
ra e do fundo. A desfocalização destitui o essen
cial, dá sentido ao acidental, detém-se no deta
lhe, deriva na margem.
Qual é essa necessidade primeira que impõe àatenção esquemas que negligenciam mil contingên
cias? - O ato de fabricação, diz Valéry, em Eupa-
linos, não se inquieta com todas as qualidades da
substância que ele modifica, mas apenas com algu
mas: "O homem constrói por abstração, ignorando
e esquecendo uma grande parte das qualidades do
que ele emprega"1. Por conseguinte, necessidade
"prática"? Necessidade "pragmática", "utilitária"?
- Seria verdadeiramente preciso que, no campo
de consciência, a recuperação da realidade residual tenha comocondição uma atitude "teórica", uma
disposição "desinteressada", uma curiosidade "gra
tuita"? Será preciso tomar partido nessas oposi
ções que relegaram a arte às regiões anódinas da
superfluidade? - Necessidade "vital"? - Mas será
que se acredita que a flutuação da atenção para
além das balizas seja mortal?
1. Paul Valéry, Eupalinos ou l'architecte, Paris, Gallimard, 1960, Pléiade, voI.
lI, pp. 123-124.
91
Papel discriminante da linguagem? Mesmo
que ali não esteja a origem absoluta da segregação
do essencial e do secundário, verifica-se que a opo
sição lingüística entre o que é pertinente e ()quenão é fornece o arquétipo mais claro das outras
distinções aqui em causa e que a dualidade do sig
nificante e do insignificante implica referência a
sistemas de signos, dos quais a língua é o mais
acabado. Entretanto, esta não estrutura de forma
tão imutável a matéria verbal que não possa subi
tamente dar sentido àquilo que, um pouco antes,
estava privado de pertinência, pois a poesia é a
arte dessa transmutação. Parece que se levaria em
conta .ao mesmo tempo a primeira presunção, referente ao efeito de abstração próprio da língua, e
a reserva que impõe a presença do recurso poéti
co no núcleo da linguagem, avançando-se que a
discriminação dos elementos vivos e dos elementos
mortos, quanto ao sentido, não é imputável à lin
guagem enquanto tal, mas à função de comunica
ção que tende a açambarcá-Ia. .Tudo pode ser signo, do gesto mais furtivo à
postura menos estudada. Na própria substância
da linguagem tudo faz sentido; tal palavra em lu
gar de um sinônimo, tal assonância, o timbre da
voz, a fluência, o silêncio. Mas esses índices são
por demais fugazes ou singulares para que um
consenso se estabeleça sobre o que significam. A
atitude de comunicação, que deve contar com a
reciprocidade dos interlocutores, reterá exclusiva
mente os significados experimentados, os signifi
cantes instituídos, os signos estabelecidos. Afas
tando o sentido inédito, que se prestaria a uma
compreensão arriscada, a inteligências divergen
tes, ela obscurece o que o engendra. Não é apenas
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o ato de fabricação, comoo definiu Valéry, é, gene
ricamente, o ato de comunicação que procede por
abstração, "ignorando e esquecendo uma grande
parte das qualidades do que emprega".A função de desfocalização, em compensação,
dá sentido ao insignificante: à sílaba na palavra,
à pedra no muro, à cor na forma, à palavra na fra
se. A prosa de comunicação focaliza-se na frase,
cujos elementos serão apenas constituintes. A pro
sa literária, sem perder de vista o enunciado global, assume suas unidades interiores, favorece em
particular sua polissemia, que o contexto tende a
reduzir e que a intenção de comunicar visa a anu
lar.A poesia encarrega-se ao mesmo tempo da coe
rênciado texto global, das implicações plurivalen
tes de cada uma de suas palavras e até da textu
ra das sonoridades ou das grafias.
Essa reconquista estética do insignificante é
sem fim. A arte propriamente dita é apenas uma
de suas etapas. A desfocalização artística consiste
em dar novamente sentido a todos os detalhes queentram no espaço da obra, em colocá-Ios no mes
mo plano, em conferir-Ihes uma força significanteigual. Mas essa operação de ressemantização de
todos os elementos presentes só é bem-sucedida
justamente nesse espaço privilegiado, à custa dofechamento da obra, às custas do circundante so
bre o fundo do qual ela se põe. A desfocalização
não é o abandono da atenção nem o relaxamento
da consciência; é como se a disseminação percep
tiva exigisse uma outra concentração e impusesse
uma indiferença mais completa em relação ao con
torno desse novo centro. Ora, se os academismostoleram essa contradição, a história da arte em
ato é a das recusas sucessivas da idéia resignada
93
de uma justaposição entre o reino do sentido, es
tabelecido nos limites da obra, e o da insignificân
cia, que prolifera ao redor. A pintura moderna,
desde o impressionismo, recupera o espaço bidimensional da tela, impõe-lhe autodesignar-se
como o próprio lugar do sentido, impede-a de reto
mar o estatuto de invisível instrumento da pro
fundidade; ela reconquista em seguida a própria
substância dessa superfície, ressemantiza sua ma
terialidade, recusando que se limite ao papel de
suporte fortuito da área colorida. Todavia, a obra
necessariamente se interrompe, abandona suas
margens ao acaso. Picasso não elude esse proble
ma: "O grande lance é o espaço entre o quadro e a
moldura"2. Mas será esse ainda o lance da pintu
ra? Será que esse é, ainda hoje, o lance da "arte"?
Desde que esta se tornou manifestamente objeto
de um interesse institucionalizado e está por sua
vez focalizada enquanto tal pela cultura estabele
cida, a desfocalização perseguida não é mais "ar
tística"; munida de métodos experimentados no
interior das Belas-artes, ela se dissemina foradessa moldura.
O teatro restitui a cada gesto todos os seus
poderes simbólicos, rompe o encadeamento dos
movimentos transitivos, valoriza cada atitude,
impede-a de fundir-se, despercebida, na totalida
de indiferenciada de tal ou qual conduta socialmente identificável. Os silêncios deixam de ser as
