gata. Fica imaginando a cena. Na casa do coelho encontra ... · Encontra o Gato de novo. O bichano...

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244 gata. Fica imaginando a cena. Na casa do coelho encontra outra garrafinha sem inscrição nenhuma e bebe seu líquido. Cresce muito e fica entalada dentro da casa. A menina pensa: “– Quando eu lia contos de fadas, pensava que essas coisas jamais aconteciam, e cá estou eu metida numa dessas histórias! Deve haver algum livro escrito sobre mim, deve haver! E quando eu crescer, escreverei um...mas eu já cresci” – e acrescentou, cheia de tristeza: “pelo me nos aqui não existe mais espaço para crescer.” “ Mas então” – pensou Alice _ “será que nunca vou ficar mais velha do que estou agora? Sempre é um consolo...nunca ser uma mulher velha...mas então terei sempre lições para aprender! Oh, isso não, disso é que eu não gostaria mesmo!”. p. 64 A situação é análoga à de Peter Pan, como veremos. O Coelho volta, tenta entrar em casa mas é impedido pois o corpo de Alice ocupa todos os espaços. Sem entender o que está acontecendo, o Coelho chama Bill um lagarto empregado e manda-o entrar pela chaminé. Alice ouve só as vozes vindas do lado de fora. Bill é chutado pela menina e vai cair longe. O Coelho resolve incendiar a casa. Alice acha uns pequenos bolos no chão, come, encolhe, sai da casa fugindo para um bosque. Seu desejo é recuperar seu tamanho natural. Um pouco assustada pois corre risco, Alice brinca com um filhote de cachorro. O animal parece gigantesco. Alice encontra uma Lagarta azul que pergunta: “– Quem é você?? ” p. 69 A menina responde: “ – ...eu...enfim, sei quem eu era, quando me levantei hoje de manhã, mas acho que já me transformei várias vezes desde então.” p. 69 Alice conversa com a Lagarta azul, que lhe pergunta de que tamanho preferia ser. A menina responde que gostaria de não ficar mudando tanto. A Lagarta ensina à menina a usar um cogumelo que, de um lado a fará crescer, e de outro diminuir. Alice experimenta um pedaço do cogumelo e vai bater com o queixo nos pés. Come outro pedaço e seu pescoço fica imensamente comprido. Confundida com uma serpente é atacada por uma pomba. A ave vive preocupada com as serpentes que querem comer seus ovos. Alice diz que não é nenhuma serpente. A ave pergunta “– Bem, você é o que?” p. 74 As questões sobre a identidade são recorrentes no texto de Carroll. Alice responde que é uma menina. A pomba não acredita, pergunta se ela nunca tinha comido ovos, e diante da resposta afirmativa, afirma que se ela comia ovos era uma espécie de

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gata. Fica imaginando a cena. Na casa do coelho encontra outra garrafinha sem inscrição nenhuma e bebe seu líquido. Cresce muito e fica entalada dentro da casa. A menina pensa:

“– Quando eu lia contos de fadas, pensava que essas coisas jamais aconteciam, e cá estou

eu metida numa dessas histórias! Deve haver algum livro escrito sobre mim, deve haver! E quando eu crescer, escreverei um...mas eu já cresci” – e acrescentou, cheia de tristeza: “pelo me nos aqui não existe mais espaço para crescer.”

“ Mas então” – pensou Alice _ “será que nunca vou ficar mais velha do que estou agora? Sempre é um consolo...nunca ser uma mulher velha...mas então terei sempre lições para aprender! Oh, isso não, disso é que eu não gostaria mesmo!”. p. 64

A situação é análoga à de Peter Pan, como veremos. O Coelho volta, tenta entrar em casa mas é impedido pois o corpo de Alice ocupa todos os

espaços. Sem entender o que está acontecendo, o Coelho chama Bill um lagarto empregado e manda-o entrar pela chaminé. Alice ouve só as vozes vindas do lado de fora. Bill é chutado pela menina e vai cair longe. O Coelho resolve incendiar a casa. Alice acha uns pequenos bolos no chão, come, encolhe, sai da casa fugindo para um bosque. Seu desejo é recuperar seu tamanho natural. Um pouco assustada pois corre risco, Alice brinca com um filhote de cachorro. O animal parece gigantesco. Alice encontra uma Lagarta azul que pergunta:

“– Quem é você?? ” p. 69 A menina responde: “ – ...eu...enfim, sei quem eu era, quando me levantei hoje de manhã, mas acho que já me

transformei várias vezes desde então.” p. 69 Alice conversa com a Lagarta azul, que lhe pergunta de que tamanho preferia ser. A

menina responde que gostaria de não ficar mudando tanto. A Lagarta ensina à menina a usar um cogumelo que, de um lado a fará crescer, e de outro diminuir. Alice experimenta um pedaço do cogumelo e vai bater com o queixo nos pés. Come outro pedaço e seu pescoço fica imensamente comprido. Confundida com uma serpente é atacada por uma pomba. A ave vive preocupada com as serpentes que querem comer seus ovos. Alice diz que não é nenhuma serpente. A ave pergunta

“– Bem, você é o que?” p. 74 As questões sobre a identidade são recorrentes no texto de Carroll. Alice responde que é uma menina. A pomba não acredita, pergunta se ela nunca tinha

comido ovos, e diante da resposta afirmativa, afirma que se ela comia ovos era uma espécie de

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serpente. A pomba vai embora e Alice, mordiscando o cogumelo, acaba voltando ao seu tamanho normal. Sai andando e encontra uma casinha.

Aparece um peixe, lacaio da Rainha, e uma rã, lacaia da Duquesa, ambos de libré e cabeleiras encaracoladas. O peixe trouxe um convite da Rainha à Duquesa, para jogar croquet. Alice entra na casa e conhece a Duquesa, um bebê aos berros, uma cozinheira e um Gato sorridente.

A cozinheira joga panelas e caçarolas na Duquesa, que parece indiferente. O bebê berra sem parar. A Duquesa atira o bebê em Alice e pede para a menina acalentá-lo. Alice descobre que o bebê é um porco e solta o animal que foge. A menina pergunta ao Gato como sair dali.

“– Isso depende muito do lugar onde você quer ir – disse o Gato. – Não me importa muito onde...– disse Alice. – Nesse caso não importa por onde você vá – disse o Gato.” p. 82 O Gato explica que para um lado mora o Chapeleiro e para o outro a Lebre de Março.

Afirma também que todos ali, inclusive êle e Alice, são loucos. O Gato desaparece. Alice resolve ir até a casa da Lebre de Março. Encontra o Gato de

novo. O bichano vem de novo com sua conversa estranha. Alice diz que gostaria que ele não aparecesse mais. O Gato vai embora mas seu sorriso fica suspenso no ar. Diz Alice

“–...já vi muitos gatos sem sorriso.Mas sorriso sem gato!” p. 84 Alice chega à casa da Lebre de Março que está tomando chá com o Chapeleiro, Um Leirão

dorme imprensado entre os dois, e participa de uma conversa cheia de trocadilhos e paradoxos. “– Então deve dizer o que pensa – continuou a Lebre de Março. – Eu digo o que penso – apressou-se Alice a dizer. – Ou pelo menos...pelo menos penso

o que digo...é a mesma coisa, não é? – Não é a mesma coisa nem um pouco! - protestou o Chapeleiro. – Seria o mesmo que

dizer que “Vejo o que como” é o mesmo que “Como o que vejo.” – Seria o mesmo que dizer – acrescentou a Lebre de Março – que “Gosto daquilo que

consigo” é o mesmo que “Consigo aquilo que gosto.” p. 86 Ou “– Aceite um pouco mais de chá – disse a Lebre de Março com ar muito compenetrado. – Não tomei nenhum ainda – replicou Alice com ar ofendido. – Então como é que posso

tomar mais? – Você quer dizer que não pode tomar menos – observou o Chapeleiro.– É bem mais fácil

tomar mais do que tomar nada.” p. 87

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O diálogo entre o real e a fantasia; a relatividade das coisas; a lógica e o paradoxo

percorrem Alice de ponta a ponta. Alice vai embora, volta para o bosque, encontra uma árvore com uma porta, entra e vai dar

de novo na sala comprida. Pega a chave em cima da mesa de vidro, mordisca o cogumelo para encolher e, finalmente, abre a portinha e entra no jardim. Encontra jardineiros e soldados, na verdade, cartas de baralho. Num cortejo, surgem o Rei e a Rainha de Copas. A Rainha parece ser muito brava. Ao conversar com Alice, fica contrariada, quase manda decapitá-la mas acaba convidando-a a jogar croquet. Durante o jogo, a Rainha manda cortar a cabeça de vários participantes, sempre perdoados pelo Rei. Alice reencontra a Duquesa. As duas conversam. A Duquesa tem mania de achar uma moral para tudo. A Rainha abandona a partida e pergunta se Alice já tinha visto a Falsa Tartaruga. Diante da negativa, a rainha informa que

“– É aquilo de que se faz a falsa sopa de tartaruga...” p.106 A Rainha manda um Grifo - o narrador intervém: “Se vocês não souberem o que é um

grifo, vejam a gravura.” - levar Alice até a Falsa Tartaruga. O animal, sentado numa pedra, parece estar muito triste e conta sua história. Falando devagar, lembra de seu tempo de criança na escola, da professora chamada de Torturuga pois era uma tortura estudar com ela, das materias escolares (Belas Tretas, bom Estrilo e os ramos da Aritmética: Ambição, Distração, Murchificação e Derrisão, Estudos Histéricos etc.).

“E quantas horas por dia duravam as aulas? perguntou Alice (...) –Dez horas no primero dia, nove horas no segundo, e assim por diante – informou a Falsa

Tartaruga. – Que horário engraçado! exclamou Alice. – É por isso que se chamavam cursos– explicou o Grifo.–Porque de dia para dia as aulas

ficavam mais apressadas, pois curso quer dizer corrida, entende? (...) –Então o décimo primeiro dia tinha que ser um feriado? – É claro que sim – respondeu a Falsa Tartaruga. – E no décimo segundo dia(...)?– continuou Alice com vivacidade. – Basta de falar de lições – interrompeu o Grifo em tom categórico.” p.110 A discussão do conhecimento oficial é outro importante tema do livro. A Falsa Tartaruga fala de uma dança de lagostas e sobre enchovas. Alice tenta contar suas

aventuras. Alguém grita: “–Começou o julgamento!” Alice assiste ao julgamento do Valete de Copas acusado de roubar as tortas feitas pelsa

Rainha. Os jurados escrevem seus nomes numa lousa com medo de esquece-los antes do fim do julgamento. O juiz, o próprio rei, interroga várias testemunhas.

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“–Tire seu chapéu - ordenou o Rei ao Chapeleiro. – Não é meu - observou o Chapeleiro. – Roubado! exclamou o rei (...). – Uso os chapéus para vendê-los - tentou explicar o Chapeleiro. – Nenhum deles é

meu.(...) Nesse momento, a Rainha pôs os óculos e pôs-se acontemplar o Chapeleiro, que

empalideceu e perturbou-se. – Faça o seu depoimento– disse o Rei – e não fique assim nervoso, ou mandarei executá-

lo imediatamente.” p. 121 O julgamento prossegue bastante atrapalhado. As dúvidas são de todo tipo. Uns dizem

que a torta era de pimenta, outros de melado. É pedido o depoimento de Alice. “– Que sabe você a respeito desse caso? – perguntou o Rei a Alice. – Nada. – Absolutamente nada ? – insistiu o Rei. – Absolutamente nada – confirmou Alice. – Isso é extremamente importante – disse o Rei, voltando-se para o júri.” p. 126

O Coelho Branco aparece com certas provas, um documento ainda não aberto. É uma carta escrita pelo prisioneiro para...alguém. O rei manda o Coelho ler o documento.

“–...devo começar por onde? – Comece pelo começo – disse o Rei com ar muito grave – e continue até chegar ao fim:

então pare.” p. 127

O Coelho lê o documento. Alice afirma que são versos sem sentido.

“– Se não existe sentido neles – disse o Rei – isso nos poupa um grande incômodo: não precisamos procurar nenhum sentido.” p.128

O julgamento prossegue confuso, com diálogos cheios de trocadilhos. A Rainha grita:

“– Primeiro a sentença, o veredicto depois. ” p. 129

Alice discorda da Rainha. Esta manda decapitá-la.

“– E quem se importa com você? – disse Alice (...) – Vocês não passam de um baralho de cartas!” p. 130

Alice acorda deitada no barranco. Conta seu sonho à irmã, que, por sua vez, também dorme e sonha com o País das Maravilhas. Imagina sua irmã, Alice, já adulta, conservando ainda seu coração puro de criança, esse o desfecho da história.

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6.5.3 Peter Pan

Peter Pan, obra de J. M. Barrie 352 , 228 p., foi publicado em 1906 e é também considerado por muitos um clássico da literatura mundial.

Faremos nosso estudo a partir da tradução de Maria Antonia Van Acker. Pode-se dizer que os aspectos de adaptabilidade às circunstâncias, teatralidade e concisão estão totalmente presentes no texto de Barrie, apesar da presença de descrições e períodos mais elaborados. O narrador, feito um verdadeiro contador de histórias, dirige-se diretamente ao leitor:

“ ...você veria como é interessante observar sua mãe enquanto ela se ocupa desta

atividade.” p.15 “ ...you would see your own mother doing this, and you would find it very interesting to

watch her. ” p.13 � Ou “ Não sei se você já viu o mapa da mente de alguém.” p.15 “ I don’t know whether you have ever seen a map of a person’s mind.” p.13 Ou “Elas eram umas lampadinhas tão simpáticas que... ” p. 35 “ They were awfully nice little night-lights, and one cannot help wishing that...” p.35 Ou “ Se você fechar os olhos e for uma pessoa sortuda, por vezes conseguirá ver um

ajuntamento disforme de cores suaves suspensas em meio à escuridão. Aí então, se você apertar um pouco mais os olhos...” p.106

“ If you shut your eyes and are a lucky one, you may see at times a shapeless pool of

lovely pale colours suspended in the darkness; then if you squeeze your eyes tighter... ” p.114 Eis uma sinopse de Peter Pan.

352 BARRIE, J.M. Peter Pan. Trad. Maria Antonia Van Acker, São Paulo, Hemus, s/d � BARRIE, J.M. Peter Pan. London, Puffin Books, 1994.

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O texto começa com a frase “Todas as crianças crescem, com uma única exceção ” (Peter), e conta como a menina Wendy, já aos dois anos, percebe isso. Descreve onde a família Darling mora e como é a sra. Darling

“ ...uma mulher encantadora, com idéias românticas e uma boca doce e irônica. Sua mente

romântica era como aquelas caixinhas vindas do misterioso Oriente: umas escondidas dentro das outras e, quando você acha que abriu a última, descobre sempre mais uma. E sua boca (...) tinha um beijo que Wendy nunca conseguira ganhar, apesar dele estar bem ali, perfeitamente visível, logo no canto direito.” p. 10

Conta como o sr. Jorge Darling conquista a sra. Darling “Ele ganhou todinha a Sra. Darling menos a última caixinha e o beijo. A caixa ele sequer

chegou a descobrir que existia e, com o passar do tempo e das tentativas, desistiu de ganhar o beijo.” p. 10

E como é o sr. Darling “ ...um homem de inteligência penetrante, desses que entendem de ações e dividendos.

Naturalmente, ninguém compreende de fato essas coisas, mas ele parecia muito entender e frequentemente dizia que as ações estavam em alta e os dividendos em baixa, de um tal modo que faria qualquer mulher encher-se de respeito por ele.” p. 10

Ficamos sabendo do nascimento dos filhos Wendy, João e Miguel, das preocupações

financeiras do sr. Darling por causa dos filhos, da babá Naná, na verdade uma cadela terra-nova, de Liza, a empregada da casa e das danças que a família costuma promover das quais até Liza participa etc.

O narrador conta que a primeira vez que a sra. Darling ouviu falar em Peter Pan foi quando fazia uma arrumação na cabeça de seus filhos, hábito noturno de toda boa mãe.

“A mente de uma criança não é só confusa, mas tudo lá dentro dá voltas sem parar. Há

linhas em zigue zague como num gráfico de temperatura, e estas linhas são provavelmente as entradas na ilha, pois a Terra do Nunca é sempre mais ou menos uma ilha, com súbitos e intensos coloridos, recifes de coral, uma embarcação pirata ao largo, selvagens e tocas reclusas, gnomos (na sua maioria alfaiates), cavernas com rios subterrâneos, príncipes com seis irmãos mais velhos, cabanas em ruína e um certa velhinha com o nariz recurvado. (...) Naturalmente as Terras do Nunca variam um bocado de pessoa para pessoa.” p. 16

Em suas mexidas na cabeça dos filhos, a sra. Darling sempre encontrava a palavra

“ Peter”. No começo esse nome não queria dizer nada, mas depois, vasculhando a memória,

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lembrou-se de sua infância e de um certo Peter Pan. Certa noite, a sra. Darling sonha com Peter Pan. Acorda com menino parado em sua frente. Diz o narrador:

“ Se você ou eu ou Wendy tivéssemos estado ali naquele momento, teríamos percebido

que aquele menino se parecia com o beijo da Sra. Darling. Era um encanto de menino, todo coberto de folhas de esqueleto” (um tipo de folha inexistente) “ e seivas de árvore, mas o que mais chamava a atenção era o fato de que ele ainda tinha os dentes de leite.” p. 21

Assustada, a mãe de Wendy grita, a cadela Naná aparece e consegue pegar a sombra de

Peter, que escapa pela janela. A Sra.Darling guarda a sombra na gaveta do armário. Na sexta feira seguinte, enquanto o casal sai para ir a uma festa, Peter Pan, acompanhado da Fada Sininho, volta para recuperar sua sombra. Ao encontrar a sombra, percebe que não consegue unir-se a ela, começa a chorar e acorda Wendy. Os dois se apresentam e conversam. Peter diz que mora “na segunda à direita e depois em frente até o amanhecer” e que não tem mãe e nem se importa com isso. Wendy costura a sombra em Peter que sai pulando de alegria, pensando que tinha conseguido grudar a sombra sòzinho.

“– Como eu sou esperto! – vangloriava-se ele em êxtase. – Meu Deus, que esperteza a

minha!” É humilhante ter que confessar que este convencimento era uma de suas mais fascinantes

qualidades. Para falar com absoluta franqueza, ele era o menino mais arrogante que jamais existiu.” p. 39

Wendy fica zangada e vai para cama escondendo-se debaixo das cobertas. Peter explica

que não consegue deixar de se vangloriar quando está feliz e “Então ele prosseguiu numa voz que mulher alguma jamais foi capaz de resistir: –

Wendy, Wendy, uma menina vale mais do que vinte meninos.” p. 39 Wendy fica encantada e diz que se ele quisesse ela lhe dava um beijo. Peter não sabe o

que é um beijo. Peter também não sabe quantos anos tem e conta que fugiu de casa quando nasceu pois nunca quis crescer e ser um homem. Apresenta a Fada Sininho Bate-Lata. Explica que as fadas nascem do riso dos bebês. Segundo ele, cada vez que uma criança afirma não acreditar mais em fadas, uma fada morre. A Fada chama Wendy de grandalhona horrível. Peter conta que mora na Terra do Nunca com os meninos perdidos

“ ..que caem de seus carrinhos quando a babá olha para o outro lado. Se ninguém os

reclama dentro de sete dias, eles são remetidos para a Terra do Nunca.” p. 44

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Segundo Peter, eles vivem muito sòzinhos, sem nenhuma companhia feminina, porque as meninas são muito espertas e nunca caem de seus carrinhos. Peter confessa não saber nenhuma história, por isso costuma ficar perto da janela ouvindo as histórias que a sra. Darling conta para Wendy e seus irmãos. Wendy afirma que também sabe muitas histórias e Peter a convida para ir à Terra do Nunca. Wendy acorda os irmãos e Peter os ensina a voar. Em princípio, ninguém consegue sair do chão apesar de, por exemplo, “Miguel já saber escrever palavras de duas sílabas e Peter não conseguir distinguir um A de um Z . ”

“É só pensar pensamentos maravilhosos – explicou Peter – e eles levantam você do

chão.” p. 50 Na verdade, explica o narrador, isso é uma brincadeira de Peter pois ninguém voa sem ser

borrifado com o pó de uma fada. Peter, a Fada, Wendy, João e Miguel partem e fazem um viagem extraordinária, sempre em

frente até o amanhecer, cruzando a cidade, sobrevoando o mar e dando trombadas em nuvens. Às vezes tudo escurece, às vezes fica claro, faz muito frio ou muito calor. Para matar a fome, Peter assalta os pássaros que carregam comida em seus bicos. Os pássaros os seguem para recuperar a comida de volta e assim lá vão eles “voando milha e milhas”. Peter aproveita para exibir suas habilidades a ponto de irritar os outros. às vezes, o menino some. Ao retornar, já não se lembra dos companheiros, “pelo menos não muito bem”. Chega a esquecer o nome de Wendy. Acabam chegando na Terra do Nunca,

Os filhos do casal Darling agem como se já conhecessem aquela paisagem, identificam a lagoa, o acampamento índio, o Rio Misterioso etc.

Sugere que poderiam, por exemplo, matar um pirata. João fica surpreso: “– Não diga! Você mata muitos? – Toneladas!” p. 62 Peter Pan vive metido em aventuras. Uma vez, lutando contra os índios, ele e os meninos

perdidos resolveram que agora eles eram índios. Os índios aceitaram serem meninos perdidos e “assim todos voltaram à carga com fúria redobrada.” p. 104 Peter fala em seu grande inimigo, o capitão Gancho. Diz que, durante um combate, havia

decepado a mão direita do pirata que por isso usava um gancho preso na ponta do braço. Quase chegando à ilha, os viajantes são descobertos pelos piratas que dão um tiro de canhão e dispersam o grupo. Wendy fica sozinha com Sininho.

“Ainda não sabia que Sininho a odiava, e com o ódio ferino de uma verdadeira mulher.” p. 66

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Na ilha, Peter Pan está sendo aguardado pelos meninos perdidos, grupo formado por Biriba, sempre azarado; Tico, alegre e charmoso; Sabido, o mais convencido; Enrolado, sempre atrapalhado e os gêmeos.

De outro lado, há o grupo de piratas chefiados por James Gancho “ Sua figura era cadavérica e sua tez escura.(...) Seus olhos eram azuis (...) e

profundamente melancólicos, a não ser quando ele espetava seu gancho em você.(...) Era um homem de coragem indômita, e se dizia que a única coisa que o intimidava era a visão de seu próprio sangue.(...)

Agora matemos um pirata para mostrar o método do Capitão Gancho. Skylights servirá a nosso propósito. ” p. 72/73

Apenas por esbarrar em Gancho, Skylights, um dos piratas, tem sua carne rasgada

brutalmente pelo capitão. Seu corpo depois é chutado para longe. Moram ainda, na Terra do Nunca, os índios da tribo Piccaninny, sereias, o Pássaro do Nunca, animais variados como leões, tigres, ursos e um enorme crocodilo que comeu a mão do capitão Gancho, atirada na lagoa por Peter, gostou muito e, a partir daí, passa a perseguir o pirata para comer o resto. Por sorte de Gancho, o crocodilo também engoliu um despertador cujo ruído sempre anuncia sua presença dando tempo ao pirata de fugir.

A história é longa e cheia de episódios. Sininho “não era de modo algum má, ou melhor, no momento era má de todos os

modos”. A fada leva Wendy aos meninos perdidos dizendo que Peter havia mandado matá-la. Biriba acerta uma flecha em Wendy que cai morta no chão. Ao chegar, Peter fica furioso. Diz que havia trazido uma mãe para tomar conta deles.

No fim, Wendy não morreu, está só um pouco ferida. Sob as ordens de Peter, os meninos constroem uma casa em volta dela. Peter manda Sabido chamar um médico. O próprio Sabido volta com a cartola de João e apresenta-se como médico.

“– Com sua licença, meu senhor, o senhor é médico? – dizia Peter aproximando-se dele.

A diferença entre Peter e os outros meninos (...) é que eles sabiam que era faz-de-conta, enquanto que para Peter Pan não havia a menor distinção entre realidade e faz-de-conta: era tudo exatamente a mesma coisa. Isto é, as vezes era muito chato, como por exemplo quando eles tinham que fingir que já haviam jantado.” p. 90

Quando Wendy finalmente se recupera, os meninos perdidos caem de joelhos suplicando: “– Donzela Wendy, seja nossa mãe! – Será que devo? – Wendy estava radiante.– É claro que seria tremendamente fascinante, mas

ainda sou uma menina, não tenho nenhuma experiência de verdade.” p. 94

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Wendy passa a viver na casa subterrânea dos meninos perdidos, contando histórias e cuidando deles como se fosse uma mãe.

