Geogenômica

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ABRIL DE 2016 WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR PESQUISA FAPESP ABRIL DE 2016 n.242 Biologia e geologia formam novo campo de estudos para entender a biodiversidade da Amazônia e da Mata Atlântica Geo- genômica EXEMPLAR DE ASSINANTE VENDA PROIBIDA n. 242 Estudos trazem as primeiras evidências de que o zika causa microcefalia Atraso de regulamentação de nova lei trava pesquisa com material genético Atividade comercial dos quilombos sobrevive nas comunidades negras rurais Lama de acidente em MG atinge unidades de conservação na costa brasileira Na universidade, docentes se tornaram burocratas, diz Eunice Durham Novas soluções tecnológicas procuram melhorar artefatos para pessoas com deficiência

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Pesquisa FAPESP - Ed. 242

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Page 1: Geogenômica

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estudos trazem as primeiras evidências de que o zika causa microcefalia

atraso de regulamentação de nova lei trava pesquisa com material genético

atividade comercial dos quilombos sobrevive nas comunidades negras rurais

lama de acidente em MG atinge unidades de conservação na costa brasileira

Na universidade, docentes se tornaram burocratas, diz eunice durham

Novas soluções tecnológicas procuram melhorar artefatos para pessoas com deficiência

Page 2: Geogenômica

A imagem da capa concretiza a parceria realizada na geogenômica: uma certa fusão e complementaridade entre a geologia e a biologia. O padrão ondulado está no corte de uma estalagmite, cuja formação levou entre 11 mil e 83 mil anos e que preserva em suas camadas informações climáticas de todo esse tempo. O ramo é uma amostra prensada e seca da planta Manaosella cordifolia, representante da diversidade vegetal investigada na Amazônia.

Fotos: Léo Ramos

Page 3: Geogenômica

PESQUISA FAPESP 242 | 3

Além do microscópioA imagem que lembra um grafite, com traços levemente borrados,

é uma das premiadas em 2016 pela britânica Wellcome Images, um dos repositórios

mais renomados de iconografia científica. Estão retratados três parasitas causadores

da toxoplasmose, vistos por uma técnica de microscopia conhecida como super-

resolução, que utiliza recursos ópticos, matemáticos e computacionais para ampliar

a visão fornecida pelo microscópio comum, de acordo com o biofísico carioca Leandro

Lemgruber. “Não chega à resolução do microscópio eletrônico, mas tem a vantagem de

podermos observar estruturas marcadas com anticorpos, além de observarmos material

vivo.” Assim, os pesquisadores podem visualizar proteínas de diversos protozoários,

como os causadores da malária e da doença do sono, e detalhar seu ciclo de vida.

FotolAb

Imagem enviada por Leandro Lemgruber, do setor de imagens do Centro Wellcome Trust de Parasitologia Molecular, da Universidade de Glasgow, Escócia

Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para [email protected], com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

Page 4: Geogenômica

CAPA16 Biólogos e geólogos unem esforços para explicar a diversidade biológica da Amazônia e da Mata Atlântica e criam uma nova disciplina, a geogenômica

ENTREVISTA22 Eunice DurhamReferência em estudos sobre educação superior, a antropóloga da USP revê sua trajetória e fala de universidade e ensino fundamental

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

30 InstituiçãoInstituto de Biociências em Rio Claro é referência em pesquisa na Unesp

34 InternacionalizaçãoInstituto de física teórica em Natal ganha sede e vai promover eventos de longa duração com cientistas de vários países

36 LegislaçãoLei da Biodiversidade cria novas regras para pesquisadores e empresas, mas regulamentação atrasa

40 Comunicação científicaFerramenta ajuda a encontrar artigos em acesso aberto ou cópias gratuitas de manuscritos publicados em revistas comerciais

abril 242

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56

TECNOLOGIA

66 BioengenhariaBengalas eletrônicas, exoesqueletos e máquinas de escrever em braille procuram melhorar a vida de pessoas com deficiência

70 AcústicaHidrofones revelam a paisagem sonora do fundo do mar

72 Novos materiaisFrutas e legumes são matéria-prima de plásticos que protegem alimentos e são comestíveis

76 QuímicaNovos biossensores devem detectar câncer no pâncreas e ovário com mais rapidez

HUMANIDADES

80 HistóriaTrocas de excedentes agrícolas dos quilombos com o entorno ainda sobrevivem nas comunidades rurais negras da atualidade, diz pesquisador

84 SociedadePara especialistas, profissionais da saúde deveriam falar sobre morte e luto entre si e com a família dos pacientes

88 História da saúdePreventivismo orientou a prática médica no estado de São Paulo na segunda metade do século XX

SEçÕES3 Fotolab5 Cartas6 On-line7 Carta do editor8 Dados e projetos9 Boas práticas10 Estratégias12 Tecnociência92 Arte94 Memória96 Resenha97 Carreiras99 Classificados

CIÊNCIA

42 EcologiaPoluentes chegam a 200 km ao norte e ao sul da foz do rio Doce, atingem unidades de conservação, alteram equilíbrio ecológico e se acumulam no assoalho marinho

48 SaúdeEquipes no Brasil e no exterior registram evidências de que o vírus zika causa microcefalia

52 NeurociênciasOdor de filhotes ativa em camundongos adultos células de órgão nasal associado a comportamentos instintivos

54 PaleontologiaEstudo reforça hipótese de que o maior dinossauro carnívoro também vivia em ambientes semiaquáticos

58 AstronomiaPlanetas gigantes gasosos situados próximo a suas estrelas podem lançar ao espaço moléculas essenciais à vida

60 FísicaPartículas recém-descobertas revelam novos arranjos possíveis para os principais componentes da matéria

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PESQUISA FAPESP 242 | 5

Parabéns para o engenheiro de produção que criou o site.

Aylana Cotrinho

BurocraciaA reportagem “Impasse burocrático desa-celera pesquisas com material genético”, publicada no site da revista, mostra uma situação absurda, que hoje impede o an-damento da minha pesquisa no exterior.

Vania Fonseca

ObesidadeA respeito da reportagem “Uma gordura contra a obesidade”, publicada no site, o vilão é sempre o mesmo, a inflamação, normalmente causada por má alimenta-ção. Para combatê-la, não tem segredo: alimentação saudável e exercícios.

Giovana Vasconcellos

VídeosExcelente trabalho o vídeo “Drones so-bre o campo”. Parabéns a todos os envol-vidos. Vamos precisar cada dia mais de inovações que auxiliem na otimização da produção agrícola.

Régis Vitória

Li o texto “Drones sobre o campo” (edi-ção 239), mas o vídeo complementa mui-to bem a reportagem: conhecer (um pou-co) o funcionamento dos drones e seu sistema de inteligência artificial!

Priscila Mary Yuyama

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected] ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

CARtAS [email protected]

Boas práticasSobre a nota “Mecanismos de correção” (seção Boas Práticas, edição 240), a mi-nha opinião é de que a opção por revistas de acesso livre e também pelo preprint reduziria o risco de plágio nas publica-ções científicas.

Stevens Rehen

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

UmbuVale a pena ler a reportagem “O cosméti-co que vem da Caatinga” (edição 240) e aproveitar os benefícios do umbu. Somos privilegiados pois temos acesso a esse fruto aqui na minha região. Parabéns aos colegas pesquisadores.

Elaine Martins

Paulo SaldivaA entrevista de Paulo Saldiva (edição 241) mostra um trabalho de total rele-vância. Comprova que meio ambiente saudável é ser humano saudável.

Ana Maria Brischi

A entrevista é excelente! Nós que mo-ramos em centros urbanos precisamos aprender outro jeito de nos relacionar com o meio ambiente, antes que não exista nem meio ambiente, nem pessoas para se relacionar.

telma Lucia Barroso

Formatação de referênciasIniciativa louvável a descrita na repor-tagem publicada on-line “Site ajuda a formatar referências científicas”. Porém, entregar um diploma de ensino superior para alguém que não tem a competên-cia mínima de fazer uma referência é preocupante.

Ivan Claudio Guedes

Sensacional essa nova ferramenta, Men-thor, divulgada no site de Pesquisa FA-PESP. Embora seja importante que todo estudante e profissional saibam formatar e fazer as referências de forma manual, mesmo que, agora, o software faça isso.

COntAtOS

Internet

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Page 6: Geogenômica

6 | abril DE 2016

xConsulte um pesquisador que investiga a origem da vida na Terra e provavelmente ouvirá que duas condições foram necessárias para que ela surgisse: a existência de água líquida e de uma atmosfera capaz de reter um pouco de calor e gerar, a partir de moléculas muito simples, outras mais complexas que formam os seres vivos. Esses fatores, porém, parecem não ter sido suficientes. Um estudo publicado na Astrophysical Journal Letters sugere que a vida no planeta poderia ter sido fulminada bem no início caso bilhões de anos atrás não existisse um escudo magnético como o que atualmente protege a Terra das partículas e do excesso de radiação emitidos pelo Sol. bit.ly/1opaAk2

xUm estudo publicado na Nature Cell Biology indica que o tecido adiposo marrom – um tipo benéfico de gordura – de camundongos obesos pode apresentar baixos níveis de uma forma específica de microRNA responsável pela supressão da proteína Bace1. Essa proteína, quando expressa em grandes quantidades, impede a formação de células adiposas características desse tipo de gordura. No estudo, os pesquisadores usaram um inibidor farmacológico para controlar os níveis de Bace1. Fazendo isso, conseguiram aliviar as complicações metabólicas e reativar a função de células adiposas do tecido marrom. A descoberta pode ampliar as perspectivas de terapias para o diabetes e outras doenças metabólicas. bit.ly/235SKSL

Exclusivo no site

A água é objeto de estudos nos mais diversos campos do conhecimento. Confira neste dossiê o que Pesquisa FAPESP já publicou sobre o assunto bit.ly/235SLX0

O engenheiro metalúrgico João Batista Ferreira Neto apresenta uma tecnologia que pode levar o país a produzir ímãs de alta potência

Rádio

A mais vista do mês no Facebook

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No site de Pesquisa Fapesp estão disponíveis todos os textos da revista em português, inglês e espanhol, além de conteúdo exclusivo

ABNT

site ajuda a formatar referências científicas

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ESpECiAL

As muitAs FAces dA águA

Confira nas fotos de Léo Ramos o primeiro satélite nacional de médio porte inteiramente projetado e construído no Brasil

galeria de imagens

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Page 7: Geogenômica

PESQUISA FAPESP 242 | 7

José GoldemberGPresidente

eduardo moacyr KrieGervice-Presidente

ConSElho SUPErIor

carmino antonio de souza, eduardo moacyr KrieGer, fernando ferreira costa, João fernando Gomes de oliveira, João Grandino rodas, José GoldemberG, maria José soares mendes Giannini, marilza vieira cunha rudGe, José de souza martins, Pedro luiz barreiros Passos, Pedro WonGtschoWsKi, suely vilela samPaio

ConSElho TéCnICo-AdmInISTrATIvo

José arana vareladiretor-Presidente

carlos henrique de brito cruzdiretor científico

Joaquim J. de camarGo enGlerdiretor AdministrAtivo

ConSElho EdITorIAlcarlos henrique de brito cruz (Presidente), caio túlio costa, eugênio bucci, fernando reinach, José eduardo Krieger, luiz davidovich, marcelo Knobel, maria hermínia tavares de almeida, marisa lajolo, maurício tuffani, mônica teixeira

ComITê CIEnTíFIColuiz henrique lopes dos santos (Presidente), anamaria aranha camargo, ana maria fonseca almeida, carlos eduardo negrão, fabio Kon, francisco antônio bezerra coutinho, Joaquim J. de camargo engler, José arana varela, José Goldemberg, José roberto de frança arruda, José roberto Postali Parra, lucio angnes, marie-anne van sluys, mário José abdalla saad, Paula montero, roberto marcondes cesar Júnior, sérgio robles reis queiroz, Wagner caradori do amaral, Walter colli

