Gênero em debate: Masculinidade - texto 3

download Gênero em debate: Masculinidade - texto 3

of 5

Transcript of Gênero em debate: Masculinidade - texto 3

  • 8/22/2019 Gnero em debate: Masculinidade - texto 3

    1/5

    GUEST POST: COMO O MACHISMO LIMITA A VIDA DE UM HOMEM

    Eu cresci nos tempos da Guerra Fria, e o que mais ouvia era propaganda anti-

    comunista. O melhor exemplo que o comunismo era prejudicial sociedade que as

    pessoas no podiam cumprir seus sonhos. Era o estado que determinava sua profisso

    e at mesmo seus hobbies. Ou seja, a pessoa no tinha direito algum como indivduo.

    Pois , este email que recebi do Rubens e pedi pra transformar em guest post (e que

    dialoga bastante com o post que publiquei no Dia Internacional da Mulher) me

    lembrou muito da propaganda que ouvi durante tantos anos. Ser que so apenas os

    estados totalitrios que limitam nossa individualidade? Essa a nica ditadura que

    conhecemos? Ou h outras que nos impedem de sermos o que queremos ser e de

    agirmos como queremos agir, em nome de uma suposta masculinidade que no passa

    de uma construo social? O guest post do Rubens muito ilustrativo.

    Conheci seu blog h um ano. Tenho entrado nele desde ento quase todo dia,

    adoro seus textos, voc fala com discernimento sobre assuntos delicados, sempreilustrando seus argumentos de forma clara. Vi neste espao que h muitas pessoas quecompartilham com alguns pensamentos meus e percebi tambm que possoreconsiderar outros tantos e melhor-los.Sou homem, htero, talvez eu no faa partedo seleto grupo padro por ser filho de negra com nordestino... Ah, se no fosseisso, eu seria perfeito! (ironia, se me permite).

    Estou aqui para contar para voc como o machismo atrapalha a minha vida.Acho que seria importante um relato vindo de um homem, mostrando algunsexemplos de como esse tipo de mentalidade atrasada no apenas prejudica asmulheres como ns homens tambm!

    O machismo comeou a afetar a minha vida desde criana. Quando eu erapequeno gostava de brincar com as meninas de pique esconde, leno atrs, essasbrincadeiras de roda e cantigas e tudo mais. No ligava muito para futebol oulutinha, no gostava de brincadeira de meninos e era visto como um bichinha.Eu no entendia muito bem essa coisa de ser viadinho; eu era apenas uma criana,como teria noo sobre opes sexuais? Nem tinha ao menos idia de como essestermos eram pejorativos.Apesar de ficar irritado na hora eu deixava para l, mas umepisdio com a minha me me magoou bastante na minha infncia.

    Minha prima passava o final de semana na nossa casa e, como eu gostava debrincar com meninas, fazia companhia para ela numa boa nas suas brincadeiras de

    casinha. ramos bem organizados, eu combinava com ela assim: eu limpava a casa eela fazia a comida, botvamos a beb para dormir antes do meio dia, ento amospassear de carro tarde, j que os dois trabalhando juntos terminaramos a partechata mais rpido. Um belo dia minha me me pega com a boneca no colo.Horrorizada, minha me me pergunta o que eu t fazendo roubando a boneca daminha prima. Eu na minha inocncia respondi que no tava roubando, tava botandoela para dormir. Minha me responde categoricamente que isso no coisa demenino, que isso era tarefa da minha prima, eu deveria estar brincando de bolinha degude ou de pipa como os outros meninos normais faziam.