“A casa era um quarto grande, como deveriam ser todas as casas com um chão que você

podia cavar se quisesse fazer uma escadaria. (...) Uma árvore de faz-de-conta fazia força para crescer no meio da sala (...).Havia também uma lareira enorme que ficava em quase qualquer lugar que alguém resolvesse acendê-la, e na frente da qual Wendy pendurava cordões feitos de fibra para estender a roupa lavada.” p. 97

Nunca se sabe se a comida vai ser de verdade ou de faz-de-conta. “ Para Peter o faz-de-conta era tão real que durante uma refeição de mentirinha você podia

vê-lo ficando mais gordo.” p. 100 Peter exerce o papel de pai. Eis as conversas do casal: “– Você simplesmente põe estas crianças a perder, Peter – disse Wendy com um sorriso

bobo. – O que se há de fazer, minha velha – respondeu Peter enquanto pendurava a arma na

parede.” p. 136 Ou quando Peter diz: “– Não há coisa melhor para você e eu do que descansar ao lado do fogo no fim de um

dia de trabalho e ter os pequenos por perto. – Isto tem uma doçura, não, Peter? – disse Wendy tremendamente gratificada. – Peter, eu

acho que Enrolado tem o seu nariz. – Miguel puxou você. Wendy foi até ele e pousou a mão sobre seu ombro: – Peter, querido, com uma família tão grande, é claro que eu já não sou mais o que era, mas

você não gostaria que eu fosse diferente, gostaria? – Não, Wendy.” p. 137 Num dado momento (p.104), o narrador não sabe bem como continuar a história, e resume

várias possibilidades, antecipando coisas que acontecerão. Resolve contar o episódio da lagoa das sereias.

“ Se você fechar os olhos e for uma pessoa sortuda, por vezes conseguirá ver um

ajuntamento disforme de cores suaves suspensas em meio à escuridão. Aí então, se você apertar um pouco mais os olhos, este ajuntamento tomará forma e as cores se tornarão tão vivas que,

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com mais uma apertada nos olhos elas chegariam a pegar fogo. Mas um segundo antes que tudo se incendeie, você vê a lagoa. É o mais perto que se pode chegar da lagoa estando aqui no continente, só por um momento celestial. Se fosse possível ter dois momentos, talvez você visse as margens e ouvisse as sereias cantando.” p. 106

Neste episódio, as crianças vão à lagoa brincar na pedra dos Afogados “A pedra não era muito maior do que a cama grande... ” p. 108 Os piratas Smee e Starkey aparecem num barco trazendo presa a índia Lírio Bravo. Peter,

Wendy e as crianças conseguem se esconder dentro da água. Peter imita a voz de Gancho e manda soltar a menina índia. Logo depois, o próprio Gancho aparece e fala com seus homens desanimadamente, sempre observados por Peter e os outros:

“–Acabou-se a brincadeira, aqueles meninos encontraram uma mãe. (...) Mas a voz ansiosa de Smee quebrou o seu desânimo. – Capitão – disse ele -, não poderíamos raptar a mãe destes meninos para ser nossa mãe? – É uma estatégia brilhante! – exclama o Capitão Gancho.(...) – Nós agarraremos as

crianças e as levaremos para o barco: os meninos faremos andar pela prancha e Wendy será nossa mãe.” p. 115

Como se vê, são inúmeros e complexos os temas humanos tratados em Peter Pan. Peter acaba revelando sua presença, há uma luta rápida e violenta entre as crianças e

piratas. Em resumo, na confusão, os piratas fogem, as crianças vão embora e Peter, sózinho na Pedra do Afogado vê as águas subindo e sente que vai morrer. Sente medo mas sorri no momento seguinte:

“– Morrer será uma tremenda aventura.” p. 124 Peter acaba sendo salvo pelo Pássaro do Nunca. Diz o narrador, surpreendentemente: “ Nas histórias fantasiosas as pessoas falam com os pássaros com a maior facilidade, e

no momento eu bem que gostaria de fingir que esta é uma história assim (...). Mas a verdade é melhor, e eu quero contar apenas aquilo que realmente aconteceu.” p. 126

Após vários episódios, os piratas atacam e vencem os índios mas tocam o tambor como se

a vitória fosse dos índios. Enquanto Peter fica dormindo em casa enquanto Wendy e os meninos saem de casa para comemorar. São presos e levados ao navio pirata. Antes de voltar ao navio, Gancho entra na casa subterrânea tenta envenenar Peter mas o veneno é tomado por

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Sininho. Quase morrendo, a fadinha diz a Peter que só conseguiria ficar boa “se as crianças acreditassem em fadas”.

Peter Pan, numa espécie de oração à ficção, dirige-se então a todas as crianças do mundo que estivessem sonhando naquele momento perguntando se elas acreditavam em fadas. Ante a resposta positiva de quase todas ( “uns poucos bestinhas vaiaram” diz o narrador) Sinho recupera suas forças.

Gancho, já no navio, passa por um momento de depressão. Sente-se solitário, pertence a uma certa classe social e tem educação superior a seus companheiros, porisso os despreza. Gancho na verdade havia

“ ...frequentado uma famosa escola privada, e as tradições daquela escola ainda se

agarravam a ele como vestes (...)...acima de tudo ele mantinha a paixão pela boa educação.” p. 177 Nos pensamentos de Gancho, suas vitórias não têm valor. “– Eu sou o único homem de quem Carne Queimada tem medo, e até o Capitão Flint tinha

medo de Carne Queimada.” E uma voz em seu pensamento vinha cortante: “– Carne Queimada? Flint? De que faculdade?” p. 177 Por outro lado, Gancho observa inconformado o pirata Smee, cercado alegremente pelas

crianças perdidas. “ Não há criancinhas que me amem.(...) ...por que é que eles achavam Smee tão adorável?

p. 178 Gancho convida os meninos perdidos a virarem piratas como ele. O convite quase é aceito.

João confessa, por exemplo, já ter pensado no assunto e até escolhido um nome: “ João Mão Vermelha”.

Após alguns desentendimentos, Gancho decide atirar os meninos perdidos no mar. Peter entra escondido no navio; há uma tremenda batalha. Durante a luta, Gancho

pergunta: “– Pan, quem e o que és tu? – Sou a juventude, sou a alegria – respondeu Peter sem pensar.– Sou um passarinho que

saiu da casca do ovo.” p. 197 Finalmente, Gancho, para escapar, atira-se no mar, sem saber que

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“ ...o crocodilo estava ali à espera, pois desligamos o relógio de propósito para que esta

informação lhe fosse poupada: um pequeno sinal de respeito de nossa parte, agora que o fim se aproxima.” p. 198

Gancho é engolido pelo crocodilo e Wendy põe todo mundo para dormir. Aquele noite,

Peter tem pesadelos e Wendy o abraça bem forte. No outro dia, Peter, Wendy e os meninos partem de volta para casa. Vão voando de navio,

agora comandado por Peter. O narrador fala que poderia ter feito o casal Darling não estar em casa só para castigar as crianças. Diz ele mais adiante:

“ No entanto, já que estamos aqui, o melhor que se tem a fazer é ficar e observar. Não

passamos de meros espectadores. No fundo, ninguém nos quer. Só nos resta olhar e dizer coisas cortantes, na esperança de que algum delas machuque alguém.” p. 203

As crianças são recebidas com alegria pelo casal Darling. Os meninos perdidos são

adotados pela família. Peter recusa-se a ficar e pergunta à sra. Darling: “–Você vai me mandar para a escola? – Sim. – E depois para um escritório? – Sim. – Eu logo viraria um homem? – Num instante. (...) –Eu não quero ir para a escola e aprender um monte de coisas sérias. Não quero ser um

homem... ” p. 215 Peter parte acompanhado de Sininho. Aos despedir-se “Levou o beijo da Sra. Darling (...), o beijo que não fora de ninguém ele facilmente

conseguiu.” p. 216 Todos os anos, Peter Pan volta para levar Wendy. Com o tempo essas viagens vão ficando

cada vez mais esparsas até que Peter simplesmente deixa de aparecer. Wendy cresce, casa-se e tem uma filha chamada Jane. Costuma contar a ela suas aventuras, falar de Peter e da Terra do Nunca.

Peter acaba levando Jane para conhecer a Terra do Nunca. O tempo passa, Jane agora tem uma filha chamada Margareth etc., esse, em resumo, o desfecho da história.

257

6.5.4 Contos para Crianças

O livro Contos para crianças 353 , do escritor e poeta suíço, de língua alemã, Peter Bichsel, foi publicado em 1969. Comentaremos três dos sete contos que compõem o livro: “A Terra é redonda”, “Uma mesa é uma mesa” e “ O homem que não queria saber mais nada de nada”.

Estaremos apoiados na tradução de Ilse Losa, até onde sabemos, a única existente em língua portuguesa. Não faremos portanto considerações sobre os eventuais índices de oralidade do texto de Bichsel que, de qualquer forma, parecem evidentes, com o narrador atuando como um contador de histórias, a utilização de um vocabulário popular, concisão e inúmeros recursos ligados à teatralidade como, por exemplo, as repetições de palavras e as enumerações.

Sinopse do conto “A Terra é redonda”: Era um homem que “ ...não tinha nada que fazer, já não tinha mulher, já não tinha filhos nem trabalho, passava

o tempo a cismar em tudo o que sabia.” p. 35 O homem resolve fazer um lista de tudo o que sabe. Por exemplo: que tem um nome, e de

onde vem esse nome; que se devem lavar os dentes; que os touros, na Espanha, se lançam contra os panos vermelhos; que a Lua gira em volta da Terra etc. O homem sabe também que a Terra é redonda e que, portanto, se ele sair andando em linha reta acabará voltando ao mesmo lugar.

“– Eu sei, disse, mas não acredito e por isso tenho que fazer a experiência. Vou caminhar

sempre em frente, exclamou o homem que não tinha mais nada a fazer, pois quem não tem nada a fazer pode muito bem caminhar sempre em frente.” p. 35

O homem então percebe que se caminhar em linha reta, será forçado a passar por cima de

uma casa, e mais adiante por uma floresta, por um rio, e depois por uma montanha, pelo mar etc. Durante a viagem, poderia também sofrer imprevistos: machucar-se, por exemplo.

Faz então uma lista imensa que inclui uma escada de mão para subir na casa, uma corda para trepar nas árvores, uma farmácia de bolso em caso de acidentes, roupas de inverno e de verão, sapatos especiais para subir montanhas, um barco, uma carro para levar tudo isso, um guindaste, um carro para o guindaste, homens para levarem os carros etc. etc. Pegando um pedaço de papel, o sujeito faz as contas e chega à conclusão que não tem dinheiro para tanta coisa.

353 BICHSEL, Peter. “Três contos para crianças”. Trad Ilse Losa in Revista Humboldt, Ano 10, 1970, Nª22, Hamburg, Ubersee-Verlag. Temos a versão francesa: Histoires Enfantines. Trad. Claude Maillard e Marc Schwyer, Paris, Gallimard, 1971. Foi recentemente publicado no Brasil: O homem que nõa queria saber mais nada e outras histórias. Ática, 2002.

258

“ Uma farmácia de bolso custa 7 francos, um impermeável 52 francos, os sapatos para os montes 74 francos, os sapatos para caminhar 43, as botas tanto e as roupas tanto.” p. 38

Fica triste. Para arrumar o dinheiro vai levar muito tempo e ele já tem oitenta anos e

precisa se apressar se quiser estar de volta antes de morrer. O homem parte então com uma pequena escada de mão. O narrador diz que isso ocorreu há dez anos atrás mas que às vezes vai para a janela e fica

olhando com esperança de ver o velhinho de volta sorridente e dizendo “Agora acredito que a terra é redonda.” p. 38 Este o desfecho da história. Sinopse do conto “Uma mesa é uma mesa”: “Vou falar dum homem velho, dum homem que já não diz uma única palavra. Tem o rosto

cansado, está cansado demais para sorrir e cansado demais para se zangar. Mora numa cidadezinha, no fim da rua ou perto do cruzamento. Quase não merece a pena descrevê-lo, muito pouca coisa o distingue de outra gente. Usa chapéu cinzento, calças cinzentas, casacos cinzentos e no Inverno um sobretudo comprido, cinzento, e tem o pescoço magro, de pele seca e enrugada; os colarinhos brancos estão-lhe demasiado largos.” p. 38

O homem vive sózinho e um dia sai para passear. É um dia ensolarado, os passarinhos

cantam e as crianças brincam na rua. Aquilo faz bem e dá prazer ao homem que alegremente acena às crianças e volta para casa.

“ Mas no quarto tudo se encontrava na mesma, a mesa, duas cadeiras, uma cama. E quando

se sentou, tornou a ouvir o tique-taque, e toda a alegria se lhe acabou, pois nada se tinha modificado.” p. 39

O homem, então, começa a mudar os nomes das coisas. A cama, por exemplo, passa a ser

quadro. Com essa idéia, o homem ri “até os vizinhos baterem na parede a reclamar ‘silêncio’. ” “Estou cansado, vou para o quadro, dizia o homem e pela manhã ficava muitas longas

horas no quadro e cismava como havia de chamar a cadeira e chamou a cadeira de “despertador”. ” p. 39

E assim o homem inventa uma língua particular.

259

“ Pela manhã o homem ficava bastante tempo no quadro, às nove tocava o álbum de fotografias, o homem levantava-se e punha-se em cima do armário para não apanhar frio nos pés, depois tirava as roupas do jornal, vestia-se, olhava para a cadeira na parede, sentava-se no despertador junto ao tapete e folheava no espelho até encontrar a mesa da mãe.” p. 39

O sujeito se diverte muito com sua nova língua. Começa a sonhar na língua nova e no fim

esquece a antiga. “ Dava-lhe vontade de rir ao ouvir alguém dizer: “Vai amanhã ao futebol?” (...) Ou

quando alguém dizia: “Tenho um tio na América.” Dava-lhe vontade de rir porque não percebia patavina.” p. 40

Segundo o narrador, essa é uma história que começou triste e vai acabar triste. O homem

não consegue mais falar com ninguém a não ser consigo mesmo, esse o desfecho do conto. Sinopse de “O homem que não queria saber mais nada de nada”: “ Não quero saber mais nada de nada disse o homem que não queria saber mais nada de

nada. O homem que não queria saber mais nada de nada disse: – Não quero saber mais nada de nada. É fácil de dizer. É fácil de dizer.” p. 40 O homem já não quer falar ao telefone nem ver a luz do sol para não saber se o tempo está

bom ou não, por isso desliga o telefone e cola papel nos vidros da janela. A mulher diz a ele para, pelo menos, acender a luz. Ele responde:

“ ...não quero saber que se pode acender a luz. “ p. 42 O homem passa a viver num quarto escuro, sua esposa fica triste e os amigos não vêm

mais fazer visitas. O homem não se conforma porque continua sabendo de tudo. A mulher diz que ele vai acabar esquecendo das coisas e ele responde:

“– É fácil de dizer, é fácil de dizer.” p. 42 A esposa leva sua comida e ele diz: “– Sei o que são batatas, sei que isto é carne e conheço a couve-flor; (...). E se digo uma

palavra é porque sei essa palavra.” p. 43

260

Um dia, sua mulher chega e afirma que ele, por exemplo, não sabe dizer “bom tempo” em

chinês. O homem começa a refletir. De fato, não sabe chinês por isso, no caso, não pode afirmar que não quer saber nada disso:

“– Primeiro tenho que saber aquilo que não quero saber, exclamou o homem.” p. 43 E o sujeito, então, vai à cidade comprar livros para aprender chinês. Anos depois, consegue

falar chinês mas isso já não é o suficiente. Passa a comprar livros sobre assuntos desconhecidos: a plantação de batatas, as viagens à Lua, a criação de coelhos e galinhas e sobre rinocerontes. Indo ao zoológico, acaba ficando apaixonado por rinocerontes.

“ ...viu que todas as vezes que o rinoceronte tinha alguma idéia desatava numa corrida de

tão satisfeito; girava duas, três vezes pela cerca e ia esquecendo a idéia que tivera.(...) – Gostava de ser um rinoceronte, disse o homem, mas para isso já deve ser tarde demais. ”

p. 43. Segundo o homem, o rinoceronte “pensa demasiado lentamente e desata a correr

demasiado cedo, e assim é que está certo.” Aos poucos, o sujeito vai esquecendo de tudo o que ainda quer saber para depois já não querer saber. Volta a levar sua vida de sempre com a diferença de que agora sabe, por exemplo, chinês, este o desfecho do conto de Bichsel.

6.5.5 A bolsa amarela

O livro A bolsa amarela, de Lygia Bojunga Nunes, 116 p., foi publicado em 1976.354 O texto, construído na 1ª pessoa, é repleto de índices de oralidade. Uma menina, utilizando

linguagem que procura simular a fala, portanto, num discurso simples e direto, privilegiando a coordenação (parataxe) em oposição à subordinação, fugindo das descrições longas, repleto de fórmulas e frases feitas, vocabulário familiar e inúmeras figuras que remetem ao ritmo e à teatralidade, dirige-se ao leitor contando episódios de sua vida.

“Eu tenho que achar um lugar pra esconder as minhas vontades. Não digo vontade magra,

pequenininha, que nem tomar sorvete a toda hora, dar sumiço da aula de matemática, comprar um sapato novo que eu não aguento mais o meu.” p. 11

“ Ontem mesmo eu tava jantando e de repente pensei: puxa vida, falta tanto ano pra eu ser

grande.” p. 11 “A Raquel nasceu de araque.” p. 12

354 NUNES, Lygia Bojunga. A bolsa amarela 6ª ed.. Rio de Janeiro, Agir, 1981.

261

“Acordei de repente com um barulho esquisito.” p. 33 Os exemplo são suficientes para demonstrar os traços de oralidade que impregnam as

páginas de A bolsa amarela. Eis uma sinopse da história, onde o narrador, note-se, é a própria personagem. Raquel conta, em tom confidencial, que precisa arranjar um lugar para esconder suas três

vontades secretas: a vontade de crescer e ser grande, a vontade de ser menino e a vontade de ser escritora.

Esta se manisfesta em cartas que escreve a amigos imaginários como André. Através das cartas ficamos sabendo que Raquel é filha temporã, acredita ter nascido sem os pais desejarem e é cheia de dúvidas existenciais:

“ Fiquei pensando: mas se ela não queria mais filho por que é que eu nasci? Pensei nisso

demais, sabe? E acabei achando que a gente só devia nascer quando a mãe da gente quer ver a gente nascendo. Você não acha, não?” p. 13

O irmão de Raquel descobre as cartas e quer saber quem é o tal André. Raquel explica

que inventou o amigo e que resolveu ser escritora. O irmão não leva a sério, manda estudar mais e largar de dizer bobagem. Raquel diz ao irmão que preferia ser homem. Segundo ela, os homens são sempre os chefes das brincadeiras, os chefes de família etc.

“Até prá resolver casamento (...) a gente fica esperando vocês decidirem.(...) Eu acho

fogo ter nascido menina.” p. 16 Raquel inventa outra amiga, Lorelai, e escreve uma carta contando que antes morava na

roça, que tinha um quintal cheio de bichos, que tinha árvore para subir, que seus pais viviam felizes etc. Agora tudo está diferente, os pais vivem irritados, brigando à tôa. Lorelai responde sugerindo que Raquel fuja para o quintal onde tudo era tão bom. Raquel inventa uma viagem. A carta é descoberta pela irmã e Raquel leva um puxão de orelha.

“ Quem é essa tal Lorelai que quer te ajudar a fugir de casa?” p. 19 Raquel então escreve um romance. “Era a história de um galo chamado Rei – lindo de morrer - que um dia fica louco pra

largar a vida de galo.(...) Se a vida dele era furada, ele tinha mesmo que fugir e pronto. E aí ele foge.” p. 20

262

A família acha graça do texto da menina. Raquel, furiosa, rasga o romance e decide nunca mais escrever nada “até o dia de ser grande”.

Raquel anda aflita. Diz que suas vontades estão engordando cada vez mais e que é preciso encontrar um lugar para guardá-las:

“ ...se tem coisa que eu não quero mais é ver gente grande rindo de mim.” p. 21 A menina fala de uma certa tia Brunilda, casada com seu tio Júlio, mulher muito rica, que

vive gastando dinheiro à tôa. “ Fiquei pensando no tio Júlio. meu pai diz que ele dá um duro danado pra ganhar o

dinheirão que ele ganha. Se eu fosse ele, eu ficava pra morrer de ver a tia Brunilda gastar o dinheiro numas coisas que ela enjoa logo.(...) Outra coisa um bocado esquisita é que se ele reclama, ela diz logo:”Vou arranjar um emprego”. Aí ele fala: “De jeito nenhum!” . E dá mais dinheiro. Pra ela comprar mais.” p. 26

Tia Brunilda costuma dar as coisas que não usa mais aos parentes. Raquel acaba

ganhando uma bolsa amarela. “– Mas que curtição! – berrei. E ainda bem que só berrei pensando: ninguém escutou

nem olhou.” p. 28 Raquel guarda na bolsa suas coisas e vontades mais íntimas. “Cheguei em casa e arrumei tudo que eu queria na bolsa amarela. Peguei os nomes que

eu vinha juntando e botei no bolso sanfona. O bolso comprido eu deixei vazio, esperando uma coisa bem magra pra esconder lá dentro. No bolso bebê eu guardei um alfinete de fralda que eu tinha achado na rua, e no bolso de botão escondi uns retratos do quintal da minha casa, uns desenhos que eu tinha feito, e umas coisas que eu andava pensando. Abri um zipe: escondi fundo minha vontade de crescer; fechei. Abri outro zipe; escondi mais fundo minha vontade de escrever; fechei. No outro bolso de botão, espremi a vontade de ter nascido garoto (ela andava muito grande, foi um custo pro botão fechar). Pronto! A arrumação tinha ficado legal. Minhas vontades tavam presas na bolsa amarela, ninguém mais ia ver a cara delas.” p. 30

Raquel descobre um galo morando dentro da bolsa. É justamente o galo inventado em seu

romance. O galo conta que decidiu fugir do galinheiro. Que ficou cansado de mandar e desmandar nas galinhas. Que as galinhas não faziam nada sem pedir a sua autorização. Um dia, chamou as galinhas e declarou que seu sonho era um galinheiro onde todos pudessem dar a sua opinião. “Queria as galinhas mandando junto com os galos”. Assustadas, as galinhas

263

chamaram o dono do galinheiro. Rei, fica preso durante um tempo. Depois é solto com a seguinte advertência:

“ Daqui pra frente você vai ser um tomador-de-conta-de-galinha como seu pai era, como

seu avô era, como seu bisavô era, como o seu tataravô era – senão volta pra prisão.” p. 36 Inconformado, Rei foge do galinheiro “–...aí (...) tive que resolver o que é que eu ia fazer da minha vida. Pensei pra burro.

Acabei resolvendo que ia lutar pelas minhas idéias.” p. 35 Mas o galo confessa duas coisas: que não sabe ainda exatamente por que idéia lutar e que

não gosta de seu nome, escolhido por Raquel. Prefere se chamar Afonso. Afonso passa a morar na bolsa amarela, pelo menos enquanto não encontra uma idéia que valha a pena.

Outro habitante da bolsa amarela é um Alfinete de Fralda, encontrado na calçada por Raquel. O alfinete pede para ser guardado. Conta sua história que é bem curta. Foi fabricado e mal embalado por isso acabou caindo no chão.

Afonso sai para ver se encontra alguma idéia e volta com um guarda-chuva enguiçado. Segundo o galo, o guarda-chuva era mulher. Na hora de ser fabricado tinha optado por isso. Realmente, é uma guarda-chuva menor, delicada, cheia de flor, com um correntinha. A guarda-chuva só consegue falar através de Afonso. Raquel reconhece que, no fundo, se pudesse ter optado, também teria escolhido ser mulher. Imediatamente, sente a vontade de ser menino sumir e sua bolsa ficar um pouco mais leve. Raquel fica intrigada pelo fato de a guarda-chuva ter escolhido ser pequena. Afonso explica.

“ Porque ela adorava brincar, e gente grande tem mania de achar que porque é grande não

pode mais brincar.” p. 50 Sabemos mais tarde que certa vez a guarda-chuva foi levada pelo vento e desde aí passou a

ter vontade de ser pára-quedas. Um dia, saltou da janela do apartamento caiu e ficou enguiçada. Raquel, apesar disso, guardam a guarda-chuva no bolso magro e comprido da bolsa amarela, que fica um pouco mais pesada.

Afonso encontra seu primo, o galo Terrível. Segundo Afonso “–...Desde pequenininho que resolveram que ele ia ser galo de briga, sabe? do mesmo

jeito que resolveram que eu ia ser galo-tomador-de-conta-de-galinha.” p. 53 O galo Terrível tem um único pensamento na cabeça, costurado com linha forte para não

rebentar: lutar e ganhar de todo o mundo. Terrível anda nervoso e preocupado. Passou sua vida

264

lutando e sempre vencendo, mas perdeu as três últimas lutas. No próximo sábado, vai lutar com o Crista de Ferro e não pode perder de jeito nenhum. Terrível já foi vencido por Crista de Ferro. Seus donos, que já ganharam muito dinheiro com as lutas, agora estão se desinteressando dele.