CoordEnAdor CIEnTíFIColuiz henrique lopes dos santos

dIrETorA dE rEdAção alexandra ozorio de almeida

EdITor-ChEFE neldson marcolin

EdITorES fabrício marques (Política), márcio ferrari (Humanidades), marcos de oliveira (Tecnologia), ricardo zorzetto (Ciência); carlos fioravanti e marcos Pivetta (Editores espe ciais); bruno de Pierro (Editor-assistente)

rEvISão margô negro

ArTE mayumi okuyama (Editora), ana Paula campos (Editora de infografia), alvaro felippe Jr., Júlia cherem rodrigues e maria cecilia felli (Assistentes)

FoTógrAFoS eduardo cesar, léo ramos

mídIAS ElETrônICAS fabrício marques (Coordenador) InTErnET Pesquisa FAPESP onlinemaria Guimarães (Editora)rodrigo de oliveira andrade (Repórter) renata oliveira do Prado (Mídias sociais)

rádIo Pesquisa Brasilbiancamaria binazzi (Produtora)

ColAborAdorES alexandre affonso, daniel bueno, evanildo da silveira, igor zolnerkevic, Jayne oliveira, maria hirszman, mario videira, negreiros, Pedro hamdan, valter rodrigues, yuri vasconcelos

é ProIbIdA A rEProdUção ToTAl oU PArCIAl dE TExToS E FoToS SEm PrévIA AUTorIzAção

PArA FAlAr Com A rEdAção (11) [email protected]

PArA AnUnCIAr midia office - Júlio césar ferreira (11) 99222-4497 [email protected] Classificados: (11) 3087-4212 [email protected]

PArA ASSInAr (11) 3087-4237 [email protected]

TIrAgEm 37.800 exemplaresImPrESSão Plural indústria GráficadISTrIbUIção dinaP

gESTão AdmInISTrATIvA instituto uniemP

PESQUISA FAPESP rua Joaquim antunes, no 727, 10o andar, ceP 05415-012, Pinheiros, são Paulo-sP

FAPESP rua Pio Xi, no 1.500, ceP 05468-901, alto da lapa, são Paulo-sP

secretaria de desenvolvimento econômico,

ciência e tecnoloGia govErno do ESTAdo dE São PAUlo

issn 1519-8774

fundação de amParo à Pesquisa do estado de são Paulo

CArTA do EdITor

A reportagem de capa desta edição flagrou um momento incomum do fazer científico: o nascimento

de uma nova disciplina. Biólogos e geólo-gos que estudam a formação da floresta amazônica e da Mata Atlântica iniciaram uma forma de cooperação que extrapo-lou a multidisciplinaridade. Para avançar nas pesquisas, os dois grupos de cientis-tas de setores tão distintos perceberam que precisavam mais do que informações esparsas sobre os assuntos que não do-minam – precisavam se aprofundar na seara uns dos outros e trabalhar juntos desde as primeiras perguntas do projeto em comum. A união das especialidades para estudar as florestas deu origem ao que vem sendo chamado desde 2014 de geogenômica, uma área nova de estudos integrados entre a biologia e a geologia (página 16).

Apenas uma especialidade não é su-ficiente para explicar a complexidade da Amazônia ou da Mata Atlântica. Para saber como a biodiversidade das gran-des extensões de mata foi formada é ne-cessário investigar tanto a parte vegetal quanto os cursos d’água, as montanhas e o subsolo. Rios são barreiras naturais para a mobilidade de organismos, mas nem sempre estiveram na posição on-de estão hoje porque as regiões passam por transformações significativas quan-do se leva em conta a escala geológica, de milhões de anos. Novas datações de minerais, por exemplo, podem alterar o modo como se vê a evolução da flora e fauna. Também já há trabalhos em que paleoclimatólogos usam dados genô-micos para testar hipóteses formuladas por geólogos.

Um impulso relevante ao novo cam-po de estudos veio da colaboração entre os programas Biota-FAPESP e Dimen-sions of Biodiversity, da norte-americana National Science Foundation (NSF). As

duas agências apoiam desde 2012 proje-tos de biodiversidade em que a congre-gação de grandes grupos de pesquisa-dores de especialidades diferentes per-mite analisar enormes quantidades de informações coletadas. Pelo entusiasmo demonstrado pelos participantes aqui e nos Estados Unidos, mais resultados não tardarão a surgir.

* * *Quando há urgência da sociedade sobre problemas de saúde, invariavelmente os pesquisadores são convocados para procurar as soluções. A emergência do vírus zika no Brasil e suas graves con-sequências mobilizam grande núme-ro de cientistas e laboratórios médicos em todo o mundo. Pode-se medir essa movimentação pelo número de artigos científicos publicados. Entre 1952 e 2015, o Pubmed, base de papers na área bio-médica, registrou 218 trabalhos sobre o vírus. Agora, só nos três primeiros meses de 2016, foram 307. Ainda não há saídas à vista, embora começar a entender o problema em um período tão curto de tempo já seja um avanço. A reportagem da página 48 apresenta alguns trabalhos que começam a demonstrar que o zika causa de fato a microcefalia.

* * *A entrevista da antropóloga Eunice Dur-ham registra uma visão de universidade e pedagogia pouco comum entre aca-dêmicos de qualquer área (página 22). Com ampla experiência como docente, pesquisadora e gestora de órgãos liga-dos ao ensino superior, ela defende um sistema de educação diverso e flexível. No ensino fundamental, diz que há pou-ca competência pedagógica e quase ne-nhuma valorização do mérito porque os professores não são avaliados. Vale a pena conhecer suas opiniões.

como nasce uma disciplina

neldson marcolin | EdITor-ChEFE

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8 | abril DE 2016

DaDos E projEtos

Papel do sistema renina-angiotensina em diferentes modelos inflamatórios orais: uma abordagem interdisciplinar experimental e clínicaPesquisador responsável: Carlos Ferreira dos SantosInstituição: Faculdade de Odontologia – Bauru/USPProcesso: 2015/03965-2Vigência: 01/02/2016 a 31/01/2021

TemáTIcos recenTesProjetos contratados em fevereiro e março de 2016

Previsão imediata de tempestades intensas e entendimento dos processos físicos no interior das nuvens. o sos-chuva (sistema de observação e Previsão de Tempo severo)Pesquisador responsável: Luiz Augusto Toledo MachadoInstituição: Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais/MCTI

Processo: 2015/14497-0Vigência: 01/02/2016 a 31/01/2020

Pesquisas em novos materiais envolvendo campos magnéticos intensos e baixas temperaturasPesquisador responsável: Gennady GusevInstituição: Instituto de Física/USPProcesso: 2015/16191-5Vigência: 01/03/2016 a 28/02/2021

Intensidade de dispêndios em P&D (fração do PIB)Dados de São Paulo, Brasil e Brasil menos São Paulo – 2008-2013

1,80%

1,60%

1,40%

1,20%

1,00%

0,80%

0,60%

0,40%

0,20%

0,00%

Orçamentos executados, federal ou estaduais: outras despesas governamentais, além daquelas executadas nos orçamentos das instituições de ensino superior (IES) públicas; inclui agências de fomento, institutos de pesquisa e outros.Ensino superior: dispêndios do orçamento das universidades e de outras instituições relativos às atividades de pós-graduação.Empresas: utiliza-se a metodologia dos Indicadores CT&I FAPESP 2010, com dados das Pintecs e investimentos (formação bruta de capital fixo).Obs.: A intensidade de dispêndios é calculada sobre o Produto Interno Bruto (PIB) de São Paulo, do Brasil e dos demais estados, referente aos anos utilizados.Fontes: Indicadores de CT&I – MCTI (dispêndios), IBGE (PIB), base de dados Indicadores de CT&I – FAPESP (empresas).

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2008 2009 2010 2011 2012 2013 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2008 2009 2010 2011 2012 2013

Total 1,56% 1,44% 1,62% 1,67% 1,68% 1,73% 1,10% 1,05% 1,12% 1,13% 1,15% 1,24% 0,88% 0,86% 0,87% 0,88% 0,93% 1,04%

Orçamento executado estadual 0,11% 0,11% 0,11% 0,10% 0,12% 0,12% 0,07% 0,07% 0,07% 0,06% 0,07% 0,06% 0,04% 0,05% 0,05% 0,04% 0,05% 0,04%

Orçamento executado federal 0,17% 0,18% 0,18% 0,16% 0,18% 0,19% 0,23% 0,26% 0,26% 0,24% 0,25% 0,31% 0,26% 0,30% 0,30% 0,28% 0,29% 0,36%

Ensino superior privado 0,02% 0,03% 0,03% 0,04% 0,04% 0,04% 0,02% 0,02% 0,02% 0,02% 0,02% 0,02% 0,02% 0,02% 0,02% 0,01% 0,02% 0,02%

Ensino superior estadual 0,26% 0,25% 0,26% 0,25% 0,27% 0,27% 0,12% 0,11% 0,12% 0,13% 0,14% 0,15% 0,05% 0,05% 0,05% 0,08% 0,09% 0,10%

Ensino superior federal 0,04% 0,05% 0,05% 0,06% 0,06% 0,06% 0,17% 0,16% 0,16% 0,16% 0,17% 0,19% 0,23% 0,21% 0,22% 0,21% 0,22% 0,24%

Empresas 0,95% 0,83% 0,99% 1,05% 1,03% 1,05% 0,50% 0,43% 0,49% 0,51% 0,50% 0,50% 0,27% 0,22% 0,24% 0,25% 0,27% 0,28%

são Paulo BrasIl BrasIl menos são Paulo

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PESQUISA FAPESP 242 | 9

Efeitos localizados da retratação

Revisão por pares defeituosa

Boas práticas

Um estudo feito por seis pesquisadores da Thomson Reuters, empresa de comunicação que produz informações sobre a ciência, analisou o impacto que casos de má conduta científica produzem em seu entorno e concluiu que o prejuízo se concentra nos artigos que são alvo de retratação e em seus autores principais, sem afetar a instituição onde o pesquisador acusado de fraude ou plágio atua. Quem inadvertidamente citou o artigo cancelado em seus trabalhos ou publicou outros papers em coautoria com o pesquisador acusado também mantém sua reputação acadêmica isenta dos efeitos deletérios da retratação. Os dados foram divulgados em fevereiro no repositório eletrônico arXiv.  

Os pesquisadores analisaram 2.659 artigos retratados em várias áreas do conhecimento entre 1980 e 2014, todos indexados na base de dados Web of Science, da Thomson Reuters. Desse total, identificaram o motivo do pedido de retratação de 1.666 papers. Mais de 25% eram casos de plágio. Aproximadamente 24% das retratações decorreram de erros não intencionais cometidos pelos autores e cerca de 23% dos artigos foram cancelados por falsificação ou fabricação de dados. Uma hipótese apresentada pelos autores da pesquisa é de que o plágio se tornou mais frequente com a crescente disponibilidade de literatura científica na internet.

Também se constatou que autores de papers retratados passam a ser menos citados. Autores que falsificaram ou fabricaram dados sofrem maior prejuízo na sua reputação do que os que cometeram erros não intencionais, e a repercussão do escândalo na imprensa potencializa esse efeito. As instituições de pesquisa ou

os campos do conhecimento aos quais o artigo retratado se vincula praticamente não sofrem impacto. O estudo cita um exemplo: o sul-coreano Woo-Suk Hwang, autor de dois artigos fraudulentos sobre células-tronco publicados na revista Science em 2004 e 2005, foi severamente punido com uma queda de citações de seus outros trabalhos, mas o prejuízo não atingiu o Colégio de Medicina Veterinária da Universidade Nacional de Seul, que manteve uma curva ascendente de citações. O estudo também revela que as retratações acontecem mais nas ciências médicas e biológicas.

“O aspecto mais original desse estudo é avaliar os efeitos da retratação em instituições e áreas do conhecimento”, afirmou Ferric Fang, autor de pesquisas sobre retratação e professor da Universidade de Washington.