    Depois disso, passei trs meses numa psicloga. Sim, minha me pensou que

    eu era doente da cabea; a mdica constatou que eu era normal, que no era gay,apenas tinha uma mente afeminada... D para entender um negcio desses? Eu

    http://escrevalolaescreva.blogspot.com/2011/03/meu-feminismo-nao-e-pra-mim.htmlhttp://escrevalolaescreva.blogspot.com/2011/03/meu-feminismo-nao-e-pra-mim.html
  • 8/22/2019 Gnero em debate: Masculinidade - texto 3

    2/5

    odeio essas classificaes de gneros, menino usa azul, menina usa rosa, menino gostade carro, menina gosta de sapatos e por a vai, por que no podemos simplesmentegostarmos daquilo que nos d na telha? Por que tenho que seguir uma cartela depossibilidades limitadas por um gnero? Onde est minha individualidade? Doeumuito para mim saber que minha me achava que eu era esquisito.

    Eu entrei na pr-adolescncia, deixei as brincadeiras de casinha de lado, passeia jogar videogame e andar de bicicleta, a me relacionar mais com meninos, mas nempor isso deixei de fazer atividades que as pessoas consideravam coisa de viado.Nessa fase da vida fui estigmatizado porque me interessei a fazer artesanato com

    jornais velhos e garrafas pet (sempre tive a mania de aproveitar tudo que posso). O fimda picada para os meus parentes foi quando resolvi que faria um curso para aprendera lidar com biscuit, fazer ponto e cruz e aulas de pintura. Eu achava aqueles panos deprato com desenhos e bordados o mximo e queria fazer os meus, j que eu sabiadesenhar... Mas fui impedido, minha doena estava atacando novamente, no pudefazer os cursos que eu gostaria. Simplesmente me negaram porque isso ia contra a

    conveno de ser macho. S agora depois de adulto que eu obtive autonomia paraessas atividades de mulher.Outra vez minha individualidade foi transgredida emnome de uma preocupao que tinham comigo. Era frustrante, eu no entendia arazo disso tudo, eu s queria ser eu mesmo e fazer as coisas que eu gostava, seoutros homens no davam ateno que culpa eu tenho de querer?

    No segundo ano do ensino mdio conheci um cara gay assumido. Nossaspersonalidades bateram muito, rapidamente nos tornamos grandes amigos, nuncaduvidei da minha condio de hetero e ele sempre me respeitou, nunca me cantou, ese eu fosse homossexual, qual seria o problema, n? Mas as pessoas no pensamassim, e logo viramos motivo de chacota... Ouvamos buchichos, comentrios

    maldosos de todas as partes, alunos, professores, funcionrios da escola, enfim todosestavam criando um caso que no existia e nos julgando por isso! Como se gostar dealgum fosse crime, s por que essa pessoa tem a mesma genitlia que a sua...

    Os anos da escola passaram, fui para a faculdade, conheci outras pessoashomossexuais, se tornaram boas amigas e eu aprendi muito com elas. Pelo menos issominha famlia no critica mais tanto hoje em dia, se faz de forma velada e para mim at melhor que seja assim, pois estou meio cansado de ter que defender uma condutaque no errada!Mas voltando um pouco, agora vou contar-lhe um caso complicadoque tive na adolescncia que me rendeu outras situaes absurdas.

    Eu tinha uma namorada que era muito independente, ela fazia as coisas que ela

    gostava, dizia tudo que pensava na minha cara, at com certa sinceridade exagerada...Sou meio chato com as palavras, mas era justamente por isso que eu a amava, era todona de si! Eu realmente a admirava por isso.

    Em roda de amigos s vezes eu falava uma bobagem e ela me repreendia. Issoera o fim, todos meus amigos (homens) me desafiavam, Ih, cala a boca dela, vaideixar barato?. Eu ria, concordava com ela quando achava que tinha que ser e diziapara eles que eu no mandava na boca de ningum. Isso era visto como sinal decornice ou de cintura frouxa, como alguns diziam.