pausas da significação; os ruídos tornaram-se coi
sa diferente de parasitas da comunicação; a qua
lidade das luzes não se reduz mais às funções da
2. Citado por LOllis Aragon, Les Collages, Pari s, Hermann, 1965, p . 74.
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iluminação. Mas a amplitude nova da atenção as
sim solicitada, que, por ser difusa, não deve ser
menos vigilante, esse alargamento da consciência,
agora desfocalizada e requerida para encontrar
sentido em cada entonação, em cada atuação, em
cada expectativa, só parecem possíveis às custas
dos inúmeros artifícios que reduzem, por algum
tempo, o mundo às dimensões de uma cena. Ora,
o grande lance, ainda aí, para os mais exigentes,
é a relação entre o palco e as fileiras do público, o
espaço entre a cena e os bastidores, o intervalo
entre o espetáculo e o tempo profano que o prece
de e o sucede. Muitos esforços do teatro contempo
râneo tendem à abolição dessa fronteira instituída pela ribalta entre uma zona integralmente
semantizada e o lugar de penumbra onde a exis
tência do público, contingente, permanece à mar
gem dos desdobramentos do sentido. Outras ten
tativas, do mesmo alcance, suprimem os bastido
res, generalizam a troca dos cenários e das roupas
diante do público. O momento em que um atorendossa os índices vestimentários de uma nova
personagem não pode aparecer como sendo um
instante altamente significante: por que ele se dissimularia comouma coerção transitiva, comouma
inessencial transição? - Contudo, essa teatraliza
ção conquistadora, que ganha os bastidores, trans
põe a ribalta, distribui papéis aos espectadores,
anexa os corredores e arrisca eventualmente algu
mas incursões nas ruas vizinhas, interrompe-se
quando não é mais hora de atuar, quando a festa
termina, ou quando, para os mais obstinados, che
ga a hora de pensar em outras formas de ação.
Dirigiria o reconhecimento dos limites da arteteatral ou da pintura uma visão restritiva da ativi-
dade estética? Na medida em que a definimos de
maneira muito geral para distingui-Ia das artes,
que são submetidas, por sua vez, não apenas à es
pecialização de seus procedimentos respectivos,
mas à heteronomia da apresentação de uma "obra",pode-se sempre, é claro, postular que ela deve se
aplicar ao campo integral da vida cotidiana. Toda
via, querendo-se evitar repisar simplesmente uma
palavra de ordem, pregar vagamente a obrigação
de "mudar de vida", querendo-se exortar os outros eincitar-se a buscar efetivamente os meios de
poetizar a existência, é preciso conceituar tão fir
memente quanto possível pelo menos uma das fun
ções que estão em atividade na prática das artes.
Parece que, no que concerne à realização dessa preliminar, um primeiro passo pode ser dado
que permita ultrapassar os sumários e agora muito oficiais encorajamentos da "criatividade": a
desfocalização da atenção ou, mais precisamente,
a exclusão do princípio de pertinência (tal como é
definido pelas ciências da comunicação) representa
talvez a operação cuja análise seria muito fecun
da nesse aspecto.
Tomada de empréstimo à experiência teatral, a
idéia de bastidor pode ser generalizada, a ponto desimbolizar toda a classe dos lugares, das ocupa
ções, dos períodos que são dedicados à preparação
do sentido e suprimidos de sua manifestação. O
exemplo da recuperação progressiva, no espaço do
jogo cênico, das passagens adjacentes ao palco ouaos corredores reservados ao escoamento do públi
co, inspiraria então um modo de vida que instituís
se um mesmo grau de densidade semântica entre a
habitação e a rua (mas a rua seria então habitada),
a destinação e a estrada (mas o viajante não teria
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mais destino), a "vida" e o trabalho (mas a vida per
deria suas aspas, seus parêntesis, suas pontua
ções). O apartamento moderno, que dissocia o
living onde se vive e os bastidores reservados à co
zinha, à toalete, ao sono, ao amor, seria substituído
por um espaço comum, impedindo que uma ativida
de qualquer fosse considerada indigna.
Tomada de empréstimo às artes gráficas, a
idéia de margem pode ser entendida, de forma
mais genérica, como conveniente a todos os espa
ços neutros, aos dias vazios, aos tempos mortos,
aos encontros inuteis. A atenção marginal da qual
dão testemunho, no sentido literal, a poesia de
ApoIlinaire e a reflexão de Michel Butor, a caligrafia desde sempre, a escritura versificada talvez e
a história em quadrinhos mostra por vezes o exem
plo de uma possível reconquista, em benefício deum sentido mais diversamente enraizado, dessas
extensões laterais e infecundas que são também as
franjas de uma jornada, os dias seguintes de fes
ta, os fins de vida. Num elogio da pane3, Jacques
Meunier indica de que modo a ruptura dos meca
nismos provoca descobertas, experiências, abertu
ras no inesperado. Para isso, pressupõe-se umaverdadeira aptidão para apreender-se a providên
cia marginal. Do contrário, o desarranjo da rotina
representará apenas uma perda de tempo, o inci
dente será apenas uma confusão; deixar-se-á pas
sar a oportunidade de um encontro na irritação de
ter faltado a um compromisso.
A ideia de ruído, apesar de não ser espontane
amente relacionada com a experiência da música,
só é entretanto definível enquanto oposta ao som
3. Jacques Meunier, "Vive Ia panne!", LeMonde dimanche, 12 fev. 1981.
I
musical, pois o ruído resulta da superposição de
vibrações que são chamadas "não-harmônicas".
Ora, tal como a idéia de bastidores ou a de mar
gem, a idéia de ruído pode ser empregada em domínios estranhos à arte de origem; a teoria da co
municação designa dessa maneira os fenômenos
que interferem com um sinal, seja qual for sua
natureza (luminoso, gráfico, icônico, gestual, ver
bal), e que limitam a transmissão da informação.
O trabalho musical, que consiste em enriquecer a
série dos sons disponíveis num sistema historica
mente dado, aparece por conseguinte como exem
plar fora do campo que lhe é próprio. Do mesmo
modo que a música concreta subtrai os ruídos(acústicos) ao acaso e os introduz na ordem da
pertinência musical, a conduta cotidiana pode arrancar os "ruídos" (metaforicamente definidos) da
insignificância e conferir-lhes uma carga semânti
ca. Quais são esses "ruídos"? Trata-se dos parasi
tas da comunicação, dos elementos imprevistos
pelo código que, misturando-se ao sinal, confun
dem a mensagem: reações singulares, comporta
mentos inclassificáveis. Tendo um colegial de de
zoito anos fabricado sem autorização um engenhoexplosivo que estourara inopinadamente no ba
nheiro de seu quarto de estudo, a vara criminal lhe
inflige quinze meses de prisão, catorze dos quais
com sursis: o rapaz anota cuidadosamente sua con
denação num caderno de notas, tal como deve teranotado anteriormente, quando freqüentava as