Para evitar a nova luta, Afonso e Raquel prendem Terrível dentro da bolsa, que fica mais pesada ainda.

Terrível consegue fugir da bolsa e vai brigar. A luta acontece na praia das Pedras. Raquel e Afonso correm até lá mas só encontram as penas de Terrível. Acham a guarda-chuva que tinha se agarrado tentando impedir a fuga de Terrível. Afonso e Raquel ficam pensando que Terrível morreu.

Raquel volta para casa e inventa a história de Terrível. Segundo ela, na verdade, ele era o tipo de galo que ficava amigo de todo o mundo e ainda por cima apaixonou-se por uma franga. Seus donos amarraram seus pensamento com uma linha bem forte para ele só pensar em lutar e vencer. Durante a luta contra Crista de Ferro, a linha forte, percebendo que Terrível ia morrer, arrebenta. Os pensamentos e as emoções de Terrível voltam, ele cai em si, desiste da luta, foge e acaba indo morar com um pescador.

Ao saber da história de Terrível, Afonso descobre sua idéia: “– Vou sair pelo mundo lutando pra não deixarem costurar o pensamento de ninguém.”

p. 94 A guarda-chuva quer ir com Afonso. O galo e Raquel resolvem levá-la à Casa dos

Consertos, onde “quase tudo tem conserto”. Lá vivem e trabalham uma menina, seu pai, sua mãe e seu avô. A menina é Lorelai, a

personagem inventada por Raquel. Naquela família, não existem papéis pré-estabelecidos: todos fazem um pouco de tudo. Lá todos se ajudam, todos param de vez em quando para brincar e dançar e todos vivem estudando “tem sempre coisa nova para aprender”, com o detalhe de que cada um estuda só o que gosta. Como ninguém é chefe por ali, tudo é decidido em comum acordo. Raquel admira aquela família. Conta de sua bolsa amarela e dos desejos que viviam engordando.

Aos poucos, a menina passa a ver a vida de outro jeito. Passa, por exemplo, a gostar de ser mulher, como Lorelai. Percebe que pode fazer muitas coisas que os homens fazem. Vê também que a diferença entre adultos e crianças pode não ser tão grande assim.

Um dia, Afonso parte voando pelo mundo levando sua amiga guarda-chuva. Se houver algum problema durante o voo, ele abre a guarda-chuva e desce de para-quedas.

A vontade de ser menino e a vontade de ser grande ficam tão magrinhas dentro da bolsa amarela que até parecem folhas de papel. Aproveitando a situação, Raquel pega as vontades, faz duas pipas e solta no ar. Guarda a vontade de escrever, agora muito leve, pois afinal ela tem escrito muita coisa, e também o Alfinete de Fralda, para esvaziar alguma vontade que por acaso cismasse de crescer muito, este o desfecho da história.

265

6.5.6 O menino maluquinho

A obra de Ziraldo 355 , 110 p., teve sua primeira edição publicada em 1980. O texto do livro, utilizando prosa poética, é repleto de índices de oralidade, apresentando

adaptabilidade às circunstâncias através de um vocabulário popular e afetivo, e da utilização de formulas e frases feitas; teatralidade, através de um sem número de figuras de linguagem, rimas e ritmos; e concisão através das frases curtas e diretas, coordenação, ausência de descrições etc. Não podemos deixar de comentar que em O menino maluquinho, como no trabalho de Wilhelm Bush, a prosa e os desenhos estão em permanente interação e dialogam formando um todo indissociável. Vamos, entretanto, nos ater predominantemente ao discurso literário do livro, obedecendo aos objetivos de nossa pesquisa.

Eis alguns exemplos de oralidade de O menino maluquinho. Como no livro muitas frases ocupam apenas uma página, fomos obrigados a alterar sua pontuação, de modo a facilitar sua leitura no contexto da pesquisa.

“Era um vez um menino maluquinho. Ele tinha o olho maior que a barriga, tinha fogo no

rabo, tinha vento nos pés, umas pernas enormes (que davam para abraçar o mundo) e macaquinhos no sótão (embora nem soubesse o que significava macaquinhos no sótão). p. 7/12

“Se quebrava um vaso aqui, logo já estava lá.” p. 15 Note-se que o “aqui” e o “lá” são definidos através do desenho. “ Na turma em que ele andava, ele era menorzinho, o mais espertinho, o mais bonitinho, o

mais alegrinho, o mais maluquinho.” p. 20 “ Seu caderno era assim: Um dever e um desenho Uma lição e um versinho Um mapa e um passarinho. “Este caderno só pode ser do menino maluquinho”. ” p. 24/27 Há novamente interação texto/imagem: o “dever”, o “desenho”, a “lição”, o

“versinho”, o “mapa” e o “passarinho” não são definidos pelo texto mas sim através do desenho.

355 ZIRALDO O menino maluquinho. São Paulo, Melhoramentos, 1980.

266

“ ... e ficava sozinho brincando no quarto semanas seguidas, fazendo batalhas, fazendo corridas, desenhando mapas de terras perdidas.” p. 65/68 Eis uma sinopse do livro de Ziraldo. O menino maluquinho tem o “olho maior que a barriga”, “fogo no rabo”, “vento nos

pés” e “macaquinhos no sótão”. É sabido, encantador e impossível. Faz uma bobagem e logo já está preparando outra. Tem muitos amigos e é querido pelos amigos. Volta e meia perde seu caderno de escola. Seu caderno, aliás, é cheio de desenhos. Quando o menino maluquinho volta da escola, a casa fica cheia de vida e de bagunça. O menino costuma levar zero de comportamento. Uma vez, chegou em casa com uma

bomba: repetiu de ano na escola. O menino maluquinho não tem medo de escuro porque gosta de brincar de fantasma. “ Na casa do menino maluquinho era assim: se tinha chuva, ele queria inventar o sol, pois

sabia onde achar o azul e o amarelo; se fazia frio ele tinha uma transa quentinha pra se aquecer (o desenho mostra o menino dormindo no colo de uma mulher); se tinha sombras ele inventava de criar o riso, pois era cheio de graça; se de repente, ficasse muito vazio ele inventava o abraço pois sabia onde estavam os braços que queria; se havia o silêncio ele inventava a conversa pois havia sempre um tempo para escutar o que o menino gostava de conversar; se tinha dor ele inventava o beijo aprendido em várias lições.” p. 40/46

O menino brinca de soltar pipa e balão de São João. Tem dez namoradas, todas muito apaixonadas. O menino maluquinho desenha corações nos troncos das árvores, flores no caderno de

desenho, faz versos e rouba muitos beijinhos. Às vezes, gosta de ficar quieto no seu canto. Inventa brincadeiras e fica brincando ele com ele mesmo. Tem também segredos que são só dele. Arranja tempo para tudo: brincar, ler, colecionar figurinhas, jogar futebol etc. Quando seus pais se separam, ele descobre outros lados da vida: a saudade, por exemplo.

Descobre também que ele mesmo é um lado e que pode viver perto dos lados que são dele. O tempo passa, o menino maluquinho cresce, fica um “cara legal” e aí

267

“todo mundo descobriu que ele não tinha sido um menino maluquinho; ele tinha sido era um menino feliz!” p. 107

este o desfecho da história. 6.5.7 Ou isto ou aquilo

Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles, teve sua 1ª ed. publicada em 1977. 356 O livro é composto por 56 poemas que, no geral, utilizam versos livres, vocabulário

popular e familiar e muitas brincadeiras com palavras: trocadilhos, aliterações, figuras como a assonância e a paranomásia, além de oxímoros etc.

“ Com seu colar de coral, Carolina corre por entre as colunas da colina.” p. 11 “É a moda da menina muda da menina trombuda que muda de modos e dá medo. (A menina mimada!) ” p. 12 “ Na chácara do Chico Bolacha o que se procura nunca se acha!” p. 21 “ (Quem souber de um burrinho desses, pode escrever para a Rua das Casas, Número das Portas, ao Menino Azul que não sabe ler.)” p. 27 “A flor com que a menina sonha está no sonho? ou na fronha?” p. 36 “ O menino dos ff e rr é o Orfeu Orofilo Ferreira: Ai com tantos rr, não erres!” p. 39

356 MEIRELES, Cecília.Ou isto ou aquilo 5ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981.

268

São exemplos da linguagem utilizada por Cecíla Meireles. Quanto ao ponto de vista temático, bastante amplo entre os 58 poemas, optamos por

abordar, em nosso estudo, o poema “Ou isto ou aquilo”, título do livro e, a nosso ver, representativo do todo da obra.

“ Ou se tem chuva e não se tem sol ou se tem sol e não se tem chuva! Ou se calça a luva e não se põe o anel, ou se põe o anel e não se calça a luva! Quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares. É uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo nos dois lugares! Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, ou compro o doce e gasto o dinheiro. Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo... e vivo escolhendo dia inteiro! Não sei se brinco, não sei se estudo, se saio correndo ou fico tranquilo. Mas não consegui entender ainda qual é melhor: se é isto ou aquilo.” p. 57 6.5.8 O homem que soltava pum

O homem que soltava pum, de Mário Prata, 38 p., publicado em 1983, faz parte da “ Descoleção Sem-Vergonha”. 357

No plano do texto verbal, o livro apresenta inúmeros índices de oralidade. Busca a adaptabilidade às circunstâncias através de um vocabulário popular, formulismo etc; a teatralidade, recorrendo a inúmeras figuras de linguagem que, através do ritmo e das imagens, tentam cativar o leitor; e a concisão, através da utilização de frases curtas, diretas e organizadas pela coordenação, evitando os períodos longos, a subordinação, as descrições e a abstração. O

357 PRATA, Mário. O homem que soltava pum São Paulo, Escrita, s/d.

269

narrador, em O homem que soltava pum, dirige-se diretamente ao leitor, simulando um contador de histórias.

“Era uma vez um homem que soltava pum. O nome dele era João Antonio Francisco

Ronaldo Luiz da Silva, mas todo mundo conhecia ele por João do Pum.” p. 8 “ Imaginem vocês, ele soltava pum. Mas soltava pum sem parar. (...) Já pensaram que

loucura? ” p. 8 “ No trabalho seus colegas já sabiam do problema. Ele chegava (pum), batia o (pum)

ponto, tirava o (pum) paletó, sentava-se (pum) na sua mesa e fazia o seu (pum) trabalho muito bem.” p. 13

“ Muita atenção. É um, é dois, é preparar, é fogo!” p. 30 São exemplos da linguagem marcada pelo gesto oral utilizada por Mário Prata. Eis uma sinopse da história. O herói, João do Pum, não consegue se controlar e solta puns sem parar. “ Fora isto, (...) era um homem normal” p. 8 com casa, mulher, filhos, dor de dente, emprego etc. João é conhecido na cidade por causa de seu problema. Na família e no trabalho, as

pessoas até já estão acostumadas. Certa vez, João foi ao médico mas não adiantou nada. João sabe que “ ...mesmo morto, já dentro do caixão,(...) ele ainda daria um último e memorável pum” p.

13 João chega a ser convidado a dar uma entrevista na televisão. Fora isso, as crianças

gostam muito dele. Diz o narrador: “Vocês pensam que ele tinha algum complexo, que ele se sentia diferente dos outros?

Nada disto...” p. 18 Quando jovem, João chegou a pensar que soltar pum era pecado e foi à igreja se

confessar. Mas o padre

270

“ ... foi logo consolando ele: (...) Eu mesmo solto os meus. (...) Sua Santidade, o Papa, solta. Cristo soltava pum. Quem é que que me garante que quando Cristo estava pregado lá na cruz, aflito daquele jeito, não soltou os seus puns de dor? Até mesmo o Super-homem solta seus puns de criptonita.” p. 20

Infelizmente, tem gente que não gosta dos puns de João, e ele “fica(va) chateado com

isto”. Um dia, no centro da cidade, num prédio de mais de cem andares, começa um terrível incêndio.

“ ...tava morrendo gente, queimando tudo, um pavor.” p. 25 Bombeiros, aviões, helicópteros são chamados sem conseguir debelar as chamas. “ Foi quando uma criança (...) teve uma idéia magnífica: – Isto é um trabalho para o João do Pum.” p. 26 João é convocado pelas autoridades da cidade. “ Puseram uma rolha (...) no bumbum dele para os puns não saírem.(...) E João do Pum

começou a ficar com o bumbum cada vez maior, depois a barriga, (...) os braços, as pernas, as mãos, os pés, o pinto, o saquinho, a garganta, a cabeça, os olhos, as orelhas, as unhas, o nariz, a língua, os dentes, os cabelos. ” p. 29

João é levado até o prédio em chamas e levantado por um guindaste. “ Gente, quando tiraram a rolha de João de Pum, a cidade ouviu o maior pum que se teve

notícia em todo o mundo até hoje. “ p. 32 O incêndio apagou, João vira o herói da cidade e passa a soltar pum como todo mundo. “A partir deste dia ele passou a ser conhecido como João sem Pum. Mas isso é outra

história e fica pra outro dia.” p. 35 este o desfecho da história.

6.5.9 Lá onde as coisas selvagens ficam

271

Lá onde as coisas selvagens ficam (Where the wild things are), 40 p., do escritor e desenhista Maurice Sendak, teve sua 1ª edição publicada em 1967. 358

O livro, seguindo a tradição de autores como Wilhelm Busch, utiliza-se do diálogo entre as linguagens escrita e visual, que na obra atuam entrelaçadamente. O texto descreve determinadas situações. As imagens descrevem outras. Da soma e da sinergia entre as duas linguagens surge a narrativa de Lá onde as coisas selvagens ficam..

No plano da linguagem escrita, a obra de Maurice Sendak, utiliza-se, claramente, dos

recursos ligados à oralidade já amplamente assinalados. “ That very night in Max’s room a forest grew, and grew and grew until his ceiling hung

with vines and the walls became the world around and an ocean tumbled by with a private boat for Max and he sailed off through night and day...”

Eis uma sinopse da história. É nossa a tradução. “ Na noite em que Max cismou de vestir sua roupa de lobo e começou a fazer travessuras

de um tipo (o desenho mostra o menino, fantasiado e com cara de lobo mau, pregando coisas na parede), e de outro (o desenho mostra o menino, com cara de lobo mau atacando e correndo atrás do cachorro com um garfo na mão), sua mãe disse que ele era uma “coisa selvagem”, ele respondeu “vou te comer inteirinha” e, no fim, acabou indo pra cama mais cedo e sem comida.” p. 4/9

Nesta mesma noite, uma floresta cresceu no quarto de Max.

“...e cresceu, e cresceu até o teto ficar cheio de mato, as paredes se tranformarem no mundo inteiro e Max sair de barco pelo oceano, noite e dia, durante semanas e quase um ano inteiro, em busca do lugar onde ficam as coisas selvagens.” p. 10/19

As frases são acompanhadas por desenhos mostrando a metamorfose do quarto de Max e

sua viagem pelo oceano. O menino vai com sua fantasia de lobo e parece feliz e às vezes surpreso.

“E quando ele finalmente chegou no lugar onde as coisas selvagens estão, elas urraram seus urros terriveis, arreganharam seus dentes terriveis, arregalaram seus olhos terriveis e mostraram suas unhas terríveis até Max gritar: “Fiquem quietos!”. ” p. 20/23

Os desenhos mostram Max sempre seguro de si chegando numa terra habitada pelos mais incríveis monstros. Com seu truque mágico de olhar fixamente, sem piscar nem tremer, o

358 SENDAK, Maurice. Where the wild things are. 19ª ed. London, Puffin Books, 1988.

272

menino enfrenta os monstrengos que, amendrontados, ficam achando que ele é o mais selvagem de todos. Max acaba eleito o rei das coisas selvagens.

“ – E agora, grita Max, vamos começar a bagunça selvagem!” p. 25

A partir daí, durante seis páginas do livro, unicamente através de desenhos, sem texto verbal, acompanhamos Max, agora com uma coroa na cabeça, e o bando de monstrengos em suas danças e bagunças selvagens. Mais tarde, Max grita: ”– Agora chega!” e manda os monstros para cama, logo depois do jantar. Max fica sòzinho com saudades “do lugar onde as pessoas gostavam dele mais do que tudo” .

Então ele sente um cheirinho bom de comida, vindo de longe, lá do outro lado do mundo, e resolve largar de ser o rei das coisas selvagens e partir.

“Mas as coisas selvagens gritaram, “Oh, por favor não vá - nós vamos comer você inteirinho – nós adoramos você!”. E Max disse: Não!” p. 34

As coisas selvagens urraram seus urros terríveis, arreganharam seus dentes terríveis, arregalaram seus olhos terríveis, mostraram suas unhas terríveis, Max gritou: “– Adeus!”, e, navegando por quase um ano, durante semanas, dia e noite, finalmente chegou em seu quarto onde um belo jantar esperava por ele

“and it was still hot.” p. 40

este o desfecho da história. 6.6 Comentários sobre as obras sem vestígios aparentes do conto popular

Ao contrário do primeiro grupo de obras estudadas, o qual, ao nível temático, apresentava como ponto comum, mesmo que em diferentes graus, a referência direta aos contos populares, neste segundo grupo composto por Juca e Chico, de Wilhelm Busch; As aventuras da Alice

no País das Maravilhas, de Lewis Carroll; Peter Pan, de J.M. Barrie; Contos para crianças, de Peter Bichsel; A bolsa amarela, de Lygia Bojunga Nunes; O menino maluquinho, de Ziraldo, Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles; O homem que soltava pum, de Mario Prata e Lá onde as coisas selvagens ficam, de Maurice Sendak, já não encontramos histórias necessariamente contadas linearmente, que se passam em lugares distantes, com reis, príncipes, princesas, fadas e bruxas. O tema do herói que parte pelo mundo em busca de aventuras retornando modificado também já não aparece, pelo menos com tanta clareza. Surgem além disso, nesse segundo grupo, outros recursos narrativos pouco ou nunca utilizados no conto popular: narradores que ao mesmo tempo são personagens; descontinuidade no relato e na sucessão dos fatos; recursos como a metalingüagem, a entrada do autor em cena (metalepse),

273

anacronias etc. O segundo grupo, bastante heterogêneo, na verdade, aparentemente, não apresenta, ao nível temático, nenhum ponto comum.

A exceção seria Alice no País das Maravilhas, a nosso ver, obra marcada pelos contos maravilhosos mas ao, mesmo tempo, já com características que apontam outras direções. Apesar dos inúmeros traços ligados ao conto popular, e que serão vistos logo a seguir, Alice apresenta outras peculiaridades bem pouco tradicionais, entre elas, a não linearidade da narrativa; a complexidade textual; e o tratamento particular dado à personagem, não mais genérico e paradigmático (no sentido de uma fácil identificação com qualquer leitor) como nos contos do primeiro grupo. Aprofundaremos nossos comentários logo adiante. Seria perfeitamente aceitável, em todo caso, adotar outro critério, colocando esta obra no primeiro grupo. Na verdade, nossa intenção é demonstrar que, de uma forma ou de outra, todas as obras estudadas, seja do primeiro ou do segundo grupo, trazem profundas marcas das narrativas populares.

No patamar da linguagem, da mesma forma que o grupo anteriormente estudado, e todos os contos escritos ou recolhidos por Ana de Castro Osório, as onze obras assinaladas apresentam evidentes índices de oralidade, considerando aqui, mais uma vez, as categorias propostas por nós a partir dos estudos de Paul Zumthor. Todos os textos do segundo grupo, mesmo tendo sido produzidos em épocas bastante diferentes, não pertencendo a nenhuma escola, não apresentando, aparentemente, temática comum, e tendo sido escritos em idiomas variados, buscam, sem exceção, a comunicação direta com o leitor através da adaptabilidade às

circuntâncias, a teatralidade, e a concisão. Fica claro, pelo menos a partir do estudo das obras citadas, que no plano textual-verbal, todas podem ser vinculadas às expressões populares tais como o conto, a legenda, as narrativas míticas, e, em decorrência, considerando a atualidade, as manifestações da cultura de massa: todas visam, e essa é sua condição prioritária, sine qua

non, atingir o leitor. Passamos a comentar as obras, texto a texto. 6.6.1 Juca e Chico

Em Juca e Chico temos nas personagens, dois meninos travessos, pessoas claramente egocêntricas e individualistas (no sentido amplo de viverem às voltas com seus interesses imediatos sem ligar para as outras pessoas e coisas à sua volta), alegres, cheias de vida e de idéias, aprendizes ainda das regras sociais de convivência e outras, irresponsáveis, espertos, inexperientes, impulsivos, desespeitadores, transgressores, selvagens, que vivem brincando e experimentando coisas. Em outras palavras, a nosso ver, Juca e Chico representam perfeitamente o estereótipo da grande maioria das crianças. A obra de Wilhelm Busch mostra, por outro lado, adultos civilizados, compenetrados e conservadores, levando vidas regulares e acomodadas, mergulhados no trabalho especializado e em seus pequenos hábitos burocráticos e cotidianos. Temos a boa dona de casa apegada às suas galinhas; o alfaiate pacato e especialista em casacas, coletes e paletós; o mestre-escola, sacristão e organista na missa de domingo e seu

274

hábito de fumar cachimbo; o tio dorminhoco, padeiros, moleiros etc. Enquanto os dois meninos são divertidos, alegres e criativos, as cenas onde aparecem os adultos são invariavelmente prosaicas e ridículas: rimos com a pobre senhora cuidando da casa enquanto os marotos pescam as galinhas; rimos do tombo do alfaiate e sua desajeitada saída da água agarrado nos gansos; e com a explosão do cachimbo do mestre escola; e com os besouros perturbando o também desajeitado sono do tio. Rimos ainda da improvável situação em que os heróis são assados no forno, viram pão e mesmo assim escapam risonhos. Rimos inclusive do desfecho, aparentemente moralista, onde, levados ao moinho, os meninos são moídos, transformados em farinha e comidos por gansos. O humor, a alegria, o riso festivo, irreverente, que arremete contra toda superioridade, o riso regenerador que destrói e constrói, apontado por Bakhtin e segundo ele característico das tradições populares, aparece claramente em Juca e Chico. Outro tema de destaca na obra de Busch: a luta do novo contra o velho. Este tema, profundamente ligado, como vimos, às mais arcaicas tradições, representativo da renovação periódica do

mundo a concepção arcaica apontada por inúmeros estudiosos, é, a nosso ver, central em Juca e Chico. De um lado, temos a força da inexperiência, do novo, dos valores que ainda vão ser e, de outro, os valores estabelecidos. Os dois meninos são castigados no final. Mas... houve mesmo esse castigo? Na sexta aventura, cobertos de massa, vão para o forno, são assados e mesmo assim escapam bastante risonhos. Houve mesmo a vitória do velho contra o novo? A nosso ver, a situação lúdica da sexta travessura, onde ir para o forno e ser assado não passa de brincadeira e faz de conta, poderia perfeitamente ser repetida no subtexto da última aventura. O todo da obra, em todo caso, e é isso o que importa, contradiz qualquer desfecho punitivo. Se existem adultos heróicos, fortes, empreendedores e engenhosos, não são estes os apresentados por Busch. Em Juca e Chico, ao contrário, rimos o tempo todo de pessoas conservadoras, desengonçadas, acomodadas e ridículas e admiramos o engenho, a alegria, o descompromisso, o egoísmo, o trangressivo, a criatividade e a audácia dos dois meninos, este sim o tom geral da obra e o que, a nosso ver, fica para o leitor. Confirmando isso, situações similares são encontradas em outras obras de Busch. Pensamos em O macaco e o moleque, A raposa, O

professor distraído, O fantasma lambão e tantas outras. Podemos ainda associar totalmente as personagens de Busch à moral ingênua proposta

por André Jolles e, segundo ele, traço essencial do conto popular. Juca e Chico agem levando em conta, exclusivamente, seus interesses pessoais. Examinam a realidade a partir do próprio umbigo sem considerar um ética abstrata e ampla ligada ao direito do outro e às regras gerais de convivência. Os dois malandros, tal e qual dois pequenos e infernais gatos de botas, agem afetivamente (no sentido de privilegiar aquilo que gostam), parcialmente (no sentido de privilegiar seus próprios interesses), intuitivamente (no sentido de privilegiar a criatividade em oposição ao conhecimento estabelecido) sempre apoiados na auto-referência e na busca da felicidade.

275

É importante ressaltar, por outro lado, que a obra de Busch apesar de apresentar inúmeros traços ligados às tradições populares, não inclui entre eles o maravilhoso, as força mágicas e o desconhecido.