A revista científica PLoS One admitiu que seu processo de revisão falhou na avaliação de um artigo publicado em janeiro, segundo o qual a arquitetura da mão humana foi “desenhada pelo Criador”. E anunciou a retratação do paper, assinado pelo pesquisador Cai-Hua Xiong e colegas da Universidade Huazhong de Ciência e Tecnologia, da China. O artigo foi duramente criticado por lastrear o resultado científico com uma crença religiosa, mas seu autor explicou à revista Nature que houve um problema de tradução. “O inglês não é nossa língua nativa e não compreendemos a conotação de muitas palavras, como ‘Criador’. Lamento o que aconteceu”, afirmou. Embora não houvesse erro nos resultados do

artigo, que analisou o movimento das mãos de 30 indivíduos, restou a sensação de que o paper foi publicado sem que os editores da revista o lessem com cuidado. Essa crítica é corriqueira para uma certa categoria de publicações científicas, aparentemente mais interessada em lucrar com a divulgação de artigos sem analisar sua qualidade. A PLoS One, contudo, não se encaixava nesse figurino. Conta com revisores de alto nível e publica um grande número de artigos (cerca de 30 mil por ano) mantendo um fator de impacto elevado para uma revista de acesso aberto. “O processo de avaliação por pares não analisou adequadamente vários aspectos do trabalho”, admitiram os editores da PLoS One, justificando a retratação.

“As evidências de que retratações resultam em declínio nas taxas de citação, particularmente quando há má conduta, são um sinal de que o sistema funciona como deveria”, disse ele ao blog Retraction Watch.

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Page 10: Geogenômica

10 | abril DE 2016

Estratégias

A Fundação Nobel anunciou a construção de uma nova sede na península de Blasieholmen, no centro de Estocolmo, Suécia. Orçado em US$ 146 milhões, o Nobel Center foi idealizado pelo arquiteto britânico David Chipperfield e deverá ficar pronto em 2019. Abrigará o museu da fundação e um auditório

Casa nova para a Fundação Nobel

onde será realizada a cerimônia anual da entrega do Prêmio Nobel, a honraria mais importante da ciência, concedida há 114 anos. Com área total de 25 mil metros quadrados, o prédio será aberto a visitantes e acolherá iniciativas culturais e educacionais e uma biblioteca. Uma das propostas é estabelecer

Skylar Kergil, ativista transgênero dos Estados Unidos

Para orientar adolescentes transgêneros

Os Institutos Nacionais de Saúde (NIH), principal organização de apoio à pesquisa médica dos Estados Unidos, anunciaram que destinarão US$ 5,7 milhões para apoiar um estudo sobre efeitos do retardamento da puberdade em adolescentes transgêneros. Para aliviar possíveis traumas em jovens que têm identidade divergente do gênero de nascimento, médicos têm adotado um tratamento controverso.

Os adolescentes recebem medicamentos que impedem o avanço da puberdade até que a capacidade de tomar decisões amadureça, iniciando um tratamento hormonal apenas a partir dos 16 anos de idade. O problema é que os efeitos colaterais, psicológicos e fisiológicos desse tipo de terapia ainda são pouco conhecidos. Robert Garofalo, pesquisador do Hospital de Chicago

parcerias com escolas da região e disponibilizar o espaço para professores desenvolverem atividades complementares. Também deverá promover exposições científicas. “Vamos aproveitar a experiência do Museu Nobel em Estocolmo para criar algo inteiramente novo e interativo. Haverá exposições permanentes,

dedicadas às áreas abrangidas pelo prêmio, e também atividades temporárias, conectadas a questões da atualidade”, informou um comunicado da fundação. Outro propósito será promover encontros entre cientistas de todo o mundo, por meio da realização de simpósios e conferências.

e coordenador do estudo, disse à revista Nature que o objetivo da pesquisa é encontrar a melhor forma de dar ajuda médica aos adolescentes transgêneros. No próximo mês, começarão a ser recrutados 280 voluntários. Um grupo receberá bloqueadores de puberdade no início da adolescência e o outro, formado por indivíduos um pouco mais velhos, hormônios do sexo oposto.

O futuro Nobel Center: auditório, biblioteca e exposições

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Milho mais resistente

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Em Michigan e Ohio

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Pesquisadores brasileiros e norte-americanos em encontro promovido pela FAPESP na Universidade de Michigan

Apoio privado à ciência

O documentarista e jornalista João Mo-reira Salles e sua mulher, Branca, anun-ciaram a criação de um instituto privado de apoio à ciência. Organizado como associação civil com sede no Rio de Ja-neiro, o Instituto XY (nome provisório) irá trabalhar com recursos de um fundo patrimonial constituído por meio de uma doação de cerca de R$ 20 milhões feita pelo casal. João é um dos filhos do em-presário e banqueiro Walther Moreira Salles (1912-2001). Comum em países como os Estados Unidos, esse modelo de financiamento, conhecido como en-dowment funds, é composto por doações cujos rendimentos são investidos em pesquisa, infraestrutura e bolsas. “O ob-jetivo é apoiar projetos de pesquisa e de divulgação científica no âmbito das ciên-cias e da matemática”, disse à Agência FAPESP o economista Rodrigo Fiães, encarregado de organizar o instituto e

A 13ª edição do simpósio internacional FAPESP week, realizada entre os dias 28 de março e 1º de abril nos estados norte-americanos de Michigan e Ohio, buscou estreitar as relações entre pesquisadores de São Paulo e dos Estados Unidos. Os encontros aconteceram na Universidade de Michigan, na cidade de Ann Arbor, e na Universidade do Estado de Ohio, em Columbus. A FAPESP mantém acordos de cooperação com as duas instituições. “O diferencial dessas duas universidades é que elas se destacam pelo interesse em consolidar parcerias de longo prazo em todas as áreas do conhecimento”, disse Marcelo Knobel, professor do Instituto de

Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador adjunto de colaborações em pesquisa da FAPESP. Joseph Kolars, docente da Escola de Medicina da Universidade de Michigan, destacou o impacto das parcerias nas áreas da saúde e medicina: “Um exemplo está na prevalência do câncer suprarrenal no Brasil, uma das maiores no mundo, mas uma doença rara nos Estados Unidos. Entretanto, temos experiência no tema e a colaboração com os brasileiros tem permitido avançar no tratamento desse problema”. Para Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, a aproximação com a Universidade do Estado de Ohio,

com a qual a Fundação assinou um acordo de cooperação em 2013, trouxe bons resultados nos últimos anos. “Foi produzido um elevado número de artigos nos últimos anos por pesquisadores do estado de São Paulo em conjunto com colegas de Ohio. Esse número saltou de 40 artigos por ano em 2009 para cerca de 300 em 2015”, disse Brito Cruz à Agência FAPESP.

selecionar seu diretor exe-cutivo. A ideia surgiu em 2010, quando Salles dava aulas no curso de cinema da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Ele verificou que, naquele ano, a instituição havia formado três físicos, dois matemáticos e 27 bacharéis em cinema. “A taxa de formação de engenheiros no Brasil é inferior à da China, da Índia e da Rússia, países emergentes com os quais com-petimos”, escreveu em artigo publicado em 2010 no jornal Folha de S.Paulo. Nos últimos anos, Salles promoveu encontros com pesquisadores e visitou agências de apoio no Brasil, como a FAPESP, e em outros países, como o Instituto Fraunho-fer, na Alemanha, a fim de levantar ideias para a consolidação do instituto. O XY deve começar a funcionar neste ano.

João Moreira Salles: instituto com dotação inicial de R$ 20 milhões

Instituições de pesquisa do México e de países da África lançaram uma parceria para desenvolver 70 novas variedades de milho, mais tolerantes à seca, à baixa fertilidade do solo e a pragas. O projeto Stress-Tolerant Maize for Africa (STMA) destina-se a combater os efeitos das mudanças climáticas na agricultura da África subsaariana, que sofre com uma redução da frequência e da intensidade de chuvas nas últimas décadas. A expectativa é de que as variedades aumentem a produtividade de milho em 30% a 50%, de acordo com o International Maize and wheat Improvement Center, sediado no México. Mais de 5 milhões de famílias de pequenos agricultores que plantam milho na região podem ser beneficiadas. “O projeto utilizará tecnologias modernas que conferem resistência a pragas e estresse hídrico”, disse ao portal SciDev.net Tsedeke Abate, líder do projeto e ex-diretor do Instituto de Pesquisa Agrícola da Etiópia.

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projeto, que teve também a participação do pesquisador Tiago Lucini. Os percevejos monitorados são da espécie Dichelops melacanthus. Eles inserem seus estiletes sugadores na planta e utilizam a saliva para destruir os tecidos e obter nutrientes, causando danos ao vegetal. Além do fio conectado ao inseto, outro filamento é instalado na planta hospedeira. É estabelecido um circuito elétrico quando o inseto insere os estiletes no vegetal. Os sinais elétricos que mostram as atividades dos percevejos são enviados ao computador e exibidos em forma de gráfico. O estudo vai servir de guia para futuras modificações genéticas nas plantas, para que elas possam expressar toxinas ou bloquear a ação dos insetos sugadores.

O último estágio da vida de 98% das estrelas da Via Láctea é virar uma anã branca, um astro pequeno, quente e extremamente denso, com massa similar à do Sol compactada em um tamanho equivalente ao da Terra. Depois de observar as linhas do espectro de absorção de 32 mil anãs brancas catalogadas pelo levantamento Sloan Digital Sky Survey (SDSS), que permitem inferir a composição química dos corpos celestes, o astrofísico Kepler de Souza Oliveira Filho, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e colaboradores identificaram uma estrela desse tipo com propriedades nunca antes observadas (Science, 1º de abril). Eles encontraram uma anã branca cuja atmosfera é quase

Um novo tipo de anã branca

totalmente composta de oxigênio, com traços residuais dos elementos neônio, magnésio e silício. “Não há uma teoria que explique a formação de uma anã branca assim”, diz Kepler. “Agora sabemos que elas são raras, mas existem.” Como regra geral, o núcleo das anãs brancas concentra os elementos mais pesados (usualmente carbono e oxigênio), enquanto os mais leves (hélio e hidrogênio) estão nas camadas mais externas (a atmosfera). No caso da SDSSJ1240+6710, nome pouco amigável da inusitada anã branca, o hélio e o hidrogênio não fazem parte de sua atmosfera. Os astrofísicos especulam que o sumiço desses elementos pode ser decorrente da interação do astro com uma estrela companheira, até agora não identificada.

Representação de uma anã branca (estrela menor): novo tipo tem atmosfera composta basicamente de oxigênio

TEcnociênciaPercevejo monitorado

A monitoração eletrônica da alimentação de percevejos, que pode ser útil no combate a esses insetos considerados pragas nas culturas de milho, soja e trigo, foi feita pela primeira vez no país. A técnica, conhecida pelo nome de Electrical Penetration Graph (EPG), é feita em laboratório e consiste na ligação dos percevejos a um eletrodo de cobre e a um fio de ouro conectado a um amplificador e a um computador. “Utilizamos cola com prata diluída para a passagem da corrente elétrica e uma lixa odontológica para raspar a cera no corpo do inseto onde implantamos o eletrodo”, explica Antônio Panizzi, pesquisador da Embrapa Trigo, de Passo Fundo (RS), coordenador do

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Percevejo com eletrodo (detalhe)

e equipamento de monitoração:

para entender danos à cultura do milho, soja e trigo

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PESQUISA FAPESP 242 | 13

Uma inesperada nuvem de prata

Achados inéditos marcam o estudo do composto químico tungstato de prata – material semicondutor, com potenciais aplicações em fibras ópticas, fotocatáli-se (acelerar uma reação com luz) e sen-sores – por parte do grupo do professor Elson Longo, no Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara (SP). Depois de observar no composto, em 2013, o crescimento espontâneo de bastões de prata que poderão ter uso como bactericida e fun-

gicida (ver Pesquisa FAPESP nº 212), a equipe do pesquisador descobriu que, em torno dos bastões, circula uma nuvem de partículas nanométricas de prata (Scientific Reports, 16 de março). “É uma novidade na literatura científica”, diz Longo. “A nuvem surge quando feixes do microscópio de emissão de elétrons incidem sobre os bastões. O trabalho melhora a compreensão do fenômeno de interação entre o elétron e o tungs-tato de prata.” As nanopartículas da

Amostra de tungstato de prata: nuvem de partículas

nanométricas circula em torno

do material

Canto virtual das aves

Gerado por um algoritmo evolutivo que controla o processo de simulação dos cantos de uma população virtual de aves, o modelo computacional EvoPio cria trilhas sonoras compostas de um conjunto de chilreios que nunca se repete. Desenvolvido pelo músico e engenheiro elétrico José Fornari, do Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora (Nics), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o software pode gerar, em sua versão atual, até 20 cantos simultâneos (International Journal of Arts and Technology, vol. 9, n. 1, 2016). O sistema emula o funcionamento da siringe, o órgão das aves equivalente às cordas vocais, e é controlado por um conjunto de 16 parâmetros, uma espécie de “cromossomo” computacional com as instruções para gerar os distintos cantos. Cada “cromossomo” se reproduz em duplas por meio de processos

equivalentes à recombinação genética e à mutação e, assim, gera uma nova ave virtual, com seu respectivo canto. “Quando essa ave ‘morre’, seu canto cessa e o cromossomo é apagado da população”, explica Fornari. “Não existem sons gravados nem qualquer outra forma de registro no sistema.” A versão mais nova permite ao pesquisador introduzir no sistema novas aves e cantos com o simples envio de uma mensagem do Twitter.

