GENEALOGIA DA CRÍTICA DA CULTURA · receptividade, que é marca de sua personalidade, são dignas...

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA RAFAEL RODRIGUES GARCIA GENEALOGIA DA CRÍTICA DA CULTURA UM ESTUDO SOBRE A FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBÓLICAS DE ERNST CASSIRER SÃO PAULO 2010

Transcript of GENEALOGIA DA CRÍTICA DA CULTURA · receptividade, que é marca de sua personalidade, são dignas...

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    RAFAEL RODRIGUES GARCIA

    GENEALOGIA DA CRTICA DA CULTURA UM ESTUDO SOBRE A FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBLICAS DE ERNST

    CASSIRER

    SO PAULO

    2010

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    RAFAEL RODRIGUES GARCIA

    GENEALOGIA DA CRTICA DA CULTURA UM ESTUDO SOBRE A FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBLICAS DE ERNST

    CASSIRER

    SO PAULO

    2010

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Filosofia, sob a orientao do Prof. Dr. Caetano Ernesto Plastino

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo imensamente ao meu orientador, Prof. Dr. Caetano Ernesto

    Plastino, pela confiana depositada desde os tempos de iniciao cientfica, poca

    em que apresentou-me filosofia de Ernst Cassirer. Sua prontido para esclarecer

    dvidas, a pertinncia de seus comentrios e sugestes, alm de toda a

    receptividade, que marca de sua personalidade, so dignas de nota. Sem seu

    apoio e orientao este trabalho certamente no se efetivaria.

    Aos professores Dr. Maurcio de Carvalho Ramos e Dr. Ricardo Ribeiro Terra,

    pela participao no exame de qualificao e pelas sugestes e comentrios

    oportunos para o trmino do trabalho.

    Aos professores Dr. John Krois e Dr. Christian Mckel pela acolhida em

    Berlim e por apresentarem-me biblioteca da Universidade Humboldt, cujo acervo

    foi determinante para as minhas pesquisas.

    s funcionrias da secretaria do Departamento de Filosofia da Universidade,

    pela pacincia, apoio e prontido.

    Aos amigos e colegas de faculdade Andr Doneux e Ricardo Zanchetta pelas

    leituras, correes e sugestes, pelas conversas e pelo incentivo.

    A Ariadne Machado, querida amiga e professora de alemo, pelo incentivo e

    pelas aulas que me abriram as portas para as obras originais de Cassirer.

    Ao CNPq, pelo apoio financeiro sem o qual nada disso aconteceria.

    Aos meus pais e familiares, pelo incentivo, pacincia e confiana por toda a

    vida.

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    Smbolos. Tudo smbolos... Se calhar, tudo smbolos...

    Sers tu um smbolo tambm? Olho, desterrado de ti, as tuas mos brancas

    Postas, com boas maneiras inglsas, sbre a toalha da mesa. Pessoas independentes de ti...

    Olho-as: tambm sero smbolos? Ento todo o mundo smbolo e magia?

    Se calhar ... E porque no h de ser?

    Smbolos... Estou cansado de pensar...

    Ergo finalmente os olhos para os teus olhos que me olham. Sorris, sabendo bem em que eu estava pensando...

    Meu Deus! E no sabes... Eu pensava nos smbolos...

    Respondo fielmente tua conversa por cima da mesa...

    "It was very strange, wasn't it?" "Awfully strange. And how did it end?"

    "Well, it didn't end. It never does, you know." Sim, you know... Eu sei...

    Sim, eu sei... o mal dos smbolos, you know.

    Yes, I know. Conversa perfeitamente natural... Mas os smbolos?

    No tiro os olhos de tuas mos... Quem so elas? Meu Deus! Os smbolos... Os smbolos...

    (lvaro de Campos, Psiquetipia)

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    RESUMO GARCIA, RAFAEL R. Genealogia da Crtica da Cultura: um estudo sobre a Filosofia

    das Formas Simblicas de Ernst Cassirer. 2010, 189 f. Dissertao (Mestrado).

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo,

    So Paulo, 2010.

    O presente trabalho tem por objetivo apresentar as principais questes

    envolvidas no projeto da Filosofia das Formas Simblicas de E. Cassirer, nome da

    obra considerada sua maior contribuio para a histria da filosofia. Abordamos as

    questes epistemolgicas e contextuais que motivam a elaborao da obra, sua

    estrutura e seus principais postulados metodolgicos para, finalmente, entendermos

    os resultados de sua proposta, qual seja, transformar a crtica da razo iniciada por

    Kant numa crtica da cultura humana, entendendo por esta ltima o conjunto de

    todas as manifestaes do esprito em sua atividade, caracterizada como um

    processo de autolibertao em relao imediaticidade da vida. Para tanto, so

    apontados os principais interlocutores de Cassirer ao longo do desenvolvimento de

    seu programa filosfico, bem como as tendncias filosficas em relao s quais o

    filsofo quer marcar posio.

    Palavras-chave: Cassirer; neokantismo; Escola de Marburgo; formas simblicas;

    crtica da cultura.

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    ABSTRACT

    GARCIA, RAFAEL R. The Genealogy of the Critic f the Culture: a study on the

    Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer. 2010, 189 f. Thesis (Master

    Degree). Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So

    Paulo, So Paulo, 2010.

    This text aims to show some of the main issues involved in the Project of The

    Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer, name of the work which turns

    out to be considered as his major contribution to the history of Philosophy. We dealt

    with epistemological and contextual issues that motivate the elaboration of Cassirers

    work, its structure and its main methodological postulates to, eventually, understand

    the results of his proposal, that is, to transform Kants critic of reason in a critic of

    human culture, understanding by the latter the set of all manifestations of spiritual

    activity, characterized as a process of self-liberation from the immediacy of life. To do

    so, we point Cassirers main interlocutors throughout the development of his

    philosophical project, as well as the philosophical tendencies which the philosopher

    wants to differentiate his own work from.

    Key-words: Cassirer; neokantianism; Marburg School; symbolic forms; critic of

    culture.

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    LISTA DE ABREVIATURAS

    Todas as obras de Cassirer aparecem, quando abreviadas, a partir das

    iniciais que possuem na lngua em que foram escritas a maior parte em alemo, e

    outras em ingls mesmo que a paginao corresponda a alguma traduo. Assim,

    espera-se padronizar as citaes de acordo com o que pode ser observado nas

    demais publicaes de trabalhos sobre Cassirer. O mesmo foi feito para obras de

    Cohen e Kant.

    Obras de Cassirer:

    EGLD: Erkenntnistheorie nebst den Grenzfragen der Logik und Denkpsychologie

    EM: Essay on Man

    EP: Das Erkenntnisproblem in der Philosophie und Wissenschaft der neueren Zeit

    ERT: Zur Einsteinschen Relativittstheorie

    KMM: Kant und die moderne Mathematik

    LDST: The Influence of Language upon the Development of Scientific Thought

    LKW: Zur Logik der Kulturwissenschaft

    MS: The Myth of the State

    PSF I: Philosophie der symbolischen Formen - Sprache

    PSF II: Philosophie der symbolischen Formen Das mythische Denken

    PSF III: Philosophie der symbolischen Formen Phnomenologie der Erkenntnis

    PSF IV: Philosophie der symbolischen Formen - Zur Metaphysik der symbolischen Formen

    SF: Substanzbegriff und Funktionsbegriff

    SFAG: Der Begriff der symbolischen Form im Aufbau der Geisteswissenschaften

    SM: Sprache und Mythos - Ein Beitrag zum Problem der Gtternamen

    SMC: Symbol, Myth and Culture

    Obras de Cohen e Kant:

    KRV: Kritik der reinen Vernunft

    KTE: Kants Theorie der Erfahrung

    LRE: Logik der reinen Erkenntnis

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    SUMRIO

    PARA LER CASSIRER..................................................................................................11

    ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBLICAS.........................................14

    Ponto de partida: a constatao de um fracasso ...................................................... 14

    Escola de Marburgo .................................................................................................. 17

    Panorama filosfico ............................................................................................ 17

    Retorno a Kant. Colapso do hegelianismo. Surgimento da Teoria do Conhecimento.

    Ambiente poltico ................................................................................................ 20

    Nacionalismo. Combate ao positivismo. Ideologia neokantiana. Cincias naturais e Cincias do

    Esprito. Revolta contra a razo. Posicionamento poltico da Escola de Marburgo. Perodos do

    neokantismo.

    Doutrina de Marburgo ............................................................................................... 24

    O mtodo transcendental .................................................................................... 25

    Compromisso com as cincias naturais. Teoria da experincia. Recusa da Metafsica. Entre o

    materialismo e o idealismo. Trendelenburg. O mtodo transcendental. A lgica do conhecimento

    puro.

    A noo de forma ................................................................................................ 28

    A hipstase da forma. A cincia na histria. A priori regulativo e a priori constitutivo.

    Conhecimento e construo ............................................................................... 29

    Conhecimento como cpia. O debate Trendelenburg-Fischer. Eliminao do dualismo kantiano.

    Limitaes do mtodo. Advento da lgica simblica.

    Substncia e Funo ................................................................................................. 31

    A tarefa da nova lgica ....................................................................................... 31

    Viso histrica da cincia. Os recentes desenvolvimentos da lgica. Kant e a lgica tradicional.

    A doutrina do conceito genrico .......................................................................... 34

    A lgica e o ideal de conhecimento. A substncia aristotlica. Objetividade da lgica. Seleo de

    notas caractersticas. O problema da abstrao. Psicologia da abstrao.

    Os conceitos matemticos .................................................................................. 39

    A matemtica e o conhecimento como construo. A atividade espiritual. A determinao da

    srie.

    Conceito de funo ............................................................................................. 42

    Funo e metafsica. A categoria da relao. Resoluo ao problema da abstrao. A

    universalidade concreta.

    Sobre a lgica simblica ..................................................................................... 45

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    Lgica simblica e neokantismo. Frege e o a priori. Analiticidade. Razo e alienao. A cincia e

    a lgica. Lgica formal e lgica transcendental.

    Rupturas .................................................................................................................... 50

    Para alm da matemtica; passos rumo ao homem ........................................... 50

    Limites do mtodo transcendental. O infinitesimal. Acesso ao campo da psicologia. Da rigidez

    matemtica flexibilidade do smbolo. Representao. As cincias do esprito.

    Sobre a teoria da relatividade ............................................................................. 55

    Querela com Schlick. O projeto das formas simblicas. Mudanas de vocabulrio.