6.6.2 Aventuras de Alice no País das Maravilhas

A estudiosa francesa Denise Escarpit, ao comentar Aventuras de Alice no País das

Maravilhas, afirma que esta obra de Lewis Carroll

“...se vale de lo maravilloso para reanudar la tradición popular del absurdo, del non-

sense...” 359

Não pretendemos nem podemos, dentro dos limites de nossa pesquisa, abordar os inúmeros aspectos da conhecidíssima obra do Carroll. Vamos nos limitar a comentar

alguns pontos que, a nosso ver, remetem, às vezes literalmente, às vezes com ressalvas, às narrativas de tradição popular.

A linguagem utilizada por Carroll, por exemplo, aponta para diferenças. Ao lado dos traços de oralidade já mencionados, encontramos um texto para ser lido, com descrições elaboradas; uso da subordinação; imagens originais; paradoxos e jogos de lógica; poemas que, além de complexos, cheios de ambigüidade e non-sense, funcionam como partes da narrativa; o emprego de certas palavras menos usuais. Além disso, como aponta Escarpit:

“ No obstante, Alicia difiere del cuento de hadas tradicional. En éstos hay una lógica

interna de la narración: los acontecimientos se encadenan unos a otros, el después sigue al antes. En Alicia hay discontinuidad en el relato, sucesión y no encadenamiento de los elementos de la narración, pues dichos elementos – personages o cosas - sólo nascen por mediación de Alicia.” 360

Em todo caso, o maravilhoso dos contos populares pressupõe, e está enraizado, como

vimos, na existência de forças desconhecidas, incompreensíveis e mágicas. Estas encontram-se presentes, por exemplo, em Pinóquio, e, em diferentes graus, em todas as histórias do primeiro grupo estudado. A mesma situação desaparece em Alice. A viagem, as personagens incríveis e as situações maravilhosas vividas por Alice são, na verdade, apenas um sonho podendo, portanto, ser explicadas através da razão. Neste sentido, Alice no País das Maravilhas, afasta-se completamente das narrativas tradicionais.

Há traços, mesmo assim, de inúmeras tradições populares na obra de Carroll, pelo menos se levarmos em conta as observações de Bakhtin com respeito à sátira menipéia: a presença do elemento cômico; o uso da maravilhoso, da imaginação e da ludicidade, sem qualquer

359 Op. cit. p. 96 360 Idem.Ibidem. p. 97

276

compromisso com a verossimilhança (apesar de recorrer a um desfecho final no qual a razão é reestabelecida); a observação do mundo através de inúmeros ângulos inusitados; a apresentação de países utópicos; a diversidade de gêneros empregados; a discussão de temas atualizados (escola e conhecimento, por exemplo), entre outros.

Não podemos deixar de assinalar a utilização, por Carroll, de inúmeras personificações e nomes próprios compostos e que se auto explicam, recursos típicos dos contos populares: o País das Maravilhas, A Lebre de Março, A rainha de Copas, a Falsa Tartaruga etc.

Há também em Alice, um tom que remete à busca da identidade e do auto-conhecimento, portanto, às narrativas de iniciação: vendo-se constantemente transformada, a personagem se compara com outras pessoas e enfrenta questionamentos do tipo

“Mas, se não sou a mesma, então quem eu sou?” ou então, durante a conversa com a lagarta “–Quem é você? –...eu...enfim, sei quem era...etc.” Num patamar mais amplo, a ambigüidade; a dupla existência da verdade; a discussão do

conhecimento oficial (por ex. a escola ao contrário da Falsa Tartaruga ) e das normas estabelecidas (a precariedade da justiça, durante o julgamento, entre outros); realidade vista pelo prisma de sua virtualidade e da relatividade das coisas (a identidade mutante de Alice, jogos onde todos ganham, bebês que na verdade são leitões); o constante diálogo entre fantasia e realidade; as metamorfoses por que passa Alice; a lógica discutindo as idéias pré-concebidas; os inúmeros paradoxos; a visão ridícula de adultos e poderosos, etc. são temas que impregnam Alice no País das Maravilhas e podem ser associados, a nosso ver, à idéia bakhtiniana de alternância, ligada, por sua vez, à concepção arcaica da renovação periódica do mundo e que pressupõe, a substituição de um mundo velho, cristalizado, cheio de verdades, regras e instituições ultrapassadas, por um mundo novo, desconhecido, em constante metamorfose, onde nada ainda foi fixado e onde as verdades são passíveis de revisão e substituição. O próprio recurso do non sense é exemplo disso: revela, a nosso ver, a aceitação e convivência (e a reação) com o desconhecido, o imponderável e o incompreensível. O non sense vem nos lembrar que nem toda a estrutura tem sentido, que vivemos num processo transitório, cercados de coisas que não compreendemos e que isso não impede que a vida continue. Surge aqui, portanto, uma vez mais, entre tantas marcas populares, o arcaico confronto do velho (o instituído, o que é conhecido) contra o novo (o que vai ser e ainda não conhecemos), típico das narrativas e da visão primitiva da vida e do mundo.

277

6.6.3 Peter Pan

Mesmo sendo a linguagem utilizada em Peter Pan, relativamente elaborada, com descrições detalhadas, uso da subordinação e recursos sofisticados como a metalepse (quando, por exemplo, o narrador confessa que não sabe como vai continuar a história, apresentando várias alternativas ao leitor; no momento em que o narrador simplesmente revela ter desligado o relógio de propósito interferindo na história e acelerando assim o triste fim do Capitão Gancho, ou ainda, quando o narrador comenta seu próprio papel etc.), recursos impensáveis numa narrativa popular, renovamos a opinião de que, em linhas gerais, o texto de Barrie apresenta claros índices de oralidade remetendo às categorias de adaptabilidade às circunstâncias,

teatralidade e concisão. Em outras palavras: estamos diante de um texto que pretende e esforça-se para atingir o leitor.

Abordar a infinidade de assuntos e motivos tocados em Peter Pan extrapolaria, naturalmente, os limites e os objetivos de nossa pesquisa.

Apontaremos apenas alguns dos possíveis elos temáticos existentes entre a obra de Barrie e certas concepções ligadas à tradições populares.

Se levarmos em consideração os apontamentos de Bakhtin sobre a sátira menipéia, eles aparentemente são muitos. Eis alguns deles: o humor; o uso da invenção e da fantasia, descompromissado com a verossimilhança; a combinação do fantástico com o simbólico (a personagem Peter Pan assim como a Terra do Nunca podem ser vistos como alegorias); a fantasia como instrumento para experimentar a verdade (através do universo encantado de Peter e sua Terra do Nunca especulamos sobre nossa existência e nosso mundo); a observação da vida e do mundo vistos de um ângulo inusitado (o ponto de vista de Peter; a vida de Wendy e seus irmãos na Terra do Nunca, por ex.); lugares mágicos e utópicos; discussão de questões ligadas à atualidade (diferenças e semelhanças entre adultos e crianças - os piratas pretendem, por exemplo, que Wendy seja sua mãezinha; a vida moderna - o sr. Darling é corretor da bolsa de valores, assunto que ninguém entende; diferenças sociais - Gancho e os outros piratas; meninos perdidos; educação - criticas às escolas em oposição ao conhecimento da fantasia).

No que diz respeito à fantasia, é preciso ressaltar a ambigüidade apresentada pelo universo

criado por Barrie. Por um lado, estamos diante de um mundo imaginário, mágico e irreal. O autor, porém, aponta, constantemente, as semelhanças existentes entre o maravilhoso e o cotidiano. A Ilha dos Afogados, por exemplo, é, mais ou menos, do tamanho de uma cama grande. A lareira, na casa dos meninos perdidos, cada dia fica num lugar, exatamente como as casinhas de faz-de-conta das brincadeiras infantis. É discutível dizer que há em Barrie, aquela magia compulsória, “natural” e absolutamente inexplicável, ligada à constatação da existência de forças superiores e desconhecidas, característica das narrativas míticas e dos contos de origem popular.

Vale a pena assinalar outros pontos ligados às narrativas populares: o uso de personificações (o Pássaro do Nunca, por exemplo); o motivo da viagem; o emprego de nomes

278

próprios compostos e auto explicativos como Terra do Nunca, Pedra do Afogado, Fada Sininho, Pássaro do Nunca etc; os inúmeros vôos mágicos; personagens mágicas como a fada Sininho; instrumentos mágicos: o pó que faz voar; o tom otimista que remete para um final feliz (no caso de Peter Pan mais aberto e complexo se comparado aos contos tradicionais) etc.

É possível ainda associar a atuação de Peter Pan e a ética ingênua, plano mental e postural peculiar aos contos populares, na visão de Jolles. Peter age sempre parcial e egocentricamente (a ponto de esquecer o nome dos companheiros de viagem) e em benefício próprio, através da visão pessoal, afetiva, parcial, intuitiva e subjetiva da realidade.

Num outro plano, acompanhamos uma verdadeira iniciação vivida pela menina Wendy preparando-se para ser mãe e esposa; ao mesmo tempo, Peter Pan pode ser visto como um pequeno herói mítico e exemplar: sua busca, sua visão de mundo, seu universo etc. remetem a uma reflexão sobre a existência (o abandono de nossos sonhos individuais; o envelhecimento; a temporalidade; a teoria versus a prática; as nuances do relacionamento amoroso entre o homem e a mulher; a construção da identidade e da própria vida etc.).

A alegria e a esperança, ligadas à bakhtiniana visão cômica do mundo, portanto, ao final

feliz e à concepção arcaica e mítica (cíclica) de que tudo renasce, tudo se alterna e pode ser revitalizado; a relatividade das coisas, a alternância, são praticamente o subtexto de todo o Peter Pan: estão presentes na permanente situação de sonho e realidade, em que Peter come comida de faz de conta e mesmo assim engorda; na situação da sra. Darling, revivida por sua filha, por sua neta etc.; no momento em que, durante a luta contra os índios, Peter resolve mudar de lado: vira índio enquanto os índios viram meninos perdidos etc.

Um tema, a nosso ver, central na obra de Barrie e profundamente ligado às mais antigas tradições é o da luta mítica do novo contra o velho, reflexo da concepção arcaica de renovação

periódica do mundo. Enquanto Peter Pan, um analfabeto que ”não consegue distinguir um A de um Z”, recusa-se a ser adulto e é apresentado como um menino elegante, egocêntrico, criativo, inesperado e encantador, a ponto de, sem querer, seduzir todas as mulheres, Sininho, Wendy, Lírio Bravo, o Pássaro do Nunca e, inclusive, a sra. Darling; o sr. Darling é um adulto bastante trapalhão, tem emoções identicas às das crianças, compete e sente ciúmes da babá Terra Nova, nunca conseguiu ganhar um certo beijo da sra.Darling e é apresentado como “um homem de inteligência penetrante, desses que entendem de ações e dividendos. Naturalmente ninguém compreende de fato essas coisas...” etc. O mundo adulto, o mundo “oficial”, o conjunto das leis e das regras dominantes é diretamente criticado: Peter não quer ir à escola para aprender “um monte de coisas sérias ” e depois trabalhar em escritórios; Gancho estudou em um escola rica e tradicional e acabou virando pirata. O tema do confronto entre o velho e o novo é explicitado durante a luta entre Peter e Gancho, no já citado diálogo:

“– Pan, quem e o que és tu? – Sou a juventude, sou a alegria – respondeu Peter sem pensar.– Sou um passarinho que

saiu da casca do ovo.” p. 197

279

Ressalte-se, concluindo, certos temas como: o ciúme; a depressão (de Gancho); a disputa

entre fêmeas (Sininho e Wendy); a oposição entre o mundo sexuado (Wendy querendo beijar e namorar Peter) e um mundo onde a sexualidade é virtual (a postura ingênua de Peter); a carência afetiva (de crianças e adultos) entre muitos outros.

6.6.4 Contos para Crianças

Os três Contos para Crianças de Peter Bichsel, apresentam, como vimos, pelo menos se considerarmos sua tradução para o português, inúmeros traços de oralidade. Ao que tudo indica, em todo caso, foram escritos de forma a atingir e ser compreendidos pelo leitor, esse o ponto que nos interessa.

Ao nível temático, apresentam situações bastante diversas daquelas encontradas usualmente nos contos populares. Não temos, por exemplo, nos textos de Bichsel, nem situações fantásticas onde forças mágicas e desconhecidas se apresentam, nem personagens jovens, habitando lugares distantes, partindo para viver aventuras e voltando modificados. Ao contrário, deparamo-nos com o mundo em que vivemos e com personagens velhas, que não têm mais nada a fazer, que já não falam ou que não querem saber de nada vezes nada. O patamar onde ocorrem os contos de Bichsel é, aparentemente, o patamar da vida cotidiana visto pelo prisma da experiência particular, da visão de mundo idiossincrática, pessoal e individual, distante, portanto, do plano geral, quase impessoal, onde ocorrem os contos populares, plano que, por mais fantástico e exótico que possa parecer, costuma permitir a identificação de todos nós.

Julgamos, apesar disso, existirem não poucos pontos ligando os Contos para Crianças de Bichsel aos contos populares.

Temos, por exemplo, personagens operando no plano da moral ingênua proposto por

André Jolles. O velho que sai pelo mundo, o velho que reinventa a linguagem e o homem que não quer saber de nada atuam dentro de uma perspectiva particular e afetiva diante da realidade e não levam em consideração uma ética de princípios que pressuponha todas as pessoas. Os interesses pessoais e idiossincráticos das personagens de Bichsel estão acima dos interesses e das leis abstratas e consensuais da coletividade.

Se tomarmos como referência, por outro lado, certas características da sátira menipéia,

poderiamos dizer que os contos de Bichsel apresentam: 1) situações limites, com personagens colocados diante de “últimas questões”: a morte, o desencontro e a inadaptabilidade à cultura e ao mundo; 2) as observações da vida, vista através de um ângulo inusitado: a lista absurda da personagem de “A terra é redonda”, a linguagem inventada pelo velho de “Uma mesa é uma mesa” etc.; 3) o mundo “às avessas”; 4) estados psicológicos alterados, limítrofes com a loucura; 5) a discussão de questões atualizadas: o status quo, as informações (=

280

conhecimento), a criação de uma nova linguagem e o preço disso etc., temas colocados em discussão nos três contos. As situações inusitadas das personagens, a nosso ver, remetem os três contos a um certo humor, crítico e ácido com certeza, mas carregados de discreta comicidade (a lista e a metodolgia absurda de “A terra é redonda”; a nova linguagem da personagem de “Uma mesa é uma mesa” etc.).

É possível ainda, a nosso ver, ligar os Contos para Crianças a outros aspectos da cultura

popular. A personagem de “A terra é redonda” coloca em dúvida todo o conhecimento existente e parte para confirmá-lo, ou não, utilizando paródicamente uma metodologia científica e racional; a personagem de “Uma mesa é uma mesa”, um velho solitário, simplesmente abandona a linguagem oficial existente e inventa uma nova; a personagem do terceiro conto não quer saber mais nada de nada, ou seja, contesta toda a cultura existente. A insatisfação e a inadequação à vida e ao mundo e a necessidade de reconstruí-lo (ligada ao destronamento etc), portanto, talvez sejam duas das marcas mais fortes dos referidos contos de Bichsel. Por outro lado, suas personagens não são crianças mas sim adultos e velhos. A nosso ver, o diálogo e a conjunção entre estes dois fatores, inadequação e velhice, podem ser vinculadas, mais uma vez, às concepções arcaicas de alternância e de renovação periódica do mundo. Em outras palavras, de forma bastante pessoal e distante das fórmulas comuns aos contos populares, Bichsel nos colocam diante do mesmo tema: o mundo adulto, o mundo do conhecimento ”oficial” está ultrapassado, perde sentido e precisa ser destruído e renovado. O universo apresentado nos Contos pode ser comparado à fruta que apodrece e morre para virar semente outra vez (nos três contos, o universo é visto sempre no instante da fruta que apodrece). Os caminhos do novo são claramente anunciados: a discussão (a contestação ou o aprofundamento) do conhecimento existente e a criação de novas linguagens (portanto novas alternativas). Tudo isso será realizado pelo novo, pelo que ainda não é e não pelo antigo, daí o desfecho trágico de “Uma mesa é uma mesa”: se levarmos em conta o princípio da alternância seria contra a natureza o velho homem criar a nova linguagem. A regeneração periódia do

mundo e a luta do novo contra o velho, temas míticos ligados às mais arcaicas tradições populares estão, portanto, presentes nos contos de Peter Bichsel.

Apesar de o tema da regeneração periódica do mundo estar contido, a nosso ver, mesmo que de forma indireta (indireta em termos: as personagens saem a pé para dar a volta ao mundo; reinventam a linguagem; têm a coragem de entrar em confronto com a cultura estabelecida!), nos três contos, ressalte-se a dificuldade de se falar em final feliz, índice bastante comum nas narrativas populares (com exeções: por ex. variantes de “A bela e a fera”), com relação aos contos mencionados. Em “ O mundo é redondo” a personagem de oitenta anos parte para dar a volta ao mundo à pé. Dez anos se passam. O vizinho, na verdade o narrador, ainda, de vez em quando, tem esperança de vê-lo um dia de volta, esperança, para dizer o mínimo, bastante improvável. Em “Uma mesa é uma mesa” a personagem reinventa a linguagem e acaba isolada, sem conseguir falar com ninguém a não ser consigo mesma (o novo tem seu preço!). Em “O

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homem que não queria saber mais nada de nada”, o conto mais próximo de um final feliz, a personagem termina seu percurso voltando a levar a vida que sempre levou, agora modificada e amadurecida. O sentido trágico, incomum (com exeções) tanto nos contos populares como na literatura infantil, está, portanto, presente, em diferentes graus, nos três contos assinalados.

Ressalte-se o uso de listas e enumerações, típico da cultura popular, como vimos com Bakhtin em seu estudo sobre Rabelais.

Apenas como referência, eis os títulos dos outros Contos para Crianças de Peter Bichsel: “A América não existe”, “O inventor”, “ O homem que tinha memória” etc.

6.6.5 A bolsa amarela

A linguagem utilizada em A bolsa amarela, tal como os contos populares, apresenta, como vimos, inúmeros índices de oralidade e, com certeza, foi construída no sentido de entrar em contato e ser compreendida pelo leitor.

Temos, por outro lado, uma temática marcada pela voz particular de um autor (em oposição à voz mais impessoal do contador de histórias) e uma personagem vivendo no mundo em que vivemos e atuando num patamar que pressupõe a particularidade e a visão idiossincrática da vida e do mundo.

Inúmeras questões temáticas são tratadas em A bolsa amarela. A personagem Raquel tem três vontades secretas: a vontade de crescer e ser adulta; a vontade de ser homem; a vontade de tornar-se escritora. Em nossa leitura essas vontades podem representar, na verdade, o desejo do auto-conhecimento (crescer, ou seja, encontrar-se como pessoa auto-suficiente e dar um sentido à sua vida), o desejo de se definir sexualmente (e portanto estar apta a procurar o parceiro amoroso) e a busca do auto-sustento (o trabalho e num outro plano a construção da expressão pessoal no mundo). Como vimos, estes são, atualizadamente, os mesmos temas centrais de quase todos os contos populares recontados por Ana de Castro Osório.

Representam também o enredo mítico sintético onde o homem surge como um ser mortal, sexuado que precisa lutar pela sobrevivência.

Mesmo que longíquamente, o percurso de Raquel, aprendendo a lidar com suas vontades e

contruindo sua identidade, pode também ser associado às narrativas iniciáticas. Tal como os neófitos, a personagem de Lygia Bojunga Nunes passa por um aprendizado e busca conhecer e compreender a si mesma e o mundo, enfrentando desafios, interiores ou não, pouco importa (vencer a auto-crítica; vencer a força da opinião alheia; assumir certas limitações; criar coragem para se expressar; enfrentar certos valores sociais existentes etc.). No final do percurso, em todo caso, Raquel já não é a menina insegura e insatisfeita mas sim uma pessoa com caminhos mais nítidos (não resolvidos e sim a serem percorridos) à sua frente.

O texto de Lygia Bojunga trata de questões como, por exemplo, a construção da voz (da expressão) individual; a criação literária (certas partes do texto, por ex. a história de Terrível,

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são criadas pela personagem ao mesmo tempo que a trama se desenvolve) e outras. Não pretendemos abordá-las por fugirem do núcleo central de nossa pesquisa.

Vamos nos limitar a tentar identificar em A bolsa amarela, certas concepções populares. Sem falar no largo uso de personificações, típicas das expressões tradicionais, vale a pena,

por exemplo, ressaltar o uso de nomes próprios compostos e que se auto explicam: a Bolsa Amarela, Crista de Ferro, a Casa dos Consertos, o Alfinete de Fralda etc.

Quanto aos aspectos relacionados à sátira menipéia, há na obra de Bojunga Nunes: a

invenção e a fantasia sem exigência de verossilhança (note-se porém que a fantasia em A bolsa

amarela não está ligada à forças desconhecidas mas funciona como verdadeira alegoria, por exemplo, das pulsões inconscientes de Raquel); a fantasia como intrumento para experimentar a verdade (através da fantasia, tanto Raquel, como o leitor vão, aos poucos, compreendendo os caminhos e os conflitos da personagem); a observação da vida vista através de um ângulo inusitado (a bolsa contendo os desejos da menina, por exemplo); lugares utópicos e imaginários (a Casa dos Consertos); a discussão de temas da atualidade (o individualismo competitivo e solitário de Crista de Ferro; o condicionamento ideológico de Crista de Ferro; o consumismo e o estereótipo feminino representado por tia Brunilda, entre muitos outros temas.)

É possível dizer, também que a menina Raquel age muito mais no plano da ética ingênua,

ou seja, reage à vida e ao mundo afetivamente, inspirada a partir da sua intuição e necessidades internas imediatas, não levando em conta as regras gerais e abstratas impostas de fora para dentro as quais, aliás, contesta. A bolsa amarela conta a história de um movimento pessoal e particular movido pelas paixões: paixão de viver autonomamente, paixão de crescer, paixão de encontrar uma identidade, paixão pela literatura.

Apesar de Raquel, aparentemente, opor-se a Peter Pan, que se recusa a crescer, ou às personagens de Bichsel, idosos e descrentes do mundo (descrentes em termos pois descrentes não saem a pé para dar a volta ao mundo, nem inventam linguagens, nem colocam em dúvida e reagem contra a cultura estabelecida), há um ponto comum entre todos eles: todos estão insatisfeitos e não aceitam o mundo atual, o mundo dos adultos, o mundo oficial, o mundo como ele se configura diante de suas vidas. Ao visitar a Casa de Consertos, Raquel vislumbra um mundo novo e utópico, onde não existem papéis pré estabelecidos para as pessoas; onde crianças, adultos e velhos estão identificados e agem da mesma forma; onde todos estão em permanente estado de atualização, estudando aquilo que gostam; onde não há chefes (portanto hierarquias) por isso tudo é decidido em comum acordo; onde a vida faz sentido. Mais uma vez, portanto e a nosso ver, surge, se bem que camuflado pela voz e pela visão de mundo particular de um autor, o tema arcaico da renovação periódica do mundo e da luta do novo contra o

velho: o texto de Bojunga parece impregnado pela necessidade de transgredir, de mudar, de criar uma nova e melhor concepção de vida e de mundo.

283

Sob estes pontos de vista, são muitos os pontos de contato entre A bolsa amarela e as expressões populares.

6.6.6 O menino maluquinho

Não resta dúvida, a nosso ver, que a linguagem utilizada por Ziraldo para construir seu O

menino maluquinho é caudatária das tradições populares ligadas à oralidade. Estamos, uma vez mais, diante de uma obra que, recorrendo aos recursos da adaptabilidade às circustâncias, à

teatralidade e à concisão, pretende e se esforça para atingir e entrar em contato com o público. Vimos nos contos de autoria, não nos recontados, de Ana de Castro Osório, crianças

sendo descritas como seres imaturos, ignorantes, egoístas, inexperientes, indisciplinados, irracionais, impulsivos, inesperados, caprichosos, parciais etc. que precisam mudar, crescer, ser domados e assim, finalmente, amadurecer e compreender a realidade, as regras complexas e a sabedoria líquida e certa do mundo adulto. Naturalmente, essa tradição impregna, até os dias de hoje, numerosíssimas obras da chamada literatura infantil. Pinóquio, de Collodi, tirando sua maravilhosa e libertadora fantasia, talvez possa ser considerado um paradigma neste sentido.

Em O menino maluquinho encontramos a seguinte situação: a personagem também é descrita como um ser imaturo, ignorante, egoísta, inexperiente, indisciplinado, irracional, impulsivo, inesperado, caprichoso parcial etc. só que, ao contrário das obras citadas anteriormente, ao invés de precisar “mudar, crescer, ser domado e assim, finalmente, amadurecer e compreender a realidade, as regras complexas e a sabedoria líquida e certa do mundo adulto” é tratado como um ser maravilhoso, afetivo, humano, original, simpático, sedutor, inesperado, promissor, criativo, inteligente, amoroso etc. Apesar de fazer traquinagens de todo tipo, ser bagunceiro, repetir de ano na escola, ser mau aluno em comportamento, dar trabalho etc. Além disso, a atuação do menino pode ser identificada com a ética ingênua, ou seja, a personagem de Ziraldo age fundamentalmente apoiada em sua visão pessoal e afetiva, na intuição, na criatividade, na parcialidade e na concretude de seus interesses imediatos, sem levar a sério uma ética mais ampla, que estipule abstratamente regras gerais e consensuais de atuação e convivência.