    Outra coisa que incomodava at mesmo a me da garota era o fato de ela sairproduzida para a escola ou o estgio. Minha ex-sogra chegou a me cobrar uma atitude

    mscula e dizer para a filha dela no sair com roupas muito decotadas ou calas maiscoladas. Quando eu respondi que eu no era o pai da menina, e que ela tinha todo o

  • 8/22/2019 Gnero em debate: Masculinidade - texto 3

    3/5

    direito de sair assim quando bem achasse e que ela tinha o direito de se achar bonita egostosa, eu quase levei uma peixeira no bucho! Recebi ainda o apelido de tanga -frouxa... Imagina deixar a mulher decidir por si s para onde vai, quando vai e comque roupa quiser? Absurdo! Cad o macho repressor? Digo,protetor... no opresso, proteo, n?

    Eu ainda tive que argumentar com o pai dela pedindo para ele fazer umexerccio de imaginao: as mulheres rabes no andam de burca, aquela vestimentaque cobre quase tudo? Essas mesmas mulheres no deixam de passar por situaesdegradantes de intimidao! E por muito menos, se uma delas deixa o tornozelo mostra ou o pulso, j viu, n? Disse ainda ao pai da menina que para o homem bastaser proibido para ser cobiado, no importa muito o qu. Sendo assim mostrar umpouco dos seios ou uma parte do antebrao dava na mesma.

    Tambm tive problemas por "deixar" ela ir na mesma conduo que o ex-namorado dela todo dia de manh. Ela nunca escondeu que tinha uma quedinha porele sexualmente falando. Eu fiquei tranquilo, disse a ela que eu confiava no nosso

    relacionamento e que eu estava sempre disposto a satisfaz-la. Caso ela procurasseoutra pessoa para isso, poderia faz-lo sem problemas, era s me avisar queterminaramos o namoro numa boa. Eu era fiel ela, no nosso trato particular issoprescindia que ela tambm fosse, mas qualquer um dos lados podia quebrar estevnculo desde que achasse conveniente, se preocupando apenas em no enrolar ooutro. Mas fui tachado de corno manso, bon de galho e outras coisitas mais. Foi difcilignorar, te confesso, no posso impedir uma pessoa por sentir teso por outra, ela estnamorando, diferente de estar morta! Manter um relacionamento onde a meninatinha sua liberdade conservada era um problema.

    No fim essa garota passou no vestibular para uma federal e foi morar em outra

    cidade. Novamente fui cobrado pela minha ex-sogra a tomar uma atitude de homeme tentar impedir a mocinha de abandonar a famlia e o futuro noivo? Dono? Eudesejei a ela toda a sorte do mundo e disse tambm brincando para ela no pensar emnamoro e aproveitar os tempos de repblica (ser que fui idiota? s vezes penso quesim... penso s vezes que esse conselho foi um tanto machista por uma certa tica).Quase fui escalpelado pela famlia (as duas famlias, a minha e a dela), escapei porpouco.

    O texto est ficando maior que os seus, Lola. Vou resumir o final ento:Cresci, hoje sou adulto, conservo ainda algumas doses de troglodismo, por exemplo:acho que cantar uma mulher na rua diferente de flertar ou paquerar, a primeira

    situao uma invaso, uma ofensa; a segunda uma tentativa de conseguir umanamorada. Mas em balada me dou a permisso de chegar nas garotas e dizer coisasmais toscas.. Quase ao estilo pedreiro. Penso eu: t na balada, t disponvel e noquer nada srio! Eu sei que esse pensamento est errado e vou apagar ele da minhacabea, prometo. Tambm me pego s vezes dando risada de piadinhas machistas.Sei que a omisso outro fator que ajuda a manuteno dessa forma to medieval dese viver. Se eu vejo algum amigo comentando algo machista ou agindo de forma ruimcom alguma mulher, eu procuro dizer que ele est praticando uma atitude machista(aprendi no seu blog que a melhor maneira no acusar a pessoa de ser machista).Claro que eu passo a ser o alvo das prolas e improprios, porm no me coloco como

    vtima, de forma alguma, prefiro ajudar combatendo este mal dia a dia.