    Ciso ......................................................................................................................... 58

    Origem comum ................................................................................................... 58

    Cassirer e o Crculo de Viena. Cassirer e Carnap. Aufbau e o neokantismo.

    Lgica ou cultura ................................................................................................. 61

    As crticas de Carnap lgica de Marburgo. O campo da razo. Razo e cultura.

    AS FORMAS SIMBLICAS E A CONSTITUIO DA CULTURA .......................... 63

    Ampliao do campo epistemolgico ........................................................................ 63

    O lugar da razo ................................................................................................. 63

    Ampliao do programa epistemolgico. A razo metonmica. As demais formas de

    conhecimento.

    O homem no leito de Procrusto .......................................................................... 66

    O conhecimento de si. Esprito geomtrico e esprito sutil. Logocentrismo. Nietzsche, Freud,

    Marx e Darwin. Especializao das cincias e unidade do conhecimento. A crise da razo:

    Husserl, Heidegger e Cassirer. O ideal grego de conhecimento. Renascimento da concepo

    grega de conhecimento. Formas simblicas e filosofia da vida. Filosofia e crtica da cultura.

    O mtodo na Filosofia das Formas Simblicas ................................................... 70

    O fenmeno psicolgico da forma lingstica. A compreenso do fenmeno do mito. Tautegoria.

    Autonomia das formas simblicas. Adequao do mtodo transcendental.

    Conceito de forma simblica ..................................................................................... 74

    Conceito de smbolo ........................................................................................... 74

    Animal rationale e animal symbolicum. Smbolo e sntese. Smbolo e funo. Dialtica do

    smbolo. Hertz: simulacros. Sinais e smbolos. Idealismo alemo: versatilidade.

    Esboos de definio da forma simblica ........................................................... 80

    Forma em Kant e forma simblica. Elemento intermedirio. Funo mediadora. Humboldt:

    Energie des Geistes. Estrutura tridica. Leibniz: caracterstica universal. Gramtica da funo

    simblica.

    Delimitao das formas simblicas ..................................................................... 87

  • 9

    Universalidade. Construo de mundo. Organizao sistemtica dos fenmenos. Filosofia e

    forma simblica.

    Uma teoria da significao ........................................................................................ 89

    Linguagem e Lgica ............................................................................................ 89

    Mudanas no campo de investigao. Teoria do conhecimento e teoria da significao.

    Linguagem, e valores de verdade. Linguagem e na histria da filosofia. Herclito e o

    como condutor do universo. Plato: a efemeridade da linguagem e a busca pelo conceito.

    Aristteles: a linguagem e as categorias do ser.

    Linguagem e verificao ..................................................................................... 97

    A linguagem como mediao. Ergon e energeia. Linguagem, lgica e semntica. Ampliao da

    revoluo copernicana.

    Pregnncia Simblica .............................................................................................. 101

    Convencionalismo e significao ...................................................................... 103

    Simbolismo natural e simbolismo artificial. Anterioridade da funo significativa.

    Sensacionismo .................................................................................................. 106

    A receptividade dos sentidos. Significados que transcendem os objetos apresentados. A conexo

    dos contedos na conscincia. O momento temporal e o fluxo do tempo. Conexo objetiva.

    Substituio da associao pela integrao. Qualidade e modalidade das relaes na

    conscincia. O exemplo da linha.

    Fenomenologia e intencionalidade ................................................................... 115

    Dualismo de Husserl. Reviso dos postulados idealistas. Conhecimento de si e introspeco.

    Cultura e praxis.

    O animal symbolicum ........................................................................................ 122

    O atributo distintivo da humanidade. Reaes animais e respostas humanas. O Caso Helen

    Keller.

    As funes de objetivao e a dialtica das formas simblicas .............................. 126

    Formas simblicas e fenomenologia do esprito ............................................... 126

    Formas simblicas e cultura. Dialtica das formas simblicas. Fenomenologia do Esprito e

    fenomenologia do conhecimento. As funes da conscincia.

    A funo expressiva .......................................................................................... 129

    O primeiro degrau na escada da conscincia. Percepo e expresso. A relao entre corpo e

    alma. Mito e expresso. O sentimento da unidade da vida. Fenomenologia do Eu. A

    anterioridade da vida coletiva.

    Funo representativa ...................................................................................... 142

    Representao e linguagem. Mito e linguagem. Metfora radical. Do mito religio. Do mito

    arte.

  • 10

    Funo significativa .......................................................................................... 149

    Idealidade e liberdade do esprito. A forma da cincia. Linguagem e cincia. Scrates, Galileu,

    Bohr: matemtica e cincia.

    Dialtica e teleologia .............................................................................................155

    Dialtica do esprito e Cincia da Lgica. Eliminao da teleologia (logocentrismo) na dialtica da

    cultura. Progresso e liberdade. A perptua tenso entre as formas simblicas. Da escada de

    Hegel rvore de Darwin.

    O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL ....................... 159

    A Realidade Simblica ............................................................................................ 159

    Solilquio .......................................................................................................... 159

    O valor da realidade. Atividade simblica e alienao. Registros de significao e traduzibilidade.

    Autonomia e incomensurabilidade.

    A tarefa simblica da cincia ............................................................................ 165

    A liberdade da cincia. A cincia no conjunto da cultura. Pureza epistemolgica e isolamento

    intelectual. Progresso cientfico e progresso da humanidade. A fortuna da Filosofia das Formas

    Simblicas.

    Da Geisteswissenschaft Kulturwissenschaft ........................................................ 171

    O projeto de uma filosofia da cultura ................................................................ 171

    A dimenso moral da Filosofia das Formas Simblicas. A proposta do termo Kulturwissenschaft.

    Kulturwissenschaft e a Kulturphilosophie. Percepo de coisa e percepo de expresso. A

    biblioteca de Warburg.

    Cultura e Civilizao ......................................................................................... 180

    Atividade simblica e autolibertao. Liberdade e autonomia. Cosmopolitismo. Civilizao e

    progresso. Razo e homogeneidade.

    Diversidade Cultural .......................................................................................... 182

    Autolibertao e teleologia. Os estudos culturais e a questo da diferena. O homem no centro

    da discusso.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..............................................................................187

  • 11

    PARA LER CASSIRER

    Obviamente, o assunto o que dito, o estilo o modo como dito.

    Um pouco menos obviamente, esta frmula est cheia de falhas.

    Nelson Goodman

    Aps findar o texto que aqui apresento, senti a necessidade de adicionar uma

    nota explicativa introdutria sobre a filosofia de Cassirer e a proposta deste trabalho.

    Por uma dessas vicissitudes para as quais no vale a pena buscar razes, a

    filosofia de Cassirer um campo ainda inexplorado em sua proposta e contribuio

    especficas para o corpo da histria da filosofia, sobretudo na cena brasileira. Com

    exceo de trabalhos isolados publicados em alguns departamentos, ou da

    utilizao eventual de suas obras como bibliografia de apoio em cursos diversos, os

    textos de Cassirer so pouco lidos e raramente discutidos. A situao tal que no

    se pode nem ao menos dizer que o status de Cassirer como proponente de uma

    filosofia prpria est assegurado entre os pesquisadores e professores brasileiros.

    Com efeito, no so poucos aqueles que o vem como um mero comentador ou

    historiador da filosofia. A situao se complica mais ainda quando vemos que os

    prprios historiadores da filosofia contestam a validade dos escritos de Cassirer

    como historiador. Segundo eles, a concepo histrica do filsofo estaria

    demasiadamente comprometida com postulados tais que no permitiriam a

    imparcialidade necessria a um historiador. As mesmas ressalvas valem para

    Cassirer como comentador: ele no seria sistemtico e exegtico o suficiente para

    ser tomado como um bom comentador deste ou daquele pensador em particular. De

    outro lado, constante a referncia a Cassirer como um grande erudito e insigne

    conhecedor da histria da filosofia.

  • 12

    parte a protocolar adulao que se deve cumprir a um pensador de obra to

    vasta quanto a de Cassirer, fato que todas essas consideraes acima descritas

    deixam entrever que a contribuio de Cassirer ainda no foi devidamente

    dimensionada, e tampouco parece que tenha havido tempo suficiente despendido

    para a anlise de sua forma particular de fazer filosofia. Da que o ttulo desta nota

    aponte para a questo da leitura dos textos de Cassirer.

    De fato, ler um texto de Cassirer uma tarefa que impe ao leitor algumas

    dificuldades dignas de nota. Num primeiro contato, o leitor verifica a dificuldade de

    discernir a voz de Cassirer das vozes de cada um dos inmeros pensadores de que

    ele se vale para expor suas idias; Cassirer fala por meio dos filsofos. Essa

    dificuldade tem explicaes na erudio do autor tanto quanto em sua estilstica e

    em sua metodologia. Desde suas primeiras publicaes, Cassirer adota um estilo

    historicista, que desenvolve os temas dos quais trata considerando diferentes

    pocas e correntes de pensamento, valendo-se de extensas citaes de obras e

    autores diversos, articulando-os de forma a privilegiar as proximidades e diferenas

    entre autores de uma mesma poca em torno de uma temtica, ou temticas, alm

    de mostrar o desenvolvimento dessas temticas ao longo do tempo. Esse estilo

    historicista deve ser remetido a um postulado metodolgico, qual seja, o ideal de

    conhecimento gentico que caracteriza a Escola de Marburgo, que, entre outras

    coisas, entendia que o conhecimento sempre progride, sem rupturas radicais, em

    direo a um termo final que nunca efetivamente alcanado. Alm disso, por conta

    de questes que se referem tambm ao contexto em que a obra de Cassirer

    elaborada, patente a necessidade de manter a discusso o mais aderente possvel

    ao desenvolvimento concreto da cincia, o que feito por meio de referncias

    diretas s mais diversas teorias em voga. por conta disso que Cassirer no tem

  • 13

    opo seno fundamentar seu pensamento no maior nmero possvel de referncias

    histricas diacrnicas ou sincrnicas, tanto da filosofia quanto das cincias em geral.

    O filsofo tem ainda um estilo direto e claro, embora a organizao de sua obra

    muitas vezes no seja evidente, nem privilegie a apreenso sistemtica de suas

    idias.