Saudáveis, mas com mutações

Depois de procurar por alterações diretamente associadas a 584 graves doenças infantis em um conjunto de 874 genes de quase 590 mil indivíduos, uma equipe de pesquisadores dos Estados Unidos, Canadá, Suécia e China encontrou 13 pessoas que permanecem saudáveis apesar de carregarem alguma mutação claramente ligada a uma de oito patologias conhecidas, como a fibrose cística e as síndromes de Pfeiffer e de Smith-Lemli-Opitz (Nature Biotechnology, 11 de abril). Os cientistas não sabem por que esses indivíduos não desenvolveram as doenças normalmente causadas pelas mutações e vão usar os dados

genômicos dos participantes do estudo para tentar encontrar algum fator biológico, talvez alterações em outros genes, que possam funcionar como proteção ao aparecimento desses problemas de saúde. Em certos casos, dizem os pesquisadores, talvez se chegue à conclusão de que a ligação entre essas mutações e certas doenças não é tão direta como se pensava. O estudo vasculhou parte do genoma de mais de meio milhão de indivíduos em busca de alterações consideradas como a causa de algumas doenças mendelianas, que podem aparecer já na infância e geralmente são ocasionadas por mutações em um único gene.

nuvem têm tamanho entre 1,5 e 2 nanô-metros e se juntam uma a uma como se fossem pingos de água para formar go-tas cada vez maiores. Ao final do pro-cesso mais prata metálica se deposita sobre o tungstato. Longo é coordenador do Centro de Pesquisa para o Desenvol-vimento de Materiais Funcionais (CDMF), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP.

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Armadilha de íons em chip

A física brasileira Diana Prado Lopes Aude Craik, 28 anos, que faz doutorado em física quântica na Universidade de Oxford, Inglaterra, ganhou a categoria Eureka (imagens que refletem novas descobertas) e também o prêmio principal de fotografia científica no concurso promovido pelo Engineering and Physical Sciences Research Council (EPSRC), agência do Reino Unido que financia pesquisas nas áreas de engenharia e ciências físicas. Com a imagem de um chip de ouro usado para armazenar íons em experimentos de computação quântica, desenvolvido por ela e por um colega da universidade, Diana superou mais de 200 concorrentes. A foto mostra os fios de ouro do chip conectados a eletrodos que transmitem campos elétricos cujo objetivo é aprisionar íons individuais cerca de 100 mícrons acima da

superfície do dispositivo. “Quando um potencial elétrico é aplicado sobre os eletrodos de ouro do chip, íons atômicos individuais podem ser aprisionados. Esses íons são usados como bits quânticos, os qubits, unidades que armazenam e processam informação em um computador quântico”, disse a brasileira, após ser anunciada vencedora da competição. “Dois estados de energia dos íons atuam como [as posições] 0 e 1 desses qubits. Eletrodos encaixados no chip fornecem radiação de micro-ondas para os íons, permitindo manipular a informação quântica armazenada por meio do estímulo da transição entre os estados de energia 0 e 1.” O dispositivo foi fabricado com a técnica de fotolitografia, usada para fazer circuitos integrados. Por ter vencido o prêmio principal, Diana ganhou material fotográfico no valor de £ 500 (R$ 2.537,00).

Agricultura resseca o Cerrado

Quanto mais a vegetação nativa do Cerrado cede área para a agricultura, mais reduzido se torna o volume de chuvas disponíveis à própria atividade agrícola. O alerta é de um estudo conduzido por Stephanie Spera, da Universidade Brown (EUA), e colaboradores, inclusive a ecóloga brasileira marcia macedo, do Centro de Pesquisa Woods Hole (Global Change Biology, 29 de março). Eles analisaram imagens de satélite feitas durante 11 anos na região conhecida como matopiba, que abrange os estados de Tocantins, maranhão, Piauí e Bahia, e viram um grande avanço da fronteira agrícola. Em 2003, havia 1,2 milhão de hectares

(ha) cultivados. Em 2013, a agricultura ocupava 2,5 milhões de ha. Três quartos do avanço do plantio ocorreram sobre terras antes cobertas por vegetação nativa, quase toda de Cerrado. Também a partir das imagens de satélite foi possível avaliar a quantidade de água lançada ao ar pelas folhas das plantas, a evapotranspiração. Na estação das chuvas, de outubro a abril, quando a lavoura está crescendo, a evaporação nas áreas com plantio é similar à verificada nas áreas com vegetação nativa. O problema ocorre no período seco, quando as lavouras estão na entressafra. Durante os meses de estiagem, o volume de evapotranspiração é em média 60% menor nas áreas com cultivo do que nas com vegetação nativa. O risco é de que a falta da umidade do ar agrave a seca e acabe por adiar o início da estação chuvosa, encurtando o período produtivo. Como a umidade circula por correntes de ar, os autores temem que os efeitos dessa seca não fiquem restritos ao Cerrado e cheguem à Amazônia. Uma forma de reduzir o problema é plantar dois cultivos por ano na mesma terra, como o milho safrinha em seguida à soja. Essa prática alonga o período de crescimento das plantas e pode representar uma redução menor da evapotranspiração.

Chip de ouro: primeiro lugar em concurso de fotografia científica noReino Unido

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Imagens de satélite de região do Cerrado: área agrícola dobrou de tamanho entre 2003 (alto) e 2013

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Uísque produz manchas uniformes

A forma como o uísque evapora e deixa resíduos relativamente uniformes no fundo do copo pode fornecer dicas importantes para a criação de novas formas de pintura ou revestimento industriais. Pesquisadores da Universidade de Princeton (EUA), com a ajuda do fotógrafo profissional Ernie Button, descobriram que alguns tipos de moléculas, como os surfactantes (compostos que reduzem a tensão superficial entre dois líquidos) e os polímeros de plantas, atuam de forma decisiva para que as manchas

da bebida alcoólica formadas no fundo de um copo limpo apresentem tal disposição espacial (Physical Review Letters, 24 de março). Os pesquisadores usaram marcadores florescentes para medir o movimento de fluidos no interior de gotas de uísque durante o processo de evaporação e observaram um fluxo vindo das bordas das manchas para o centro. Essa corrente interna se contrapõe, ao menos parcialmente, à tendência de as gotas evaporarem mais rapidamente em suas

A bactéria que “come” garrafas PEt

Uma nova espécie de bactéria, denomi-nada Ideonella sakaiensis, pode quebrar as moléculas e digerir plásticos do tipo poli (tereftalato de etileno), conhecido como PET, material utilizado em garrafas de refrigerantes e água (Science, 13 de março). Um filme fino do plástico, de 60 microgramas, foi degradado em seis se-manas pelo microrganismo, que foi des-coberto pelo grupo de Kohei Oda, do Instituto de Tecnologia de Kioto, no Ja-pão. A bactéria utiliza duas enzimas, a petase e a metase, para degradar e pro-cessar o PET. Foi necessário ir a campo para descobrir a bactéria. Primeiro, os cientistas coletaram em um centro de reciclagem 250 garrafas PET com todo tipo de resíduo, como água, lama e se-dimentos do solo. Em seguida, no meio desse material, identificaram vários mi-crorganismos, entre os quais a Ideonella sakaiensis. O descarte de artefatos de PET é um grande problema ambiental. Apenas em 2013 foram produzidas cer-ca de 56 milhões de toneladas do plás-

tico em todo o mundo. Oda esteve no Brasil, em 2007, em visita financiada pela FAPESP, a convite de Luiz Juliano Neto, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ele veio estudar bactérias pre-sentes nas fezes de animais que pudes-sem ter uso industrial, principalmente na decomposição de PET, e também para participar de pesquisas sobre enzimas proteolíticas, que ajudam a degradar proteínas (ver Pesquisa FAPESP nº 142).

Garrafas PET: bactéria degradou filme de 60 microgramas do plástico em seis semanas

morte fetal diminui no país

A taxa de óbitos fetais no Brasil caiu 22,9% em um período de 16 anos, segundo estudo de pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Baixou de 13,4 mortes por mil nascidos em 1996 para 10 por mil nascidos em 2012 (Maternal and Child Health Journal, 23 de março). Dois terços dos óbitos fetais ocorreram quando as grávidas tinham passado da 28ª semana de gestação e mais de 40% deles ocorreram por causas não especificadas. Apesar de registrar uma queda gradual, o índice nacional ainda é quase o dobro do verificado em países desenvolvidos e apresenta grandes variações em razão do grau de instrução das mulheres e do nível de desenvolvimento das regiões brasileiras. Em mulheres sem nenhuma instrução formal, a taxa foi de 24,3 mortes por mil nascidos em 2012, cinco vezes maior do que em gestantes com pelo menos 12 anos de estudo.

margens do que no centro, fenômeno presente em grande parte dos líquidos, como no café, que gera manchas sem uniformidade. No caso do destilado, os surfactantes se acumulam nas bordas e criam um gradiente de tensão superficial (o chamado efeito maringoni) que empurra o líquido para o centro da mancha. O papel dos polímeros na criação de manchas uniformes é um pouco diferente: eles se fixam no fundo do copo e atraem partículas ao substrato a que aderiram.

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Gotas secas de uísque: entender o processo de formação das manchas pode ser útil para criar novas pinturas

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capa

Ramos prensados e secos são armazenados como registros de espécies de plantas, como esta Pyrostegia venusta

por mais que biólogos explorem o chão, as árvo-res e os corpos d’água, eles ainda parecem longe de estimar e explicar a diversidade biológica das florestas tropicais. Mais do que isso, falta explicar como e quando surgiram montanhas, rios e tudo

o que está por baixo da mata. Projetos centrados na Amazô-nia e na Mata Atlântica agora buscam respostas: biólogos e geólogos vêm trabalhando juntos em busca de decifrar essa história numa disciplina batizada em 2014 como geogenô-mica pelo geólogo Paul Baker, da Universidade Duke, nos Estados Unidos. Um grande impulso para o campo veio da colaboração entre os programas Biota-FAPESP e Dimen-sions of Biodiversity, da National Science Foundation (NSF), a principal agência norte-americana de fomento à ciência. “Projetos dessa natureza precisam de uma abordagem par-ticipativa desde a elaboração das perguntas”, comenta a botânica Lúcia Lohmann, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), que coordena com o ornitólogo norte-americano Joel Cracraft, do Museu Ame-

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Biólogos e geólogos unem esforços para explicar a

diversidade biológica da Amazônia e da Mata Atlântica

e criam uma nova disciplina, a geogenômica

para entender a

origem da floresta

Maria Guimarães

ricano de História Natural, o primeiro projeto a concretizar a parceria, com foco na Amazônia.