A nosso ver, o menino maluquinho poderia fazer parte da turma de Peter Pan e, coberto de

pirilimpimpim, viajaria feliz da vida com Wendy e os demais para a Terra do Nunca. Em outras palavras, consideramos Peter Pan uma espécie de paradigma para obras como O menino

maluquinho. Em ambas, as crianças são apresentadas, não como seres errados a serem domesticados, corrigidos e aperfeiçoados, mas sim como seres cheios de humanidade, dignidade e energia que, claro precisam estudar para entrar em contato com um determinado conhecimento existente (contato, aliás, que continua pelo resto da vida: adultos, ao contrário de certas visões idealizadas da infância, vivem, compulsoriamente, em permanente processo de aprendizado) mas que, muito mais importante que isso, carregam dentro de si a semente

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imponderável do novo, o que ainda não é, o conhecimento desconhecido que substituirá o conhecimento existente, o que virá para trazer nova luz àquilo que existe. Por isso são indisciplinados e irracionais. Por isso colocam em dúvida todas s regras. Por isso são maluquinhos (= incompreensíveis) e nem poderia ser de outra forma. Toda criança, sob este ponto de vista, é um agente e representa a força irrefreável, dialogicamente destruidora e regeneradora a um só tempo, que virá para vencer, tranformar e recriar a realidade existente. (Bakthin coloca essa mesma idéia num plano muito maior e mais amplo: a perspectiva de renovação permanente, portanto da permanente discussão dos valores estabelecidos, estaria no cerne da cultura popular.)

Este é, a nosso ver, do ponto de vista temático, juntamente ao parentesco com as narrativas míticas de iniciação (acompanhamos o percurso do menino, percurso marcado pela alegria e pela dor, até a vida adulta) e o final feliz, a essência e o imenso ponto comum existente entre O

menino maluquinho e as mais arcaicas tradições ligadas à concepção mítica da renovação

periódica do mundo, à alternância e à luta natural, incontível e imprescindível do novo contra o

velho. É preciso ressaltar, por outro ângulo, que, enquanto a fantasia oriunda dos contos

populares considera natural e convive com a existência de forças superiores, desconhecidas e incompreensíveis (fadas, instrumentos mágicos, lugares e países fantásticos, metamorfoses etc.), em O menino maluquinho a fantasia está limitada à ficção racional referente ao universo das coisas conhecidas, ponto, sem dúvida, de distanciamento entre a obra de Ziraldo e a cultura popular.

6.6.7 Ou isto ou aquilo

Se ao nível da linguagem, considerando a associação do vocabulário familiar aos inúmeros recursos teatrais e poéticos tendo em vista atingir o leitor, é possível associar Ou isto ou aquilo às expressões populares, o mesmo ocorre ao nível temático, pelo menos se considerarmos o poema título.

Como seu próprio nome já anuncia, estamos diante de um texto poético que remete, com todas as letras, à relatividade dos fatos, à ambigüidade, à dupla existência da verdade, à dificuldade de se definir e fixar um determinado e exclusivo estado de coisas. A obra de Cecília Meireles anuncia ao leitor que, por um lado, a realidade está em permanente mutação e, por outro, todo o caminho tomado implica na desistência de outros, ou seja, a toda decisão corresponde uma perda.

Em oposição à estipulação e à fixação abstrata das leis que regem a vida e a realidade, ligadas ao conhecimento oficial, à ciência, às leis etc., a obra de Cecília Meireles aponta para o permanente estado de metamorfose das coisas, para a alternância dialógica e bakhtiniana, e, neste sentido, pode ser associada às mais arcaicas tradições populares oriundas da concepção mítica que pressupõe a renovação periódica do mundo e a luta permanente do novo contra o

velho.

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Num outro plano, uma visão deste tipo implica, naturalmente, na adoção de uma moral

ingênua ligada à relatividade das coisas (portanto autorizando a ação particular, subjetiva e afetiva) em oposição à visão de mundo apoiada na estipulação hierárquica, abstrata, consensual, geral e pré estabelecida da verdade.

Julgamos significativo que justamente este poema dê nome ao conjunto de 56 que compõem o livro.

6.6.8 O homem que soltava pum

Até o nome da coleção à qual pertence, “Descoleção Sem Vergonha”, remete O homem

que soltava pum a concepções de mundo carnavalizadas como a de “mundo às avessas” (onde o que é certo está errado e onde o errado pontifica) podendo já a partir daí ser ligado às tradições populares.

Como vimos, a linguagem utilizada por Mario Prata recorre aos índices de oralidade, adaptação às circuntâncias, teatralidade e concisão, já fartamente apontados no decorrer desta pesquisa. Com certeza, o texto de O homem que soltava pum pretende atingir, da forma mais direta e clara possível, o seu leitor.

A história de João Antonio Francisco Ronaldo Luiz da Silva, uma pessoa cujo comportamento pessoal é considerado diferente e estranho (apesar de, na verdade, ser um sujeito comum, com nome comum, com quem todos podem se identificar), portanto não aceito pela maioria, descreve o percurso e a luta de um indivíduo que, através da afirmação e definição de sua identidade, atinge, contra todos e contra tudo, a aceitação e a integração pessoal e social. Em outras palavras, a “saga” de João pode ser associada às narrativas de iniciação através das quais o homem primitivo (aqui, o leitor) acompanhava a gesta paradigmática do herói construindo seu destino.

Ao assumir e impor sua particularidade à coletividade, João vincula-se à moral ingênua prevista por Jolles. O herói de Mario Prata, afinal, está mais preocupado em satisfazer sua expressão pessoal, portanto afetiva, intuitiva, voltada a seus interesses particulares e parciais (no sentido do amor próprio e, inclusive, da autocomplacência) do que dobrar-se e obedecer uma lei geral e abstrata, uma ética coletiva, consensual, imparcial, oficial conservadora, reguladora da vida e do comportamento de todos. Neste sentido, João do Pum é um transgressor.

Há elos também, a nosso ver, entre O homem que soltava pum e a sátira menipéia: a presença preponderante do elemento cômico; a fantasia desvinculada de qualquer verossimillança (se bem que racionalista no sentido de não contemplar forças mágicas e desconhecidas); a fantasia como instrumento de experimentar a verdade (o percurso paradigmático e alegórico de João do Pum rumo à aceitação da sua verdade); a observação da vida e do mundo vistos por um ângulo inusitado; cenas de escândalo desestabilizadoras da ordem normal e oficial etc.

O recurso do humor utilizado por Mario Prata pode, por outro lado, ser associado ao aspecto cômico do mundo, visão bakhtiniana que pressupõe uma série de traços da cultura

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popular: o riso carnavalesco e regenerador que incorpora a dessacralização dos valores oficiais; a abolição da hierarquias e a alternância (o que é importante perde valor, o errado passa a ser o certo), o rebaixamento (a idéia primitiva, ligada aos ciclos da vida e da natureza, de que tudo o que está no alto - ou seja, é importante e aceito – acaba caindo e tudo o que está em baixo – é sem importância e condenado - acaba subindo); o grotesco; a idéia de profanação (ligada ao rebaixamento, à dessacralização e à paródia); e ainda a alegria e a esperança, a visão

cômica do mundo, através da qual no fim tudo vai dar certo, portanto, o final feliz. Note-se que os motivos escatológicos abordando feses e gases intestinais, humanos por

excelência, aparecem, como vimos, em narrativas míticas. Neste sentido amplo, é possível vincular O homem que soltava pum às concepções

arcaicas e às tradições populares que supõem a renovação periódica do mundo e, portanto, a luta do novo contra o velho (novos valores vêm suplantar os velhos valores alterando, ampliando ou reduzindo pouco importa, a visão consensual e coletiva da vida e do mundo.).

6.6.9 Lá onde as coisas selvagens ficam

Em Lá onde as coisas selvagens ficam o autor utiliza-se, como vimos, de inúmeros recursos, verbais e imagéticos, tendo em vista a comunicação clara e direta com o leitor. Neste sentido, a obra pode ser associada às categorias utilizadas por nós a partir das idéias de Paul Zumthor, de adaptabilidade às circunstâncias, teatralidade e concisão características das expressões populares.

No plano temático, o trabalho de Sendak pode também, a nosso ver, ser vinculado a inúmeros traços populares. Levando-se em conta, por exemplo, a sátira menipéia, sempre segundo as características apontadas por Bakhtin, há em Lá onde as coisas selvagens ficam: o uso da fantasia sem levar em conta a verossimilhança (viajamos para outro mundo com a personagem); fantasia como intrumento de experimentar a verdade (através da fantasia, mergulhamos no interior emocional da personagem); observamos a vida e o mundo sob um ponto de vista inusitado (o ponto de vista das coisas selvagens); entramos em contato com um estado psicológico-moral incomum; visitamos um lugar maravilhoso e utópico: a terra das coisas selvagens).

Lá onde as coisas selvagens ficam, por outro lado, é um livro impregnado de alegria e esperança: sua personagem brinca como quer, enfrenta o poder instituído (sua mãe); inventa sua própria viagem; domina e torna-se rei das coisas selvagens, enfrenta mares bravios e ainda volta para casa antes da comida esfriar: melhor final feliz, impossível.

Max, além disso, comporta-se segundo a ética ingênua proposta por Jolles em seu estudo sobre as fomas literárias simples: não age segundo regras abstratas e gerais de comportamento nem está preocupado com nada que não esteja ligado aos seus impulsos diretos e afetivos: brincar, fazer-de-conta, comer, implicar, transgredir limites, inventar, correr riscos, imaginar outras realidades, sonhar acordado etc.

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Este sentido de confrontação da personagem pode ser associado, a nosso ver, à concepção arcaica de renovação periódica do mundo e, portanto, à mítica luta do novo contra o velho: o menino rebelde, criativo, desrespeitador das regras, experimentador, trangressor, pertencente ao mundo das coisas selvagens (não absorvidas pela civilização) representa o novo, a força da natureza, imprescindível, incompreensível (condição essencial do novo) e irrefreável, que vem para desestabilizar o satus quo, o mundo e o conhecimento existentes, a ordem estabelecida, destruindo as hierarquias e reinventando a realidade, a vida e o mundo, portador que é da nova visão de mundo.

Em diferentes patamares e respeitando-se suas inúmeras peculiaridades, personagens

como Juca e Chico, Alice, Peter Pan, os velhotes de Peter Bichsel, Raquel, o menino maluquinho, a voz de Ou isto ou aquilo, João do Pum, Max e, por que não?, Pinóquio, João-Sem-Medo, Xisto, as personagens de História meio ao contrário, as personagens de Uma

idéia toda azul, os Pregadores do Rei João, a Fada–Sempre-Viva e a menina Tampinha (sem falar nas personagens das histórias recontadas, não as criadas, por Ana de Castro Osório e ainda numerosíssimos personagens da chamada literatura infantil: Emília, por exemplo.), figuras invariavelmente movidas por uma moral ingênua (= resumindo, à busca de felicidade) seja lutando contra os males do mundo (ou contra os valores estabelecidos), seja em suas buscas pessoais de auto-conhecimento e identidade, seja na busca do parceiro amoroso, podem ser vistos como personagens identificadas aos heróis das narrativas míticas de iniciação, e, ao mesmo tempo, como representantes das forças que pressupõem a transitoriedade e o efêmero em oposição à fixação e à cristalização de valores etc, forças estas ligadas àquilo que vem para mudar o que existe, ao novo que necessariamente vence o velho (pois o que é velho sempre morre antes), ao fraco (o ainda sem estrutura e forma definida) que vence o forte (o estruturado e formado), ao que ainda não é mas será, ao incompreensível pois indeteminado (que suplantará o compreensível e determinado), ao inexperiente (o que não sabe) que suplantará o experiente (o que sabe).

Em outras palavras, referimo-nos às forças naturais, fecundas, caóticas, imprescindíveis e irreprimíveis, que, segundo as concepções arcaicas e cíclicas, apontadas por inúmeros estudiosos como essenciais à compreensão da cultura popular, prevêem a alternância e a inevitável regeneração periódica do mundo.

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289

7. Conclusão

Minha fábula quer mostrar

Que criança sabe enxergar

O mesmo que vê toda gente (...)

Anônimo/ Fabliau 361

7.1 Mito e conto popular Em que pese a vastidão e complexidade do tema, assim como as imensas dificuldades em

determinar seus contornos, parecem bastante evidentes, indiscutíveis mesmo, os elos entre as

narrativas míticas e os contos populares� . Criadas pelos povos de cultura arcaica e sobrevivendo ao longo do tempo através da

transmissão oral, fruto, como vimos, de certos procedimentos de observação e sistematização peculiares e, além disso, profundamente comprometidas com uma visão religiosa da vida e do mundo, essas narrativas foram concebidas a partir de determinados pressupostos. Tres deles nos interessam diretamente:

1) a crença na existência de forças sagradas, divinas, transumanas, superiores, imensuráveis, imponderáveis e desconhecidas;

2) a idéia de que homens, animais, vegetais, minerais, o universo enfim, estariam interligados, fariam parte de um único todo, o Cosmo, ou que, na definição de Cassirer, constituiriam assumidamente uma sociedade da vida; com a conseqüente prevalência dos valores e temas coletivos em relação aos valores e temas individuais;

3) a concepção da vida e do mundo baseada na existência de um constante e inevitável movimento cíclico, que implica um eterno retorno, concepção inspirada, provavelmente, nos ritmos e ciclos da natureza e que prevê a regeneração periódica do mundo. Levando-se em conta este processo auto-referente e recorrente, categorias como a fecundação, a fertilidade, a semeadura, a floração, a maturação, a proliferação, a degeneração, o apodrecimento, a regeneração, o renascimento etc., seriam vetores naturais em permanente diálogo, inerentes e essenciais, condição mesmo, da existência humana.

A partir de tais pressupostos, pudemos apontar algumas características e peculiaridades, verdadeiros substratos, das narrativas míticas, entre elas:

1) pretender ser uma história verdadeira, relativa a episódios acontecidos de fato;

361 Op. cit. Pequenas fábulas medievais, p. 156. � Com o intuito de ressaltar seu aspecto “popular”, adotamos o termo “conto popular” apoiados na descrição e nos estudos de André Jolles. O mesmo pode também ser identificado como “conto de fadas”, “maravilhoso”, “de encantamento” etc.

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2) conter, quase sempre, explicações sagradas que, abordando a origem da vida e das

coisas, acabavam por integrar o homem arcaico aos Cosmo, dando sentido à sua existência; 3) através do relato da gesta de deuses, servir como uma espécie de modelo existencial de

conduta pessoal diante dos costumes, das instituições, do matrimônio, do trabalho, da guerra, da alimentação etc.;

4) iniciar os jovens aos valores essenciais ao grupo e, ainda, reviver, reatualizar e reafirmar periòdicamente esses mesmos valores.

Além disso, é preciso salientar outra importante marca dessas narrativas: sua forma de transmissão, feita oralmente, por intermédio de xamãs ou sacerdotes, em cerimônias e rituais apoiados por toda uma liturgia. Como vimos, não é possível avaliar a atuação desses sacerdotes sem levar em conta suas marcas pessoais, sua criatividade como narrador, sua performance, sua necessidade de ser compreendido pela platéia etc.

Ressalte-se que não se pode falar em “ fantasia” ou em “maravilhoso”, portanto em “ ficção”, quando nos referimos às narrativas míticas. Estas, na concepção arcaica, eram histórias “verdadeiras”, que de fato, um dia, no passado remoto ou mítico, aconteceram, e que pretendiam explicar a origem e a razão da existência humana, da natureza e das intituições.

Essencialmente, as narrativas míticas tratavam de dar um sentido à vida dos homens e de estabelecer relações lógicas entre essa vida, os costumes sociais adotados pela comunidade e os fenômenos da natureza e do mundo. Lançando mão de um recurso redutor e simplificador, se precisássemos sintetizar a condição humana, vista do ponto de vista arcaico e mítico encontraríamos, segundo diversas culturas, em síntese, um grupo de indivíduos que, por razões várias, perderam seus atributos divinos, foram expulsos de um lugar utópico e tornaram-se biblicamente, como vimos com Eliade e Jensen, seres mortais e sexuados que precisam lutar pela sobrevivência. Nas palavras de Eliade, através das narrativas míticas, o homem arcaico aprende, compreende e assume

“...sua condição de ser mortal e sexuado, condenado a matar e a trabalhar para poder

nutrir-se. ” 362 Ao tornar-se mortal, o homem passa a ter um período limitado de vida e vê-se obrigado a

entender o mundo para, a partir daí, construir um sentido para sua existência (caso fosse imortal, note-se, isso seria desnecessário); graças à sexualidade o homem pode, de um lado, gerar descendentes e perpetuar-se no mundo, de outro, para exerce-la, necessita encontrar um parceiro sexual; para sustentar tudo isso, vê-se obrigado a buscar alimento e um lugar seguro para morar.

A nosso ver, estes três fatores, pensando bem, condições primordiais da existência tanto do homem “primitivo” quanto do “civilizado”, podem ser associados e mesmo, talvez, ser a raiz ou sub-texto, entre outros, de não poucos temas e enredos míticos, reaparecendo, mais ou 362 Mito e realidade, p. 127

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menos camuflados, como elementos motivadores em numerosíssimos contos populares e mais, como ingredientes centrais de boa parte da literatura.

Para melhor compreender os elos existentes entre mitos e contos populares, torna-se

imprescindível levar em conta um processo, identificado de diferentes formas - atualização, desantropomorfização, desoralização, descontextualização etc .- por inúmeros estudiosos, mas, basicamente, o mesmo processo, chamado por nós de dessacralização a partir, principalmente, de Mircea Eliade.

Segundo este conceito, estaria em curso um processo histórico que, partindo de uma concepção concreta e, em termos, não simbólica da vida e do mundo, tem caminhado de encontro a concepções baseadas na abstração, no desenvolvimento e na dependência cada vez maior de valores e códigos pré-estabelecidos consensualmente como, por exemplo, a própria linguagem escrita, as categorias filosóficas e outras, concepções que têm como pressuposto, simplificadamente pois o assunto é amplo e foge de nossa pesquisa, uma dicotomia, uma independência, entre signo e referente. Referimo-nos, na verdade, à existência do símbolo e da função vicária.

Na visão arcaica e concreta, ao contrário e em princípio, nada substitui nada; tudo“é ”. Quando uma entidade divina, por exemplo, surge transformada em outra coisa, isso significa que, naquele momento, ela “é ” aquela coisa, sem entretanto perder suas características e sua essência. Não se trata de simbolismo. A divindade não está representada ou substituída; está ali de fato, sua presença é absolutamente concreta e objetiva (= hierofania), apesar de, momentaneamente, metamoforseada.

Muitos contos populares trazem, ao que parece, aspectos dessacralizados de narrativas

míticas, ou seja, carregam pedaços, resquícios e migalhas, já sem significado religioso, de enredos e imagens arcaicas e sagradas. Exemplos diretos disso são, entre outros: 1) os heróis, exemplares por princípio, cujos antepassados parecem ser as divindades e suas gestas; 2) as inúmeras explicações, agora não mais religiosas, das origens das coisas; 3) os vôos e viagens mágicas; 4) a pressuposição da existência de forças transumanas e desconhecidas; 5) as palavras e instrumentos mágicos; 6) o teor iniciático de muitos enredos; 7) certas cenas recorrentes que acabam por transformar o herói (como, por. ex. ser engolido por um peixe, penetrar numa gruta escura, estar metamorfoseado etc.); 8) a ajuda de animais mágicos, por vezes, resquícios de psicopompos; 9) a idéia da existência de lugares ideais e utópicos: o Éden, o Céu, a Terra Prometida, o Reino da Harmonia etc; 10) a personificação, idéia que pressupõe uma série de concepções míticas como a metamorfose e a sociedade da vida; 11) as adivinhas resquícios dos enigmas sagrados; 12) a alegria e a esperança representados pelo final feliz; 13) a linguagem clara e direta procurando a platéia.

Se pensarmos num distante homem primitivo ainda exprimindo-se através de gestos e

interjeições, não é de todo descabida a referência mítica do ”tempo em que os animais

292

falavam”, transformada depois em fórmula recorrente situando temporalmente inúmeros contos populares. Esta referência, a nosso ver, pressupõe, por hipótese, uma concepção de linguagem bastante diferente da nossa, onde o corpo tem papel preponderante, onde as mensagens são de uma concretude absoluta e onde gritos, urros e latidos ou gestos como acenar as mãos, estalar os dedos e abanar o rabo podem talvez ser aproximados e, portanto, uma comunicação arcaica entre homem e animal, ser concebível. Por este viés, não eram, na verdade, os animais que falavam como os homens, mas, sim, o contrário.

Sempre no intuito de compreender as narrativas populares, tentamos reconstituir uma série de características de um certo ”espírito popular”, ressalvando as dificuldades que a definição de um contorno nítido para tal conceito implica.Resumidamente, tal “espírito popular” poderia ser caracterizado por:

1) uma concepção de mundo muito próxima das arcaicas concepções míticas, pressupondo a existência de forças mágicas, sobrenaturais e desconhecidas;

2) a humanidade integrada a uma espécie de sociedade da vida, onde a expressão marcada pelo coletivo supera a expressão do indivíduo; e, ainda,

3) a idéia de regeneração periódica do mundo enraizada nos ciclos da natureza. A partir destas bases, hipotéticamente representativas de um certo “espírito arcaico e

popular”, Bakhtin supõe a existência de uma concepção geral da vida e do mundo chamada por ele de cosmovisão carnavalesca. Esta verdadeira postura diante da realidade, seria característica da cultura popular e marcada, sempre segundo o teórico russo, entre outros pontos:

1) pela crença na existência de algo a mais do que a vida cotidiana, remetendo aos fins superiores da existência;

2) idéias afins como o destronamento e a alternância que podem, muito resumidamente, ser assim explicadas: num mundo regenerado periódicamente por princípio, nada e nenhum valor pode ser fixo e definitivo, portanto, tudo é efêmero e transitório, a metamorfose é a única condição geral;

3) a mesma idéia, vista num outro plano, pressupõe a existência de um espaço agônico, a luta essencial e primordial entre o velho (o que “é ”, o presente cristalizado etc.) e o novo (o que “será”, o futuro etc);

4) as mésalliances, ou seja, imagens baseadas na possibilidade de associações inusitadas, impossíveis ou inesperadas (na inseparabilidade dos contraditórios) e, finalmente

5) a visão cômica do mundo: uma vez que o mundo é regenerado periódicamente, tudo é transitório e nada é definitivo, a tragédia não se justifica. Por este viés, nada está perdido (portanto a esperança não é uma categoria abstrata mas fato concreto), tudo, cedo ou tarde, pode acontecer, tudo é passageiro pois tudo é efêmero e no final, edenicamente, tudo vai dar certo: ela é expressa no final feliz (pois no fim tudo dá certo) componente básico (= estrutural) e formular da maioria dos contos populares.

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Entre os inúmeros substratos do conto popular apontados por nós, vale a pena mencionar mais um deles: seu aspecto ético.

Supostamente, ao contrário das narrativas míticas, vinculadas a preceitos religiosos e a regras precisas de comportamento, os enredos, os temas e as personagens dos contos populares seriam regidos por uma ética do acontecimento ou moral ingênua, identificada e descrita por André Jolles como ligada a uma disposição mental através da qual tudo no universo deve ou deveria necessariamente se passar conforme nossa espectativa pessoal; uma ética que responda à pergunta “como devem as coisas acontecer no universo?”, voltada para o acontecimento e não para a ação e o ajuste de contas, através da qual os fatos são julgados afetiva e interessadamente e que portanto, nas palavras de Jolles, “são ‘bons’ e ‘justos’ segundo nosso juízo sentimental e absoluto.” Em outras palavras, a moral ingênua está ligada à busca da

felicidade, ao livre arbítrio, à visão pessoal, afetiva, subjetiva, parcial, interessada e particular � da vida e do mundo em oposição a um ética abstrata, imparcial, desinteressada, isenta, geral, categórica e consensual, que determina e implica a priori uma axiologia do comportamento humano válida para todas as pessoas; que determina o comportamento “certo” (portanto o “errado”) e que, genericamente, estaria representada pela pergunta ”o que devo fazer?”.