    Considerando o estado de coisas acima descrito no que tange recepo da

    filosofia de Cassirer no Brasil e ao seu modo de fazer filosofia, o presente trabalho

    se coloca primeiramente a tarefa de apresentar a temtica central da obra de

    Cassirer sistematicamente, considerando a tradio da qual parte, o contexto em

    que se situa e as limitaes que encontra em seu percurso. Acredito que dessa

    forma este trabalho possa, modestamente, contribuir para os estudos vindouros de

    Cassirer no Brasil, auxiliando estudos mais aprofundados e pontuais, ou mesmo

    estimulando o surgimento de discusses sobre sua obra. De fato, dada a escassez

    de material sobre Cassirer no Brasil, boa parte da tarefa de pesquisa ficou por conta

    de encontrar textos e autores que estudam o filsofo mundo afora. E dada a

    inexistncia de discusses sobre sua obra no Brasil, um trabalho que focasse um ou

    outro ponto muito especfico certamente no contribuiria nem para estimular os

    estudos no filsofo, nem lograria sucesso em contrap-la perspectiva de outro

    filsofo.

    Certamente que o leitor encontrar aqui um ponto de vista particular sobre a

    filosofia de Cassirer, que privilegia alguns aspectos de sua obra em detrimento de

    outros. Todavia, o objetivo no tanto defender uma determinada interpretao

    quanto apresentar sistematicamente o desenvolvimento de sua temtica principal

    desenvolvida na Filosofia das Formas Simblicas em seus aspectos centrais.

  • 14

    ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBLICAS

    Ponto de partida: a constatao de um fracasso

    O presente texto constitui o primeiro volume de uma obra cujos esboos iniciais

    remontam s investigaes que se encontram resumidas no meu livro

    Substanzbegriff und Funktionsbegriff [Conceito de Substncia e Conceito de Funo].

    Estas pesquisas diziam respeito, principalmente, estrutura do pensamento no

    campo da matemtica e das cincias naturais [Naturwissenschaften]. Ao tentar aplicar

    o resultado de minhas anlises aos problemas inerentes s cincias do esprito

    [Geisteswissenschaften], fui constatando gradualmente que a teoria geral do

    conhecimento, na sua concepo tradicional e com as suas limitaes, insuficiente

    para um embasamento metodolgico das cincias do esprito. Para que o objetivo

    fosse alcanado, foi necessria uma ampliao substancial do programa

    epistemolgico. (PSF I, p. 1)

    Tal o texto que abre o prefcio ao primeiro volume da Filosofia das Formas

    Simblicas. A informao que o fragmento traz, primeira vista meramente

    circunstancial, sem grande relevncia para a investigao empreendida pela obra,

    na verdade revela um ponto radical de ciso na trajetria filosfica de Cassirer. Bem

    entendido, o trecho deixa evidente que a Filosofia das Formas Simblicas nasce da

    constatao de um limite, de uma espcie de beco-sem-sada da epistemologia.

    Trata-se de uma confisso de fracasso; confisso esta que obriga o filsofo a recuar

    alguns passos em seu trajeto para que possa, ento, por outros caminhos, ou com

    outras ferramentas, dar uma nova sada ao beco com o qual se deparara. E a sada

    que anuncia Cassirer a ampliao substancial do programa epistemolgico: no

    restringir a anlise, para os assuntos concernentes s cincias do esprito, somente

  • 15

    aos pressupostos gerais do conhecimento cientfico do mundo. Faz-se necessrio

    agora dar voz s diversas formas fundamentais da compreenso humana do

    mundo, pois somente a partir da compreenso de cada uma delas em seu modo

    peculiar de manifestao possvel traar uma viso metodolgica clara que d

    conta de embasar as diversas cincias do esprito.

    Vemos aqui que a hiptese do filsofo para explicar o impasse ao qual

    chegou a de que a concepo tradicional de conhecimento e, por conseguinte,

    os mtodos que a concepo acarreta tem sido entendida de maneira estreita

    demais pela tradio filosfica. Na verdade, tratar-se-ia de uma metonmia, pois que

    essa concepo de conhecimento, entendido como a funo cognitiva prpria

    esfera da prtica cientfica, que apenas uma das diversas formas do conhecer,

    tomou a si como medida e instncia nica do verdadeiro conhecimento. E seria essa

    metonmia a responsvel pelo beco que ora falvamos.

    As conseqncias da ampliao do programa epistemolgico, como j se

    pode suspeitar, so colossais. Todavia, no ainda neste momento da exposio

    que a questo ser desenvolvida, uma vez que, para melhor entender a Filosofia

    das Formas Simblicas e sua proposta de compreenso das diversas manifestaes

    do esprito humano, necessrio aclarar as influncias e as circunstncias de sua

    produo, razo pela qual a exposio recua primeiramente obra Substanzbegriff

    und Funktionsbegriff, esta que, segundo Cassirer, apresenta os primeiros passos

    que conduziram noo de forma simblica.

    Destarte, neste captulo inicial ser contextualizada primeiramente a produo

    intelectual da Escola de Marburgo frente ao debate epistemolgico de sua poca,

    bem como a peculiaridade de sua proposta neokantiana ambas presentes na

    citao de abertura na oposio entre Natur- e Geisteswissenschaft. Em seguida, j

  • 16

    num segundo momento da histria da prpria Escola, tratar-se- da obra Substncia

    e Funo, tida como a primeira grande contribuio original de Cassirer ao corpo da

    tradio filosfica, e como marca de sua ruptura com a doutrina de Marburgo. E, por

    fim, dadas as consideraes necessrias desta obra, trataremos da limitao que a

    mesma encontra frente s questes propostas pelas cincias do esprito e de como

    isso afetou a Escola de Marburgo em geral, para ento poder situar propriamente o

    leitor no magnum opus de Cassirer.

    importante destacar que, como chave de leitura aqui assumida para a obra

    de Cassirer, a declarao de abertura da Filosofia das Formas Simblicas acima

    citada adquire papel central. Por meio daquilo que aqui chamamos de confisso de

    fracasso, admitimos dois momentos radicalmente distintos na orientao do

    programa filosfico do autor e, mais, que o segundo momento se d por conta do

    esgotamento do primeiro, que no de todo descartado, mas que passa ento a ser

    tomado como um caso particular que necessita ser articulado num campo

    epistemolgico mais abrangente, embora ainda orientado pelo mtodo

    transcendental. Nesse contexto, a proposta com a qual aqui se trabalha difere

    significativamente daquela dos poucos comentadores de Cassirer existentes hoje. 1

    Nenhum deles parece dar ateno mudana de orientao da investigao do

    filsofo quando se propem a expor a sistemtica de sua obra. Ainda que

    1 Dentre eles, destacamos John Krois, notrio especialista na filosofia de Cassirer, autor de Symbolic

    Forms and History, e responsvel pela publicao (ora em andamento) das obras manuscritas do

    autor; Christian Mckel, professor na Universidade Humboldt e responsvel pelas publicaes

    pstumas ao lado de Krois; Steve Lofts, que escreveu A Repetition of Modernity e; Edward Skidelsky,

    que no ano de 2008 publicou The Last Philosopher of Culture. Vale destacar que, salvo o texto de

    Mckel, Das Urphnomen des Lebens, cuja proposta analisar em que medida a obra de Cassirer

    pode ser aproximada da filosofia da vida, no h grandes discrepncias entre as interpretaes dos

    comentadores citados, mas que h nuanas ora relevantes entre eles. Pontos especficos sobre cada

    um dos textos aqui citados sero discutidos ao longo deste e dos demais captulos.

  • 17

    reconheam a distino ntida dos momentos anterior e posterior ao programa das

    formas simblicas, parecem no dar a devida importncia aos efeitos dessa mesma

    distino, por exemplo, no vocabulrio empregado pelo filsofo. Aqui sentimos a

    necessidade de embasar a argumentao que tecemos considerando a poca de

    publicao das obras a que nos referimos (antes ou depois da concepo do

    programa das formas simblicas), sem usar de obras que no tenham sido escritas

    na perspectiva do programa das formas simblicas para tal, nem de antecipar a

    perspectiva da filosofia das formas simblicas em obras concebidas antes do

    projeto. Com isso, acreditamos, ser possvel melhor apresentar a especificidade da

    filosofia das formas simblicas como um projeto que possui suas prprias questes

    e premissas e edifica um procedimento investigativo singular que a um s tempo

    condio e conseqncia do sucesso desse projeto. A proposta de introduzir ao

    texto das formas simblicas por meio de uma prvia abordagem de sua genealogia,

    esta que dar conta de aspectos internos e contextuais que levam proposio de

    uma filosofia das formas simblicas, possibilitar, cremos, deslindar seu lugar

    especfico na histria da filosofia do sculo XX, bem como fornecer perspectivas de

    sua aplicao a problemas filosficos contemporneos e contribuir para o debate

    sobre a prpria obra de Cassirer, em seus limites e tendncias principais.

    Escola de Marburgo

    Panorama filosfico

    A Escola de Marburgo se insere num movimento filosfico maior e

    multifacetado de retorno a Kant e s tendncias idealistas do sculo XVIII em

  • 18

    resposta ao ambiente filosfico e cultural em que se encontrava a Alemanha. 2 Os

    adeptos desse movimento arrogavam para si a reintroduo no seio da filosofia do

    tipo de inquirio epistemolgica iniciado por Kant como nico meio de superar o

    ambiente de anarquia, materialismo e declnio filosfico universal (KHNKE, 1986:

    p. 37). J os pesquisadores e comentaristas do assunto divergem acerca do carter

    especfico desse movimento. Por um lado, afirma-se que ele surge com a pretenso

    de reviver a atmosfera profcua do idealismo e do humanismo do sculo XVIII frente

    s tendncias msticas que se propalavam novamente na cultura alem, depois de

    expulsas justamente pelo ambiente da Aufklrung.3 Outros4 atribuem seu surgimento

    ao colapso do sistema hegeliano (apud POMA, 1997: p. 1), que junto de si levava

    as expectativas depositadas no idealismo, favorecendo assim o florescimento das

    cincias empricas (fisiologia, biologia, psicologia, antropologia etc.) e sobretudo do

    2 O uso do termo movimento, em vez de escola (no singular) ou tendncia, segue a proposta de

    Khnke (1986, p. 206), justamente para chamar a ateno heterogeneidade que o caracteriza.

    assim que Khnke, seguindo T. K. sterreich, sistematiza o neokantismo em sete tendncias neo-

    crticas: (1) tendncia fisiolgica (Helmholz, Lange); (2) tendncia metafsica (Liebmann, Volkelt); (3)

    tendncia realista (Riehl); (4) tendncia lgica (Cohen, Natorp e Cassirer); (5) criticismo

    transcendental dos valores (Windelband, Rickert); (6) remodelagem relativista do criticismo (Simmel)

    e; (7) remodelagem psicolgica (Fries, Nelson).