reuniões dos escoteiros ou a aula de tecnologia, afórmula da mistura detonante4•
4. Le Monde, 26 mar . 1981.
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o menor dicionário analógico enumera copiosamente as palavras que designam ruídos (zumbido,vozerio, sussurro, chiado, marulho, estalo, crepitação, grito, rangido etc.) e das quais a escuta musical se privou até recentemente. Pelo menos tais listas podiam ser feitas antes mesmo do aparecimento da música concreta. Nada disso, no que se refereà conduta. Num momento dado da evoluçãodos costumes, e comoresposta a uma situação determinada, o sistema dos comportamentos cuja pertinênciaé admitida (seja qual for sua significação: que estase relacione com as categorias do permitido, do recomendado ou do interdito), esse sistema sempre se
pretende relativamente aberto e, na medida justamente em que não é totalmente rígido, dispensa-sede ser explícito: as virtualidades que exclui ficamainda mais recalcadas, sua enumeração, mesmo queparcial, ainda mais impossível. A codificação estrita dos sistemas- musicais autoriza e provoca umaformulação dos elementos que eles admitem, isto é,dos sons, e permite o recenseamento dos ruídos queexcluem. Mas a codificação das condutas, muitomenos rigorosa aparentemente, impõe-se de manei
ra indireta e tácita, embeleza-se com a idéia de liberdade e mantém relações imprevistas no nada doimpensável. Não mais se trata aqui da classe dosatos interditos, que, no que lhes diz respeito, sãoperfeitamente codificados e cujos traços pertinentesos tribunais nunca deixam de lembrar com precisão.Os comportamentos que escapam ao código nãoacarretam uma interdição franca, suscitam uma reprovação velada. Não infringindo regra explícita alguma, não têm a significação do delito; mas, por se
comporem de signos inéditos, aparecem como umdesregramento do princípio de comunicação. Usar
roupas inadequadas à ocasião, cumprimentar comcortesia desconhecidos na rua: esses atos, mal saídos do impensável, revertem ao insensato.
O dandismo de modo nenhum recomendava a
extravagância. Em vez do exagero no fausto ou nafantasia, ele procurava uma distinção sóbria. Semdúvida, tratava-se de se singularizar, mais porrefinamento que por incongruência. Era precisoser notado, mas sem recorrer aos procedimentosvistosos; provocar a surpresa, mas utilizando melhor do que ninguém os recursos comuns5.
O dândi cultiva o detalhe essencial. Mais exatamente, tudo é detalhe para ele, e cada detalhe écapital.
É às coisas que têm menos importância que ele pretende
mais se apegar .. .De um conjunto de prá ticas ins igni ficantes e inú
teis, ele faz uma arte que leva sua marca pessoal, que agrada e
que seduz à maneira de uma obra de engenho. Ele comunica aos
menores signos de roupa, de postura e de linguagem um sentido
e um poder que eles não têm naturalmente. Ele produz do nada
uma superioridade misteriosa que ninguém saberia definir, mas
cu jos efeitos são tão reais e tão grandes quanto os das superio ridades classi ficadas e reconhec idas . O dândi é um revolucionário
e um ilusionista6•
Ele é artista e, nisso mesmo, revolucionário, seé verdade que a arte tem como efeito subverter ahierarquia que a ordem estabelecida postula entreo importante e o acessório. Sua conduta não é extravagante. Mas seria correto chamá-Ia de excên-
trica se, desse modo, se pudesse designar a liber-
5. Emilien Carassus, Le Mythe da dandy . Pari s, A. Col in , 1971, p . 1Ol .
6. Jules Lemaitre, Les Contemporains, 1875, citado por E. Carassus, op. cit.,
pp. 253-254.
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dade discreta que desloca bruscamente os valores
centrais. O dandismo transfere para os gestos
mais fúteis o cuidado exigente, comumente reser
vado às tarefas reputadas sérias; ele mina por
contragolpe os prestígios da riqueza, dos títulos,
da função social. Institui uma arte de viver no sen
tido em que realiza essa desfocalização da atenção
que o exemplo das outras artes autoriza a conside
rar como sendo uma possível finalidade da atividade estética.
Mas ele quer, ao mesmo tempo, que o descen
tramento dos valores se imponha como uma nova
maneira de ser. Visa a instaurar uma codificação
das condutas, que redefina as convenções e regulamente os usos. Uma decisão sobre nadas, que
não se funda em nada, decreta obrigações de ves
tuário, prescreve passatempos e fixa até seus ho
rários. A exploração do inessencial, no dândi, in
clui a experiência do frívolo e da arbitrariedade,
mas não se aventura a tornar-se disponível aosefeitos de acaso.
É próprio da arte em geral tornar-se acolhedo
ra dos achados fortuitos. Tirar partido dos mate
riais é, ao mesmo tempo, deixar viver seus acidentes (nós da madeira, particularidade pessoal de
um ator, tremor inopinado de um traço) e trans
mutar esses dados contingentes em uma necessi
dade nova. A função estética, que visa à evicção do
insignificante, só se manifesta de maneira plenamente convincente onde este se deixou afrontar
diretamente. Ora, é próprio da arte de viver lidar
com o acontecimento, em outras palavras, com o
imponderável e o imprevisível. A complexidade de
uma situação vivida ultrapassará sempre em mildetalhes a de um problema plástico ou de uma
conjuntura cênica. A atenção metódica aí seria len
ta e pesada. A focalização analítica delimita ape
nas signos já desertados. Nenhum outro campo
estético exige, como a arte das condutas, essa ex
trema prontidão para a captura das coincidências,
cuja condição reside na atenção desfocalizada.
Aqui, menos ainda que em outra parte, Ó sen
tido premeditado não pode operar. Em vez do sentido fixado, do significante distinto e dos signos
diferenciados: atenção flutuante, visão sem foco,
vigilância esparsa.
A elaboração de uma agenda proporciona tal
vez uma satisfação de ordem estética: a de ter pre
ludiado a eliminação das contingências, inserindoqualquer eventualidade na ordenação de um sen
tido global. Entretanto, o revés está à altura da
esperança: o acaso, não admitido, volta por refra
ção, mas tem agora o aspecto amargo ou ridículodo absurdo. Por se ter querido proscrever o alea
tório, impediu-se o poder de dar instantaneamen
te uma significação ao acontecimento.
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o FRANQUEAMENTO DO GESTO
Em nossas relações com outrem, a atenção se
focaliza no sujeito, naquilo que ele quer, naquilo
que ele é. Os gestos de outrem aparecem como osíndices de seu ser. Emitimos os nossos sabendo
que eles contribuem para revelar a pessoa que somos. O efeito da desfocalização equivaleria a
dissociar os gestos do sujeito que os realiza, a
tomá-los pelo que dizem ou pelo que fazem, sem osimputar a uma substância subjetiva. Nossas con
dutas provavelmente se diversificariam se lhesfosse concedida, em sua relação com a pessoa que
se supõe assumi-Ias, a liberdade que têm os discursos diante de seu locutor.
Definida pela intransitividade, a idéia de ges
to, comose viu, reativa facilmente a estética laten
te que herdamos do romantismo. Utilizada, em
compensação, para marcar a distância que pode
estabelecer-se entre uma conduta e seu ator, abreperspectivas novas.
