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GASTRONOMIA RAÍZES As do AÇAÍ Como o alimento mais básico da Amazônia se tornou uma febre global. Texto Maria Clara Rossini, de Igarapé-Miri Ilustração Rodrigo Fortes Design Juliana Krauss Edição Ana Carolina Leonardi SI_410_Acai.indd 48-49 18/11/19 15:03

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raízesAs do

açaíComo o alimento mais básico da Amazônia se tornou uma febre global.Texto Maria Clara Rossini, de Igarapé-Miri Ilustração Rodrigo Fortes Design Juliana Krauss Edição Ana Carolina Leonardi

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Camarão, peixe frito, charque e farinha d’água: está aí uma combinação de “toppings” que você nunca imaginaria pedir em um quiosque de açaí. Mas é exatamente o tipo de refeição que transfor-mou o açaí em um dos ali-mentos mais importantes da região Norte do Brasil. O açaí “raiz” não tem nada a ver com os copões cheios de banana, grano-la e leite ninho que você toma aos finais de sema-na, e muito menos com a onda saudável, fitness e natureba abraçada ho-je. Historicamente, o açaí representa subsistência. O açaí com farinha de mandioca é o arroz e fei-jão do Norte. Juntos, esses dois alimentos fornecem a base de nutrientes neces-sários para aguentar o dia: carboidratos, proteínas, gorduras e vitaminas. Uma típica cuia de açaí com farinha passa

facilmente das 500 calo-rias – um quarto do que um ser humano médio precisa comer todos os dias para se manter de pé. Para você, bicho mo-derno que faz compras no supermercado e vive de dieta, não parece o me-lhor dos mundos, certo? Quando, porém, comida é algo difícil de obter... uma árvore de açaí é como uma mina de ouro. Com pou-quíssimo esforço, você tem acesso a uma fonte de energia constante e extremamente versátil. Era assim para os ín-dios caçadores-coletores há mil anos. E segue as-sim hoje – principalmen-te para quem tem pouco dinheiro. 60% das famí-lias que recebem até um salário mínimo no Pará consomem açaí todos os dias. Batido ou amassado no pilão até formar uma pasta, o açaí serve de prato principal, de suco e de sobremesa. Alimentos com tama-nha importância geral-mente ganham destaque na mitologia de um povo. Os astecas, por exemplo, acreditavam que o milho era, literalmente, um se-mideus. Não é diferente para o açaí: ele tem a pró-pria história de origem sobrenatural, que reflete perfeitamente a relação da população com o fruto. Na lenda, uma tribo indígena que vivia on-de hoje é Belém viu sua população crescer muito rápido – mais rápido do que a oferta de comida.

CO cacique tomou medi-das drásticas para evitar a fome, e condenou todos os recém-nascidos à mor-te. Sua filha, Iaçã, estava grávida, mas nem a neta do líder foi poupada. Iaçã ficou desolada e pediu ao deus Tupã que acabasse com o sofrimento da tribo. À noite, ela ouviu o choro de uma criança, e seguiu o som até a floresta. No dia seguinte, Iaçã foi encontrada morta na base da palmeira. Seus olhos, abertos, fitavam o topo da árvore, na direção de pe-quenos frutos que balan-çavam nos galhos. A tribo passou a se sustentar com um suco roxo feito a partir da fruta e aboliu a políti-ca de sacrifício. Açaí, veja bem, é Iaçã ao contrário.

Granola e guaranáComo foi, então, que o açaí ganhou outra cara – e um significado totalmente diferente – no restante do Brasil e do mundo? Ele invadiu os quiosques de praia e as sorveterias, os supermercados, shoppin-gs e, depois, as academias. Para onde quer que você

olhe, tem açaí. Mas, para conquistar o planeta, o açaí tra-dicional de Iaçã precisou passar por uma repagi-nada profunda. Quem só conhece o fruto do açaizei-ro por foto pode

pensar que ele parece um mirtilo ou uma jabu-ticaba. Na verdade, ele se assemelha bem mais a um caroço - duro e impossível de mastigar. Por isso é que a fruta só é consumida em líquido ou pasta, de-pois de batida com água. Existem três tipos desse açaí pastoso: o popular, o médio e o especial. A regulamentação federal determina que o popular tenha entre 8% e 11% de resíduos sólidos do fruto (ou seja, polpa) misturados com água. O médio deve ter concentração entre 11% e 14%, enquanto o es-pecial precisa passar dos 14%. Mas não muito: um copão com mais de 17% de açaí dificilmente é bem digerido pelo corpo, e pro-voca um piriri daqueles. No resto do Brasil, é