    3 Cf. GAWRONSKY, 1949: p. 5. Gawronsky no detalha quais so essas tendncias msticas s

    quais se refere. Assim sendo, torna-se difcil precisar o que ele tem em mente, uma vez que nessa

    poca digamos, entre as dcadas de 1830 e 1870, para tomar a datao analisada por Khnke

    assistimos propagao, nos limites da filosofia em lngua alem, de tendncias radicalmente

    diversas entre si (Schelling, Schopenhauer, Feuerbach, Marx, Nietzsche) e nenhuma delas ocupando

    um posto notadamente mstico. Skidelsky fala de algo que pode remeter ao que diz Gawronsky (Cf.

    p. 2), mas a tendncia mstica que se recorre devida alienao causada pelo avano da cincia

    em termos de industrializao. Nesse caso, a recorrncia ao misticismo se d via psicologia. Khnke

    (1986. esp. Introduo e cap. I) faz referncia renncia da weltanschaulich Philosophieren [o

    filosofar de vises de mundo] e ao romantismo na filosofia, mas seria, do mesmo modo, temerrio

    concluir disso uma preocupao com tendncias msticas.

    4 Especialmente KHNKE (1986), mas tambm HOLTZHEY (2005), SKIDELSKY (2008), CROWELL

    (2001) e POMA (1997).

  • 19

    esprito positivista. Para estes, a releitura de pensadores ilustres do sculo XVIII

    Kant em especial figurava como uma alternativa tanto ao materialismo naturalista

    quanto ao idealismo metafsico, situao que no configura tanto uma tentativa de

    reavivar o racionalismo per se quanto retomar o projeto crtico justamente frente s

    tendncias extremas de empiristas e idealistas.5 Cassirer tambm, no IV volume de

    Das Erkenntnisproblem [O Problema do Conhecimento], faz um diagnstico da

    situao vivida pela filosofia e sua relao com a epistemologia desde a morte de

    Hegel (1832) at 1932, poca em que o livro escrito. A introduo desse texto d

    especial ateno ao surgimento da teoria do conhecimento como disciplina

    autnoma e como base formal para toda a filosofia. De acordo com Cassirer, dela

    [da teoria do conhecimento] dever vir a deciso final sobre o mtodo adequado

    para a filosofia e para a cincia em geral. (EP, IV: p. 5) Nestes termos, o filsofo

    trata do vcuo deixado pela falncia da proposta hegeliana no campo cientfico,

    primeiramente, e depois disso no campo da filosofia e da cultura de dar papel

    central histria na realizao e verdadeira expresso de todo o conhecimento que

    o esprito possui de sua prpria natureza e recursos. (Idem, p. 3) Em outras

    palavras, o que fracassa com o hegelianismo a tentativa de dar primazia s

    Geisteswissenschaften em relao s Naturwissenschaften, ao ponto mesmo de os

    valores pendularem ao extremo oposto. Destarte, ascende o positivismo

    curiosamente, segundo Cassirer, da Frana, onde o hegelianismo nunca vingou

    propriamente como tentativa de responder, via investigaes calcadas firmemente

    na empiria, s questes s quais o idealismo no logrou sucesso.

    5 Muito embora, como aponta Holtzhey (2005, p. 6), em sua primeira fase este movimento fosse

    caracterizado pelos mltiplos vnculos que guardava com o positivismo.

  • 20

    Ambiente poltico

    No plano poltico, esse movimento, genericamente chamado de neokantismo,

    coincide com ou faz parte da emergncia da Alemanha como Estado-Nao.

    Nesse sentido, responde a uma necessidade nacionalista de auto-afirmao, com

    vistas a combater as tendncias esquerdistas internacionalistas defendidas pelo

    positivismo, que quela altura invadiam tambm a vida cultural e cvica da

    Alemanha. O lugar exato do neokantismo nesse projeto nacionalista tambm alvo

    de desacordo em relao a cada parte envolvida na questo. Segundo o dicionrio

    filosfico da DDR,

    o neokantismo emergiu e se desenvolveu nos anos 1860 e 1870 na mais ntima

    associao com a aliana estabelecida entre os reacionrios feudais e a burguesia

    alem contra o fortalecido e resoluto proletariado alemo e internacional. Nesse

    perodo de elevados conflitos de classe e quase exatamente no mesmo ano da

    Comuna de Paris a filosofia burguesa alem recorreu a Kant (apud. KHNKE,

    1986, p. 3)

    Esse esprito nacionalista certamente no determinante para a tarefa investigativa

    da filosofia, mas nem por isso deve ser totalmente desconsiderado, ainda mais se

    for levado em conta que aqui est o germe ideolgico do nazismo. Segundo viso

    crtica partilhada por comentadores do incio do sculo XX, como Lwith, Korsch ou

    Bloch, ou por comentadores mais recentes, como Skidelsky, Khnke ou mesmo

    Holtzhey, h um peso ideolgico fundamental no neokantismo, ao ponto de permitir

    a afirmao de que as escolas que dominaram as universidades alems

    distorceram Kant, no ainda em um protofacista, mas num nacional-liberal, de modo

    que o filsofo do esclarecimento germnico parecia um antecessor bismarquiano-

  • 21

    filisteu. (BLOCH apud KHNKE, 1986: p. 3) Essa afirmao, de certa forma,

    corroborada pela extrapolao da crtica dirigida ao positivismo por parte de algumas

    vertentes do neokantismo como o da Escola de Baden no momento em que elas

    no mais se limitam a contestar a aplicao daquele em relao s

    Geisteswissenschaften (e lembremos que inicialmente a discordncia em relao ao

    positivismo nesse campo no se estendia em relao sua aplicao s cincias

    naturais), mas passam a contest-la no que tange s cincias naturais, o que

    significa contestar a prpria razo cientfica, que em sua tentativa de nos aproximar

    do mundo, cada vez mais nos afasta dele.6 Um exemplo da discordncia original,

    adstrita ao domnio das Geisteswissenschaften, pode ser notada pelo combate a

    Buckle e Hippolyte Taine a respeito da aplicao da metodologia positivista para a

    interpretao da literatura e da histria. 7 (SKIDELSKY, 2008 p. 22) Em outras

    palavras, o que o neokantismo inicialmente contestava, salvo excees, no era o

    mtodo positivista em relao sua aplicao s cincias naturais, mas somente a

    6 De acordo com Rickert, as cincias naturais so meramente abstraes genricas da realidade, as

    quais no so capazes de nos conduzir verdade das coisas. Os conceitos das cincias so apenas

    roupas compradas prontas [ready-made] que servem em Paulo to bem quanto em Pedro porque

    so cortadas na medida de nenhum dos dois. (1902) O posicionamento de Rickert tambm alvo

    de crticas por parte de Cassirer em Substncia e Funo, na medida em que este entende o

    progresso da cincia como um movimento infinito de aproximao com a realidade e Rickert como um

    afastamento sempre maior. Cf. SKIDELSKY, 2008: p. 63. Interessante tambm ressaltar que,

    segundo Friedman (2000, esp. cap. 3), desse irracionalismo que desponta no seio do neokantismo

    surge uma das principais rupturas da filosofia do incio do sculo XX: o existencialismo de Heidegger,

    aluno de Rickert.

    7 H trs lugares principais onde Cassirer menciona Taine: no captulo XIV dedicado concepo de

    histria no ltimo volume dO Problema do Conhecimento, no primeiro captulo do Ensaio sobre o

    Homem (p. 38-40) e na segunda parte do terceiro ensaio que compe a Logik der Kulturwissenschaft

    (p. 146-58). Nos dois primeiros, a perspectiva positivista tomada como uma tentativa de reduzir os

    fenmenos espirituais a processos surgidos da evoluo histrica: Taine declara que estudar a

    transformao da Revoluo Francesa como estudaria a metamorfose de um inseto. (EM, p. 39) No

    terceiro, Cassirer se vale de Taine para mostrar a diferena entre Conceitos nas cincias naturais e

    conceitos nas cincias culturais.

  • 22

    adoo daquele aos eventos das cincias do esprito. (Da a proximidade inicial, no

    campo das cincias naturais, entre neokantismo e positivismo.) Mas foi apenas uma

    questo de tempo at que esse limite fosse extrapolado e alguns passassem de

    uma crtica do positivismo a uma revolta contra a prpria razo (com todas as

    conseqncias que isso acarreta para a filosofia e a prpria cultura na qual esta se

    inseria).8 Assim, podemos ler a disputa entre a primazia das cincias naturais ou do

    esprito como padro geral epistemolgico como pano de fundo de outra, motivada

    pelos interesses da classe reacionria contra os efeitos nivelantes da cincia e da

    tecnologia na Alemanha, responsveis pelo seu crescimento acelerado.

    (SKIDELSKY, 2008: p. 23)

    O posicionamento de Cohen (muito prximo daquele que mais tarde Cassirer

    seguiria) a esse respeito no se pauta tanto por um esprito nacionalista e, nesse

    sentido, elitista, quanto numa espcie de socialismo que no seria um resultado

    inexorvel do progresso econmico, como queria Marx, mas sim um ideal moral,

    fruto de escolhas voluntrias. Este posicionamento decorre da sistemtica da Ethik

    des reinen Willens, do poder constitucional reservado ao campo da tica (face ao

    carter regulativo reservado s cincias naturais), que no poderia conceber a

    atividade poltica como forosamente atada a quaisquer espcies de determinismo.

    Importante notar que o posicionamento poltico de Marburgo, em particular, tenta

    balancear os extremos da poca em que vive: cincia e religio, indstria e

    aristocracia, liberdade e tradio. uma tentativa de humanizar a cincia,

    racionalizar a religio, e liberalizar o socialismo. (SKIDELSKY, 2008: p. 42) O

    8 Para muitos nomes importantes da poca, como Dilthey, a questo se encerrava na relao com as

    cincias naturais. Contudo, a nfase exagerada na imparidade das humanidades se converteu em

    instrumento ideolgico e tornou-se revolta contra a prpria racionalidade. essa extrapolao que d

    margem ao surgimento, anos depois, da Lebensphilosophie de Bergson, Simmel e, sobretudo, de

    Heidegger.