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Quando uma conduta é qualificada pejorativa
mente de simples "gesto", o que se incrimina não
é talvez tanto sua ineficiência quanto sua insince
ridade. Opondo-a aos "verdadeiros atos", não se
quer apenas negar-lhe qualquer influência pragmática, mas censurar-lhe uma imediata falsidade.
Não é a insuficiência de seus efeitos que se real
ça (seria preciso então suspender indefinidamen
te ojuízo, na espera de repercussões sempre pos
síveis), é o vício inicial de sua intenção. A condu
ta é apenas uma seqüência de gestos se o objetivoque pretende perseguir se transforma de chofre
em pretexto e se é flagrante que seus móveis são
antes representados que sentidos."Eu era uma falsa criança: sentia meus atos se
transformarem em gestos", afirma Sartre em sua
autobiografial. Porque aprendeu a se ver pelosolhos dos adultos, o pequeno ator conforma seu
comportamento à expectativa deles e compõe paraoutrem um ser artificial.
Em que consiste precisamente o artifício de
um gesto? Como se explica que, entre todas as
condutas culturalmente adquiridas, algumas espe
cialmente sejam suspeitas de afetação? Como, pormeio do equívoco comum dos sentimentos, flagrase o índice de uma particular inautenticidade? O
ato se torna gesto quando seu único sentido é mos
trar-se, quando se dedica primeiro a se fazer com
preender, quando se transforma em linguagem.
Seu artifício é a ênfase dada a traços pertinentes
devido aos quais ele transmite o que quer dizer.
Ocorre que, por isso mesmo, contradiz-se o proje-
1. Jean-Paul Sartre, Les Mols. Paris, GaUimard, 1964,p. 67.
to que se trata de significar, como o árbitro que
quer mostrar sua segurança de juízo por uma ra
pidez que compromete a segurança, ou como o
ouvinte tão aplicado em emitir sinais de atenção
que não tem mais tempo para ficar atento. De
modo geral e de modo menos paradoxal no senti
do corrente, a intenção de comunicação, por recor
rer necessariamente à convenção de um código,
não poderia tomar a conduta por matéria sem
provocar nela uma notável perturbação de seu es
tado supostamente natural.
O comportamento assim submetido à função
de comunicação foi qualificado anteriormente2 de
semioticamente imoral.É
que ainda não aparecera a eventualidade dojogo ao qual se prestam os
signos. Hipertrofiar os índices da respeitabilidade
que se concede a si mesmo é uma coisa. Imitar porderrisão esses mesmos índices é outra. O acesso da
conduta ao universo das significações lhe abre ao
mesmo tempo a possibilidade de tomar de emprés
timo diversos recursos à linguagem e de se bene
ficiar, por exemplo, de uma distinção análoga
àquela que opera a análise do discurso entre o
enunciado assumido e o enunciado citado.Na ordem verbal, com efeito, qualquer que seja
o conteúdo literal de um enunciado, propõe-se a
questão de saber se o locutor dele se encarrega ou
não. Ainda que o discurso seja enunciado na pri
meira pessoa, esse "eu"não é necessariamente o do
autor. A literatura joga constantemente com o
pluralismo subjetivo, com as posições defasadas do
sujeito-autor, do sujeito-narrador, do sujeito-perso-
2. Cf. supra, p.47.
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nagem, com a distância que o escritor introduz en
tre os dois "eus", quando dissocia autor e narrador,
quando é e não é a personagem à qual emprestauma voz, quando diz "eu" para ser um outro. Esse
processo de desdobramento, a literatura o dispara
ao infinito incluindo o artifício eventual do pseudônimo, a prática constante do enunciado comen
tado e até a vertigem da enunciação que se auto
critica, e mesmo da crítica que vira derrisão. Ora,
o teatro e o cinema sabem igualmente provocar tal
diferenciação. Eles contêm a linguagem, é verda
de, como uma de suas componentes, mas não é
sempre por sua presença stricto sensu que criam
uma enunciação distanciada. Um espetáculo, enquanto tal, é suscetível dos modos paródico, irôni
co, humorístico; nenhuma necessidade de diálogonem de voz aff para recorrer, se preciso, a uma
compreensão de segundo ou de terceiro grau. A pin
tura presta-se também a essa defasagem. Quando
a pop art apareceu, colocou-se a questão de saber
se sua relação com a realidade contemporânea queela exibia era de fascínio, de afastamento ou de
derrisão. Que a incerteza tenha por muito tempo
persistido prova ao mesmo tempo que o deciframento da intenção última é menos fácil em pintu
ra que em literatura, mas que a distinção entre
esse deciframento da enunciação e a leitura doenunciado é aí igualmente válida. Da mesma ma
neira, ainda, a música, ao fazer sucederem-se,
numa obra, movimentos diferentes, engendra uma
enunciação irredutível aos enunciados que ela designa alternadamente. Assim, o fenômeno do des
dobramento subjetivo encontra talvez na lingua
gem o campo privilegiado: o que o torna mais facilmente analisável, comotambém o que lhe ofere-
ce as possibilidades mais finas ou mais extremas.
Mas vê-se que ele interessa igualmente às artes
que não são verbais. Ele poderia ser retido pela
hipotética definição de uma função estética geral.
Seria a conduta o único domínio onde ele não po
deria transcorrer? Suprimir-lhe a palavra seria,
primeiramente, simplificar abstratamente o com
portamento. Sua distinção é uma evidência falha
se incita a apreendê-Ios em concorrência. Falar em
vez de se calar, dizer isso em vez daquilo, dizê-Io
assim e não de outro modo, são maneiras diversas
de se conduzir. A linguagem é um dos modos do
comportamento. Ora, a prática da mentira osten
siva, por exemplo, seja ela de cinismo ou cortesia,afetuosa ou lúdica, introduz na própria conduta um
desvio idêntico àquele que constitui a condição es
sencial das artes de ficção. Ademais, consideran
do-se até o mutismo do gesto, é preciso reconhecer
que ele não é refratário a esse processo de desdo
bramento, pois este opera no mímico. Embora pa
reça pouco verossímil que uma conduta saiba citar
uma outra, que possa representar um ato que não
seria o seu, é isso, contudo, o que acontece. Uma
breve mímica se assinala por vezes não apenascomo a paródia dosgestos de outrem, mas comoum
recuo tomado em relação a si mesmo. Por estreita
que pareça a experiência que se pode aqui alegar,
ela basta para afastar um obstáculo de princípio e
abre caminho para uma estética cuja tarefa seria
provocar metodicamente a multiplicação e o enri
quecimento de experiências da mesma ordem.
Afastar de si mesmo os próprios gestos, mos
trá-Ios, designá-Ios pelo que são, pelo que dizem ou
pelo que fazem, administrando, aquém de seuenunciado, o implícito do sentido que a eles se dá.