Para integrar as equipes, foi preciso inicialmente vencer barreiras básicas de comunicação. “Um geólogo apresentava uma palestra e os biólogos ficavam perdidos”, conta Lúcia. E vice-versa. “Na primeira reunião passamos duas horas expli-cando um único slide aos geólogos”, lembra a bióloga Cristina Miyaki, também do IB-USP e coordenadora de um projeto semelhante, porém na Mata Atlântica. Estabelecido um vo-cabulário em comum, as trocas começaram a tomar forma. “Agora é óbvio que projetos dessa natureza devem contar com pesquisadores de ambas as áreas desde o início, mas não era essa a visão antes de começarmos”, diz Lúcia.

Outro entrave nada trivial à integração do conhecimento é a escassez de dados. “Precisamos ter todas as filogenias datadas, com bancos de dados georreferenciados para produzir mapas de distribuição antes de poder cruzar com os dados geológi-cos”, conta Lúcia. Ela e seus colaboradores têm uma expedição para a Amazônia planejada para este ano. “Vamos coletar da-

dos de diferentes organismos para avaliar em que extensão os rios Negro e Branco representam barreiras para a dispersão.”

É fácil imaginar que rios caudalosos limitam a mobilidade dos organismos, mas, quando os biólogos usam o DNA para resgatar informações da história das espécies, nem sempre é o que veem. “Para as plantas, os rios não parecem ser barreiras importantes”, diz Lúcia, especialista na família Bignoniaceae. Já a circulação de primatas pode ser limitada por eles, como mostra o primatólogo brasileiro Jean Philippe Boubli, da Uni-versidade de Salford, na Inglaterra. Ele também é pesquisa-dor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), e por isso tem acesso a um acervo importante de amostras de primatas depositadas na instituição. “Temos uma cobertura quase completa de amostras de primatas amazônicos e, com a genômica, conseguiremos investigar o papel dos grandes rios na origem da diversidade do grupo”, planeja. Com uma nova filogenia dos sauás, ou zogue-zogues (Callicebus), pu-blicada em março deste ano na revista Frontiers in Zoology, ele, sua aluna de doutorado Hazel Byrne e colegas indicam Fo

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divergências profundas que justificam a criação de dois novos gêneros: Cheracebus, para as espé-cies dos rios Negro e Orinoco, e Plecturocebus, no sul do Amazonas. Callicebus ficaria reservado às espécies da Mata Atlântica. “Eles podem ser a chave de tudo”, diz o pesquisador. É um grupo muito antigo e rico em espécies, por isso é ideal para testar o papel de fatores como os rios e mu-danças climáticas na diversificação das espécies. “A colaboração com os geólogos está abrindo nossos olhos para coisas que não sabíamos da Amazônia”, diz.

“O que vem ficando claro é que as hipóteses postuladas nas últimas décadas acabam sendo simplistas para a complexidade da Amazônia”, reflete a bióloga Camila Ribas, do Inpa, que in-tegra o projeto de Lúcia e também o de Baker. “A Teoria dos Refúgios prevê que as espécies atuais teriam se originado durante os ciclos glaciais, dos quais o último aconteceu há cerca de 18 mil anos”, exemplifica. Mas as diferentes regiões da Amazônia parecem ter passado por processos distintos e as espécies respondem de forma dife-rente às condições locais. As aves, especialidade de Camila, são um bom exemplo de organismos muito heterogêneos na lida com o ambiente: as que conseguem voar longas distâncias, por exem-plo, são menos afetadas por barreiras. No ou-tro extremo os jacamins (gênero Psophia), aves amazônicas que quase não voam, se tornaram o exemplo por excelência de como os grandes rios funcionam como as principais barreiras entre es-pécies, de acordo com estudo publicado em 2012 na Proceedings of the Royal Society B por Camila e colaboradores.

Mais recentemente, um dos projetos da bióloga do Inpa investiga a fauna de aves típicas de áreas de areia branca na Amazônia, como relatou em artigo publicado este ano na Biotropica, resulta-do do mestrado de sua aluna Maysa Matos. “São manchas de areia branca no meio de um mar de floresta, com uma vegetação aberta, mais pare-cida com a da Caatinga ou do Cerrado”, explica Camila. A surpresa é que os animais encontrados em manchas distantes são mais semelhantes do que se imaginaria, mesmo que hoje não consigam atravessar a floresta. Os resultados suscitam uma série de perguntas, como há quanto tempo aque-le ambiente existe e se a floresta teria sido mais permeável a esses animais no passado.

Outro dos alunos de Camila, Leandro Moraes, analisou durante o mestrado o papel dos rios Ta-pajós e Jamanxim, no Pará, em limitar a distri-buição de anfíbios e répteis. Os resultados, que serão publicados em breve na revista Journal of Biogeography, mostram que um terço das es-pécies de anfíbios tem a movimentação restrita pelos rios, proporção que cai para apenas 8% nas cobras e lagartos. O trabalho busca avaliar

a importância desses rios na configuração da paisagem e dos hábitats adequados a esses ani-mais, e por isso Camila o considera um exemplo de como o projeto começa a integrar as áreas de conhecimento.

paISaGEM MUtantENos últimos anos, começou a se sedimentar uma noção de que a drenagem da bacia amazônica evoluiu sobretudo nos últimos 3 milhões de anos (e não 15 milhões, como postulavam as estimati-vas anteriores), uma escala temporal que parece concordar com o que indicam os dados de ani-mais e plantas. O istmo do Panamá, outra estru-tura com grande relevância para a biogeografia porque permitiu migrações entre a América do Sul e as Américas Central e do Norte, também mudou de idade. Um estudo liderado pelo geó-logo Camilo Montes, da Universidad de los An-des, Colômbia, publicado na Science em abril de 2015, analisou minerais de origem panamenha encontrados na América do Sul e estimou essa formação entre 13 milhões e 15 milhões de anos atrás – 10 milhões a mais em relação ao que se pensava antes. “A nova datação muda totalmente como se vê a movimentação passada da flora e da fauna na região, nos obriga a reavaliar toda a literatura”, afirma Lúcia Lohmann.

“a colaboração está abrindo nossos olhos para coisas que não sabíamos da amazônia”, diz Boubli

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Essa reavaliação tem se revelado muito mais produtiva com a união de especialistas. “Os evo-lucionistas e biogeógrafos precisam conhecer a história geológica para entender por que as espé-cies vivem onde vivem, e mesmo como as espécies vieram a existir”, explica Paul Baker, inventor do termo “geogenômica”. Ele tem o plano ambicio-so de fazer cinco furos de sondagem próximos a grandes rios amazônicos, com profundidades que podem chegar a 2 quilômetros, para ter aces-so contínuo a amostras de sedimentos de várias idades, até cerca de 65 milhões de anos atrás. Em reunião no Inpa no ano passado, ele e colegas do projeto da Amazônia chegaram a um acordo sobre que tipos de dados obtidos com a emprei-tada poderiam ajudar a reconstituir a história geológica, climática e biótica. Agora o desafio é conseguir o financiamento. “Nosso orçamento só para a perfuração é de US$ 7 milhões”, conta.

O projeto de Baker parte da geologia, enquanto no de Lúcia as perguntas surgem sobretudo da biologia. A geogenômica, entretanto, pretende ser uma via de mão dupla. “A ideia é que geólo-gos também possam usar dados biológicos para responder a perguntas geológicas”, diz ele. As datas estimadas para o surgimento das espécies dos jacamins de Camila, por exemplo, podem ajudar a estimar a idade dos grandes rios como o Amazonas, o Xingu, o Tapajós e o Madeira, segundo Baker.

“Os dados biológicos fornecem uma ordem de grandeza que permite gerar as hipóteses que podemos testar com as idades absolutas prove-nientes de datações geocronológicas”, concorda o sedimentólogo Renato Almeida, do Instituto de Geociências (IGc) da USP. Junto com o co-lega André Sawakuchi, ele investiga a forma-ção dos depósitos sedimentares que compõem a bacia amazônica. “É uma área do tamanho de um continente com uma escassez de dados ab-

surda”, afirma. Reduzir esse desconhecimento não é tarefa que poderá ser realizada dentro do

tempo do projeto atual, e a maior parte dos dados que o grupo vem

levantando ainda não está pu-blicada. Além de começar a pintar um quadro geográfico do passado, uma missão da equipe é ajudar os biólogos a distinguir quais das hipóteses

têm mais fundamento para ex-plicar os padrões biogeográficos.

O trabalho vem mostrando que o soerguimento da cordilheira dos Andes aos pou-cos empurrou para leste a água de um imenso lago que havia na região e foi formando as drenagens de maior porte em direção ao oceano Atlântico. Uma das técnicas para revelar o passado dos rios é a luminescência opticamente estimulada, que depende da coleta, em tubos de alumínio, de se-dimentos dos barrancos que ladeiam os rios. “De volta ao laboratório, conseguimos datar a última vez que o grão de quartzo foi exposto à luz do sol”, explica o geógrafo Fabiano Pupim, pesquisador de pós-doutorado no laboratório de Sawakuchi. O grupo também enxerga uma rica informação na configuração dos sedimentos nesses paredões jun-to aos rios, que chegam a ter 20 metros de altura. As estruturas internas permitem inferir a escala e o sentido do rio quando aquele sedimento foi depositado, entre outras informações.

Imagens de sonar mostram que o fundo de rios como o Amazonas, outro território desconheci-do, tem dunas de até 12 metros de altura. “Pre-cisamos entender como funciona um rio dessas dimensões para inferir como eram os grandes rios do passado”, diz Almeida. Em colaboração com o geólogo Carlos Grohmann, do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, ele também investiga a dinâmica dos rios por meio de séries temporais de imagens de satélite.

Grandes rios limitam a distribuição de espécies como Psophia crepitans (esquerda) e Cebus olivaceus (abaixo), mas não de plantas cujas sementes são carregadas pelo vento (acima)

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A importância é maior do que a função dos rios como barreiras. Os cursos d’água e os sedi-mentos que vieram dos Andes formaram o mo-saico de ambientes que caracterizam a Amazô-nia, com áreas secas e de alagamento periódico. Sawakuchi, Pupim e equipe (sobretudo os alu-nos de mestrado Dorília Cunha e Diego Souza) têm investigado a formação dos arquipélagos de Anavilhanas e do tabuleiro do Embaubal, no rio Amazonas, nos últimos 10 mil anos. O surgimento desse tipo de ambiente e dos rios propriamente ditos representa escalas de tempo distintas, cujo significado o geógrafo espera complementar com os dados biológicos.

clIMa FlUtUantE Mas nem só de água terrestre vivem as florestas. Francisco William da Cruz Júnior, do IGc-USP e um dos coordenadores da parte geológica na geogenômica brasileira, usa espeleotemas (for-mações de composição carbonática de cavernas), principalmente estalagmites, para inferir o clima do passado. Os dados obtidos por seu grupo de pesquisa indicam que a Era Glacial na América do Sul não era árida como se pensava. “Parte do continente estava seca, mas outras áreas eram úmidas, o que pode ter favorecido até mesmo a expansão das florestas, como na Amazônia pe-ruana e na parte sul da Mata Atlântica”, afirma.

Com base na análise de isótopos de oxigênio contidos no carbonato de cálcio do material das cavernas, ele observa que diferentes partes da Amazônia e regiões adjacentes passaram por pro-cessos muito distintos, como fica claro em artigo de que participou, em conjunto com biólogos da equipe, sob a coordenação do colega chinês Hai

Cheng e publicado em 2013 na Nature Communi-cations. As datações indicam que, nos últimos 250 mil anos, o clima do oeste da Amazônia se manteve mais estável do que a região a leste, no Pará, com um fortalecimento das chuvas durante os perío-dos glaciais – entre 100 mil e 20 mil anos atrás. O grupo interpreta essa relativa estabilidade como responsável pela alta biodiversidade encontrada hoje na região, enquanto a parte leste da Amazô-nia, menos rica em espécies, passou por varia-ções climáticas drásticas que podem ter levado a extinções. “Estamos desafiando um paradigma”, diz Cruz. “A estabilidade climática pode ter sido mais importante do que os refúgios para gerar o padrão de alta diversidade encontrado hoje na flo-resta amazônica, principalmente junto aos Andes.”