  • 23

    desenrolar dos fatos mostrou como tal posicionamento no frutificou nem entre as

    tendncias neokantianas, nem como perspectiva poltica em geral. Entretanto, o

    posicionamento moderado e, por assim dizer, conciliador, foi marca indiscutvel da

    vida e da filosofia de Cassirer, defensor dos ideais da repblica de Weimar e

    reconhecido mediador de tendncias filosficas.

    Em termos histricos, no possvel datar precisamente o neokantismo,

    tampouco eleger seu fundador. Nestes pontos, tambm, os comentadores divergem.

    Por conta disso, tomar-se- aqui como incio do neokantismo a poca da morte de

    Hegel (dcada de 1830), para seguir tanto a proposta de Cassirer em Das

    Erkenntnisproblem IV, quanto para seguir a proposta de Khnke (1986), e como seu

    final, o momento da partida de Cassirer da Alemanha, quando da ascenso de Hitler

    ao poder em 1933. Tal datao pode ser dividida em quatro perodos distintos. O

    primeiro (1832-1848) compreende a pr-histria do neokantismo, desde o abandono

    do idealismo alemo e a emerso da teoria do conhecimento como disciplina

    autnoma, at o surgimento das primeiras publicaes com o imperativo de retorno

    a Kant (Zeller e Liebmann). O segundo (1848-1871), dividido entre a fase fisiolgica

    (Helmholtz, Lange), as geraes cticas9 e a disputa Trendelenburg-Fischer em

    torno da questo da experincia em Kant. O terceiro momento (1871-1914)

    marcado pela apario e consolidao das duas tendncias principais do

    neokantismo as escolas de Baden e Marburgo , bem como, relevante

    particularmente para o presente trabalho, dos principais trabalhos elaborados pela

    Escola de Marburgo no campo da lgica (o Sistema de Cohen e as obras de Natorp

    e Cassirer). O quarto momento (1914-1933) fortemente marcado por crises

    intelectuais e morais teoria da relatividade, mecnica quntica, aumento

    9 Cf. KHNKE, 1986: cap. 3.

  • 24

    exponencial do antissemitismo na Alemanha, ocaso da Repblica de Weimar e, por

    fim, ascenso de Hitler ao poder , que, alm de provocarem uma fisso no interior

    da prpria Escola de Marburgo (a ontologia de Natorp face antropologia de

    Cassirer), ainda fazem surgir tendncias que visam superar o neokantismo tanto no

    campo filosfico (especialmente o existencialismo e o empirismo lgico), quanto em

    sua viabilidade poltica (pelas razes acima citadas). 10

    Doutrina de Marburgo

    O retorno a Kant que Cohen prope bastante peculiar e motivado por

    razes muito precisas. Para os objetivos do presente trabalho, necessrio destacar

    trs pontos desse retorno, que so as marcas essenciais da teoria da experincia

    que Cohen prope: (1) a preocupao com a cincia, que conduz formulao do

    mtodo transcendental; (2) a noo de forma, depurada das interpretaes

    equivocadas dos ps-kantianos e; (3) a noo de conhecimento como construo,

    resultado da eliminao do dualismo kantiano entre as faculdades da sensibilidade e

    do entendimento. Nestes trs tpicos pretendemos sintetizar o ncleo da doutrina de

    Marburgo para que se possa entender de que forma Cassirer se apropria dessa

    doutrina e em que medida sua obra pode ser considerada uma superao das

    limitaes iniciais do mtodo traado por Cohen, bem como os fatores que levaram

    necessidade de extrapolar tais limitaes.

    10

    No objetivo deste trabalho expor pormenorizadamente o desenvolvimento histrico do

    neokantismo. Para mais detalhes sobre o neokantismo, Cf. esp. KHNKE, 1986. Como notvel ao

    leitor familiarizado com a histria do neokantismo, as divises aqui marcadas no correspondem

    exatamente a nenhuma das estabelecidas pelos historiadores da filosofia aqui mencionados. Todavia,

    o recorte proposto se justifica pela articulao dos temas centrais dos quais trata o neokantismo,

    ainda que, de algum modo, o recorte seja feito privilegiando a perspectiva de Marburgo.

  • 25

    O mtodo transcendental

    De todas as correntes de pensamento neokantianas, a Escola de Marburgo ,

    talvez, a mais comprometida com as cincias naturais.11 Desde o incio da Escola12,

    que se d com a publicao de Kants Theorie der Erfahrung [Teoria da Experincia

    de Kant] em 1871, fica evidente o objetivo de Cohen de mostrar como a filosofia

    transcendental , de fato, plenamente apta a responder a questes demandadas

    pela cincia sem recorrer a postulados de ordem metafsica. De fato, esse o intuito

    de Cohen ao formular o mtodo transcendental (o qual, diga-se de passagem, ele

    atribua ao prprio Kant) como aquele que parte dos fatos e ento busca suas

    condies a priori de possibilidade. Mas preciso lembrar que, ainda que Cohen

    esteja preocupado em dar respostas plausveis s questes advindas do campo da

    cincia, nem por isso ele abre mo de tomar a si mesmo como um idealista. Assim,

    ao mesmo tempo em que sua filosofia no pode ser meramente uma especulao

    descolada da realidade, no pode, tanto quanto, bastar-se com o realismo ingnuo,

    nas palavras de Cassirer, que limitava a filosofia ao materialismo triunfante da

    11

    Este ponto, da influncia da prtica cientfica na obra da Escola, que tem seu maior exemplo nas

    consideraes que Cassirer faz acerca da teoria da relatividade de Einstein, mostra a proximidade da

    Escola em relao ao positivismo (posicionamento este severamente criticado por outros setores do

    neokantismo, uma vez que, atrelando o sucesso da filosofia ao desenvolvimento cientfico, faz

    daquela serva desta).

    12 De acordo com Philonenko (1974), a histria da Escola pode ser dividida em trs momentos

    distintos: (1) a volta a Kant (1871-78), momento no qual Cohen se esfora por mostrar a relao

    estreita entre a filosofia transcendental e as cincias. (2) (1878-1914) perodo no qual Cohen edifica

    seu System der Philosophie, pice do desenvolvimento metodolgico de Marburgo. nessa fase que

    Natorp e Cassirer passam a integrar a Escola. Neste perodo Cassirer desenvolve suas pesquisas

    focado principalmente nas cincias naturais, como j dito acima, presentes principalmente em sua

    obra de 1910 Substanzbegriff und Funktionsbegriff. (3) (1914-1933) perodo de crise moral, intelectual

    e cientfica. Nesse momento, Natorp e Cassirer extrapolam os limites metodolgicos traados por

    Cohen, cada qual num sentido diverso. o incio do esfacelamento da Escola. desta fase a

    Filosofia das Formas Simblicas (1923-1929).

  • 26

    cincia 13 (POMA, 1997: p. 56). Dito de outro modo, trata-se do mesmo ideal

    proposto por Trendelenburg, qual seja, o de estabelecer o ideal no real.14

    A ateno ao mtodo a principal marca da Escola de Marburgo. (De fato, a

    questo metodolgica to marcante que chega ao ponto de Natorp ser chamado

    por Hans-Georg Gadamer, seu orientando para a tese de doutorado, de

    Methodenfanatiker15) Para Cohen, a investigao transcendental essencialmente

    uma questo metodolgica: ela se volta no aos contedos do conhecimento, mas

    nossa maneira de conhecer os objetos na medida em que esse modo de

    conhecimento [Erkentnissart] possvel a priori (KTE: p. 180, nota). por isso que

    Cohen enxerga na filosofia de Kant a proposta de uma nova teoria da experincia

    nome de sua primeira grande obra. Importante ressaltar que essa obra foi

    concebida com a pretenso de esclarecer equvocos no entendimento acerca das

    idias de Kant, de tal sorte que Cohen toma para si a tarefa de advogar em nome de

    Kant. Eu senti a necessidade urgente de apresentar o Kant histrico e de defend-

    lo de seus oponentes em sua fisionomia genuna, tanto quanto eu era capaz de

    entend-la. (Idem, p. iii-iv)

    Em que se pesem as crticas que se seguiram ao posicionamento de

    Cohen16 , sua leitura epistemologista o leva a repensar o dualismo contido na

    13

    Materialismo no nada alm de realismo dogmtico KTE, p. 46. Apud POMA, 1997: p. 58.

    14 A referncia a Trendelenburg se deve ao fato de que, segundo Poma (1997, cap. I) e Khnke

    (1986, cap. V), a obra de Cohen deve ser tomada na perspectiva direta do debate Trendelenburg-

    Fischer, no qual Cohen se posiciona notadamente de modo mais prximo a Trendelenburg, mas sem

    rechaar Fischer completamente. Adiante falaremos mais das implicaes do debate para a doutrina

    de Marburgo.

    15 Apud Kim, Alan, "Paul Natorp", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2008 Edition),

    Edward N. Zalta (ed.), URL = .

    16 A interpretao de Kant proposta por Cohen alvo de crticas contundentes, por exemplo, por parte

    de Khnke (1986: esp. cap. 5, p. 178-97). Para ele, Cohen v na KRV seu exato oposto, o que

    significa no tanto resgatar o sentido original da Crtica quanto oferecer uma crtica ao empirismo,

  • 27

    separao entre as faculdades da sensibilidade e do entendimento (da mesma

    forma que o faz a Escola de Baden, sob a direo de Windelband e Rickert), j que,

    de sua necessidade de responder ameaa ctica das interpretaes psicologistas

    da Crtica (de Lange e Fischer), devm a necessidade de provar como os conceitos

    no derivam da experincia portanto, da sensibilidade , mas apenas da faculdade

    lgica do entendimento. por conta disso que a doutrina de Marburgo comumente

    conhecida como idealismo lgico, o que se torna aparente at mesmo pela

    considerao do ttulo da obra de Cohen, Logik der reinen Erkenntnis (1902) [Lgica

    do Conhecimento Puro], ou mesmo pela proposta do projeto da reine Logik17, um

    reino ideal de estruturas lgicas atemporais e formais18.

    a partir do projeto do idealismo lgico delineado por Cohen que sero

    produzidas as principais obras daquilo que aqui chamamos de segunda fase da

    histria da Escola de Marburgo, pice da aplicao do mtodo transcendental s

    cincias naturais, lgica e matemtica. a partir desses pressupostos que foram

    publicadas as primeiras obras de Cassirer os dois primeiros volumes dO Problema

    do Conhecimento e Substncia e Funo. Antes, porm, de passar considerao

    das obras dessa primeira fase de produo intelectual de Cassirer, h mais dois

    positivismo e materialismo da poca. Lebrun tambm parte de uma crtica ao posicionamento de

    Cohen em Kant et la Fin de la Mtaphysique, como podemos notar pela leitura do primeiro captulo da

    obra. Diz Lebrun: Desde ento [da publicao do texto de Cohen], a teoria da possibilidade da

    experincia constituiria o centro da Crtica... Ora, no desequilibr-la ver nela essencialmente uma

    legitimao das cincias da natureza pela anlise dos elementos transcendentais do conhecimento?