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Por exemplo, o gesto de um dândi do século
passado: um rico financista deixa cair uma moeda
e se abaixa para procurá-Ia, d'Orsay se agacha porsua vez e, para ajudar na busca, ilumina um can
to queimando uma cédula3.A arte da conduta começa pela emancipação
dos gestos, quando eles são emitidos sem que sedeva, neles, identificar-se.
Fica, assim, invalidada a alternativa do natu
ral e do factício. Não há como suspeitar do gesto
de insinceridade quando este não pretende mais
traduzir as disposições interiores nem os objetivospessoais do sujeito que o inventa.
Produzir gestos que se evita endossar. Essa
representação da conduta, longe de submeter-se às
críticas que visam a "mentira" do espetáculo, suspende, ao contrário, a pertinência de toda distin
ção entre o verídico e o enganador.
Esse franqueamento dos gestos e a diversifica
ção das condutas que dele resultaria parecem ter
como condição que se saibam empregar os índices
mais capazes de significar a distância subjetiva.
Amplificação paródica, por exemplo, a propósito daqual seria inepto perguntar se ela é ou não since
ra. Além disso, sucessão, numa mesma conduta, de
gestos entre os quais se supunha que se escolhes
se4, como quando se muda o estilo da vestimenta,
3. Emilien Carassus, Le Mythe du dandy , Par is , A. Col in , 1971, p . 123 .
4 . Roman Jakobson define da seguinte mane ira a função poét ica: a combi-
nação, em contigüidade, na construção de uma seqüência, de termos con-
correntes , pertencentes a uma série virtual, equivalentes entre si sob um
aspecto e diferentes sob outras relações. "Afunção poética projeta o prin-
c ípio de equiva lência do e ixo da seleção sobre o e ixo da combinação."
"Linguistique et poétique", Essaia de linguistique générale, Paris, Minuit,1963, p . 220 .
a atividade profissional. Uma forma de vestimen
ta, um estatuto profissional, fazem sentido distin
guindo-se das outras formas, dos outros estatutossimultaneamente concebíveis; eles identificam o
sujeito que os adota ou os suporta, diferenciandose das virtualidades que ficam excluídas. A reto
mada, em sucessão rápida, de possibilidades que
são, quanto ao sentido, excludentes umas das ou
tras desregula, portanto, as bases da comunicação,
perturba a imputação das identidades. Ela provocao retraimento do sujeito da enunciação e a liberta
ção dos enunciados anônimos.Tendo Ruskin, Burne Jones e William Morris
convidado seus compatriotas a passar de uma es
tética pictórica a uma estética estendida a toda a
vida, desenvolveu-se na Inglaterra, por volta de
1875, um esteticismo do mobiliário e da roupa.
"Então se viu passear em plena luz do dia moci
nhas vestidas com roupas da Idade Média, e du
rante os serões essas mesmas mulheres apareciam
em vestidos copiados de quadros antigos, com lírios nos cabelos". Emilien Carassus, que cita os fa
tos segundo Paul Bourget, acrescenta por sua vez:"Encontraremos mais tarde, na França, afetações
igualmente estranhas, expostas em Maftresse
d'esth?des, de Willy, por exemplo"5.
Poder-se-ia falar em "afetação" se essas estra
nhas roupas fossem usadas numa festa popular,num desfile de carnaval? Certamente não. Está
convencionado que nessas circunstâncias a gente
se disfarça. Por que o fato de passear com traje
5. Emilien Carassus,Le Snobisnte et les leUres françaises de Paul Bourget àMareei Proust, Par is , A. Colin, 1966, pp. 126-127.
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medieval é percebido de forma tão diferente numcaso e no outro?
Pelo disfarce se exibe a diferença entre o ser
de empréstimo e a pessoa real (esse contraste faz
rir). Na afetação, ao contrário, gostar-se-ia de dis
simular os artifícios de uma identidade usurpada
(essa confusão provoca indignação). Pobreza de
nossos jogos: não conseguimos admitir que entre o
disfarce e a afetação possam se estender todos os
graus da mudança de identidade.
Quando Emile Faguet tomava o ônibus com
um uniforme de acadêmico, ele nem estava disfar
çado nem era afetado.
Jacques Vaché mudava de uniforme sem cessar; ele passeava pelas ruas ora vestido de aviador, ora de hussardo. À diversidade sucessiva ele
preferia por vezes uma pluralidade simultânea:
De forma alguma abstencionista, é evidente, ele arvora um
uniforme admiravelmente talhado e dividido ao meio, uniforme de
algum modo s intét ico que é, de um lado, o dos exércitos "al iados",
do outro o dos exércitos "in imigos" e cuja unif icação totalmente
superf ic ia l é conseguida com grande reforço de bolsos externos ,
talabar tes claros, cartas de estado-maior e voltas apertadas de len
ços de seda com todas as cores do horizonte' .
As artes da linguagem autorizam o sujeito fa
lante a confundir sua identidade, e até a eclipsar
se enquanto prosseguem osjogos desencadeados. A
arte das condutas deveria admitir uma distinção
semelhante entre o sujeito agente (suas intenções,
suas convicções) e os gestos que ele propõe, paro
dia ou cita (Por que seria preciso que sejam seus
6. André Breton, Anthologie de ['humour noir; Paris, Ed. du Sagittaire, 1940,
p.234.
"próprios" gestos, quando aquele que fala é dispen
sado de apossar-se de cada um dos enunciados queformula?).
Estreitamente imputados ao sujeito que os
emite, os gestos têm uma coerência pobre. Fran
queados desse assinalamento único, não só seu re
gistro se estende (comono teatro, onde nem o autor, nem o diretor, nem o ator são pessoalmente
obrigados a assumir os gestos que mostram), como
também se torna possível conceber condutas com
implicações divergentes. Os gestos subversivosmais matreiros extraem sua força da hábil relação
que mantêm com a intenção bem pensante: é tão
impossível acreditar que eles a partilham quanto
estabelecer que zombam dela. Acontece o mesmo
com o gesto, já citado, daquele jovem americano
que, em Santiago do Chile, lavava a bandeira de
seu país de suas nódoas simbólicas; ou ainda da
primeira manifestação pública do Movimento de
Liberação Feminina: no dia 26 de agosto de 1970,uma dezena de militantes vão ao Arco do Triunfo
e ali depositam um ramo em memória da "mulherdo soldado desconhecido". Nessas condutas aberta
mente dúbias, o alcance ofensivo não é dissociáveldo respeito literal concedido ao emblema ou ao ri
tual, como se o mesmo gesto implicasse ao mesmo
tempo dois sujeitos, de modo que as forças da or
dem, que não deixam de intervir, vão se expor ao
ridículo de não poder sancionar um sem desautorarabsurdamente o outro.