Aparentemente, haveria um conflito entre uma certa concepção arcaica coletivista, portanto

não individualista, e a moral ingênua, de caráter eminentemente individualista. Lembramos que as personagens do conto popular regidas pela moral ingênua costumam ser gerais e paradigmáticas - o rei, o príncipe, a moça, a bruxa, o bom, o mau - portanto pertecem e atuam no território do senso comum com o qual todos nós podemos nos identificar. Por outro lado, enquanto a moral ingênua pressupõe sempre o direito “natural” da busca da felicidade e do querer pessoal, a ética abstrata envolve uma série de restrições e pressupõe o que “deve” ser feito. Naturalmente, em termos, qualquer contexto social determina, em graus diferentes, certas normas de comportamento. Haveria, ao que parece, nas narrativas populares, impregnadas de coletivismo, uma grande identificação entre o que é socialmente aceito e o que é bom para o indivíduo. Estamos, portanto e novamente, diante de uma ética concreta (em oposição à abstração) enraizada em concepções como a visão simpática, a sociedade da vida, a

regeneração periódica do mundo etc. O assunto, em todo caso, é complexo e merece maior aprofundamento.

A esfera da moral ingênua, é preciso notar com clareza, não é, a nosso ver, peculiar só ao

trajeto dos heróis do conto popular. Ela, na verdade, é conhecida de todas as pessoas,

� Ressalte-se o paradoxo: referimo-nos ao particular não no sentido individualista, idiossincrático e singular, mas no sentido genérico, pois, no patamar da moral ingênua, todos os indivíduos, no fundo, são parecidos: comem, dormem, buscam o amor, precisam lutar pela subsistência e temem a morte que, por outro lado, cedo ou tarde virá. “Cuide da vida pois ela pode ser roubada; a morte é garantida e essa ninguém quer” é o que ensina, em outras palavras, a sabedoria popular.

294

independentemente de épocas, nacionalidades, culturas, faixas etárias, sexo ou nível social. Todos nós atuamos, num certo sentido, entre outros planos éticos, no patamar da moral

ingênua: trata-se da esfera do gosto pessoal; do amor próprio; da busca do prazer; da idiossincrasia; do “querer” em oposição ao “dever”; da corporalidade; da intuição, da luta em realizar sonhos e projetos; do direito à felicidade, do livre arbítrio, do ponto de vista pessoal e das verdades individuais.

Tavez seja possível dizer que as ações humanas surgem do diálogo e do confronto permanente entre a(s) ética(s) geral(is) e filosófica(s) e a moral ingênua.

A ética do acontecimento pode portanto, como vimos, ser diretamente associada à visão simpática da vida e do mundo, ou seja, à concepção arcaica de mundo, baseada na intuição, na aproximação afetiva, nos sentidos etc., que, em princípio, privilegia a afinidade em lugar do conhecimento estabelecido de antemão.

Ressaltamos ainda um importante ponto comum entre as narrativas míticas e o conto popular. Ambos são transmitidos oralmente, portanto, marcados pela voz e pelo gesto de um narrador. Para o desenvolvimento de nossa pesquisa, utilizamos as categorias de adaptabilidade às circunstâncias, teatralidade e concisão, propostas por Zumthor como índices característicos da oralidade e, a nosso ver, presentes ativamente nas narrativas míticas e nos contos populares.

Outro aspecto a ser salientado é a grande identidade entre as narrativas míticas e os contos populares, no que diz respeito à “autoria” : em ambos a questão da voz, do imaginário e da concepção de mundo particular e pessoal, não se coloca; ambos, por outro lado, trazem marcas de um contador de histórias, que transmite sua versão de um fato acontecido ou inventado, não importa, há muito tempo atrás; em ambos, finalmente, há um interesse essencial e uma condição sine qua non: entrar em contato e ser compreendido pela platéia. Pudemos avaliar melhor esta situação a partir dos estudos de Paul Zumthor que apontam para os índices de oralidade já amplamente descritos.

Vale a pena lembrar que, ao que tudo indica, falar em “fantasia”, “fantástico”, “mágico” e “maravilhoso” no que diz respeito ao conto popular, significa, na maioria das vezes, remeter a resquícios de temas e imagens religiosas e arcaicas que pretendiam explicar a origem e a razão da existência humana, da natureza e das instituições.

Resumindo, são muitas as ligações e os pontos comuns existentes entre as narrativas míticas e o conto popular e as implicações deste fato, para nosso trabalho, são muitas uma vez que são inúmeros, a nosso ver, os vestígios dos contos populares na literatura infantil.

7.2 Conto popular e literatura infantil

Abordamos, em outra parte de nossa pesquisa, um conjunto de 42 contos dirigidos ao público infantil, doze de autoria de Ana de Castro Osório, e os restantes, contos populares recontados pela autora.

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As inúmeras e vitais diferenças entre os dois grupos de contos abrem, a nosso ver, importante campo de indagações relacionadas ao estudo da literatura para crianças.

Entre os contos de autoria da escritora portuguesa, encontramos histórias, sem exceção, extremamente moralistas e utilitárias, criadas com o objetivo evidente de transmitir ao leitor noções de moral e bons costumes. São histórias, por outro lado, escritas específicamente tendo em vista o público infantil (em oposição ao público adulto) e partem, invariavelmente, de uma certa visão que enxerga a infância como um estágio da existência composto, voltamos a repetir, de seres egoístas, parciais, irracionais, sem juízo, irresponsáveis, impulsivos, inexperientes, fora da realidade etc. que precisam mudar e ser domados para finalmente compreender a “verdade”, a realidade, a imparcialidade, o equilíbrio, a lógica, as regras complexas e a sabedoria “ indiscutível” do mundo adulto.

Como vimos, a partir das informações levantadas por Ariès e Burke, essa visão, muitas vezes mostrada como “natural”, não passa de uma visão ideológica e conjuntural. Ao idealizar e desumanizar os universos adulto e infantil, tratando-os como se natural, consensual e nitidamente tivessem características opostas, essa concepção tem como resultado, a nosso ver, o afastamento entre adultos e crianças.

Não queremos com isso acreditar, inocentemente, na inexistência de diferenças entre os mesmos mas sim assinalar que essas diferenças, óbvias, têm sido exageradas e artificilmente descritas, baseadas em concepções arbitrárias e ideológicas que retratam falsamente tanto adultos quanto crianças. O oposto do “mundo infantil” seria um “mundo adulto” composto de seres, repetimos, altruístas, imparciais, racionais, isentos, disciplinados, contidos, sábios etc. ou seja, estamos diante de uma absurda simplificação que não corresponde, nem de longe, à realidade dos fatos. Há, a nosso ver muito mais pontos comuns entre adultos e crianças que diferenças.

Eis, em resumo, os temas dos doze contos criados por Osório: o dever da generosidade para com os pobres ( “Surpresas de Natal”, “O engeitado” e quase todos); o nacionalismo, o amor indiscutível à pátria (“O jardim de Jorge” e “Tristezas de Jorge”); a existência indiscutível do amor materno (“Mães” e quase todos); os perigos em não escutar os mais velhos e os malefícios de experimentar (“ Jerônimo”, “Ainda o Jerônimo” entre outros); o amor aos animais ( “Ainda o Jerônimo”); o amor indiscutível entre irmãos (“Companheiros”); os maleficíos da mesquinhez e do ciúme (“Como Izabel”); a noção de que nem todos os pobres são inferiores (“O engeitado”); a aceitação incontestável dos valores sociais e morais vigentes (todos) e a sabedoria indiscutível dos adultos (todos).

Outros três aspectos dos contos criados por Castro Osório merecem ser destacados: a pobreza apresentada ideológicamente como “natural”, verdadeiro pano de fundo para a encenação da elite; a presença, sem exceção, de personagens infantis (o que implica na existência de um nítido “universo infantil” ); e ainda o “realismo”: todos os contos pretendem descrever e referir-se ao que “realmente” aconteceu - sem margem para qualquer dúvida -, descartam a existência do desconhecido e da ambivalência e, portanto, apresentam a

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“ realidade” como algo nítido, lógico (e monológico), mensurável, coerente, consensual e absolutamente palpável, ainda infelizmente desconhecida pelas crianças, mas “amplamente dominada” pelos adultos (!).

Estas caracteríticas, ligadas a concepções que pretendem moldar pessoas às regras de conduta preconizadas pelo sistema oficial vigente; que enxergam a infância (e, de outro lado, o mundo adulto) como uma faixa etária homogênea composta por indivíduos extremamente semelhantes e que, ainda, consideram a existência de um “universo” infantil” em oposição a um “universo adulto” poderiam ter como patrono Procusto, o salteador mitológico que

“...não contente em despojar os viajantes, obrigava-os a deitar-se num leito de ferro e cortava-lhes os pés quando excediam o tamanho deste, ou esticava-os com cordas quando o não atingiam. Foi morto por Teseu que lhe aplicou o mesmo suplício.” 363

Ainda neste bloco, optamos, muito genericamente, por dividir os trinta contos populares recontados por Castro Osório em três grupos: a. utilitários: os que principalmente pretendem ser instrumento de algum tipo de ensino ou lição moral; b. ficcionais: os que, motivados esteticamente, pretendem principalmente contar uma história e c. mistos: os que apresentam estes dois elementos combinados.

Comentamos alguns dos vinte e um contos do grupo descrito como ficcional, na verdade, o que interessa diretamente ao âmbito da pesquisa.

Com eles, penetramos num universo onde a questão das diferenças entre crianças e adultos não se coloca; onde as personagens, genéricas, na verdade, são jovens adultos em busca de sua origem, do auto-conhecimento ou da identidade; em busca do amor (do parceiro amoroso) e do casamento; e em busca de uma situação social e financeira estável.

Os contos abordam ainda inúmeros outros temas, todos, inclusive os três primeiros, sempre atuando entrelaçadamente. Alguns deles: o recorrente a luta do novo contra o velho; a existência (e a convivência) de forças mágicas e desconhecidas; a existência de mundos utópicos; a solidariedade; inúmeras metamorfoses e personificações etc.

Todos os temas e imagens, como se vê e como nem poderia deixar de ser, considerando

sua condição de conto popular, estão ligados às mais arcaicas tradições e são tratados sem utilitarismo, ou seja, objetivamente falando não ensinam nada nem dão nenhum tipo de informação contextualizada. Não se aprende lendo as histórias recontadas por Ana Osório: medita-se e especula-se sobre como é grande, intrigante, poética, dramática, alegre, triste, paradoxal, rica, inesperada, sublime, imponderável e complexa a vida e o mundo.

Pode-se dizer também que todas as personagens dos contos assinalados, como de praxe nos contos populares, têm características e agem de forma relativamente neutra e emblemática,

363 Dicionário Prático Ilustrado. Porto, Lello & Irmãos, 1960.

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atuando em tempos e lugares vagos e indefinidos, possibilitando, desta forma, a identificação da maioria dos ouvintes ou leitores. Além disso, movimentam-se não orientadas por leis abstratas, gerais, imparciais e consensuais de comportamento ou relativas a alguma conjuntura social específica, mas sim através de uma ética construída a partir do ponto de vista e dos interesses particulares da personagem: a moral ingênua definida por Jolles. Se tivéssemos que sintetizar, diríamos que um grande ponto comum une todos os heróis do conto popular: a busca de própria felicidade. Por outro lado, ao extrapolar para sua vida, indireta, parcial e subjetivamente, as façanhas e desafios enfrentados pelo herói, o leitor (=ouvinte) procura enxergar melhor a si mesmo e a seu próprio percurso de vida.

Nos contos populares recontados por Castro Osório, note-se, a pobreza não é apresentada como um pano de fundo “natural”. Jovens camponeses e filhas de pescadores lutam, vencem desafios e conseguem modificar e renovar suas vidas.

Vale a pena mencionar, uma vez mais, alguns outros temas encontrados nos referidos contos: 1) o humor, a zombaria, a ironia, a paródia, a anedota, a comédia, o riso como solução (“A feia que se faz bonita”, “História da Machadinha”, “Os figos maravilhosos”, “ Franganito ); 2) a busca da felicidade pessoal e do prazer (todos, ao contrário dos contos Alma Infantil onde o que se busca é sempre a norma comportamental, a ação bem aceita socialmente, o “politicamente correto”, independente de anseios individuais.); 3) a complexidade dos relacionamentos afetivos (“A padeirinha”, “História Maravilhosa do princípe Urso Doce de Laranja”, “História do príncipe Luís” entre muitos outros.); 4) o adultério (“História do príncipe Luis”, “ História do Armador”, entre outros); 5) a disputa entre mãe e filha, madastra e enteada ou entre fêmeas (“História do Príncipe Encantado no Palácio de Ferro no Reino da Escuridão” , “História de Linda-a-Linda” entre muitos outros.); 6) disputa entre irmãos (“ História do príncipe Luís”, “ O tio Novelo”, “ Os figos maravilhosos ” entre muitos outros.); 7) a existência da maldade humana, da violência, da morte ( “A princesa da Áustria”, “ O príncipe Luís”, “A princesa das pedras lindas” entre muitos outros.); 8) a depressão emocional ( “O que é a felicidade”, classificado por nós como tipo c., mas com tema, a nosso ver típico de b., “A feia que se faz bonita”, “As três cidras do amor”, entre outros.); 9) a paixão, a loucura, o amor, a amizade, a compreensão, o egoísmo, a mentira, o ciúme, a miséria, a vingança, o ódio, a ambição, o orgulho, a prepotência - sentimentos humanos profundos e genéricos (quase todos); 10) o incesto (claramente em “A princesa da Áustria”, mas também insinuado em “A princesa das pedras lindas”); 11) a personificação (“A história maravilhosa do príncipe urso Doce de Laranja”; “O canudo mágico”, “As três cidras do amor”, “ O casamento do pintainho”, “ Franganito”, “Os irmãos” entre muitos outros.); 12) a sexualidade (“História do príncipe Luís” etc.); 13) o ardil e a astúcia (“História do príncipe Luís”, “História do Armador”, “Os figos maravilhosos ”, “A princesa das pedras lindas” e muitos outros).

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A partir desta etapa da pesquisa pudemos constatar uma interessante dicotomia. De textos escritos pelo mesmo autor, na mesma época, dirigidos a um mesmo público (infantil), surgem duas vertentes bastante nítidas:

1) uma utilitária, carregada de lições morais, ligada às aceitação das regras sociais vigentes e oficiais ( portanto, conservadora por princípio) e à concepção de um certo “universo infantil” (e da indiscutível sabedoria dos adultos) abordando temas específicos deste universo, e outra, que 2) pretende, concomitantemente, distrair através da ficção e especular sobre a existência; é impregnada por uma concepção de mundo ligada à cultura popular e, na verdade, dirige-se às pessoas de um modo geral (C.f. a idéia de cultura intermediária), independentemente de sua faixa etária, nível social etc. Prova disso são os temas que aborda.

Note-se que, a primeira vertente contém lições que necessitam periodicamente de atualização: como as informações e o conhecimento, a visão do que seja moral, do que sejam bons e maus costumes, o “certo” e o ‘errado”, o funcionamento da estrutura e dos papéis familiares, as regras de convivência, questões políticas como o nacionalismo e outras, mudam com o passar do tempo.

Os temas populares da segunda vertente, a busca do auto-conhecimento e da identidade, a busca do parceiro amoroso, a busca da fortuna, a luta do novo contra o velho, a existência de fatores desconhecidos, o imensurável, a paixão, o sublime, o pitoresco, o cômico, a fantasia, o homem diante da morte, o ardil etc., temas diretamente ligados à condição humana, estão presentes em qualquer época, e, na verdade, fazem parte do repertório tratado usualmente pela literatura.

Vale ressaltar ainda a diferença entre a “ficção” tímida, higiênica, lógica e realista apresentada pelos contos criados por Castro Osório e a “ficção” riquíssima e enraizada em imagens e motivos arcaicos e existenciais, dos contos recontados pela mesma autora.

Há, na verdade, a nosso ver, em que pese serem destinados ao mesmo público, um único ponto comum entre os contos criados e os contos recontados por Ana de Castro Osório: sua condição de serem construídos através de uma linguagem que pretende necessaria e assumidamente atingir a platéia.

7.3 Sobre nossa proposta classificatória

Iniciamos a última etapa de nossa pesquisa, propondo, ainda que precariamente, uma classificação provisória, que naturalmente precisará ser aperfeiçoada e melhor detalhada, dos inúmeros tipos de obras produzidas atualmente pela indústria editorial tendo em vista o público infantil. Sem ela, não seria possível determinar com clareza os contornos de nosso objeto de estudos.

Dividimos, em resumo, a imensa massa de livros produzidos em dois grandes grupos: de um lado, os didáticos e paradidáticos e de outro, os de literatura infantil.

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Os primeiros seriam aqueles que, em graus diferentes, apresentam como principal objetivo informar o leitor. Estes livros utilitários são denotativos e monológicos por princípio e carregam em seu bojo informações, mensagens nítidas, unívocas, conclusivas e objetivas, que devem, necessariamente, atingir o leitor. Isso significa que, após sua leitura, todos os leitores, em tese, deveriam chegar, basicamente, às mesmas e únicas constatações

No extremo oposto, encontram-se os livros de literatura infantil. Para definí-los com exatidão precisaríamos definir a própria literatura. Não temos essa presunção pois evidentemente o assunto, além de ultrapassar os limites de nossa reflexão crítica, é amplo e controverso, tema de inúmeras e por vezes antagônicas concepções estéticas e epistemológicas implicando na definição do que seriam a arte e o discurso artístico, afinal, entre outros aspectos, a literatura é a arte feita através de palavras.

Mesmo considerando as inúmeras dificuldades conceituais, julgamos ser possível enumerar, ainda que precariamente, alguns pontos que, atuando concomitantemente ou não, seriam, em termos, consensualmente, peculiares à literatura de um modo geral e também à literatura infantil: a motivação estética; a utilização da ficção em oposição ao factual (a verdade inventada em oposição a verdade ocorrida); a utilização do discurso poético (visto aqui de forma ampla como um discurso pessoal, subjetivo, conotativo, metafórico e lúdico por princípio, elaborado tendo em vista, acima de tudo, seu resultado estético); a tendência à conotação e a plurissignificação; o não utilitarismo (no sentido de que seu principal objetivo é a motivação e a fruição estética); a fruição estética (ato profundamente subjetivo, difícil de definir, mas que, a nosso ver, poderia ser ligado a um certo diálogo interiorizado e afetivo, ocorrido no interior do receptor, entre a contemplação, a razão, a intuição e as concepções de vida e de mundo individuais, entre outros fatores); a proposição de um ponto de vista subjetivo, afetivo e particular sobre a vida e o mundo em oposição a um ponto de vista objetivo, racional, consensual e geral; vínculos com categorias tais como o trágico (mesmo na literatura infantil: por exemplo “A primeira só” de Marina Colasanti; “Uma mesa é uma mesa” de Peter Bichsel; inúmeras obras de Lygia Bojunga Nunes como Tchau e Seis vezes Lucas; Dias difíceis de

Fanny Abramovich, entre outras.), o lírico, o épico (na literatura infantil: Pinóquio, Xisto, O homem

que soltava pum etc.), o cômico, o sublime, o maravilhoso, o paradoxal, o desconhecido, o imponderável, a analogia, a ambigüidade, a relatividade, o belo, o prazer, o humor etc.

Apesar de não conclusivos e precariamente organizados, consideramos os ítens enumerados suficientes para, indutivamente, diferenciar livros de literatura (artísticos, por natureza) dos livros didáticos (científicos, por natureza).

Em certo sentido, livros didáticos e paradidáticos são sempre escritos por professores ou autores que se colocam no papel de ensinar e que, portanto, teoricamente, sabem mais do que o leitor, dominam um conhecimento organizado e pretendem transmití-lo.

Na literatura, seja ela infantil ou não, encontramos autores que, através da prosa e da poesia, estão invariavelmente partindo de sua concepção pessoal e particular (portanto sem pretender ser geral e consensual) da vida e do mundo; que revelam suas impressões, suas

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perplexidades, suas dúvidas; que examinam os assuntos do ponto de vista afetivo, intuitivo e subjetivo; que assumem e valorizam sua parcialidade diante dos fatos; que tanto abordando assuntos objetivos (políticos, sociais, históricos por ex.) ou subjetivos (temas existenciais, as paixões humanas, a dupla existência da verdade, a luta do novo contra o velho etc.) sempre o fazem a partir de um prisma eminentemente afetivo e pessoal.

Não é possível, portanto, falar em lições, pelo menos em lições objetivas, fundadas em dados científicos, consensuais e oficiais, quando se aborda a literatura. Naturalmente, justo por tratar dos assuntos através do ponto de vista particular e subjetivo, pode-se meditar e especular e até ‘aprender’ muita coisa através dela. A riqueza dos temas apontados por nós são suficientes para demonstrar isso. Trata-se porém de um aprendizado pessoal, subjetivo e, num certo sentido, intransferível. Ressalte-se que diante de uma obra literária, é aceitável e até desejável que diferentes leitores cheguem a diferentes leituras e constatações. Para muitos, quanto maior o teor plurissignificativo de um texto, maior o seu valor enquanto obra de arte. “Grande literatura” na visão de Ezra Pound

“é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível.” 364

Por outro lado, quanto aos assuntos e temas tratados pela literatura, vale a pena lembrar, mais uma vez, as palavras de P. J. Stahl: ”a ciência explica o relógio, mas ainda não conseguir explicar o relojoeiro.”

Neste sentido, um dos temas essenciais de toda a literatura, independentemente de faixas etárias, estaria sempre e sempre relacionado ao relojoeiro, representado através da saga da personagem, vista pelo âmbito de seus conteúdos emocionais e existenciais, que, invariavelmente, são paradoxais: afinal, tal como as pessoas de carne e osso, personagens estão sempre em mutação pois envelhecem; mudam de opinião; passam por experiências modificadoras; têm particularidades; apaixonam-se; são acometidas de dúvidas e perplexidades (éticas, entre outras); estão sujeitas ao acaso e a situações contextuais (políticas, culturais, históricas, geográficas etc.) fora de seu contrôle etc.

Enquanto os livros didáticos são, em geral, claramente identificáveis, nem sempre é possível distinguir os limites entre as obras paradidáticas e as de literatura infantil. São casos nítidos de paradidatismo os inúmeros livros que, utilizando a ficção e a linguagem poética, pretendem ensinar (e não especular motivados esteticamente), por exemplo, ecologia, educação sexual, noções básicas de filosofia, as soluções para a desigualdade social, os direitos das minorias, a emancipação feminina, como são formadas as cidades, como se faz uma horta, como não ter medo de dentistas, receitas de fazer pão, as diferenças entre os bichos domésticos e os selvagens, a questão indígena etc.

364 POUND, Ezra. ABC da Literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes, São Paulo, Cultrix, 1970, p. 32

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Temos porém trabalhos onde o interesse nítido de ensinar coisas palpáveis existe mas é suplantado pela imaginação e a poesia fértil e original do autor. A riqueza das aventuras, a alegria, a energia, o lirismo, o imaginário, os inúmeros temas existenciais e míticos de Pinóquio superam em muito, a nosso ver, suas numerosas e desatualizadas lições de moral e bons costumes, fazendo dessa obra, não um mero suporte de lições morais como são os contos de autoria de Ana de Castro Osório, entre tantos e tantos outros, mas um verdadeiro clássico da literatura infantil.

A obra de Monteiro Lobato para crianças apresenta, como vimos, sempre em nossa leitura, situação semelhante. Convivem paradoxalmente, nas mesmas páginas, lições sobre História, Geografia, Gramática, Física, Mitologia etc. algumas hoje completamente desatualizadas, lado a lado a um universo absolutamente original e mágico, a personagens antológicas como o Visconde de Sabugosa entre outros; ao contato com a fantasia e com o maravilhoso (portanto com a possibilidade da existência do imensurável e do desconhecido) e inúmeras aventuras (ficcionais e não utilitárias), sem falar na presença onipresente da boneca de pano Emília, personagem que carrega dentro de si a força regeneradora ligada à infância e ao mesmo tempo ao novo, ao imensurável, à relatividade das coisas, à alegria e ao riso destronador e incontrolável, ao sonho, à ambigüidade, ao incompreensível, à moral ingênua, em outras palavras, a um sem número de vestígios da arcaica regeneração periódica do mundo, portanto, dos contos e tradições populares.

Emília pertence à mesma galeria de personagens criativos, inesperados, transgressores e libertários composta por Pinóquio e Peter Pan da qual, sem o mesmo vínculo com a magia e com o maravilhoso, marca, note-se, do nosso tempo, também fazem parte Juca e Chico, João Sem Medo, Xisto, Tampinha, Alice, Raquel, os velhotes de Bichsel, o Menino Maluquinho, João do Pum, Max e tantas outras que, de uma forma ou de outra, pretendem mudar o mundo, representam o novo e, se agem incompreensívelmente, o fazem apenas porque não podem ser compreendidos a partir do conhecimento vigente. Tal como as crianças, elas ainda não participam (algumas, como Peter, os velhotes de Bichsel e mesmo Raquel, se recusam a participar) do mundo atual mas, sim, estão sintonizadas com o que está para ser feito. Tais personagens, ao que parece, pretendem nos lembrar que a realidade está em permanente estado de elaboração e de transformação. Elas representam e são as artífices do mundo da semente, do mundo sem contorno, utópico, que ainda não é mas, inevitavelmente, um dia será.