    Tal a dvida da qual ns partiremos. (1970, p. 19)

    17 certo que a idia de uma lgica pura no nasce com os neokantianos. Tanto estes quanto

    Husserl admitem ser Bolzano, Lotze, Herbart e Meinong suas fontes. Mais tarde, poca do

    aparecimento das Investigaes Lgicas, o posicionamento neokantiano se mostrar prximo ao de

    Husserl a respeito da recusa do psicologismo.

    18 Friedman alerta (2000, p. 28) para o fato de que o termo formal, para o caso da Escola de

    Marburgo, dever ser tomado como transcendental, dada a distino fundamental para a escola

    entre a lgica meramente formal e a lgica transcendental. Falaremos a respeito adiante.

  • 28

    pontos a esclarecer sobre a doutrina de Marburgo, ambos decorrentes dos traos

    gerais que apresentamos do mtodo transcendental.

    A noo de forma

    Uma das tarefas que Cohen precisava cumprir para estabelecer o idealismo

    lgico era depurar o a priori tanto quanto possvel de qualquer implicao metafsica,

    de modo a tornar a filosofia completamente aderente ao desenvolvimento da cincia.

    por conta disso que Cohen toma o a priori como condio formal de possibilidade

    da experincia. No se trata de um rgo, como queriam os fisiologistas, mas

    meramente de uma forma; o ato da intuio considerado independentemente de seu

    contedo. O espao uma intuio a priori significa: uma condio constitutiva

    da experincia. No aparece a priori por ser inata, mas aparece inata por ser a priori.

    Assim, a experincia passa a ser no uma coisa em si mesma, independente da

    mente, mas a sntese dos fenmenos. Trata-se de uma fundao formal em

    oposio a uma ontolgica da experincia, na qual o sujeito transcendental

    tambm perde seu carter ontolgico para se tornar meramente uma forma

    transcendental.

    Deixemos ento de nos preocuparmos se essas condies [espao e tempo] so

    inatas; porque embora saibamos que certas peculiaridades da conscincia so, no

    fim das contas, denotadas pelo espao e pelo tempo. Essas peculiaridades da

    conscincia [Bewusstsein], como conscincia [Bewusstheit], no so capazes de

    gerar cincia. E nosso interesse est direcionado a essa ltima questo, somente; o

    interesse no inato est, portanto, suplantado pelo interesse nas condies que

    constituem a unidade da experincia. (KTE, p. 216)

  • 29

    De fato, nessa reconsiderao da experincia como forma, toda a orientao

    do programa kantiano muda de referencial, passando da eternidade para o

    desenvolvimento histrico. Assim,

    Anschauung se torna um sinnimo de matemtica, Erfahrung, de cincia emprica e

    Bewusstsein, dos princpios a priori que embasam a matemtica e as cincias

    empricas. A funo de constituio do objeto transferida do sujeito transcendental

    kantiano para as prticas evolutivas da fsica. (SKIDELSKY, 2008: p. 30)

    Alm disso, a prpria coisa-em-si perde seu estatuto ontolgico (a priori constitutivo)

    para tornar-se um ideal irrealizvel de conhecimento da realidade (a priori

    regulativo)19, para o qual o desenvolvimento progressivo do conhecimento tende,

    mas jamais alcana efetivamente a assim chamada concepo gentica de

    conhecimento.

    Conhecimento e construo

    H ainda uma caracterstica importante que surge da teoria da experincia

    exposta por Cohen: o conhecimento no e no pode ser uma cpia do mundo

    19

    A diferena entre a priori constitutivo e regulativo remete s faculdades da sensibilidade e do

    entendimento, de um lado, e da razo e do juzo, de outro. Os princpios constitutivos (como a fsica

    newtoniana, ou a geometria euclidiana), devem se realizar na experincia sensvel, por serem

    condies necessrias da intersubjetividade, ao passo que os regulativos (como os princpios da

    coerncia e da mxima simplicidade) so ideais, ou metas, que jamais se realizaro na experincia.

    Os primeiros surgem da aplicao das faculdades intelectuais faculdade da sensibilidade, enquanto

    os ltimos, das prprias faculdades independentemente de tal aplicao. Assim, da rejeio da

    independncia da faculdade da sensibilidade em relao do entendimento, segue-se que o a priori

    constitutivo foi substitudo por um ideal puramente regulativo.

  • 30

    (este o realismo ingnuo do qual fala Cassirer), mas sim, tem de ser uma

    construo. Levando-se a revoluo copernicana de Kant em considerao s

    conhecemos das coisas aquilo que ns mesmos colocamos nelas , tem-se que a

    experincia no pode ser entendida como um datum, frente ao qual o sujeito

    passivo. O conhecimento efetivamente produzido como experincia, da mesma

    forma que o gemetra constri o tringulo com o qual o fsico mede as dimenses

    da natureza.

    Esse princpio bsico da doutrina de Marburgo, remetido a uma interpretao

    de Kant, tal qual aqui exposto, deve ser remetido ao debate Fischer-Trendelenburg.

    Segundo Khnke, esse princpio

    repousa numa interpretao de Kant que desejava fechar o 'gap' que Trendelenburg

    afirmava existir na prova kantiana sem ao mesmo tempo cair no outro extremo de um

    idealismo subjetivo. Fischer permitiu s 'formas da razo' produzir suas representaes

    mentais, Trendelenburg contribuiu para repelir a negao ctica da objetividade foi de

    ambos que Cohen desenvolveu sua teoria da 'produo do objeto'. por isso que o teorema

    no deve ser legitimado pela Crtica da Razo Pura, somente, como se sustenta usualmente,

    mas, antes, deve ser entendido como um resultado do debate Fischer-Trendelenburg.

    (KHNKE, 1986: p. 178)20

    Vale ainda lembrar que o ideal de conhecimento como construo devm

    diretamente da eliminao do dualismo kantiano. Nesse sentido, negar a

    passividade da sensibilidade conduz inevitavelmente a admitir que o conhecimento

    fruto de construo lgica, a partir das estruturas formais a priori do entendimento.

    20

    Khnke tambm v problemas no uso que Cohen faz dessa noo de construo, que Kant, afirma

    ele, admitia exclusivamente no caso das matemticas, mas essa questo no cabe para a presente

    ocasio.

  • 31

    A idia de construo cara a Cassirer. Num primeiro momento, sua

    aplicao restrita ao domnio das cincias naturais, dadas as limitaes do mtodo

    tal qual formulado por Cohen. De fato, como veremos na prxima seo do texto,

    da limitao do mtodo que surgem as primeiras rupturas na Escola e essas,

    somadas aos desenvolvimentos da cincia (como o advento da lgica simblica, por

    exemplo), conduzem a alteraes significativas dos pressupostos do mtodo. A

    mesma idia de construo usada por Cassirer tambm em suas obras de

    maturidade, mas l as molduras do mtodo aqui exposto j haviam sido

    substancialmente modificadas.

    Substncia e Funo

    A tarefa da nova lgica

    Cassirer, j no segundo perodo da Escola de Marburgo, parte das bases

    fundadas por Cohen para dedicar-se ao problema do conhecimento nome de sua

    primeira grande obra. Com efeito, essa obra monumental (quatro tomos e cerca de

    1300 pginas) pode ser entendida como um exemplo de aplicao dos postulados

    da doutrina de Marburgo. A viso da obra acerca do desenvolvimento da cincia

    desde o renascimento expressa, implicitamente, o ideal metodolgico do

    desenvolvimento sempre contnuo da cincia. certo que os tomos da obra no

    foram todos escritos mesma poca (os dois primeiros so de 1906 e 1907, o

    terceiro de 1920 e o quarto, postumamente publicado, foi escrito em 1932), alm

    de serem comumente relegados ao status de obra escolar dentro do corpus de

  • 32

    Cassirer21, contudo, nela, desde os primeiros volumes, ficam evidentes a erudio, o

    domnio e a capacidade de articulao da histria da filosofia por Cassirer, o que

    vem a se confirmar pelas demais obras que escreveria mais tarde.

    Mas na obra Conceito de Substncia e Conceito de Funo (aqui abreviada

    para Substncia e Funo, para seguir a proposta de traduo para a lngua

    inglesa), principal obra de sua fase de juventude, que os postulados de Marburgo

    so levados ao extremo, numa tentativa de consolidar o idealismo lgico junto aos

    avanos recentes no campo da prpria lgica matemtica, concretizando assim sua

    promessa de criar uma lgica do conhecimento objetivo.22

    O ponto de partida de Substncia e Funo so os recentes

    desenvolvimentos na lgica, estimulados pelas ou resultantes das questes

    levantadas pelos avanos na teoria matemtica. Assim, a lgica, que se encontrava

    h sculos isolada em sua profunda modorra, foi novamente integrada s novas

    investigaes da filosofia. Desta forma, a lgica foi levada a reavaliar seus

    postulados, praticamente inalterados desde Aristteles.

    O impacto disto, para a filosofia e para a cincia, como se pode imaginar,

    radical. Para tomar um exemplo deste impacto, particularmente relevante para o

    trabalho presente, basta lembrar que Kant abre o prefcio 2 edio da Crtica da

    Razo Pura justamente com um elogio da lgica como exemplo de cincia:

    Pode reconhecer-se que a lgica, desde remotos tempos, seguiu a via segura [das

    cincias], pelo fato de, desde Aristteles, no ter dado um passo atrs, a no ser que

    21

    Cf. Krois, J. A Note about Philosophy and History: The Place of Cassirer's Erkenntnisproblem.