No período glacial o oeste da Amazônia pare-ce ter sido bem úmido, assim como o domínio da Mata Atlântica no Sul e Sudeste brasileiros. Cruz tem indícios de uma faixa climática que une essas duas regiões e tem características opostas à área que inclui o Pará, no leste da Amazônia, e a região Nordeste, que varia em ciclos de cerca de 23 mil anos. “Esse padrão está sendo testado tanto no projeto da Amazônia como no da Mata Atlântica.” Ele defende que essas correspondências possibi-litaram a formação de corredores entre os dois biomas, que explicam casos de parentesco maior entre espécies da Amazônia e da Mata Atlânti-ca, em relação a espécies de um mesmo bioma. Cruz postula que em um período no qual se su-põe uma alta umidade no leste da Amazônia e no Nordeste do país, as florestas tropicais devem ter se expandido, formando uma ponte de floresta entre os dois biomas. Mais tarde, há indícios de chuvas mais abundantes na região mais próxima ao sopé dos Andes e no Sul e Sudeste brasileiros, também com possibilidade de expansão das flo-restas até o encontro da Amazônia com a Mata Atlântica. “Estamos atualmente testando quais seriam essas fases.”

Um testemunho dessa dinâmica são as folhas fossilizadas coletadas por Cruz no vale do rio São Francisco, região hoje recoberta por Caatinga. “Elas indicam que a região foi rapidamente co-berta por vegetação úmida entre 18 e 15 mil anos atrás”, afirma. Mesmo na atualidade, há uma co-nexão climática direta entre os dois biomas: no verão, a umidade que viaja desde a Amazônia determina o que acontece na Mata Atlântica, por exemplo. “Não dá para restringir o estudo a um quadro local, nem é interessante”, diz Cruz.

Iniciado um ano depois do projeto da Amazô-nia, o da Mata Atlântica, coordenado pelas biólo-gas Cristina Miyaki, da USP, e Ana Carolina Car-naval, da Universidade da Cidade de Nova York, está em um estágio mais inicial da integração das especialidades. “Vários artigos em que estamos trabalhando neste terceiro ano incluem o ângulo

em laboratório iluminado apenas com luz vermelha é possível saber há quanto tempo sedimento recebeu a luz solar

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ou a hipótese que o time de paleoclimatólogos (ou o de sensoriamento remoto) trouxe para nossa equipe”, diz Ana. Um trabalho com dados genô-micos testando hipóteses formuladas por Cruz e outros integrantes da equipe geológica, como a palinologista Marie-Pierre Ledru, do Instituto de Ciências da Evolução em Montpellier, França, está sendo finalizado para publicação. “É legal demais porque a paleoclimatologia indica um caminho que a genômica testa e vê o que confe-re, o que não confere”, conta. “Depois trazemos a discussão de novo para os paleoclimatólogos, para refinar as ideias.”

Os resultados estão surgindo e prometem ren-der muitos frutos nos próximos anos, quando o financiamento atual já tiver sido substituído por outros projetos. Firmar a parceria é, parece, a maior conquista. “Estamos começando a deli-mitar o que ainda não está entendido”, diz Cris-tina. Seu trabalho sempre envolveu suposições do campo da geologia para entender a diversifi-cação de aves na Mata Atlântica. Mas agora, com o novo aprendizado, vem a sensação de que as análises eram muito superficiais e as interpreta-

ções, apesar de serem as melhores possíveis na época, ingênuas.

A geogenômica é um exemplo da melhor ciên-cia moderna. “De certa maneira voltamos à his-tória natural antiga, em que os pesquisadores tinham conhecimento de biologia e de geologia”, brinca Cristina. Mas, com técnicas cada vez mais especializadas, bancos de dados mais e mais gi-gantescos e um nível crescente de detalhes, a única maneira de se reunir esse conhecimento é a congregação de grandes grupos. Passados os primeiros anos em que cada especialidade conti-nuou a produzir trabalhos semelhantes aos que já faziam antes, de agora em diante devem começar a aparecer os resultados realmente integrados. n

camadas de estalagmite (acima) e folhas fossilizadas (abaixo) são indicadores de clima do passado

projetos1. estruturação e evolução da biota amazônica e seu ambiente: uma abordagem integrativa (nº 2012/50260-6); Modalidade programa Biota/dimensions-nsf; Pesquisadores responsáveis lúcia lohmann (iB-Usp) e Joel cracraft (AMnH); Investimento R$ 3.752.671,77. 2. dimensions Us-Biota são paulo: integrando disciplinas para a predi-ção da biodiversidade da floresta Atlântica no Brasil (nº 2013/50297-0); Modalidade programa Biota/dimensions-nsf; Pesquisadoras responsáveis cristina Miyaki (iB-Usp) e Ana carolina carnaval (cUnY); Investimento R$ 3.781.927,16.

Artigos científicosBAKeR, p. A. et al. The emerging field of Geogenomics: constraining geological problems with genetic data. Earth-Science Reviews. v. 135, p. 38-47. ago. 2014.BYRne, H. et al. phylogenetic relationships of the new World titi monkeys (Callicebus): first appraisal of taxonomy based on molecular evidence. Frontiers in Zoology. v. 13, n. 10. 1º mar. 2016.cHenG, H. et al. climate change patterns in Amazonia and biodiversity. nature communications. v. 4, n. 1.411. 29 jan. 2013.MATos, M. V. et al. comparative phylogeography of two bird species, Tachyphonus phoenicius (Thraupidae) and Polytmus theresiae (Trochi-lidae), specialized in Amazonian White sand Vegetation. Biotropica. v. 48, n. 1, p. 110-20. jan. 2016.MoRAes, l. J. c. l. et al. The combined influence of riverine barriers and flooding gradients on biogeographical patterns for amphibians and squamates in south-eastern Amazonia. Journal of Biogeography. no prelo.RiBAs, c. c. et al. A palaeobiogeographical model for biotic diversifi-cation within Amazonia over the past three million years. proceedings of the Royal Society B. v. 279, n. 1.729, p. 681-9. 11 jan. 2012.Fo

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entrevista

a contribuição da antropóloga Eunice Ribeiro Dur­ham, de 83 anos, para o conhecimento sobre o siste­ma educacional do Brasil divide­se em duas searas. No campo acadêmico, ela coordenou o Núcleo de

Pesquisas sobre Ensino Superior (Nupes), da Universidade de São Paulo (USP), um grupo interdisciplinar que entre 1989 e 2005 ajudou a pautar as discussões sobre o sistema universi­tário do país ao produzir estudos comparativos e reflexões sobre o tema. Já na seara pública, ela teve duas passagens pelo Ministério da Educação (MEC).

Entre 1990 e 1992, presidiu a Coordenação de Aperfeiçoa­mento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e foi secretária de Ensino Superior. E, entre 1995 e 1997, assumiu a Secretaria de Política Educacional, um órgão de planejamento no qual ampliou o escopo de suas preocupações para os ensinos fun­damental e médio. Não foi um mero caso de pesquisador que levou sua experiência teórica para o governo. “Existe aquele slogan ‘saber é poder’, mas aprendi que o poder também é saber. No ministério, tive uma visão global do sistema e das diferentes dinâmicas em que ele funciona que eu jamais tive da perspectiva das ciências sociais”, afirma.

Crítica do corporativismo acadêmico e do gigantismo das universidades públicas, Eunice Durham defende um sistema de educação superior diverso e flexível, que reúna diferentes

Eunice Durham

idade 83 anos

especialidade Antropologia rural e urbana, Políticas educacionais

Formação Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (graduação, mestrado, doutorado, livre-docência)

instituição Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

produção cientíFica Escreveu ou organizou 8 livros. É autora de 31 capítulos de livros e de cerca de 50 artigos acadêmicos

modelos flexíveis de universidadeReferência em pesquisas sobre educação

superior, a antropóloga da USP revê sua trajetória

Fabrício marques | REtRAto Léo Ramos

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tipos de instituições – públicas, privadas, técnicas e de tamanhos diferentes – ca­pazes de atender a demandas regionais e de massa por uma boa formação pro­fissional e também as exigências para a formação de pesquisadores. Professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, fez toda a sua carreira na instituição. Atuou nos departamentos de Ciência Política e de Antropologia, onde se aposentou como professora titular em 2005. Atualmente, é pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas, que sucedeu ao Nupes. Na entrevista a seguir, ela relem­bra sua trajetória e a gênese de algumas de suas ideias.

Como surgiu seu interesse pela antro-pologia?Uma das coisas mais difíceis da minha vida foi escolher que curso eu devia fazer de­pois do ensino médio. Tinha interesses múltiplos. Quis fa­zer arquitetura, matemática, física, veterinária. E gostava de antropologia. Meu pai ti­nha uma pequena biblioteca e um dos livros era do [Bronis­law] Malinovski. Fiquei en­cantada com a antropologia.

Malinovski que bem mais tarde seria o tema da sua livre-docência.Considerado, até hoje, um clássico da antropologia. Fui falar com meu pai, que era professor da USP, um edu­cador. Ele sugeriu que eu fizesse ciências sociais porque incluía matemática e estatística e tinha antro­pologia. Eu resistia porque não queria ser professora. Ele disse: “É engano seu. Se você fizer veterinária, o tempo inteiro vai lidar com animal doente, animal atro­pelado. Se fosse fazer medicina, também ia lidar com gente com problemas. Mas ser professora é muito bom. Vai lidar só com gente jovem, idealista, é muito mais alegre”.

Dar aula era o que os graduados em ciências sociais faziam?A trajetória era dar aula de sociologia em escolas normais. Mas também podia le­cionar geografia e história. Aí achei que talvez o magistério fosse uma coisa boa.

E entrei em ciências sociais. No curso, o que me fascinou mais foi antropologia e ciência política. Tive um professor de ciência política extraordinário, Louri­val Gomes Machado. De sociologia eu não gostava muito. Fui aluna do Flores­tan Fernandes e era tudo muito teórico. Quando terminei, fui convidada para trabalhar como professora­assistente voluntária na antropologia.

Professores voluntários trabalhavam de graça, certo? Durou quanto tempo?Três anos. Trabalhava com o Egon Scha­den, que foi meu orientador e chefe. Também trabalhei como professora no Instituto Sedes Sapientiae e lá ganhava um salário. Segui carreira na universi­dade. Eu era assistente de antropologia,

fiz mestrado e doutorado na área. Foi um tempo perturbador, pois se deu com a instalação do regime militar. A faculdade foi invadida, o movimento estudantil se mobilizou em oposição à ditadura. Fiz mestrado e doutorado quase em segui­da nessa época e tive um filho também.

Sua pesquisa de mestrado foi sobre a imigração italiana. Por que o tema?Meu mestrado se sobrepôs um pouco ao doutorado. O tema foi, como era costu­me na época, escolhido pelo catedrático. Como o estudo da imigração estrangeira era uma das linhas de pesquisa do cate­drático, fui, com Ruth Cardoso, designa­da para essa área. Fiz a pesquisa sobre imigrantes italianos na cidade da minha

família no interior de São Paulo, Descal­vado. A pesquisa abrangeu um período grande tendo sido também um pouco histórica. A antropologia era acusada de não levar em conta a história e de ser muito centrada num tempo deter­minado. Para quem trabalha com índio não tem muito jeito. Índios não têm do­cumentos históricos, têm lendas. Não é o caso dos imigrantes italianos. Fiz um levantamento da imigração italia­na e mostrei que Descalvado era uma cidade importante para estudar. E fiz um recenseamento. Descobri que 70% dos habitantes tinham ao menos dois avós italianos, o que significava uma verdadeira substituição da população original. Já tinha terminado quando o Darcy Ribeiro montou uma enorme pes­

quisa sobre urbanização e as transformações da socieda­de brasileira contemporânea e me convidou a participar. Achei uma falta de respon­sabilidade do Darcy porque eu era recém­formada. O mestrado nem estava escri­to ainda. Mas ele era uma pessoa interessante e sedu­tora. Me dizia: “Pode deixar. Eu oriento você”. Jamais fui orientada. Ele me deu a par­te da migração rural­urbana, que se tornaria minha tese de doutorado. Nesse meio­­tempo, veio a invasão da Faculdade de Filosofia. Em 1968, houve ampla cassação dos professores, especial­mente na ciência política e na sociologia.