  • 8/22/2019 Gnero em debate: Masculinidade - texto 3

    4/5

    Lola, no penso em casar e/ou ter filhos, mas se algum dia eu ajudar a botaralguma criana no mundo (sou apenas coadjuvante, quem passa por todo o processotendo inclusive seu corpo modificado a mulher), quero que ele ou ela venha a nascernum contexto muito melhor que o meu! S poderei ter a certeza disso combatendomeus prprios pensamentos tortos e os das pessoas ao meu redor. Obrigado por

    publicar meu desabafo!

    Fonte:http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2011/03/guest-post-como-o-machismo-limita-vida.html

    MASCULINIDADE REPRESENTAO SOCIAL, VIOLNCIA E PODER

    Masculinidade diz respeito a um conceito que se refere ao conjunto de prticase aes que so legitimamente reconhecidas e aceitas no universo social como um

    padro de comportamento que afirma e realiza um ideal de masculino, querepresenta o homem no imaginrio cultural coletivo.

    Pensar essa masculinidade se tornou um interesse muito grande de diversosestudiosos e curiosos de gnero, na medida em que o sexo masculino seria, nocontexto de nossa sociedade ocidental-moderna-sexista, uma sntese histrica dessaconstruo.

    atravs da fora masculina, traduzida pelo pensamento de virilidade, que seadmite o monoplio do uso da fora evocado pelo papel social do homem comomantenedor desse status quo, desse modo, o perfil masculino almejado traduz-se coma consolidao do ethosguerreiro que se reflete nessa aptido natural dos meninos

    para o combate, a luta e as diversas formas de violncia simblica, psicolgica oufsica.

    R. W. Connel sugere a existncia de uma masculinidade hegemnica que serefere a uma espcie de organizao social da masculinidade. Nesse sentido, o autorcelebra uma construo de um padro que se impe como dominante num contextoonde o mesmo exerce relaes de poder intrnsecas ao seu status, que est calcado noaspecto de gnero. Connel admite que essa construo de gnero dinmica e plural,sendo, desse modo, portadora de relaes histricas e de contradies internas queabrangem o feminino e o masculino. Entretanto, quando o autor concebe a existnciade um padro hegemnico h que pontuar como essas condutas so estabelecidas e

    transmitidas atravs da sociedade. importante salientar, contudo, um tipo de fenmeno epidemiolgico queatinge o pblico masculino: as mortes por causas violentas. A violncia, nesse caso, uma realidade que mata mais homens do qualquer doena que conheamos e suasrazes tm motivaes sociais, histricas e econmicas. Entender o porqu de essasvtimas serem homens revelar uma constante em nossa histria.

    O processo de formao identitria revela uma ansiedade pela necessidade deadequar-se, o que compele os indivduos a compor rituais, a escolher seus smbolos.Alba Zaluar destaca que dois dos grandes cones do contexto simblico masculinoinfantil so: armas de fogo e automveis, sendo que assassinatos e acidentes esto

    entre as principais causa mortis desse pblico. A autora no pretende com istoestabelecer relaes determinsticas, so tentativas de interpretar a realidade em

  • 8/22/2019 Gnero em debate: Masculinidade - texto 3

    5/5

    funo de alguns valores, destacando que esses so influenciados por classe social,etnia, sexo e gnero.

    A concepo acerca da masculinidade no uma condio natural, nem fixa,nem universal existem vrias percepes que convivem na mesma unidade cultural,resultado de complexas elaboraes ideolgicas e polticas.

    O problema da violncia ser admitida e naturalizada como inerente aoprocesso de sociabilidade masculina que essa perspectiva permissiva comrepresentaes de violncia como forma de imposio de poder/fora. Aceitar aconduta violenta como prtica cotidiana, tpica, desejvel e coerente comoincorporar um trao psicolgico de controle e dominao que desenvolve valorestorpes de se conceber o social de forma hierarquizada e segregacionista.

    *Luciana Prazeres antroploga pela Universidade Federal da Bahia e aluna-a-oficial

    da Polcia Militar da Bahia.

    Fonte:http://abordagempolicial.com/2012/01/masculinidade-representacao-social-violencia-e-poder/