    22 O termo aparece no texto de 1907, Kant und die moderne Mathematik [KMM]: Ento, no ponto

    onde a lgica simblica [Logistik] termina comea uma nova tarefa. O que a filosofia crtica procura e

    o que ela a partir de agora precisa de uma lgica do conhecimento objetivo [Logik der

    gegenstandlichen Erkenntnis] (p. 44)

  • 33

    se leve conta de aperfeioamento a abolio da algumas subtilezas desnecessrias

    ou a determinao mais ntida do seu contedo, coisa que mais diz respeito

    elegncia que certeza da cincia. Tambm digno de nota que no tenha at hoje

    progredido, parecendo, por conseguinte, acabada e perfeita, tanto quanto se nos

    pode afigurar. (KrV: B VIII)

    Tal ponto de vista corroborado por Cassirer logo na abertura de Substncia e Funo:

    Na lgica o pensamento filosfico parece ter feito uma firme fundao; nela um

    campo parecia ter sido delimitado, o qual estava assegurado contra todas as dvidas

    levantadas por vrios pontos de vista e vrias hipteses epistemolgicas. O

    julgamento de Kant parecia verificado e confirmado, que aqui o reto e seguro caminho

    da cincia tinha finalmente sido alcanado. (SF, p. 3)

    O fato de Cassirer iniciar seu texto chamando a ateno de seu leitor para este

    dado, de que a lgica aristotlica era o grande paradigma de cincia para Kant, um

    importante ndice do carter que a obra ter, dado que ela inegavelmente

    neokantiana. como se Cassirer dissesse que necessrio fundamentar a filosofia

    crtica em bases inteiramente novas, e estas no podem ser jamais as da lgica

    tradicional, dada a infeliz aproximao desta com a linguagem, como ser discutido

    em seguida. As conseqncias que acarretam a reformulao da lgica, entretanto,

    so sentidas no apenas desde o ponto de vista (neo)kantiano; com efeito, todo o

    corpus da filosofia aqui colocado em questo, dado que a derrubada deste nico

    alicerce de fato slido faz ruir tambm tudo aquilo que se encontra em cima dele.

    Destarte, o prprio modelo de racionalidade que est em questo: O trabalho de

    sculos na formulao de doutrinas fundamentais parece dissolver-se, ao passo que

  • 34

    novos grupos de problemas, resultantes da teoria matemtica geral, colocam-se em

    primeiro plano. (Idem, ibidem)

    A doutrina do conceito genrico

    A crtica dos postulados da lgica est atrelada, para Cassirer, s profundas

    alteraes no ideal do conhecimento (Idem, ibidem) ou seja, levando-se em conta

    as j abordadas contendas entre idealismo e empirismo, mas sobretudo pela recusa

    de aplicao de postulados de carter metafsico, implcitos na lgica aristotlica

    atravs da doutrina tradicional do conceito, tomado como a a partir da qual os

    elementos acidentais se agrupam e se organizam hierarquicamente em outras

    palavras, a relao coisa-atributo. Assim sendo, nas palavras de Lofts, a estratgia

    de Cassirer a de descentralizar a lgica centrada na substncia, no tomando o

    ser como o terminus a quo do juzo, mas como o terminus ad quem (2000, p. 37),

    donde se segue que o foco deve recair inicialmente sobre o paradigma clssico da

    formao de conceitos: a noo de conceito genrico [Gattungsbegriff], resultado de

    processo de abstrao por notas caractersticas.

    Nada pressuposto [na doutrina do conceito genrico], salvo a existncia de coisas

    em sua inexaurvel multiplicidade, e o poder do intelecto de selecionar a partir dessa

    riqueza de existncias particulares aquelas feies que so comuns a vrias delas.

    (...) As funes essenciais do pensamento, nesse contexto, so meramente aquelas

    de comparar e diferenciar uma diversidade dada na sensibilidade. (Idem, p. 4,5)

    Mas justamente nesses pressupostos que se encontra o cerne do problema do

    conceito genrico. Em primeiro lugar, h a pressuposio da existncia das coisas

  • 35

    e por essa razo que Cassirer afirma que a lgica aristotlica a verdadeira

    expresso e o espelho da metafsica aristotlica, onde o conceito tem o papel de

    elo entre ambos os domnios. O sistema lgico de Aristteles tem, em ltima anlise,

    uma concepo metafsica de substncia [ ] que serve de referencial e de

    suporte para suas afirmaes. Assim sendo, a concepo aristotlica de natureza

    precondiciona as formas fundamentais de pensamento, as categorias, e o prprio

    sentido do ser.

    Somente em substncias dadas, existentes, as vrias determinaes do ser so

    pensadas. Somente num substratum fixo do tipo coisa, que primeiramente precisa ser

    dado, podem as variedades lgica e gramatical do ser em geral encontrar seu

    fundamento e sua real aplicao. (Idem, p. 8)

    Em segundo lugar, para que a ligao entre natureza e pensamento, por meio

    do conceito, se efetive, h de se afirmar que a funo do intelecto simplesmente a

    de comparar as qualidades que esto nas coisas elas mesmas, na medida em que

    os conceitos devem corresponder s divises do real. O processo de comparar as

    coisas e agrup-las de acordo com as propriedades similares, tal qual expressa

    antes de tudo na linguagem (...) termina na descoberta da essncia real das coisas.

    (Idem, p. 7) isso, somente, que pode assegurar que a seleo das notas

    caractersticas no seja um mero esquema subjetivo, mas seja simultaneamente

    uma expresso formal e objetiva das relaes teleolgica e causal das coisas

    reais.23

    23

    A mesma questo relativa lgica tradicional tambm abordada no captulo Linguagem e

    Conceituao do texto Sprache und Mythos ein Beitrag zum Problem der Gtternamen [SM], escrito

    14 anos mais tarde e, portanto, posterior publicao da Fenomenologia da Linguagem, primeira

    parte da Filosofia das Formas Simblicas. L, sem referncia direta a Aristteles, Cassirer questiona

  • 36

    Dessa forma em terceiro lugar , o problema se transfere para o processo

    de reunio das notas caractersticas. temerrio afirmar que tal processo

    totalmente livre de arbitrariedades: escolhemos aquilo que nos , para o momento,

    mais relevante, em detrimento daquilo que julgamos sem importncia. como se a

    conceituao operasse por negaes: O ato essencial aqui pressuposto que ns

    renunciamos certas determinaes, que at ento havamos mantido; que ns

    abstramos delas e as exclumos de considerao como irrelevantes. (Idem, p. 18)

    Se toda a construo de conceitos consiste em selecionar a partir de uma

    pluralidade de objetos diante de ns somente as propriedades similares, enquanto

    negligenciamos o resto, fica claro que por meio desse tipo de reduo o que

    meramente uma parte toma o lugar do todo sensvel original (Idem, p. 6)

    a validade da lgica tradicional a partir de uma abordagem fenomenolgica: A formao de um

    conceito genrico pressupe a limitao destas caractersticas; somente quando existem certos

    traos fixos, mediante os quais as coisas podem ser reconhecidas como semelhantes ou

    dessemelhantes, coincidentes ou no-coincidentes, torna-se possvel reunir em uma classe os

    objetos similares entre si. Como porm no podemos deixar de nos perguntar podem existir

    semelhantes notas caractersticas, antes da linguagem, antes do ato de denominao? No seria

    melhor afirmar que elas so apreendidas por meio da linguagem, no prprio ato de nome-las? Caso

    se aceite esta ltima suposio, segundo que regras e critrios se desenvolve tal ato? O que induz ou

    obriga a linguagem a reunir justamente estas representaes numa unidade e design-las com uma

    determinada palavra? O que a leva a selecionar certas configuraes nas sries sempre fluentes e

    uniformes de impresses que ferem nossos sentidos ou brotam dos processos espontneos da

    mente, fazendo com que se detenha diante delas e lhes confira uma significao particular? Logo

    que se aborda o problema neste sentido, a lgica tradicional abandona o pesquisador ou o filsofo da

    linguagem, pois a explicao que d sobre o surgimento das representaes gerais e dos conceitos

    genricos pressupe aquilo que aqui se procura e de cuja possibilidade indagamos, ou seja, a

    formao das noes lingsticas. (SM, p. 42-3)

    Outro ponto, que no ser desenvolvido agora, mas ao qual se deve chamar ateno a

    concepo de conhecimento enquanto cpia, que est implcita aqui. Como se pode entrever,

    Cassirer prepara o terreno para apresentar a noo de conhecimento como construo, cara

    Marburgo, como j dito.

  • 37

    Para exemplificar o problema, Cassirer toma um exemplo famoso de Lotze: se

    agruparmos cerejas e carne sob os atributos vermelho, suculento e comestvel, no

    alcanaremos um conceito lgico vlido, mas uma combinao de palavras sem

    sentido, completamente intil para a compreenso dos casos particulares. (Idem, p.

    7) E, se o problema for considerado mais profundamente, admitir-se- que a escolha

    lgica no evidente, mas apenas uma das tantas possveis o que abre espao

    para a atividade, propriamente falando, do esprito na formao dos conceitos. Aqui

    notamos, portanto, que o modelo de conhecimento como construo o que norteia

    o posicionamento de Cassirer. Na necessidade de depurar a lgica dos

    pressupostos metafsicos, necessrio abrir mo da referncia e, em

    decorrncia disso, perde-se o referencial objetivo (leia-se, de uma realidade

    independente da mente) que garantiria a ela o acesso privilegiado ao conhecimento

    verdadeiro.

    Alm do mais, em quarto lugar, esse tipo de formao de conceitos falha na

    medida em que, ao levar o processo de abstrao s suas ltimas conseqncias,

    cria conceitos que, em um extremo, so objetos concretos em particular e, em outro,

    so simplesmente algo um mero ser: quanto mais contedos particulares, menor a

    extenso do conceito no limite, chegamos ao nvel do singular; ao passo que

    quanto menos atento a tais particularidades, mais se torna inclusivo e, no limite,

    tende total indeterminao. justamente pela indeterminao que o conceito

    falha, j que a cincia espera do conceito que ele ponha fim ambigidade e

    indeterminao das percepes sensveis. Ademais, o caminho da abstrao, dado

    que simplesmente desconsidera a importncia de determinadas caractersticas de

    objetos particulares, no pode ser refeito em direo ao objeto concreto novamente.

  • 38

    Noutras palavras, com o procedimento da abstrao, no se deduz o particular,

    precisamente em suas particularidades, de nenhum universal.