Tzvetan Todorov distingue, em Barthes, o ca
ráter tradicional das afirmações (o conteúdo dos
enunciados, que reitera notadamente os temas da
intransitividade do texto, da pluralidade de suasinterpretações) e o modo novo da enunciação: "ne-
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nhum discurso é inteiramente assumido, nem to
talmente condenado; sempre se ouve finalmente
uma palavra por procuração"7. Como afirmaBarthes sobre si mesmo, "ele evolui ao sabor dos
autores de que trata", sem aderir ao que afirmam,sem se manter tampouco à distância desses outros
discursos: ele queria empregar "aspas incertas",
"parêntesis flutuantes". Essa enunciação inédita
tem por efeito dispersar o "sujeito". Quem fala? A
"pessoa" se encontra "se não anulada, pelo menos
ilocalizável". Todorov vê em tal concepção da escri
tura a marca da modernidade, que consiste em "re
conhecer o outro diferente de si mesmo, o outro em
si mesmo, em inaugurar a era da alteridade e da
exterioridade generalizadas".
Ora, o que pode a escritura, não estará o gesto, por sua vez, em condições de tentar? Parece até
que a arte dos gestos nesse ponto precedeu a ex
periência literária. Não será a relação que o ator
mantém com sua personagem, há muito, rigorosa
mente idêntica à que Barthes institui com os au
tores de que trata? O paradoxo do ator é que ele
não adere à personagem que faz viver. Ele lhe
empresta seu corpo, assim comoBarthes "empresta sua voz aos outros sem se fundir com eles".
Será essa relação transportável para fora doteatro? Talvez fosse conveniente afastar os casos
em que é o teatro inteiro que se transporta parafora da cena que lhe é destinada, como nas cele
brações dos costumes de outrora.
7. Tzvetan Todorov, "La Réflexion sur Ia littérature dans Ia France
contemporaíne", Poétique (38): 141·147, 1978. A análise dessa "polifonia"
do texto é desenvolvida no livro que Tzvetan Todorov dedicou a Bakhtin:
Mikharl Bakhtine, leprincipe dialogique, Par is , Seuil , 1981.
Casa-se com velas nos castelos alugados por uma noite, ao
som das violas ou das flautas-doces. Em Evron, em Mayenne, os
habitantes se ves tem com roupas do século X para ir ao mercado,
que festeja seu milênio este ano . ..Aqui e ali, os camponeses se en
contram aos domingos para muti rões à moda antiga, onde ceifam
amarrando as gavelas à mão, formando uma roda para bater o
trigo com o mangual, suando bastan te , torcendo-se de ri r das brin
cadeiras nostá lgicas dos rapazes da regiãoB•
Semelhantes à festa, ao jogo e ao rito - se
melhantes por isso igualmente ao teatro -, essas
celebrações nostálgicas preenchem um tempo de
finido; são momentos separados, parêntesis na
vida. Mas não é difícil imaginar que esses parên
tesis, como os de Barthes, podem se tornar "flu
tuantes" e que, por exemplo, os hábitos da refei
ção entrem, cada vez com mais freqüência, na erada alteridade. Bourdieu quer evidenciar, nas di
ferentes maneiras à mesa, a filosofia prática de
cada classe social. É um estilo de vida que se ma
nifesta no "comer-à-vontade" das classes popula
res, em que a refeição é colocada sob o signo daabundância, da liberdade, da familiaridade, da
"sem-cerimônia". A burguesia, ao contrário, cóm
sua preocupação de "comer nos conformes", mos
tra o valor que atribui à contenção e ao comedi
mento, à cerimônia social, à estilização da condu
ta9. Evidentemente, Bourdieu não ignora que a
luta pela elevação social, portanto o sobrelanço
na distinção e a volta, supremamente distinta,
aos costumes populares tornam cada vez mais
8. Josettte Alia, ( 'LaCourse au bon vieux temps", Le Nouvel observateur,
(826), 6-12 set. 1980.
9. Pierre Bourdieu, La Distinction, critique Badale du jugement, Paris,
Minuit, 1979, pp. 215-222.
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difícil imputar qualquer etos a uma classe definida. Sua reflexão negligencia todavia, o maisdas vezes, os casos de empréstimo, a infração aohábito, a migração dos costumes, todas as práti
cas que consistem em imitar, em experimentar,em partilhar o etos do outro.
Sem dúvida, esses fenômenos ainda não atingiram um grau de freqüência estatística suficiente para que a sociologia se interesse por eles. Aestética, em contrapartida, deve talvez reconhecerneles a operação de uma categoria suscetível de setornar para ela essencial: a dispersão subjetiva.
A arte de se comportar poderia então se definir como o exerCÍcio assíduo do afastamento de
si mesmo. Fundando-se no exemplo que o teatrooferece constantemente, mas que não é o único aoferecer - pois a pintura, a música ou a literatura implicam igualmente a expatriação afetiva,a experimentação emocional, o jogo dos sentimentos e das idéias que são experimentados semque se deva aderir a eles -, esta arte consistiriaem manejar, em todo comportamento, o índice deuma íntima distância. Assim como é lícito nutrir
se hoje "sem-cerimônia" e comer amanhã "nosconformes", ou tomar emprestados os ritos darefeição japonesa, depois os de uma refeição africana, é possível igualmente experimentar os gestos de uma fé que não se possui, permanecer, porexemplo, sentado por muito tempo numa mesquita até que se se torne outro, como a gente se torna outro ainda escutando um concerto de órgãonuma igreja barroca. O jogo da alteridade ficasem dúvida facilitado, nesses últimos casos, pela
distância que separa a cultura de origem e a cultura de empréstimo, pelo amplo espaço que aqui
I
1I1,
se abre ao imaginário. Entretanto, a cisão subjetiva é praticável até mais perto de si: na vidaprofissional, como Sartre demonstrou com suacélebre descrição do garçom de café que represen
ta ser garçom de cafPo; também na vida sentimental, em que as condutas de sedução consistem em se atribuir, com toda a gama das conivências e dos papéis codificados, o amor que ainda não se experimenta; na própria vida amorosae no erotismo, que inventam, como jogos, mitologias secretas ou figuras intercambiáveis.
Se fosse mais correntemente aceito que nossosgestos não se destinam diretamente a exprimirnossas convicções íntimas, nossas intenções profundas, nossos pontos de vista pessoais, admitindo-se que com eles jogamos como se fossem umalinguagem e que eles devem servir para citar asatitudes que queremos ressaltadas, ser-nos-iadado por acréscimo poder relacioná-Ios também,de vez em quando, de maneira inesperada e bela,a nós mesmos, ao sabor de uma coincidência queé preciso prontamente captar.
O escultor Manolo entra, num sábado à noite,
na igreja da Rue des Abbesses e, pegando umaesmoleira colocada diante do altar da Virgem, começa a fazer a coleta murmurando com uma vozfinória: "Para os pobres, por favor". Os fiéis dãocada um seus dois tostões. Manolo, depois de seajoelhar e se persignar, vai-se embora com a coletall. Ora, de fato, ele era paupérrimo.