Note-se ainda, mais uma vez, que obras como Peter Pan, As aventuras de Alice no País

das Maravilhas, Aventuras de João Sem Medo, A bolsa amarela, os referidos contos de Marina Colasanti e Peter Bichsel, Tampinha, O homem que soltava pum etc. não pretendem, objetivamente, ensinar absolutamente nada, mas sim, através de uma forte motivação (=apelo) estética, especular sobre assuntos relativos à existência.

Evidentemente, é preciso que se diga, toda obra literária está, de uma forma ou de outra, engajada politicamente, é caudatária, queiramos ou não, de uma determinada concepção ideológica da vida e do mundo. Além disso, pode e deve abordar e discutir as questões relativas

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ao seu tempo, mas nunca de forma utilitária, didática, doutrinária, informativa, colocando uma mensagem objetiva, um ponto de vista apresentado como consensual, em suma, a lição, acima do ponto de vista particular e parcial, da impressão afetiva da vida e do mundo, da analogia, da metáfora, da preocupação estética e da especulação sempre em oposição à lição, por mais politicamente engajada que seja.

7.4 Sobre um certo “universo infantil”

Classificações usuais como “infantil” e “juvenil”, podem, naturalmente, ser úteis em determinadas situações, mas parecem bastante imprecisas. “Infantil” indica crianças. Mas, que crianças? De três, cinco, sete, nove ou onze anos? Alfabetizadas ou não? É possível tratar uma pessoa de sete da mesma forma com que tratamos uma de nove? Um livro para uma criança de oito anos agradaria a uma de dez?

Questionamentos deste tipo têm, na verdade, cabimento? Para alguns, pessoas de onze anos já não seriam crianças mas sim adolescentes, portanto

caracterizáveis como “juvenis”. Mas o que seria “juvenil”? Jovens de onze, de treze ou de quinze? É possível tratar um jovem de onze da mesma forma com que tratamos um de quinze? Quais os pontos comuns e as diferenças entre um jovem de treze e uma criança de nove anos? Seriam duas pessoas de treze anos iguais?

Considerando a literatura, a motivação estética, o discurso ficcional, poético e não utilitário, faz sentido falar em livros dirigidos a determinadas faixas etárias? Seria válido dividir a complexa realidade humana, matéria prima da arte, em grupos de idade? (Para determinar graus de escolaridade talvez sim, mas para falar em experiência existencial?) Teriam essas faixas características tão nítidas, delimitadas e específicas assim? Nesse caso, talvez não devêssemos falar em “ literatura infantil”, mas sim literaturas infantis e juvenis com endereços certos, cada uma trazendo em seu bojo os questionamentos e peculiaridades de sua precisa e correspondente faixa etária.

Têm sentido, repetimos, questões como estas? No caso dos livros didáticos, a divisão dos assuntos em faixas etárias parece ser um

procedimento bastante aceitável. Pensamos em determinada matéria com contornos nítidos, dividida em tantos anos letivos, transmitida de forma objetiva a indivíduos com, mais ou menos, as mesmas características e no mesmo estágio físico e neurológico.

Considerando a existência de livros de literatura infantil, contendo um discurso subjetivo e poético, não didático por princípio, o mesmo procedimento seria válido?

Vale lembrar aqui, como fazem com acerto Marisa Lajolo e Regina Zilberman� , o contexto mercadológico em que os livros para crianças são produzidos. Por esse viés, faz sentido, evidentemente, determinar grupos etários, na verdade fatias de mercado. Através delas, a indústria editorial busca vislumbrar com mais clareza os segmentos do mercado onde pretende � C.f. por ex. ZILBERMAN, R. E LAJOLO, M. Literatura Infantil Brasileira - História & Histórias. São Paulo, Ática, 1984.

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colocar seus produtos. Trata-se, em todo caso, de assunto comercial, nada tendo a ver, portanto, com qualquer discussão que privilegie a literatura.

Ressalte-se que os reflexos do “mercado” em toda a produção cultural atual, cinema, teatro, música, artes plásticas e literatura, inclusive a infantil, são cada vez mais poderosos. O grande paradigma, ao que parece, é, infelizmente, produzir o que o “mercado quer” mesmo que tal entidade, “o mercado”, abstrata e redutora por princípio, queira apenas a repetição e o

estereótipo. Tende a desaparecer, nesse contexto, o espaço para o novo ponto de vista�� , para o original, para o estranhamento, para o que ainda não havia sido pensado. A sociedade de consumo tenta preconizar, por outro lado, que a qualidade de uma obra deve ser avaliada por sua vendagem, ou que vida não tem sentido se não tivermos tais e tais produtos, ou tal e tal padrão econômico de vida (!). Mesmo considerando sua importância e influência, tal fenômeno, com contornos éticos, políticos e econômicos, transcende nosso objeto de trabalho.

A visão que temos hoje do que seja criança naturalmente é ligada ao nosso determinado contexto histórico, social, científico (epistemológico) e cultural. No momento atual, que tem pressuposto um “universo infantil” líquido e certo (e um “universo adulto” idem), estamos habituados a conviver com produtos culturais feitos especificamente para crianças. Em outras épocas, como vimos, existiram outras crianças, tratadas de outras formas, ocupando outros espaços dentro da família e da sociedade. No período medieval, por exemplo, crianças e adultos sentavam-se lado a lado e juntos deliciavam-se com as mesmas histórias, participavam das mesmas festas e, pelo menos em tese, estavam sintonizados com as mesmas inquietações.

Voltamos à questão, aparentemente ingênua. O quê são crianças? Seria esse conceito, este estágio da existência, uma coisa tão cristalina, consensual e nítida assim? O que são adultos? É possível generalizar esses termos com tamanha segurança?

Vejamos o que afirma a advogada Lia Junqueira, fundadora do Movimento em Defesa do Menor, em sua obra Abandonados, referindo-se à vida de meninos moradores de rua:

“ De um lado a rua acena com a liberdade: não existe horário, é um lugar lúdico. Por outro lado, é extremamente perigoso. São crianças e adultos ao (mesmo tempo esses seres humanos que encontramos. Não podemos considerá-las crianças, porque não tiveram oportunidade para tanto, não exercitaprópria sobrevivência. Nunca tiveram quem os protegesse. Já na saída da primeira infância começaram a assumir atitudes de adultos. Quando poderiam estar brincando protegidas, eram obrigadas a proteger um irmão menor que elas. Porém não podemos considerá-las adultos, porque seu desenvolvimento físico não é o de um adulto. O que elas são, depende mais do referencial de cada um que com elas conversa. Se quiser encontrar a criança ela está inteirinha ali. Também se quiser encontrar o adulto, não tenha dúvida que se mostrará por inteiro. ” 365 �� Aquele que o “mercado” nunca vislumbrou e, mesmo assim, por vezes, pode ser definitivamente aceito e incorporado.

365 JUNQUEIRA, Lia. Abandonados. São Paulo, Ícone, 1986, p. 77.

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É possível afirmar, ao nível da experiência psico-existencial, ou seja, a soma das características e das vivências psicológicas do indivíduo somada às suas experiências pessoais, sociais, culturais, físicas, metafísicas etc., que uma criança favelada que trabalha desde os cinco anos (ou menos!) vendendo doce ou pedindo esmola na rua é equivalente a uma criança de classe média, imersa num cotidiano economicamente estável, levando uma vida familiar de casa, escola e brincadeiras? Ambas, entretanto, têm cinco anos.

É possível dizer que uma criança filha de pais separados, órfã, ou vítima de algum tipo de abuso ou violência psicológica, física ou social, tenha, diante de um texto, a mesma reação que, por exemplo, uma outra da mesma classe social, mas sem as mesmas experiências?

É possível dizer que uma criança moradora de uma metrópole tenha a mesma visão de mundo de outra, habitante de uma cidade de 5.000 habitantes, com praça principal, uma organização social e urbana facilmente compreensível e onde todos se conhecem?

Talvez seja razoável separar crianças da mesma faixa etária através de seus aspectos orgânicos e fisiológicos. Crianças de sete anos, com o mesmo nível de alimentação, costumam apresentar certas características motoras semelhantes. É possível dizer o mesmo quanto aos aspectos psíquicos, existenciais e emocionais? E quanto às diferenças culturais? É possivel falar em crianças sem considerar estes aspectos? Estamos falando de conceitos abstratos, de estatísticas, de um modelo reduzido, genérico e paradigmático denominado “criança” ou o quê?

E quanto aos adultos? Caldas Aulete é vago no que diz respeito ao assunto. Segundo o verbete, o adjetivo “adulto” significa

“já crescido, que chegou à idade vigorosa; que está no período da vida entre a adolescência e a velhice.” 366

Será válido afirmar ou pressupor que adultos componham uma massa homogênea de indivíduos, com mais ou menos o mesmo comportamento e as mesmas reações diante da realidade? Se é que seja possível raciocinar nesses termos, quais seriam de fato as diferenças entre adultos e crianças e quais seriam as semelhanças? Na teoria, adultos são, em resumo, indivíduos independentes e racionais, com auto-conhecimento, conscientes, capazes de se auto-sustentar, emocionalmente auto-suficientes, que têm auto-controle, fisicamente maduros, equilibrados e disciplinados, que têm noção de limites, conhecem e respeitam as leis e as regras sociais, sabem distinguir a realidade da fantasia, sabem o que querem, compreendem a realidade, têm “experiência” etc. Crianças, em tese, seriam o oposto disto.

É possível pensar a partir de pressupostos tão precários? Tudo isso, entretanto, costuma estar subentendido quando falamos em literatura “infantil”.

Não gostaríamos, como dissemos, de transmitir uma sensação de ingenuidade. Evidentemente, adultos apresentam um certo estágio de amadurecimento físiológico, costumam

366 AULETE, CALDAS. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa 4ª ed. Rio de Janeiro, Editora Delta, 1958.

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ter vida sexual, costumam ser independentes, auto-suficientes com relação ao trabalho e ao auto-sustento, em geral são capazes de mentalmente operar com categorias abstratas etc.

São culturais, entretanto, muitas das características etárias que reputamos como “naturais”. Crianças absolutamente “infantis” ou seja, distanciadas e apartadas do mundo adulto, mundo do trabalho, da sexualidade etc. convivem, numa mesma localidade e época, hoje por exemplo, com crianças que trabalham e têm vida sexual. Basta examinar a vida numa favela.

Ao levantarmos esses temas, não pretendemos, como dissemos, defender o trabalho infantil nem a iniciação sexual precoce, mas, sim, apontar certos recursos que estão virtual e potencialmente presentes na infância.

Emocional, intuiva ou existencialmente falando, é razoável, a nosso ver, fazer diversas aproximações entre adultos e crianças (sempre perguntando, que crianças?, que adultos?): 1) ambos sentem dor física; 2) ambos, nem sempre em graus diferentes, têm dúvidas com relação à “realidade”; 3) ambos estão em busca, conscientemente ou não, de um certo grau de auto-conhecimento; 4) ambos são passíveis de sentimentos como o ciúme, a vaidade, o ódio, o amor, a tristeza ou alegria; 5) ambos podem agir egoísticamente; 6) ambos são passíveis de se apaixonar 7) ambos precisam de alimentação regular; 8) ambos sentem prazer com algumas coisas e desprazer com outras; 9) ambos apreciam conforto e segurança; 10) ambos estão em permanente processo de transformação; 11) ambos obedecem a instintos como o de auto-defesa entre muitos outros; 12) ambos recorrem a linguagens orais, gestuais etc; 13) ambos são sexuados; 14) ambos podem adoecer; 15) ambos são mortais; 16) necessitam do contato físico, sexo-afetivo, em graus diferentes, talvez, não importa; 17) ambos são, em princípio, seres sociais. Existem muitos outros pontos comuns entre adultos e crianças: quase sempre, por exemplo, estão predispostos ao lúdico e à representação, num sentido amplo. Conscientemente ou não, sabem, desde a mais tenra idade, que todo o aprendizado pressupõe, invariavelmente, erros e tombos.

Poderíamos traçar um paralelo entre as concepções que presumem a existência de universos distintos para adultos e crianças e outras, nem tão antigas, que supunham, por ex., universos diferentes para homens e mulheres. Como acontece entre crianças e adultos, são óbvias as diferenças entre homens e mulheres. Se hoje vivemos num tempo que, cada vez mais, tem valorizado as inúmeras semelhanças entre os sexos, é curioso lembrar um pequeno e significativo episódio, contado por Boris Fausto em sua História de Brasil (C.f. p. 251). Quando da promulgação do voto direto, em 1891, apesar de a lei não entrar em detalhes sobre o assunto, ficou inferido por toda a sociedade, sem maiores discussões, “naturalmente”, que o direito a voto seria restrito aos cidadãos do sexo masculino!

Vale também lembrar as concepções que aceitavam com naturalidade a existência da escravidão; ou aquelas que determinavam com absoluta segurança as diferenças entre civilizados e selvagens...

Trata-se, realmente, de um desafio separar o natural do cultural.

306

Resumindo: se de fato, óbvia e indiscutivelmente, existem diferenças entre adultos e crianças, separá-los em dois mundos distintos com contornos nítidos parece-nos uma idealização precária e redutiva.

Presumir, por outro lado, que houve, pura e simplesmente, uma “evolução” entre, por exemplo, a criança medieval, trabalhando desde cedo e levando a vida como um pequeno adulto, e a criança atual protegida dentro de casa e na escola, parece-nos também uma simplificação do problema. Considerando nosso país, por exemplo, a maioria das crianças continua vivendo numa situação próxima da medieval, trabalhando desde cedo, muita vezes sem escola. Além disso, apesar de todos os inúmeros e inegáveis benefícios da escola, da organização do conhecimento, da psicologia, da psicopedagogia etc., a instituição de um artificial e genérico “universo infantil” em vez de educar e preteger, tem, muitas vezes, infantilizado e afastado o jovem indivíduo da vida mesmo. Rapazes de mais de vinte anos, educados e diplomados, pertencentes às elites, sem noção do que seja o trabalho ou a cidadania, dependentes ainda dos pais, brincando de pilotos de corridas, carentes de senso crítico e de um posicionamento político, mergulhados na sociedade de consumo, usuários de drogas ou cometendo atos de vandalismo, alienados, em suma, revelam problemas que, a nosso ver, entre outros fatores, talvez estejam ligados justamente à essa dicotomia. O assunto é vasto e polêmico. Ainda em 1681, um certo Marechal de Cailliére, já citado por nós, falava o seguinte, com relação à organização do processo de escolaridade:

“Não basta conhecer a ciência ensinada no colégio. Há outra ciência que nos ensina como devemos nos servir daquela (...) uma ciência que não fala nem grego nem latim, mas que nos mostra como utilizar essas línguas. Encontramo-la nos palácios, entre os príncipes e os grandes senhores. Ela esconde-se também nas ruelas de mulheres, deleita-se entre as gentes de guerra e não despreza os comerciantes, os lavradores ou os artesões. Ela tem por guia a prudência e, como doutrinas, as conversações e a experiência das coisas” 367

Ainda sobre assunto, segundo Burke

“A ética dos reformadores se fundava na decência, diligência, gravidade, modéstia, ordem, prudência, razão, auto-controle, sobriedade e frugalidade, ou, para empregar uma expressão celebrizada por Max Weber, “ascetismo mundano”. (...) A ética dos reformadores estava em conflito com uma ética tradicional (...) que envolvia uma ênfase maior nos valores da generosidade e espontaneidade e uma maior tolerância em relação à desordem.” 368

Mesmo não podendo ser conclusivo diante de tema tão amplo e controverso, julgamos ser essencial levantá-lo sempre que a literatura infantil seja o objeto estudado.

367 Op. cit. p. 242. 368 Op. cit. p. 237.

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7.5 Sobre a literatura infantil

No último bloco de nossa pesquisa, examinanos dois grupos de obras da literatura infantil. O primeiro, composto de nove livros, formado por Pinóquio, Aventuras de João Sem

Medo, Aventuras de Xisto, História meio ao contrário, Uma idéia toda azul, Os pregadores

do Rei João, A Fada-Sempre Viva e a Galinha-fada e Tampinha, contém histórias, a nosso ver, com evidentes vestígios dos contos populares.

O segundo grupo, composto de nove livros, é formado por Juca e Chico, As aventuras de

Alice no País das Maravilhas, Peter Pan, Contos para crianças, A bolsa amarela, O menino

maluquinho, Ou isto ou aquilo, O Homem que soltava pum e Lá onde ficam as coisas

selvagens, obras, em princípio, sem vestígios evidentes dos contos populares. Trata-se, como dissemos, de um conjunto reduzido e propositadamente heterogêneo, mas

bastante expressivo, composto de obras publicadas em épocas e países diferentes, sem elos aparentes entre os autores, todas tendo como ponto comum sua reconhecida qualidade e o fato de serem, em princípio, dirigidas ao público infantil.

Comentamos a paisagem composta pelo grupo de dezessete livros a partir, mais uma vez, da separação redutiva e arbitrária de seus aspectos temáticos e de linguagem, recurso artificial mas, por outro lado, simplificador e esclarecedor.

Iniciamos abordando os aspectos ligados à linguagem. Todas as obras, sem uma única exceção, e referimo-nos não só ao grupo de dezesete

livros mas também aos 42 contos de Ana de Castro Osório, ao que tudo indica, pretendem nitidamente atingir a platéia ou o leitor utilizando para isso um discurso marcado por uma certa impessoalidade (em oposição ao discurso particular, ao idioleto autoral), vocabulário popular e familiar, inúmeras fórmulas e figuras de linguagem, além de construções textuais enxutas. Em outras palavras, estão absolutamente sintonizadas com as categorias de adaptablidade às

circunstâncias, teatralidade e concisão adotadas por nós a partir das idéias de Paul Zumthor e já amplamente descritas.

Naturalmente, a impessoalidade a que nos referimos aumenta quando pensamos nos contos recontados por Castro Osório e diminui significativamente se pensarmos nos inúmeros autores citados. Há diferenças e marcas pessoais bastante evidentes entre os textos, por exemplo, de Barrie e Carroll ou entre os de Ana Maria Machado, José Gomes Ferreira, Lygia Bojunga, Ziraldo e Mário Prata.

Principalmente no caso dos textos mais longos, Peter Pan, Alice ou João Sem Medo, por exemplo, já não se pode falar na mesma concisão dos contos populares marcados pela oralidade e pela perspectiva de serem contados a viva voz para uma platéia. Ambos são basicamente textos para ser lidos e podem se dar ao luxo de recorrer a descrições detalhadas e longas e períodos construídos a partir de recursos sintáticos mais complexos.

Ainda com respeito ao grupo de dezessete obras assinalado, encontramos uma série de artifícios narrativos, tais como o narrador-personagem; a entrada em cena do autor mudando os

308

rumos da história (a metalepse - em Peter Pan e em Aventuras de João Sem Medo); a antecipação de eventos que só mais tarde ocorrerão (a prolepse - em Peter Pan); o monólogo

interior (em Alice ou em A bolsa amarela), a metalinguagem (vários), entre outros, recursos�, enfim, incomuns ou mesmo impensáveis considerando-se os contos populares e o contador de histórias.

Nada disso impede, a nosso ver, que se faça uma aproximação e uma sintonia entre a linguagem utilizada nos contos populares e naquela utilizada em obras de literatura infantil, pelo menos as que pudemos estudar nesta pesquisa. Há, em todas, clareza, tea-tralidade e concisão; há, principalmente, o interesse em ser compreendido pelo leitor.

Essa aproximação nos permite corroborar os comentários de Denise Escarpit, Ariès, e Burke, entre outros, sôbre a existência de uma identificação entre as manifestações ligadas à cultura popular e o “infantil”.

Por esse prisma, a linguagem concisa e familiar utilizada nos livros para crianças não teria tais características por se dirigir a pessoas despreparadas, ingênuas, ignorantes e inexperientes que precisam se aperfeiçoar etc. (pressuposto, como vimos, de uma certa concepção idealizante que fixa com nitidez o que sejam crianças e adultos), mas, sim, por pretenderem, pura e simplesmente, atingir o maior número possível de pessoas.

Referimo-nos, portanto, à existência de um tipo de discurso e de linguagem dirigidos a todas as pessoas independentemente de faixas etárias, níveis de experiência e classes sociais (C.f. a noção de cultura intermediária). Nele, por exemplo, o hermetismo, a utilização de palavras carregadas de conteúdo abstrato ou um tom autoral demasiadamente pessoal e original,

a ponto de dificultar a leitura, deveriam ser, por princípio, evitados.� Neste sentido, a utilização ou não de palavras consideradas, por exemplo, “impróprias”

para crianças, dependeria exclusivamente dos limites conjunturais, variáveis e mutantes impostos por cada contexto social em cada época, não havendo aí nada que se possa identificar � Um recurso como o flashback não foi encontrado nas obras estudadas, mas pode ser visto em inúmeros textos da literatura infantil. � Naturalmente, as concepções que vêem a obra literária (a obra de arte) como um organismo auto-referente, com vida própria independente de fatores externos como o público etc., nas palavras de Harold Osborne “a arte como criação autônoma“ ou “unidade orgânica” podem tornar-se incompatíveis com um discurso que tenha como condição sine qua non atingir sua platéia. Existiria realmente no mundo algo que pudesse ser classificado de “autônomo”? Por outro lado, existiria uma arte para crianças e outra para os adultos? (repetimos: que crianças?; que adultos?). No que diz respeito à literatura, aparentemente sim. Há textos complexos, densos, abordando temas e conceitos abstratos, utilizando vocabulário e soluções gramaticais incomuns, que temática e formalmente, são, realmente, indecifráveis para uma criança, ou, por outra, para um leitor iniciante. Os mesmo textos costumam ser inalcançáveis para boa parte dos adultos. Mas, e quando colocamos uma criança de sete anos diante de uma obra de Dürer, Monet, Magritte, Hopper, Picasso, Francis Bacon ou Lucien Freud? Ou quem sabe diante de uma instalação de Hélio Oiticica? Ou de um filme de Norman Mclaren, Buñuel, Fellini ou Ingmar Bergman? Ou diante de inúmeros textos, poéticos ou não, convencionalmente dirigidos ao público adulto. Referimo-nos aqui a determinados poemas de Manuel Bandeira, Carlos Drumond de Andrade e Murilo Mendes, por exemplo, ou a alguns contos de Garcia Marques (Candida Erendira e sua avó desalmada ou Doze contos peregrinos), Julio Cortazar (Bestiário) ou Oswaldo França Jr (As laranjas iguais). É possível dizer que uma criança (que criança? de 7 ou de 10?) não está a altura de fruir semelhantes obras? Em que nível? Formal ou temático? Por outro ângulo: como classificar esses vários usos e níveis da linguagem? Nem sempre, mas muitas vezes, como lembra ironicamente o psicanalista Frederick Pearls, um dos pais da Gestalt Terapia, um texto complicado tem várias finalidades: 1) dificultar a compreensão do leitor; 2) aumentar a auto estima do escritor; 3) tornar obscuros pontos que não estão bem esclarecidos.

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como uma regra fixa. Crianças, como vimos, em diferentes épocas ou contextos sociais, têm participado de formas bastante diversas da vida social. Vale lembrar Os Quatro Desejos de São

Martinho (C.f. a versão dessacralizada ou atualizada de Ana de Castro Osório), O Lai de

Guingamor, o Fabliau da Cocanha etc., textos compartilhados por adultos e crianças. Basta extrapolar também para as experiências de vida de um menino que vive, hoje, numa favela.

Os mesmo vestígios oriundos da cultura popular, a nosso ver, podem ser encontrados entre os enredos, motivos, enredos e imagens dos textos em questão.

Todas as obras, exceção feita a Pinóquio, ao contrário dos contos criados por Ana de Castro Osório ou das inúmeráveis obras por nós classificadas como paradidáticas, apresentam um narrador (e também um autor) que não se coloca ou evita colocar-se na posição de professor, no sentido de transmitir lições e informações, surgindo, ao contrário na condição de observador dos acontecimentos ou como um simples contador de histórias que se limita, às vezes surpreso, a relatar e descrever fatos particulares, emotivos, mágicos, afetivos e subjetivos que não podem ser classificados como informações. Há casos, por ex. A Bolsa Amarela, em que o narrador é a própria personagem.