    A abstrao muito fcil para o filsofo, mas por outro lado, a determinao do

    particular a partir do universal, muito mais difcil; pois no processo de abstrao ele

    deixa para trs todas as particularidades, de tal sorte que no pode recuper-las,

    muito menos considerar as transformaes das quais elas so capazes. (Idem, p. 19)

    Noutra perspectiva, Cassirer alerta aos problemas contidos na psicologia da

    abstrao, segundo a qual a determinao se d no apenas no momento particular

    da percepo, mas deixam atrs de si certos traos de sua existncia no sujeito

    psicofsico. (Idem, p. 11) Assim, a recorrncia inconsciente dos mesmos estmulos

    gradualmente cristalizaria o conceito na mente. Essa perspectiva (e aqui o filsofo

    se refere textualmente a Berkeley e Mill), de acordo com Cassirer, tem sua fundao

    no ato de identificao, que tenta relacionar contedos dados em momentos ou

    lugares distintos como, em alguma medida, idnticos. Mas bem se sabe que a

    identificao de dois objetos distintos nada mais do que uma negao das

    particularidades, caracterstica do dom do esquecimento de nossa mente

    incapacidade de reter todas as determinaes particulares de todas as impresses

    sensveis.

    Se as imagens da memria, que permanecem conosco de experincias prvias,

    fossem completamente determinadas, se elas revocassem os contedos esquecidos

    da conscincia em sua natureza total, concreta e viva, elas jamais seriam tomadas

    como similares nova impresso e ento nunca seriam combinadas em uma unidade

    com o ltimo. Somente a inexatido da reproduo, que nunca retm o todo da

    primeira impresso, mas meramente seu vago esboo, torna possvel essa unificao

  • 39

    de elementos que so, eles mesmos, dissimilares. Destarte, toda a formao de

    conceitos comearia com a substituio de uma imagem generalizada para a intuio

    sensvel individual, e no lugar da percepo atual, a substituio de sua imperfeita e

    desfalecida lembrana. (Idem, p. 18)

    Assim, percebe-se como o processo de abstrao, como princpio formador dos

    conceitos, tomado seja em sentido de notas caractersticas, tal qual em Aristteles,

    seja pela via da psicologia da abstrao, acaba por conduzir no eliminao da

    ambigidade, como desejado, mas sim a um esquema superficial a partir do qual

    todos os traos peculiares dos casos particulares se foram. 24

    Os conceitos matemticos

    Outro problema apontado por Cassirer para a lgica aristotlica, ainda no

    mbito da atividade cientfica, o de que esse modelo no explica a formao dos

    conceitos matemticos: o conceito de ponto, ou de linha ou de superfcie no pode

    ser tomado como uma parte imediata de corpos fisicamente presentes e separados

    deles por simples abstrao (Idem, p. 12). Em simtrica oposio teoria dos

    nmeros de Mill, Cassirer entende os conceitos matemticos como construes do

    pensamento (Denkgebilden) que, diversamente do que ocorre nos conceitos

    24

    necessrio tambm ressaltar que essa crtica no se limita somente ao realismo, mas se aplica

    igualmente ao nominalismo. Para Cassirer, o que distingue ambos apenas a questo da realidade

    metafsica dos conceitos. De fato, na deduo psicolgica do conceito, o esquema tradicional no

    tanto mudado quanto transportado para outro campo. Enquanto, no primeiro, coisas exteriores eram

    comparadas e a partir delas elementos comuns eram selecionados, aqui [no nominalismo] o mesmo

    processo meramente transferido para representaes enquanto correlatos de coisas. (SF, p. 9)

    Segundo o autor, no h nenhuma diferena fundamental no que concerne estrutura do conceito

    entre os dois pontos de vista. Ambos vem o conceito como reprodutor de uma realidade seja ela

    ontolgica ou psicolgica.

  • 40

    empricos, no podem ser entendidos como cpias de caractersticas da realidade

    sensvel, tal como postula Mill. Na economia do texto de Cassirer, a necessidade de

    refutar o empirismo de Mill mais um ndice da vinculao da obra programtica

    neokantiana. Assim, basta dizer que Cassirer esgota a teoria sensacionista dos

    nmeros de Mill que reduz os conceitos matemticos a meras expresses de

    questes da realidade fsica concreta (Idem, ibidem), fazendo da geometria e da

    aritmtica no mais do que declaraes referentes a grupos de representaes

    (Idem, p. 13) vinculando-a indiretamente, por um lado, ao que extrai da teoria do

    conceito em Aristteles (as implicaes metafsicas), e por outro, apontando

    problemas internos da teoria quando seu autor tenta justificar o valor peculiar dado

    experincia de numerao e mensurao no todo de nossa experincia a partir da

    qual (junto da crtica que faz da psicologia da abstrao), inclusive, enxerga uma

    brecha para introduzir, via matemtica, a concepo de conceito que pretende fazer

    substituir aristotlica. Numa citao livre de Um Sistema de Lgica de Mill,

    Cassirer diz:

    no h pontos sem magnitude, nem linhas perfeitamente retas ou crculos com radii

    iguais. Mais ainda, do ponto de vista de nossa experincia, no somente a realidade

    atual, mas a prpria possibilidade de tais contedos deve ser negada; ela ao menos

    excluda pelas propriedades fsicas de nosso planeta, seno pelas de nosso universo.

    Mas a existncia psquica negada no menos do que a fsica para os objetos das

    definies geomtricas. Pois em nossa mente ns nunca encontramos a

    representao de um ponto matemtico, mas sempre somente a menor extenso

    sensvel possvel; da mesma forma ns nunca concebemos uma linha sem

    espessura, pois toda imagem psquica que podemos formar nos mostra somente

    linhas com alguma espessura. (Idem, p. 13-4)

  • 41

    A argumentao de Mill aqui claramente contrria quela de que os conceitos da

    matemtica de alguma forma remetem a situaes de observao concreta.

    Percebe-se aqui uma alterao na concepo de abstrao que, at ento, tinha a

    funo apenas de seccionar o ser de acordo com suas caractersticas supostamente

    naturais como no caso das cincias descritivas, paradigma e interesse central de

    Aristteles.

    nas definies da matemtica pura, contudo, como a prpria explanao de Mill

    mostra, o mundo das coisas sensveis e representaes no tanto reproduzido

    quanto transformado e suplantado por uma ordem de outro tipo. Se traarmos o

    mtodo dessa transformao, certas formas de relao, ou melhor, um sistema

    ordenado de funes intelectuais estritamente diferenciadas, so reveladas, as quais

    no poderiam ser caracterizadas, menos ainda justificadas, pelo simples esquema da

    'abstrao'. (Idem, p. 14)

    A transformao qual o filsofo se refere aqui no nada alm da atividade

    espiritual, que ser desenvolvida em termos do conceito liberto das amarras

    metafsicas a abstrao aristotlica e a matemtica emprica. E esta atividade se

    evidencia no ato de identificao, como abordado no caso da psicologia da

    abstrao, momento no qual o esprito sintetiza dados sensveis separados

    temporalmente. Assim, de acordo com a maneira e a direo com que essa sntese

    se faz, o mesmo material sensvel pode ser apreendido sob diferentes formas

    conceituais. (Idem, p. 15) Da se segue que a psicologia da abstrao deve

    primeiramente admitir que as percepes possam ser ordenadas logicamente em

    sries de similares.

  • 42

    Sem um processo de arranjo em sries, sem passar por diferentes instncias, a

    conscincia de sua conexo genrica e conseqentemente, de objeto abstrato

    jamais poderia ser dada. A transio de membro para membro, entretanto,

    manifestamente pressupe um princpio de acordo com o qual ela se d, e pelo qual

    a forma da dependncia entre cada membro e seu sucessor determinada. (Idem,

    ibidem)

    A noo de srie aqui cara a Cassirer. Com efeito, a partir dela, junto da noo

    de funo, que o novo modelo de conceito ser elaborado. Assim, o filsofo passa a

    falar em relaes fundamentais gerativas [erzeugenden Grundrelation] e em formas

    de sries, a partir das quais os objetos sero determinados.

    Conceito de funo

    Dizemos que um contedo sensvel qualquer est ordenado e apreendido

    conceitualmente quando seus membros no se colocam uns ao lado dos outros sem

    relao, mas procedem de um incio definido, de acordo com uma relao

    fundamental gerativa, numa seqncia necessria. a identidade dessa relao,

    mantida atravs das mudanas nos contedos particulares, que constitui a forma

    especfica do conceito. (Idem, ibidem)

    E, por esta via,

    ns podemos conceber membros de sries ordenadas de acordo com igualdade ou

    desigualdade, nmero e magnitude, relaes espaciais e temporais, ou dependncia

    causal. A relao de necessidade ento produzida em cada caso decisiva; o

    conceito meramente a expresso e a casca disso, e no a apresentao genrica,

    que pode surgir incidentemente sob determinadas circunstncias, mas que no entra

    como um elemento efetivo na definio do conceito. (Idem, p. 16)

  • 43

    Ateno merece ser dada passagem que diz: [o conceito] no entra como

    um elemento efetivo na definio do conceito. isso, de fato, que o filsofo entende

    por um conceito livre da necessidade de postular uma substncia como seu

    fundamento, quando, ao invs, o conceito no tem validade ntica, mas meramente

    funcional, expressa pela categoria da relao. A questo da categoria da relao

    um ponto que necessita de esclarecimentos. Na lgica aristotlica ela ocupava um

    lugar junto s demais categorias secundrias, no-essenciais. Dada a j

    mencionada descentralizao do conceito orientado pela substncia o que

    justificava a hierarquia das categorias, possibilitando inclusive a orientao das

    notas caractersticas e todo o processo de abstrao a categoria da relao passa

    a ter um lugar equivalente s demais, quando no, passa a ser a categoria central.

    Na verdade, a confuso causada pela teoria da abstrao de tal ordem que no se

    faz notar a diferena entre uma forma categrica, responsvel pelas definies a

    serem dadas ao contedo da percepo, e partes do prprio contedo em questo.

    Tudo se passa como se o pensamento estivesse limitado a selecionar de uma srie

    de percepes a, a, a, . . .o elemento comum a (Idem, p. 17), quando o correto

    seria afirmar que a conexo entre os membros se d por uma

    lei geral de disposio [Gesetz der Zuordnung] a partir da qual uma profunda lei de

    sucesso estabelecida. Aquilo que conecta os elementos da srie a, b, c, . . . no

    ele mesmo um novo elemento, que estava factualmente misturado a eles, mas a

    regra de progresso, que se mantm a mesma, no importa em que membro ela seja

    representada. (Idem, ibidem)

  • 44

    Dessa maneira, o conceito passa a ter a expresso F(a,b), F(b,c), . . . , onde F

    representa a lei geral de disposio, a srie, e as letras a, b, c, . . . , os elementos a