10. Jean-Paul Sartre, VÊtre et le néant, Paris, Gallirnard, 1943, pp. 98-99.11. Pierre Labracherie, La Vie quotidienne de ia boheme l it té ra ire au XIX'
siécle, Paris, Haehette, 1967,p. 230.
116117
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Num concurso do conservatório, uma atriz sem
futuro, entrando em cena para representar a som
bria Eriphile de Racine, pronuncia o início de sua
tirada olhando para ojúri: "Não os constranjamos,
Doris, retiremo-nos". Tinham-lhe repetido que ela
era ruim, que não tinha voz, traquejo, tempera
mento. Ela diz o texto de Racine, o texto trágico,a grande tirada tão bem adaptada a sua ínfima
situação: "Não os constranjamos, Doris, retiremo
nos", deixando o teatro para sempre12•
A relação ambígua que um autor mantém com
sua obra, a distância mais ou menos marcada que
ele opõe, não só a suas personagens, mas igualmen
te ao sujeito virtual encarregado da função de
narrador - como ao sujeito latente que o tom, o
gênero, o registro empregados implicam e até ao
tema que deve assumir o sentido global da obra _,
todo esse jogo das distinções reivindicadas, denegadas, reafirmadas constitui o espaço próprio da lite
ratura e, por extensão, da invenção artística. A pre
sunção de "insinceridade" seria, portanto, aqui vã.
Mas, na medida em que nenhuma adesão é a priori
requerida entre a pessoa do autor e os pontos de
vista que ele encena, torna-se lícito, para ele, oportunamente, apropriar-se intimamente deles.
Face aos protestos habituais de sinceridade,
que nos deixam indiferentes, tão tristemente pre
visível é a vida interior de nossos semelhantes,quem nos dera encontrar amiúde verdadeiros ar
tistas da conduta, mais preocupados em nos dar
um prazer teatral do que em exigir nossa intimi-
12. Suzanne Bernard, Le Temps des cigales , Paris, J. J. Pauvert, 1975, pp.37-38.
dade como contrapartida de sua interioridade ba
nal: criadores de gestos, levando a discrição pes
soal a ponto de fazer de seus afetos e convicções
próprias o jogo secreto de sua fidelidade. Quandose retiram, o gesto inteiro de sua vida tem a den
sidade de uma obra. O enigma é completo. Tudo é
possível. Nem mesmo se exclui que tenham sido"sinceros".
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ESTÉTICAS
"É o gesto que conta": fórmula benévola pelaqual se desculpa a modicidade de um dom, a mediocridade de um serviço prestado. Aprecia-se aqualidade do gesto, na falta de seus efeitos. Justificação ambígua, que lembra e ao mesmo temponega que se esperava um resultado mais substancial. Agir pela beleza do gesto, tal é o recurso que
se oferece aos militantes das causas perdidas.Quando o fracasso é certo, resta aomenos o estilo.A falência é inevitável, mas não lhe faltará distinção. Sucumbamos com topete. Se a morte é nossodestino, toda conduta não é mais que um gesto:apliquemos aí as formas e concluamos na beleza.
A idéia do gesto, quando é compreendida nosentido do espetacular, do intransitivo e do simbólico, induz tal estética do brilho e reatualiza aideologia romântica que a subtende. Apesar de a
assimilação da beleza e da inutilidade declaradater caído em desuso nas artes refletidas, quando se
120 121
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trata da conduta da vida, a estética espontânea
que a rege faz ressurgir essa referência longínqua.
Pode-se, entretanto, conservar a idéia de ges
to, entendê-Ia de uma maneira totalmente diver
sa - como a possibilidade de introduzir a alteridade em si - e conceber um comportamento que
seria doravante capaz de engendrar um sujeito
plural em vez de exprimir uma pessoa constituída.
Segundo Philippe Audoin, o surrealismo, que é
"dotado de violência, é igualmente algo livre; uma
postura, um gesto rápido, preciso. As justificativas
ideológicas existem, podem formular-se, mas o que
conta ao final, enfim, é a atitude, é o gesto"l. Uma
vez mais, como na estética do simbólico, "é o ges
to que conta". Mas a fórmula mudou de sentido.
Enquanto o despeito se encontrava há pouco com
pensado pelo brilho do gesto, agora, a intensidade,
a convicção, a própria violência, coexistem com o
que o gesto pode ter de livre. A paixão é compatí
vel com a distância interior, a emotividade e a ten
são com a liberdade, o sentimento do trágico da
existência com o jogo soberano. É possível ser sério sem se levar a sério, conter uma resolução ina
balável sem ser tomado por ela. Ser outro em si
mesmo resume-se nisto: não ser desertado, nem
possuído, mas exatamente o que se chama ser "habitado".
O gesto rápido e preciso se destaca de seu au
tor, desata-se do sujeito, como se usasse aspas,
como se estivesse enunciado com essa elocução ní
tida, bem articulada, que têm os atores. No desa
jeitamento e no balbucio, os gestos que se tentam
1. Philippe Audoin, "Le 8urréalisme et lejeu", Entretiens SUl' le surréalisme,
Paris , Mouton, 1968, p . 456.
e os propósitos que se extirpam continuam a adenr a sI.
Segundo a estética derivada do romantismo, o
campo aberto ao gesto se estende até dois extre
mos aparentemente opo.stos: a forma global deuma vida (o grande gesto que constitui um desti
no individual) e o instante privilegiado (o breve
momento em que o gesto, auto-suficiente, acede a
um estatuto mítico). Esses pseudocontrários têm
em comum definir-se pela intransitividade: em
ambos os casos, o gesto é uma totalidade fechada,
sem finalidade externa, e por isso mesmo, simbó
lica. A insatisfação estética torna-se então alta
mente provável. O destino não tem o rigor que se
esperava, sua linha não é tão nítida quanto se de
sejava, contingências demais confundem-lhe o tra
çado. Quanto ao instante, ele só está inteiro no so
nho. O momento vivido é transitivo, captado de an
temão pelo futuro próximo, já empenhado no tra
balho em curso ou na tarefa vindoura. Supondo-se
que se possa extrair do fluxo costumeiro alguminstante verdadeiro, a continuidade comum da
existência, ao contrário, parecerá ainda mais ba
nal e mais morna. Assim, para Mallarmé, que levava sua atividade de poeta até a mais pura inu
tilidade e que devia circunscrever a profissão que
o fazia viver, nas palavras de Valéry, "em não sei
qual reserva e em qual região miserável e servil de
si mesmo"2.A menos, evidentemente, que o instan
te radical seja o do último gesto (comono caso da-
2. Paul Valéry, "Sorte de préface", Variété, Paris, Gall imard, 1957, cal .
Pléiacie, tomo l, pp. 682-683. "Mas esse admirabilíssimo doutor em letras
sublimes que dispensava à sua volta lições de pureza espiritual, que nos
oferecia a meia voz uma dout rina de forma de liciosa que inspirava uma
espécie de mitologia generalizada, sofria cada vez menos silenciosamen-
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quele doente a quem é vetado o uso do álcool e quemajestosamente se mata num jantar regado achampanha; como também Dom Juan, em outrobanquete). O gesto intransitivo, quer seja conquistado contra o prosaísmo que o limita quer sobrevenha como um último desafio, espalha ao seu redor o definhamento e só se realiza plenamente namorte.