Daí a senhora foi para a ciência política.Eu e a Ruth Cardoso. Eu gostava de ciên­cia política, mas minha cultura nessa disciplina era reduzida. Naquele tem­po dávamos aula sobre qualquer coisa. O titular fazia o programa e mandava a gente dar aula ou fazer seminários. O jeito era estudar e preparar a aula. Es­tudei muito a formação do Estado mo­derno nessa época. Trabalhando com a Ruth, começamos a estudar movimentos sociais urbanos. Nosso trabalho seguia uma tradição na sociologia e na geografia humana da época: queríamos contribuir para entender o Brasil. A imigração ita­liana era crucial aqui em São Paulo. A migração rural­urbana também é para

nosso trabalho seguia uma tradição na sociologia: queríamos contribuir para entender o Brasil

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o país inteiro. Os movimentos sociais urbanos eram algo novo.

Entre os resultados de sua pesquisa, destacava-se o peso da família na imi-gração. Por quê?Eu não comecei minhas pesquisas in­teressada na família. Mas, estudando os italianos, vi que a família era crucial. Aquela imigração foi destinada de início para a zona rural e depois houve o pro­cesso de ascensão social que dependeu muito do que eu chamo “acumulação primitiva”. Era feita por meio do número de filhos, todos trabalhando. Nas lavou­ras de café, o pai recolhia tudo e criava um capital inicial com o qual comprava terra ou levava a família para a cidade e fundava um negócio. Depois, quando fui estudar a migração rural­urbana, a famí­lia apareceu novamente. O roteiro das entrevistas qualitativas era baseado na pergunta: como é que o senhor chegou em São Paulo? Como é que teve a ideia de vir? E vinha sempre a resposta, do ti­po: “A gente era muito pobre, não tinha emprego, e o meu irmão veio, o meu tio veio, então resolvi vir e fui para a casa deles”. E depois iniciavam o processo de trazer o resto da família. Organiza­se então o trabalho em torno da relação en­tre o espaço geográfico e o espaço social. Eu não tinha jeito senão assumir que a família era muito importante no Brasil, embora para os alunos daquela época não fosse um assunto muito interessante.

Por quê?Em 1968, meu programa era sobre família e parentesco, um tema crucial na antro­pologia. Mas os alunos estavam empe­nhados em fazer a revolução socialista. Era duro obter a atenção deles. Quando chegou maio, eu perguntei: “Quem aqui não deu presente de dia das mães no do­mingo passado?”. Todo mundo tinha dado. Eu disse: “Estão vendo? Não dá para estu­dar só a revolução, tem que saber em que a sociedade está assentada para mudá­la e a família é importante”. Era preciso con­vencer os alunos com alguma esperteza.

Como foi a transição da imigração para o estudo de movimentos sociais?Antes de ir para a ciência política, eu já havia começado a me interessar pela questão da política estudantil e univer­sitária. Toda a luta dos estudantes e pro­fessores menos tradicionalistas girava em função da necessidade de reformar a universidade. Apoiei os estudantes, mas achava que eles estavam indo por um caminho em que não ia haver vitória nenhuma, que era o de fazer a revolução socialista. O movimento ia acabar, como acabou, destruído porque os estudan­tes não tinham apoio popular nem apoio político para fazer a revolução. Eles não entendiam nada de Brasil e muito pou­co de história. Foi a época, inclusive, em que eles inventaram os cursos paritários. Eram os professores com os alunos que escolhiam o curso a ser dado. Esses cursos

eram voluntários. Eu queria estar junto com os estudantes e me ofereci para fazer.

Em que ano?Foi mais ou menos em 1967, logo antes da invasão do prédio da rua Maria Antônia, quando fomos para a Cidade Universitá­ria. Nunca fui a favor da pedagogia cujo slogan era: professores e alunos apren­dem juntos. Não é verdade. Os alunos não sabem antropologia. Como vão de­cidir o que estudar? Essa parte da minha história é engraçada. Estava tentando es­crever o doutorado sobre migração rural­­urbana. Quase a totalidade dos alunos e professores mais jovens era marxista. Argumentei com os alunos que estáva­mos vivendo uma grande transformação social, que era a urbanização, que isso envolvia uma enorme mudança da po­pulação e criava problemas imensos. E, para ter um projeto para o Brasil, pre­cisávamos entender com quem iríamos lidar. Era uma população tradicional? Tinha novos valores? Consegui conven­cer os alunos a estudar isso.

A senhora não se colocava como mar-xista?Não, o marxismo não serve muito para a antropologia. Na verdade, a obra A ori-gem da família, da propriedade privada e do Estado, de Engels, está errada do ponto de vista da antropologia. E entre os povos chamados “primitivos”, que estudávamos então, não havia luta de

Em 1995, cumprimenta Hillary Clinton, que visitava o Brasil, apresentada pela colega antropóloga Ruth Cardoso, então primeira-dama

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classes. Mas trabalhei bastante com o marxismo. Li muito, porque não dava para conversar com os alunos e tentar influenciá­los um pouco se não falasse a linguagem deles. Depois de 1968, nós saímos dos barracões em que estávamos provisoriamente alojados após a invasão da Maria Antônia e fomos para um pré­dio novo. Nesta época fui dar um curso sobre o conceito de cultura. Todos os alunos se sentiam derrotados, mas ain­da eram ferozmente marxistas. Eu tinha que arrumar um jeito de demonstrar que conhecia Marx, porque senão eles não iam prestar atenção. Lembrei de um en­saio do José Arthur Giannotti chamado “O ardil do trabalho”, um trabalho muito lindo, mas muito difícil, sobre a concep­ção de trabalho de Marx. Pedi para os alunos lerem. Da perspectiva dos alunos, era uma bibliografia legítima, puramente marxista. Foi interessante, porque eles não conseguiram entender o artigo. Eu nunca daria aquilo para estudantes do primeiro ano não fosse por essa minha maldade pedagógica. Dei uma aula sobre o assunto. Aí fui legitimada, porque eu sabia Marx – e sabia mais do que eles. Aprendi muito com os alunos. Eles sa­bem denunciar muita coisa que está er­rada. Mas são incapazes de propor uma solução realista.

Com a sua passagem para a ciência po-lítica, a senhora se envolveu mais com a universidade?

Com a morte do Vladimir Herzog, em 1975, eu estava voltando da romaria que fizemos até a catedral da Sé para o cul­to ecumênico e encontrei outros cole­gas que disseram que, após o ato, have­ria uma reunião dos professores na USP. Era preciso tomar uma atitude. Fui a essa primeira reunião, que criou a Associação dos Docentes da USP, a Adusp. Comecei então um imenso envolvimento com a política universitária e me dei conta de que sabia muito pouco sobre a universi­dade. Éramos contra os militares, contra a cátedra, a favor do departamento, mas não havia muita comunicação entre os docentes a não ser para tentar proteger alunos e colegas. Resolvi estudar. Achei um maravilhoso livro do Simon Schwart­zman, Formação da comunidade científica no Brasil. Conhecia outros trabalhos sobre a universidade, mas o do Simon era outra coisa. Não era criar um modelo ideal, mas analisar a dinâmica real da universidade. Se fazemos um modelo ideal, tudo está sempre errado, porque ninguém constrói o modelo ideal na prática.

Como evoluiu sua visão de universi-dade?A grande mudança inicial do meu pen­samento foi o reconhecimento de que a universidade não pode ser tomada como sinônimo de ensino superior. Este cons­titui sempre um sistema diversificado de instituições e a universidade deve ser analisada nesse contexto. Também

sempre tive uma clara visão de que a ex­cessiva politização da universidade não era uma coisa boa. O papel da universi­dade é trabalhar numa linha mais cien­tífica, de progresso do conhecimento. E um conhecimento de certo tipo, baseado na crítica constante do próprio traba­lho. Tratar a universidade como uma comunidade é um erro. A universidade é uma organização burocrática baseada na divisão de trabalho. Se não se entende isso, ficamos trabalhando com ideais de que todos devem contribuir igualmente. A universidade não pode ser entendida desse jeito. A pessoa que serve o café tem uma visão de universidade, o as­sessor jurídico tem outra visão. E o tra­balho do pesquisador é outro também. Não é a mesma coisa. A universidade é mais como um teatro do que como uma comunidade. Mas a tradição do Brasil é colocar tudo no mesmo saco. Vou dar um exemplo: num certo momento, o go­vernador Franco Montoro [1983­1987] me nomeou representante do governo no Conselho Universitário da Unicamp. Tinha um problema crucial lá com a mú­sica e a orquestra. Havia grandes músi­cos, mas não se podia dar um salário de­cente porque ninguém tinha doutorado. Era um absurdo. Eu tinha a ideia de que precisávamos de uma universidade mais flexível e menos burocrática. A função da burocracia é fazer uma norma para todo mundo, porque assim é mais fácil governar. Tender à flexibilidade e à di­ A

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Com o amigo e então senador Darcy Ribeiro, no campus da Universidade de Brasília, em meados dos anos 1990

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versidade não é algo que o burocrata tenha em mente. E os nossos professo­res acabaram sendo grandes burocratas.

É um exagero exigir que todo professor universitário seja doutor?Há uma distinção que precisa ser man­tida com a área profissional. No ensino de direito, por exemplo, é preciso ter grandes praticantes dando aula e não simplesmente alguém com conhecimento teórico. Você não vai formar pesquisado­res, vai formar advogados. Tive grande amizade com um diretor da Escola Po­litécnica, o Décio Zagottis, uma pessoa muito corajosa. Fizemos uma reunião na Adusp sobre tempo integral. Ele queria dividir o tempo integral em dois: o inte­gralão e o integralinho, com possibilidade maior de trabalhar fora da Po­litécnica. Eu argumentei con­tra. Na saída, ele veio falar co­migo. Disse: “Eunice, sou um especialista em grandes estru­turas. Basicamente, grandes pontes e grandes prédios. Co­mo vou aprender a fazer isso dentro da universidade? Não posso fazer pontes aqui para treinar”. Aquele argumento para mim foi definitivo.

Como resolver isso numa universidade de pesquisa?Todo o ethos da USP é a pesquisa. E a pesquisa é em grande parte um trabalho ex­perimental, não um traba­lho ligado diretamente com o exercício de uma profissão. Essa é uma distinção funda­mental: deveria haver carreiras dife­rentes. A outra é uma distinção entre as ciên cias humanas e sociais de um lado e as exatas e a matemática de outro. As hu­manas têm outro tipo de conhecimento, que não é exato, mas importante. Quando eu era aluna, não existia trabalho sobre o Brasil escrito por brasileiro. O grande salto foi dado pelo Florestan Fernandes e outros que começaram a estudar o país. Mas a capacidade de previsão nas ciên­cias sociais é pequena. Meu exemplo favorito é que ninguém previu a queda do Muro de Berlim. Isso é importante para dar um pouco de modéstia ao traba­lho que fazemos. Gosto das ciências hu­manas e considero todas essenciais, mas acho que ficaram ideológicas demais.

Como foi o período em que a senhora trabalhou com o então reitor da USP José Goldemberg?Foi um período efervescente, entre 1986 e 1990. Durante o longo período militar e a luta pela reforma, criamos a ilusão de que a universidade não ia para frente por causa dos militares. E que, tirando os mili­tares, seria libertada e entraria num perío­do de grande transformação inovadora. O regime militar caiu e não aconteceu nada. O Goldemberg acreditava que nós podía­mos fazer uma grande transformação. Era inovador e tinha coragem, um homem de­dicado a melhorar a universidade. Ele me dava processos ou problemas para discutir. Era muito estimulante trabalhar com ele. Ele não queria a fama pela fama. Queria fazer coisas importantes.