Vale a pensa lembrar alguns assuntos apontados por nós no grupo de obras estudado, assuntos, diga-se de passagem, bastante distantes de um pretenso, redutivo e ideológico “universo infantil”. Entre eles, por exemplo: 1) a busca do auto-conhecimento e da identidade (Pinóquio, Peter Pan, A bolsa amarela entre muitos outros); 2) a existência de sentimentos humanos destrutivos por. ex. a inveja, o orgulho, o egoísmo (Pinóquio, Peter Pan, Aventuras

de João Sem Medo, A bolsa amarela entre muitos outros); 3) a existência de sentimentos humanos construtivos, por ex. o amor, a amizade, a solidariedade (quase todos); 4) a existência de forças desconhecidas e imensuráveis (Pinóquio, Peter Pan, Aventuras de Xisto entre outros); 5) a fantasia (Peter Pan, Aventuras de Alice no País das Maravilhas, O homem que

soltava pum e quase todos); 6) o lúdico (todos - nas obras criadas por Osório, nenhum!); 7) a motivação estética (todos); 8) o confronto com a dor física e com a morte (Juca e Chico,

Pinóquio, Peter Pan, Aventuras de João Sem Medo, o conto “A primeira só”, entre outros); 9) a ambigüidade e a relatividade das coisas (Aventuras de Alice no País das Maravilhas,

Peter Pan, Aventuras de João Sem Medo, Ou isto ou aquilo, A Fada-Sempre Viva e a

Galinha-Fada, entre outros); 10) personificações (quase todos); 11) o auxílio de animais mágicos (Pinóquio, Aventuras de Xisto, Peter Pan entre outros); 12) objetos e palavras mágicas (Aventuras de Xisto, Peter Pan, Tampinha entre outros); 13) a visita a países maravilhosos e utópicos (Pinóquio, Peter Pan, Alice no País das Maravilhas, Uma história

meio ao contrário, Os pregadores do Rei João, entre outros); 14) a utopia (Peter Pan, Alice

no País das Maravilhas, Uma história meio ao contrário); 15) mundos ou situações às avessas (Pinóquio, Peter Pan, Alice no País das Maravilhas, Aventuras de João Sem Medo,

310

Uma história meio ao contrário, o conto ” Uma mesa é uma mesa” etc.); 16) viagens mágicas (Peter Pan, Pinóquio, Lá onde as coisas selvagens ficam e muitos outros); 17) metamorfoses (Pinóquio, Aventuras de João Sem Medo, Aventuras de Alice no País das Maravilhas, entre outros); 18) o confronto entre a verdade e a mentira ou entre fantasia e a realidade (Pinóquio,

Aventuras de João Sem Medo, Aventuras de Alice no País das Maravilhas, Lá onde as coisas

selvagens ficam entre outros); 19) a utilização de nomes próprios compostos e que se auto-explicam (Pinóquio, Peter Pan, A bolsa amarela entre outros); 20) a alegria e o riso (Juca e

Chico, Peter Pan, O menino maluquinho, O homem que soltava pum e quase todos); 21) o grotesco (Juca e Chico, Peter Pan, Aventuras de João Sem Medo,O homem que soltava pum,

A Fada-Sempre Viva e a Galinha-Fada, Lá onde as coisas selvagens ficam, entre outros); 22) a discussão e crítica de valores aceitos socialmente (Peter Pan, Aventuras de Alice no País das

Maravilhas, Aventuras de João Sem Medo, A bolsa amarela, História meio ao contrário, os três contos de Bichsel entre outros); 23) a complexidade dos relacionamentos humanos (Peter

Pan, A bolsa amarela, Aventuras de João Sem Medo, o conto “A primeira só, entre outros); 24) a complexidade dos mecanismos e processos existenciais (Peter Pan, A bolsa amarela,

Aventuras de João Sem Medo, os contos de Bichsel e de Marina Colsanti entre outros); 25) a luta entre o egocentrismo e o reconhecimento do outro (Pinóquio, História meio ao contrário,

Peter Pan, O homem que soltava pum, o conto “ O homem que não queria saber mais nada de nada, o conto “A primeira só” entre outros); 26) o ardil (Juca e Chico, Peter Pan, Tampinha,

Aventuras de João Sem Medo, A bolsa amarela entre muitos outros); 27) a paródia (Aventuras

de João Sem Medo, História meio ao contrário entre outros); 28) a moral ingênua (todos); 29) o non-sense (principalmente em Aventuras de Alice no País das Maravilhas mas também em

Peter Pan, A Fada-Sempre Viva e a Galinha-Fada, O homem que soltava pum e nos contos de Peter Bichsel entre outros); 30) o recurso da fantasia para experimentar a verdade (Aventuras de João Sem Medo, Aventuras de Alice no País das Maravilhas, Aventuras de

João Sem Medo, História meio ao contrário, Peter Pan, O homem que soltava pum entre muitos outros); 31) a vida e mundo vistos de um ponto de vista inusitados (Aventuras de Alice

no País das Maravilhas, Aventuras de João Sem Medo, O homem que soltava pum, o conto “ Uma mesa é uma mesa” entre outros); 32) a depressão emocional (Peter Pan - a crise do capitão Gancho), A bolsa amarela, os contos de Peter Bichsel, os contos de Colasanti); 33) a loucura (Aventuras de João Sem Medo, Aventuras de Alice no País das Maravilhas, Peter

Pan e, particularmente, o conto “A primeira só” e os contos de Bichsel); 34) a busca do amor e do casamento (Tampinha, História meio ao contrário e, indiretamente, Peter Pan); 35) a busca ou conquista de uma situação social ou financeira estável (Pinóquio, Aventuras de Xisto,

Aventuras de João Sem Medo, O homem que soltava pum entre outros); 36) a violência (Pinóquio, Juca e Chico, Peter Pan, Aventuras de João Sem Medo, Aventuras de Xisto entre

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outros); 37) a transitoriedade e a passagem inexorável do tempo (particularmente Peter Pan e o conto “Uma idéia toda azul”); 38) o destronamento e a luta do novo contra o velho (em diferentes graus, todos); 39) a sedução (Peter Pan, Aventuras de João Sem Medo, Tampinha); 40) o final feliz (quase todos).

Tanto no que diz respeito à criança, semente natural e artífice do futuro (e do sonho) humano, quanto no que diz respeito ao homem do povo (visto do ponto de vista de um todo, a coletividade, em oposição ao aspecto particular, idiossincrático e individualista), desfechos que não tragam em seu bojo, mesmo que como sub-texto, o final feliz, a nosso ver, em princípio e levando-se em conta as exceções de praxe, não fazem sentido: “Os lobos uivam (alguns “ indivíduos” talvez fiquem pelo caminho) mas a caravana passa” ensina, invariavelmente, o ditado popular. Além disso, seria pretencioso ser pessimista com o futuro, uma vez que “o futuro”, diz o adágio, “ a Deus pertence” e, portanto, ninguém sabe. Para o individualista, ou seja, para o indivíduo que coloca os interesses pessoais acima dos coletivos, a morte, por outro lado, sempre representará o “fim” do mundo.

Quanto à presença marcante do tema da luta do novo contra o velho, remanescente, como vimos, de antigas tradições populares, e sempre ressaltada por nós, gostaríamos de fazer um comentário.

A nosso ver, as forças do novo parecem estar, por assim dizer, entre os muitos vetores que compõem essa paisagem complexa a que chamamos realidade. Sem perder de vista nosso objeto de trabalho, seja no âmbito, portanto, da literatura infantil, seja no âmbito do desenvolvimento humano, no relacionamento entre adultos, no choque entre gerações, na educação e formação de crianças e jovens, no relacionamento criança-adulto ou no estabelecimento do diálogo criança-sociedade, o superdimensionamento e a exacerbação e, na mesma medida, a repressão e a negação desse espaço agônico podem levar à delinquência, ao niilismo, à evasão e à criminalidade. Pelo contrário, a assimilação e o reconhecimento destas forças naturais, radiantes, positivas, imprescindíveis e regeneradoras por princípio (o que implica a convivência com o conflito), podem, acreditamos, contribuir para a geração do senso crítico e a participação original, construtiva e inovadora. Essas forças por vezes incompreensíveis são, justamente por serem transgressoras e inesperadas, portanto necessariamente conflituosas (seria possível criar sem transgredir?), fundamentais no estabelecimento de uma sociedade (e de uma literatura) que se pretenda humana.

Encontramos, portanto, nos 17 livros selecionados, temas amplos invariavelmente ligados a uma especulação sobre a praxis, o exercício da existência humana, como se vê, assuntos bastante diferentes, por exemplo, daqueles abordados nos contos criados por Ana de Castro Osório e também nos contemporâneos livros paradidáticos concebidos exclusivamente para crianças.

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São temas diferentes também, note-se, de numerosíssimos livros, talvez a maioria dos que são produzidos atualmente, que não podem ser considerados paradidáticos pela ausência de qualquer mensagem informativa ou doutrina ideológica (em que pese raramente discutirem o status quo sendo, em geral, bastante comprometidos e coniventes com a ideologia reinante), mas que, por partirem do pressuposto da existência de um nítido “universo infantil” (composto por crianças alegres, barulhentas, egoístas e inexperientes e por adultos sérios, sábios, imparciais, racionais e equilibrados) são, a nosso ver, limítrofes entre a literatura infantil e os livros-jogo: abordam invariavelmente pequenas aventuras, sempre protagonizadas por crianças ou turmas de crianças, com personagens e enredos estereotipados e previsíveis que raramente ultrapassam a ação da aventura em si. Vale notar que a “ fantasia” geralmente apresentada por estes trabalhos é absolutamente racional, higiência e abstrata, desvinculada de qualquer especulação sobre a existência (transitória, paradoxal e complexa por natureza) ou o desconhecido, portanto, sem raízes nas tradições populares.

Este “universo infantil” composto por seres lúdicos (a nosso ver, no pior sentido da palavra), irracionais e barulhentos, que, homogeneamente, passam a vida rindo, gritando e pulando freneticamente, como que acometidos de uma alegria que beira a imbecilidade; sem identidade individual; sem um momento de introspecção, de expressão emotiva, de contato humano verdadeiro, de perplexidade e seriedade, além de estar presente em muitos livros, tem também servido de base para a produção da maioria dos programas infantis veiculados pela televisão, com as raras exceções de praxe, anúncios de publicidade etc. São imagens que representam uma concepção, a nosso ver, “infantilizada” (no sentido da irrealidade, do estereótipo e da desumanização) do que seja a infância.

No plano temático, em todo caso, sem querer generalizar nem ser conclusivo, podemos confirmar também a existência de traços do conto popular em muitas e significativas obras da literatura infantil.

A coincidência entre os patamares da linguagem e dos temas, apontando para a mesma direção, só reafirma a possível existência destes elos, autênticos vestígios das mais antigas tradições oriundas do povo.

É preciso ainda ressaltar que, entre as inúmeras implicações advindas da influência e das marcas dos contos populares na literatura para criancas, está o aspecto político.

Como demonstrou Mikhail Bakhtin, temas como a regeração periódica do mundo e a alternância pressupõem necessariamente a discussão das leis e dos dogmas oficiais, assim como das instituições, e também a possibilidade de revezamento político, ou seja, a substituição do poder instituído.

A própria moral ingênua, aparentemente, expressão da condição individual, acaba tendo forte componente político. A busca da felicidade individual é, ou deveria ser, em última análise, uma significativa referência para o estabelecimento das leis e dos regimes políticos. Criam-se leis e diretrizes de governo para que haja o bem estar social, que, por sua vez, se legitima e está enraizado no bem estar individual.

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No âmbito da literatura infantil, temas como a alternância, a luta do novo contra o velho,

a existência do desconhecido, o riso regenerador remetem, a nosso ver, a uma literatura empenhada em discutir e renovar a vida do homem no mundo, em oposição à outra que, comprometida com o conhecimento e os valores oficiais e instituidos, é conservadora por natureza. Essa posição contraria aquela que identifica o “popular” ao conservadorismo e à manutenção de tradições. É, aliás, a mesma posição que só consegue enxergar o folclore como instrumento da manutenção de tradições ultrapassadas. O que essencialmente se conserva no conto popular, a nosso ver mas respaldados por Bakhtin e Jolles, é a semente transgressora, e por isso mesmo vital, da metamorfose, da renovação, da regeneração, da transitoriedade, da ambigüidade, da relatividade e da mudança.

Lembremos que quando falamos em conto popular, estamos diante, como ensinou Zumthor, de expressões que se renovam, portanto se reciclam, a cada apresentação.

Referindo-se aos desafios entre poetas populares nordestinos, lembra Jerusa Pires Ferreira, confirmando afirmações que, como vimos, vão de Jolles a Eliade e Zumthor:

“ Uma interpretação simplista nos poderia levar a entender esta peleja como um projeto poético que advoga o acordo ou conformismo. Mas é preciso lembrar que aquilo que poderia parecer acomodação pode ser o próprio terreno da utopia, que em si mesma nunca é acomodada.” 369

Como falar em acomodação e conservadorismo a partir de formas que trazem em seu

bojo concepções como a utopia (a crença num mundo melhor; a crença na justiça, a crença de

que tudo vale a pena porque tudo é possível); a regeração periódica do mundo; a existência

do desconhecido (portanto do que talvez ainda virá a ser compreendido, da concretização das

virtualidades etc.); a convivência com a ambigüidade e, ainda, a esperança essencial

representada pelo recurso do final feliz? Na página seguinte, apresentamos uma tabela relacionando narrativas miticas, conto

popular e literatura infantil:

369 FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas de Memória. Salvador, Fundação Casa Jorge Amado, 1991, p. 95.

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––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Principais elos entre narrativa mítica, conto popular e literatuta infantil

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Mito Conto Literatura ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Narra sempre um fato considerado Narra um fato inventado - a ficção - Narra um fato inventado - a ficção. verdadeiro, ocorrido num passado ocorrido num tempo indefinido remoto e indefinido. ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Dá explicações sobre o sentido e a Temas como a busca do auto-conhe Temas como a busca de um sentido origem da vida, do mundo, das intitui- cimento, da origem e da identidade. para a vida, do auto-conhecimento, ções, dos costumes, das coisas etc. Histórias explicando a origem das da identidade, entre muitos outros. coisas, etc. ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Pressupõe a crença na existência de Temas onde a magia, o inexplicável, Temas onde a magia, o inexplicável, o forças divinas, superiores e transu- o maravilhoso, o imensurável, o desco- maravilhoso, o imensurável, o desconhe- manas. nhecido e o onírico estão presentes.. cido e o onírico podem estar presentes. ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– A crença na existência de ciclos da Temas como a luta do novo contra o Temas como a luta do novo contra o natureza, no eterno retorno e na velho, a metamorfose, o final feliz etc., velho, a metamorfose, o final feliz etc., renovação periódica do mundo. remanescentes de antigas tradições. remanescentes de antigas tradições. ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– A crença numa sociedade da vida Temas como as personificações, aju Temas como as personificações, aju- onde homem, bicho, planta, pedra, das mágicas, metamorfoses etc, rema- das mágicas, metamorfoses etc., rema- ar, mar, vento, astros etc. interagem. nescentes de antigas tradições. nescentes de antigas tradições. ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– A manifestação do sagrado, a hierofania A festa como desfecho de muitas O final feliz. presente nos ritos, festas e comemorações histórias; o final feliz. coletivas. A pureza do tempo original. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– A memória como instrumento máxi- As adivinhas, certos testes pelos São recursos que podem aparecer na mo da sabedoria - o enigma quais passa o herói, as parlendas, o literatura. conto mnemônico etc. ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Inúmeras narrativas míticas apresentam As experiências e desafios que trans- As experiências e desafios que trans- um teor iniciático. formam o herói. formam a personagem. ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– A alegria, o riso e a esperança oriun- A alegria, o riso e a esperança estão A alegria, o riso e a esperança estão dos das concepções de renovação presentes em inúmeras histórias, nas presentes em inúmeras histórias, nas periódia do mundo representada paródias e também no final feliz. paródias e também no final feliz pelas festas, comemorações, danças, brincadeiras rituais etc. ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– O sentido lúdico do mito presente É lúdico por princípio. É lúdico por princípio. durante sua apresentação, nas cerimo- nias, no fato de ele ser constituido por uma história com enredo e persona- gens etc. e ainda no seu processo de criação (bricolage). ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Recriado e transmitido por sacer- Recriado e transmitido por contado- Criados e transmitidos por escritores atraves dotes e xamãs através da oralidade res de histórias através da oralidade. da palavra escrita, marcada pela oralidade. ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Temas gerais, sempre enraizados na Temas gerais e linguagem acessível. Temas gerais ou não e linguagem cultura coletiva. Linguagem acessível. acessível. ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Narra a gesta dos deuses, seres Conta como os heróis, em geral Contam como personagens enfrentaram paradigmáticos, e serve como impessoais e paradigmáticos, enfren- osbtáculo e atingiram, ou não, seus modelo de conduta. taram obstáculos e atingiram seus objetivos Pode servir como modelo de objetivos. Indiretamente acabam sendo conduta existencial. Personagens contruindo sendo modelos genéricos de conduta o significado de suas existências. conduta ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Passam-se no início dos tempos, há Passam-se, em geral, há muito tempo Podem passar-se em tempos deter muito tempo atrás, em lugares distantes atrás, em lugares distantes daqui. minados e em lugares específicos. quando o mundo ainda não era mundo. ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Ao contar como um deus fez, mostra Personagens movidos pela moral ingê- Personagens movidos pela moral ingê- a ação de um indivíduo paradigmáti- nua, recorrendo a recursos como a nua (que muitas vezes interage com co que recorre a certos recursos coragem, a astúcia, o ardil, o livre uma ética de princípios), recorrendo a humanos: a coragem, a astúcia, o arbítrio, o bom senso etc., basicamen- recursos como a coragem, a astúcia, o ardil, o livre arbítrio, o bom senso etc. te em busca da felicidade pessoal. ardil, o livre arbítrio, o bom senso etc., muitas vezes em busca da felicidade. _____________________________________________________________________________________________________

315

7.6 Comentário Final

A constatação da existência de vestígios bastante nítidos e consistentes ligando contos populares e literatura infantil, abre, a nosso ver, importante perspectiva para o estudo e a compreensão da literatura infantil.

No plano da linguagem, por exemplo, deixa patente que o discurso popular, teatral e conciso, peculiar inclusive à literatura infantil, nada tem a ver com a faixa etária do leitor, mas sim com a busca de, através de um repertório comum, atingir, estar nivelado e abordar assuntos gerais e amplos do interesse do público receptor.

Não confundir com certa linguagem afetada e redutora, cheia de diminutivos e estereótipos, presente em algumas publicações para crianças, um dos não poucos reflexos das concepções ideológicas que preconizam a existência líquida e certa de um “universo” exclusivamente infantil.

No plano do conteúdo, abre-se, por outro lado, a possibilidade de se recorrer ao imenso e complexo depósito de temas, enredos e imagens representado pelas tradições populares e que, na verdade, ao que parece, tem sido referência e alimentado o repertório de toda a literatura.

Imagine-se uma obra literária criada pressupondo a existëncia de um pretenso, ideológico e discutível “universo infantil”ou seja, uma literatura dirigida, repetimos, a seres imaturos, incoerentes, egoístas, irracionais, indisciplinados, sem discernimento, selvagens, sem juízo, impulsivos, caprichosos, inseguros, parciais, desiquilibrados, indisciplinados, inexperientes, ingênuos, desorganizados, irriquietos, irresponsáveis, ignorantes e errados por princípio, indivíduos cegos com relação às coisas da vida e do mundo, que precisam mudar, crescer, ser domados e assim, finalmente, amadurecer e compreender a realidade, as regras complexas e a sabedoria líquida e certa do mundo adulto.

Que temas advirão de tais premissas ? Sejam eles quais forem estarão, por princípio, comprometidos, mesmo que

camufladamente, com o didatismo, com o utilitarismo e com a lição, afinal, estamos diante de um público “imperfeito” por definição, que muito precisa aprender para tornar-se “perfeito”, ou por outra, adulto.

Imaginemos agora uma obra literária construída tendo como pressuposição a existência de

um universo basicamente compartilhado por adultos e crianças, ou seja, uma literatura dirigida a pessoas que, independentemente de faixas etárias 1) sentem dor física; 2) são, em graus diferentes, dependentes de inúmeros fatores, sociais, afetivos e outros; 3) têm, nem sempre em graus diferentes, dúvidas com relação à “ realidade”; 4) estão em busca, conscientemente ou não, de um certo grau de auto-conhecimento; 5) são passíveis de sentimentos como o ciúme, a vaidade, o ódio, o amor, a tristeza ou alegria; 6) são passíveis de agir egoísticamente; 7) precisam de alimentação regular; 8) sentem prazer com algumas coisas e desprazer com outras; 9) têm preferências particulares; 10) sonham e têm intuição; 11) apreciam o conforto e a segurança; 12) podem ser incompreensíveis ou incoerentes; 13) estão em permanente processo

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de transformação; 14) obedecem a instintos como o de auto-defesa entre muitos outros; 15) têm um singular biotipo; 16) têm uma específica e particular carga genética; 17) recorrem a linguagens orais, gestuais etc; 18) são sexuados; 19) podem adoecer; 20) são mortais; 21) costumam temer a morte; 22) podem, eventualmente, desejar a morte; 23) são capazes de cometer suicídio; 24) necessitam do contato físico, sexo-afetivo, em graus diferentes, talvez, não importa; 25) tem na curiosidade um princípio vital; 26) são, por princípio, seres sociais, 27) são passíveis de se apaixonar; 28) são passíveis do entusiasmo e do desânimo; 29) estão predispostos ao lúdico e à representação; 30) sabem, conscientemente ou não, desde a mais tenra idade, que todo o aprendizado pressupõe, invariavelmente, erros e tombos etc.

A partir de tais premissas, podemos afirmar que, sem a menor sombra de dúvida, teremos em mãos outra literatura, enraizada na condição humana e comprometida principalmente com a ficção, com a especulação (e não com a lição) sobre a vida e o mundo e com a linguagem poética (=literária) e popular. Aliás, é exatamente essa a que encontramos na leitura de Peter

Pan, Aventuras de João Sem Medo, O homem que soltava pum, Aventuras de Alice no País

das Maravilhas, Juca e Chico, História meio ao contrário, em suma, no conjunto de 17 obras estudadas por nós.

Respondendo às três colocações feitas por nós na Introdução da pesquisa abordando

diferentes posturas diante da produção de livros para crianças, podemos, a partir de nossa pesquisa, confirmar a existência de uma literatura infantil

1) ligada às mais arcaicas tradições populares e, portanto, construída longe da sombra de

certos processos históricos e ideológicos relativos, por exemplo, à instituição da escola burguesa ocorrida por volta do século XVII;

2) comprometida, antes de mais nada, com a ficção e a linguagem poética (=literária)

portanto não utilitária nem didática mas que corresponde, em princípio, a uma especulação (em oposição à lição) sobre determinado tema.

3) que parta do princípio de que, mesmo considerando as óbvias diferenças, adultos e

crianças têm necessidades análogas, compartilham o mesmo universo e, basicamente, as mesmas indagações diante da vida e do mundo.

Parece indiscutível que um livro criado a partir das premissas de que existam universos nítidos separando crianças de adultos e de que todo o livro infantil deve ter necessariamente um fundo utilitário e didático (ou seja, as obras didáticas ou paradidáticas) seja diferente de um outro que também parta da premissa de que existem universos nítidos separando crianças de adultos mas que pressuponha obras de ficção e não utilitárias (ou seja, livros de ficção, em geral, estereotipados, “lúdicos” e descomprometidos com qualquer especulação sobre a existência).

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Ambos são, com certeza, muito diferentes, de livros que considerem uma sobreposição e uma identificação entre o mundo adulto e o infantil e também entre o “popular” e o “infantil ” e ainda, ao mesmo tempo, sejam de ficção, tenham motivação estética, sejam poéticos e não utilitários. Justamente por partirem da concepção que aproxima adultos e crianças (e o “popular” do “infantil”, além dos aspecto relativos à existência de uma cultura intermediária), estes livros, tal e qual os contos populares, estão aptos a contemplar temas, alguns deles antiquíssimos, que pressupõem, em última análise, o exercício paradoxal da existência, em outras palavras, os motivos da vida concreta comprometidos com a construção do significado da existência e enraizados na busca da felicidade, no conjunto de conhecimentos e crenças pessoais, no gosto particular, na aproximação afetiva, no livre arbítrio, no senso comum, na corporalidade, na tentativa de dar comprender o mundo e a natureza etc

Estas obras, a nosso ver, e esta é a conclusão final de nossa dissertação, vinculadas à arte e não à pedagogia ou ao utilitarismo, e implicando considerações que envolvem necessariamente um espaço interacional entre a estética e a ética, formam, no mínimo, um interessante grupo entre as obras que podem realmente ser consideradas Literatura Infantil, levando-se em conta a amplitude e a plurissignificação que este termo oferece.

Isso dito em linhas gerais e considerando a existência de inúmeras exceções e ressalvas, pois como luminosamente nos ensina Paul Zumthor

“o complexo é muitíssimo mais provável do que o simples, e o uno é muitíssimo menos provável do que o diverso.” 370

370 Op. cit. p. 46.

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