Em contrapartida, se o gesto é compreendidocomo a possibilidade de introduzir um afastamento de si em relação a si, não há atividades ou momentos privilegiados. Toda ocasião se presta a essadefasagem íntima. Desvio francamente aberto às
vezes (na paródia, na ironia, no jogo), às vezesimperceptível (quando se exerce uma profissãocom escrúpulo e desprendimento; sem amarguranem indolência, ainda que sem zelo; interessandose por ela, mas recusando-se a investir nela a totalidade de si mesmo).
Assim se extingue a espera ansiosa dos momentos de exceção. Mas não resulta disso quequalquer situação seja tolerável. À vontade de distanciamento subjetivo se opõem os sistemas polí
ticos, religiosos, familiares que, não contentes comregrar a literalidade da conduta, pretendem regero estado de espírito com o qual se observam suasinjunções (como essas empresas que utilizam emproveito próprio a mística do dinamismo, que nãose limitam a distribuir as tarefas, mas exigem queelas sejam cumpridas com convicção, com entu-
t e a c or vé ia d e p rofe ss ar out ra c oisa e a d ilap id aç ão d as h or as p re cios as
que devia sacrificar ao seu dever i nferior" [. .. ] I'Todos os anos, a aproxima-
ç ão d of im d as f ér ias e nven en ava n ele a e moção d om ome nt o s up re mo d osfunerais do verão."
siasmo OU frenesi). Então, o ato e a intenção prescrita fazem um só corpo. Anula-se a liberdadeinterior, teria dito outrora a moral. Nenhum espaço disponível - deveria dizer a estética -, nenhum
intervalo, nenhum jogo por meio do qual a exterioridade e a alteridade do gesto se possam mostrar.
Essas duas concepções não esgotam certamente as possibilidades abertas à estética das condutas. Não está excluído que se possa orientá-Ia numaoutra direção, reservando à noção de gesto umpapel muito menos favorável. É possível, além disso, que o próprio gesto seja suscetível ainda de alguma outra compreensão. O que é exemplificadopelo teatro não é ap"enas o simbolismo dos atosarrancados aos encadeamentos pragmáticos, nemo franqueamento dos gestos desatados do sujeito,é também o desenvolvimento de movimentos quevão até o fim de si mesmos. Comparados aos doscomediantes, nossos gestos - no sentido físico dotermo - parecem comfreqüência hesitantes, quase sempre contraídos; eles são muito curtos; emitem involuntariamente sinais contraditórios. Os deum ator são mais amplos, mais resolutos. Da mes
ma forma, uma ação teatral geralmente agita umanecessidade que se desenrola até as suas realizações extremas, enquanto nossos atos se esgarçamno inacabado. Por conseguinte, tomado no sentidofigurado, o gesto, instruído pela experiência teatral, poderia se definir assim: uma conduta dirigida por uma determinação irreversível, que prossegue até seu termo; o contrário das veleidades, dasmeias-medidas. Essa definição, com toda certeza,difere amplamente daquela que acaba de ser desen
volvida: o afastamento de si mesmo, a distânciasubjetiva contrariam o grande movimento no qual
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se entra de cabeça (nem por isso, porém, são con
trários exatos; algum recuo em relação a si mesmo
é compatível com o fascínio dos limites). Ela se
distingue igualmente da definição que foi anterior
mente considerada: a atração pelo espetacular epelo simbólico é estranha à paixão que se lança até
seu fim, preocupada demais com aquilo que ela
quer para se preocupar com o que se parece.
O objetivo desta reflexão não consistia em lan
çar os fundamentos da estética das condutas: não
se acreditou que devesse haver, nesse domínio
como tampo'Uco em outro qualquer, uma estética
única. O propósito não era sequer examinar exaus
tivamente os diversos sentidos que o gesto pode as
sumir: retiveram-se dois deles, que não são os úni
cos possíveis, como acabamos de ver rapidamente.
Tratava-se, antes, de testar um dispositivo analógi
co,de apreciar-lhe a fecundidade, na esperança de
que ele prometa prolongamentos indefinidos. Pres
supôs-se que as artes instituídas podem fornecer o
exemplo de certos esquemas ou modelos3 que são
transponíveis até para a conduta geral da vida.
A arte atual pede uma redefinição de sua fun
ção: se a questão for julgada segundo a abundân
cia das obras deliberadamente agressivas, o sim
ples deleite deixou de representar uma justificati
va suficiente. Todavia, designar-lhe um fim com
pletamente exterior, colocando-a, por exemplo, a
serviço de causas consideradas prioritárias, não
3. A hipótese de uma l'art ialização" da experiência, de um esquematismo
sociotranscendental vindo da arte, const itui objeto de um estudo muito
erudito e muito mais amplo que o presente ensai o por parte de Alain
Roger, Nus e tpaysages. Es sa i sur Iafonct ion de l 'art , Paris, Aubier, 1978.
A t ese de Ala in Roger é discutida em Jean Galard, "Reperes pour l'élar-
gissement de l'expérience esthétique", Diogene, (119), 1982.
seria apenas contrário à convicção da maioria dos
artistas, mas resultaria sobretudo emjulgar equivocadamente sua influência real em domínios onde
ela é perfeitamente dispensável. Para levar em
conta o caráter experimental e exploratório que elaespontaneamente se atribui, e para não desconhe
cer, ao mesmo tempo, o que pode haver de especí
ficona atividade estética, poder-se-ia imaginar que
a arte é o lugar privilegiado de uma pesquisa que
visa a prover a conduta cotidiana (tanto quanto
aquela que não é de modo algum cotidiana) com
meios ou conceitos nos quilis ela precisa muito se
inspirar para se tornar menos insípida, pobre efeia.
Terá essa operação analógica, essa transposição do ato artístico para o comportamento geral
encontrado aqui uma aplicação probatória? O au
tor deste exercício não faz questão de defender sua
hipótese, nem de se retratar. Um gesto pedia que
fosse tentado. Mais do que um autor, era-lhe ne
cessário um ator. Uma breve peça em dois quadros
devia ser encenada. O gesto foi cumprido. Que o
entendam como quiserem.