bem provável que você nunca tenha se deparado com a oportunidade de escolher um açaí popular ou especial. Isso porque o que você toma no quios-que não é exatamente açaí. O que vende-se fora da região Norte normal-mente é o mix, uma mis-tura feita industrialmente que contém açaí - mas também um monte de outras coisas. É como se você tomasse um sorvete de morango e achasse que está comendo a fruta pura. É difícil provar o verdadeiro açaí fora do Norte. Depois da colhei-ta, o fruto deve ser bati-do em até 24 horas para preservar a cor, o cheiro e o sabor – de preferên-cia. O consumo também precisa ser rápido. Se o açaí não for ingerido em até 72 horas, ele começa a oxidar - ou, em bom paraense, azedar. A polpa, então, preci-sa ser congelada e indus-trializada para chegar a outras partes do país e do mundo. A Finlândia compra seu açaí bem do-ce, enquanto os Estados Unidos preferem algo mais natural. Para a Ará-bia Saudita, quanto mais concentrado, melhor. O mix é o passo nº 1 da repaginação que tornou o açaí um sucesso interna-cional. Além de ser feito usando a polpa popular – que é menos concen-trada e bem mais barata, ele também é mais doce, e perde muito do seu sa-bor terroso característico.

Para isso, é misturado com xarope de guaraná, aromatizantes, estabili-zantes e outros ingredien-tes para dar a consistência de sorvete. “Com um qui-lo de polpa de açaí, você consegue fazer dez quilos de mix”, diz Dário Pan-toja, dono da fábrica de polpas Dapancol. Antes da invenção do mix, o consumo do açaí era exclusivamente regio-nal. Era meio complicado atrair o interesse do públi-co de outros Estados – se já é difícil convencer al-guém a provar uma fruta diferente, imagine quan-do a fruta vem misturada no camarão ou peixe. “O caráter exótico não foi muito bem visto em ou-tras regiões. Para não criar uma aversão tão grande, foram acrescentados no-vos ingredientes de mo-do que o açaí se tornasse muito mais atrativo para quem não compartilha da cultura da região Norte”, diz Fabrício Ribeiro, his-toriador e especialista na produção de açaí.

Dominação mundialFoi na virada do milênio que o açaí se arriscou para fora do Norte. Hoje, mais de um milhão de tonela-das de açaí é produzido por ano, e 95% disso vem do Pará. No início dos anos 2000, a produção não chegava a 120 mil toneladas, e ficava quase inteira no Estado. O consumo local continua gigante – 60% do açaí do mundo é

Só dá para provar o açaí fresco no próprio Norte: ele precisa ser batido em 24 horas depois de colhido, e ingerido (ou congelado) em três dias – senão azeda.

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Do cacho ao pote O passo a passo da indústria do açaí.

COLHEITAOs coletores, chamados de peconheiros, escalam as palmeiras de 20 metros de altura com facões, e descem com o cacho de açaí nas mãos.

(1)

TrAvEssIAPequenos barcos passam de casa em casa diariamente recolhendo o açaí em latas. Seus donos são chamados de “atravessa-dores”.

(2)

vENDAOs barcos levam todo o açaí para os mercados centrais à beira do rio. Lá, ele é vendido em cestas para comerciantes locais e para a indústria.

(3)

LAvAGEMO fruto, então, passa por um regime de higienização e é banhado em uma solução de cloro que elimina micro-organismos.

(4) DEspOLpAMENTOO açaí é batido com água para formar uma pasta na concentração desejada. O caroço é separado e reservado em um contêiner.

(5) CONGELAMENTOFreezers gigantes armazenam o açaí envazado em saquinhos. Depois de congelado, segue para o transporte.

(6) TrANspOrTEA polpa congelada segue do Norte até as fábricas de mix espalhadas por todo o País. A maior parte delas se concentra no Sudeste.

(7) prODuçãO DO MIxNa fábrica, vem a mistura com o guaraná, os espessantes e os conservantes. Algumas marcas também produzem sorvetes e energéticos de açaí.

(8) CHEGADA AO MErCADOEssa é a parte que você conhece. Os produtos chegam aos supermercados, quiosques e lanchonetes de todo o País – com “toppings” à escolha do cliente.

(9)

consumido no Pará, mas 30% é consumido pelo restante do País, e 10% vai para exportação. No Brasil, a popula-rização do açaí teve um protagonista inusitado – ou melhor, uma linha-gem de protagonistas: a Família Gracie de luta-dores de jiu-jitsu. Os irmãos Carlos e Hé-lio Gracie transformaram o jiu-jitsu brasileiro nu-ma marca internacional. Quase todos os seus des-cendentes são lutadores e o nome “Gracie” virou si-nônimo de artes marciais. A popularidade crescente do MMA deu origem ao maior campeonato de lu-ta do mundo, o UFC. E os holofotes transformaram a família, originária de Belém, numa espécie de “vitrine” dos costumes da região Norte para o resto do País. A Dieta Gracie virou marca registrada. E adivinha o que não podia faltar nela? Açaí. A família Gracie inau-gurou a relação entre açaí e esporte, que logo se tornou inseparável. Pro-dutores aproveitaram a brecha para patrocinar campeonatos de MMA,

populares no Norte. Nas praias do Rio de Janeiro, onde moravam os Gracie, o açaí virou moda. Em 2000, uma dupla de surfistas americanos que visitava o Brasil ficou particularmente interessa-da na frutinha roxa. Eles começaram a levar a polpa congelada para os Estados Unidos e vendê-la nas praias de Los Angeles. Foi a primeira incursão internacional do açaí. Hoje, essa prática seria impensável. A exportação de alimentos naturais se-gue regras rigorosas pa-ra evitar contaminação – e a polpa só atravessa a fronteira depois de pas-teurizada. Naquela época, porém, o açaí “informal” era transportado sem pas-sar por nenhum processo industrial – e sem adoçar. Na gringa, ele fez sucesso para quem curtia o gosto terroso e a ideia de provar uma fruta da Amazônia, mas não era um negócio voltado para as massas. Essa história chegou até o engenheiro agríco-la Ben Hur Borges, que trabalhava com palmito de açaí no Pará. Ele viu a oportunidade de adaptar

o produto ao paladar es-trangeiro. E introduziu o açaí de exportação ao seu grande companheiro: o guaraná. O fruto com formato de olho já era co-nhecido no exterior por ser o símbolo da Amazô-nia. O extrato de guaraná tornava a pastinha roxa mais doce e palatável. Deu tão certo que o gosto que você, hoje, associa ao açaí vem dessa mistura. Já doce, industrializado e pronto para se espalhar pelo mundo, o açaí deu mais um golpe de sorte. Os anos 2000 trouxeram à tona a onda avassaladora dos “antioxidantes”. Os es-tudos sobre saúde e enve-lhecimento não paravam de mencionar os misterio-sos “radicais livres”, que aumentam de concentra-ção no corpo junto com a idade. Os danos que eles provocavam têm a ver com um processo celu-lar chamado oxidação. As substâncias que protegem o corpo da oxidação são chamadas de antioxi-dantes – e muita pesqui-sa foi dedicada a enten-der a influência de uma dieta rica em moléculas com esse poder.

A indústria alimentí-cia percebeu a tendência e abraçou o conceito. A pa-lavra “antioxidante” passou a ser entendida como “an-tienvelhecimento”. E aí o açaí ganhou um marketing científico poderoso. Além de doses altas de ferro, potássio e vita-minas, a fruta é rica em antocianinas. Essas subs-tâncias – que, como você pode imaginar, fazem parte do grupo de antioxi-dantes – já foram associa-das à redução de risco de doenças cardiovasculares, com o aumento do coles-terol bom e com o com-bate à formação de placas de gordura nas artérias. E nenhuma fruta vermelha bate o açaí em concentra-ção de antocianinas.

Raízes da produção Não há dúvida de que esse marketing “do bem” e a repaginada de sabor tornaram o açaí um negócio lucrativo. A produção, no entanto, continua centrada na Amazônia – e você não vê latifúndios Brasil afo-ra plantando e colhendo açaí num ritmo aluci-nado. Não por proteção

à cultura tradicional, claro. É porque açaí... não se planta. O açaizeiro nasce em terrenos de várzea, às margens dos rios. Cada árvore adulta necessita de 120 litros de água por dia para dar fruto. Mesmo no Norte – que já tem as condições de clima, chu-va e rios a seu favor –, a maior parte da produção de açaí vem do manejo de plantas nativas. Açaizei-ros plantados até existem, mas são minoria. A preparação do terre-no consiste em retirar as árvores mais altas para abrir espaço aos açai-zeiros e deixar que os próprios frutos e folhas caídas façam o trabalho de nutrir e gerar mais pés de açaí. A cidade que mais produz açaí no mundo é Igarapé-Miri, no interior do Pará, responsável por mais de 20% da produção. Quem colhe os frutos é a comunidade ribeiri-nha – mais especifica-mente os “peconheiros”, que recebem esse apelido pois escalam as árvores de 20 a 25 metros com auxílio da peconha. É

uma espécie de corda que, enrolada ao redor dos pés, facilita a subida. Lá em cima, o peconheiro corta cachos de açaí com um facão e, na volta, vende para a indústria. Segundo dados da Companhia Na-cional de Abastecimento (Conab), a produção de açaí representa 70% da fonte de renda da popu-lação ribeirinha do Pará.

Se, por um lado, o açaizeiro não permite agricultura escalável, ele também não tem frescura: só precisa de água, luz e adubo para render bons frutos. Dispensa até agro-tóxicos, já que o açaí não possui pragas. Uma pal-meira de açaí dá frutos por 10 a 25 anos, e ainda fornece palmito. Dá para entender por que a árvo-re foi interpretada como um presente de Tupã para acabar com a fome.

Seja com camarão ou banana, na cuia ou no po-te, a verdade é que não existe maneira errada de comer açaí. Mas, se quiser se gabar de ter comido açaí de verdade, é bom pegar um avião com destino a Belém. Vale a pena. S

de todo o açaí con-

sumido no mundo vem

do Estado do Pará.

95%do açaí que é exportado

tem como destino os

Estados Unidos.

77%

Agradecimentos Ricardo Pólen, Fabrício Ribeiro, João Tomé, Ben Hur Borges, Dário Pantoja, Amazon Polpas, Açaí Santa Helena, Petruz Açaí.

DEZEMBRO 2019 super 53 52 super DEZEMBRO 2019

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