E o que deu para fazer de importante na USP nessa época?Muitas coisas. Por exemplo, foi o começo da informatização da USP, sem o que não seria possível formular uma política ra­zoável para a instituição. Quando o Gol­demberg entrou, praticamente não havia computadores. Havia um imenso arqui­vo na reitoria com estantes tão grandes de processos que tinha um motor para mover a estante para poder achar algu­ma coisa. Não havia informações básicas sobre a universidade como o número de classes, de alunos, de professores.

A divulgação da lista dos docentes e sua produtividade causou uma gran-de celeuma...

Eu alertei o Goldemberg para não divulgar aquela lista, mas houve um vazamento. Um primeiro levantamento não pode ser divulgado ipsis litteris, não pode dar nome às pessoas. É preciso analisar e trabalhar com as estatísticas. De qualquer forma serviu para levantar a questão da avalia­ção e os professores começaram a tomar mais cuidado com sua produção científica. O Goldemberg era corajoso na oposição aos exageros do movimento estudantil e do movimento docente. O excesso de greves, as reivindicações corporativas, os estudantes fazendo invasões na reitoria sem propostas claras eram coisas contra as quais ele lutou bastante. Eu também.

O Nupes veio em seguida. Qual foi a sua contribuição principal?

O Nupes foi uma nova forma de fazer pesquisa sobre en­sino superior, uma pesqui­sa menos ideológica e mais baseada no levantamento e análise de fatos e informa­ções levando em considera­ção o que ocorria no resto do mundo. Nossa primei­ra pesquisa envolveu cinco países latino­americanos e pesquisadores de cada um deles. Concluímos que os problemas eram os mes­mos: a carreira, o tempo in­tegral, o grau de diversidade do sistema. Mas as soluções eram diferentes e se davam em tempos diferentes. To­dos estavam tentando fazer avaliação, todos queriam uma reforma universitária.

Acho que o Nupes fez um bom traba­lho. A direção do Simon Schwartzman foi essencial. Deixamos de falar em uni­versidade para falar de sistema de ensi­no superior. Foi organizada essa grande pesquisa sobre as políticas educacionais na América Latina, para ter uma visão do Brasil não isolada do que acontecia no resto do mundo. Os grandes temas daquele período estavam presentes no trabalho de uma comissão, criada pelo então presidente eleito Tancredo Ne­ves, da qual o Simon foi relator. Eram os problemas da autonomia, da avaliação, da diversificação do sistema de ensino. A diversificação foi o tema em que nós fomos mais constantemente derrotados pela academia.

sempre tive uma clara visão de que a excessiva politização da universidade não era uma coisa boa

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Por quê?Havia aquele ethos comunitário, que eu chamo de igualitarismo elitista. A ideia de que você pudesse ter uma carreira para a engenharia e outra para os pesqui­sadores de ciência básica era muito mal vista. Assim também a ideia de que, em um sistema de ensino superior, é neces­sário que haja instituições voltadas para a formação para o mercado de trabalho, outras só para ensino e outras para ensi­no/pesquisa, pois não dá para ter ensino de massa numa universidade que tem como alvo e objetivo fazer pesquisa. É preciso haver outras instituições para lidar com a massa de estudantes que é muito heterogênea. Nem todo mundo vai querer ser pesquisador de física ou de química ou mesmo de educação. Boa parte dos estudantes querem uma for­mação que os prepare para o mercado de trabalho. Critico a ideia de que o ensino na universidade esteja apenas voltado para formar pesquisadores como nós, isto é, futuros professores universitários.

Qual é o problema disso na pedagogia?Na pedagogia o problema é mais grave porque, em vez de formar professores, formam gerentes de escolas, teóricos ou pesquisadores. O curso não está voltado para ensinar, mas apenas para pensar sobre o ensino. As diretrizes curricu­lares que foram definidas em 2004 são absolutamente vergonhosas. Em seis ou oito páginas de diretrizes, não se fala ne­nhuma vez em séries iniciais do ensino fundamental e sobre o que o professor deve fazer lá. Apenas a pesquisa é valori­

zada na formação dos professores e essa pesquisa em pedagogia de modo geral é ruim. Todos falam que é indispensável a relação entre ensino e trabalho, mas isso é apenas um mantra. O MEC chegou ao cúmulo de proibir qualquer disciplina que envolvesse trabalho real durante o curso. Educação é uma área profissional. É para formar professor.

A Lei de Diretrizes e Bases discutida nos anos 1990 propunha um caminho diferente, não?Essa foi feita pelo Darcy Ribeiro e ele entendia de povo. Ele criou a Escola Nor­mal Superior. São Paulo inteiro estava modificando o sistema de ensino e crian­do cursos normais superiores. Durou uns seis anos. Estava deslanchando quando veio a proposta de diretrizes curriculares de 2004 dizendo que toda formação de professores tem que corresponder nas diretrizes curriculares ao curso de pe­dagogia tal como está. Então não podia mais ter Escola Normal Superior. Como estava na lei, eu reclamei. Consegui falar com o ministro da Educação e dizer que é um absurdo, mas não adiantou.

Quais as deficiências dos professores?Na prática, não sabem alfabetizar. Escre­vem mal. Não sabem matemática básica e não sabem sequer ensinar aritmética. São muito mal formados, inclusive, já antes, no ensino fundamental. E não há nenhum processo para reforçar a forma­ção. No meu contato com professores, vi muita gente dedicada. Mas a formação é precária. Como ensinar a criança com

essa formação? As faculdades, na maioria privadas, atendem à camada mais pobre nos cursos de formação de professor, a que vem de escolas públicas, e nosso en­sino médio público é muito ruim. Tem alunos com muito potencial, que são da primeira geração que chega à universi­dade e vêm de famílias muito pobres. Chegam à universidade por um cami­nho longo e difícil. É preciso compensar as deficiências anteriores, reforçando o domínio das matérias do primeiro nível do ensino fundamental.

Não tem a ver com salário o fato de a carreira não ser atrativa?Não vou dizer que salário não seja im­portante, mas a carreira está construí­da de tal modo que é impossível pagar bem. Há tanta vantagem paralela que fica demasiado caro para o Estado. Há uma média elevadíssima de faltas por mês. Além disso, há faltas justificadas, que são pelo menos cinco ou seis por ano. Quando somadas, o professor está ausente em média o equivalente a um mês de aula, sem contar as greves. A car­reira é mal formulada. O professor passa a ganhar mais por tempo de serviço ou se obtiver o mestrado e o doutorado. Tu­do isso não tem muita coisa a ver com a competência pedagógica e a dedicação ao ensino. Não há, a não ser na entrada, nada que valorize propriamente o mé­rito, porque não há avaliação posterior dos professores. Isso desvaloriza o pro­fessor. Você tem professores com pouca cultura e, especialmente agora, depois da questão da informatização, alunos que

Com o ministro da Educação, Paulo Renato Souza, numa reunião da Unesco em 1997

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sabem mais que o professor. É algo hu­milhante, um professor tentando achar alguma coisa no computador e os alunos tirando aquilo de letra.

Queria que falasse um pouco da sua experiência no MEC. O que aprendeu com ela? Adquiri uma visão de todo o sistema que eu não tinha da perspectiva das ciências sociais. Tive muito contato com os cien­tistas, os médicos, os engenheiros. Talvez o trabalho melhor que eu tenha feito na vida foi dirigir a Capes. Foi só um ano. Um dos desafios foi a diminuição do tempo de mestrado. No mundo inteiro, mestrado é uma coisa secundária, um aperfeiçoa­mento prático. O mestrado profissional ou profissionalizante está previsto na legis­lação da pós­graduação. Mas isso nunca pegou no Brasil, porque todo mundo come­çou a pós­graduação fazen­do mestrado. Valorizava­se o mestrado porque era o que se tinha. Mas nosso mestrado é tão teó rico e geral quanto o doutorado. Para colocar um pouco o Brasil dentro da or­dem mundial, propusemos diminuir o tempo das bolsas. Foi terrível. Foi a única vez que a congregação da Facul­dade de Filosofia escreveu uma carta interpelatória di­zendo que eu estava interfe­rindo na autonomia univer­sitária. Foi divertido, porque pedi uma audiência para a congregação.

Como a senhora respondeu?Expliquei que não estava interferindo na universidade, mas na duração das bolsas da Capes. Nada impedia que a universi­dade, ela própria, desse mais dois anos de bolsa, se quisesse. As bolsas não são da universidade. São da Capes. Também na Capes, me orgulho de ter inventado a então chamada “taxa de bancada”. Não sei como se chama hoje, embora tenha si­do mantida. Quando assumi, os cursos de pós­graduação estavam à míngua. Todo o dinheiro para a pesquisa do orçamento da Capes tinha sido cortado. Então inventei a taxa de bancada, porque descobri que a coisa que não se pode cortar é a bolsa. O valor da bolsa foi acrescido como taxa de bancada para o curso, para ajudar o

departamento a manter o curso. Podiam usar para o que quisessem menos para pagamento de pessoal. Houve progra­mas que, quando mandaram a primei­ra prestação de contas, incluíram papel higiênico. Foi um escândalo na Capes. Eu dizia: se está faltando papel higiêni­co, é normal que comprem, porque não dá para funcionar sem papel higiênico. Não era muita coisa, mas salvamos mui­to programa de pós­graduação. Podiam mandar consertar o microscópio, jun­tar diferentes departamentos e comprar um computador ou melhorar o sistema elétrico para evitar panes, por exemplo.

Nos anos 1990 houve um crescimento do setor privado, não necessariamente com qualidade...

A questão é que as instituições privadas atendem a uma demanda de massa. Se você não atende à demanda de massa no ensino público, o setor privado cres­ce. Não precisou nunca de um estímulo governamental. Uma avaliação baseada simplesmente na análise dos programas, como se faz para o reconhecimento dos cursos, não adianta nada. Tudo o que vo­cê exige no papel elas fazem. O problema é o professor, seu regime de trabalho, como e quanto recebe, sua competência real. Para muitas áreas do conhecimen­to, como direito, por exemplo, não é tão importante se têm doutorado, mas se têm experiência e se os alunos aprendem. Es­se é o problema e ele foi assumido pelo ministro Paulo Renato com o Provão. Era

uma avaliação indicativa, mas como era um exame universal e todos os alunos tinham que fazer no final do semestre, criou­se um instrumento para ver qual é o aproveitamento dos estudantes. O Provão teve um efeito positivo. As ins­tituições de ensino superior passaram a se preocupar com o resultado do exame e davam aula de reforço para o aluno poder fazer o exame. Houve um esforço real de melhoria da qualidade do ensino. Quem tinha boa avaliação fazia anúncios sobre sua classificação e aumentava o número de alunos enquanto as muito ruins perdiam estudantes.

Como avalia o programa Universidade para Todos, o Prouni?Não é uma ideia ruim, mas salvou da falên­

cia as instituições que estavam perdendo alunos por causa do Provão. No Prouni, uma instituição privada aumenta em 10% o número de alunos sem contratar novo profes­sor, nem mudar as turmas ou o programa, sem aumentar as salas de aula, e tem um enor­me abatimento no custo com isenção de impostos. Acho possível uma colaboração das instituições governamentais com as particulares. Mas teria que privilegiar as que dessem um bom ensino. O pior é que não se sabe quanto custa. Es­se foi um dos problemas cru­ciais do PT na condução da educação. No MEC, eu mesma coordenei o projeto do Fun­def [Fundo de Manutenção e

Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério]. Sabia­se exatamente quanto ia para cada aluno no Brasil inteiro. O projeto é inteiramente transparente. Já o Fundo que o substituiu tem diversas fontes e vai desde a pré­es­cola até o ensino médio. A distribuição entre esses níveis de ensino é precária. Nunca descobri como é feito esse cálcu­lo. O Prouni exige pouco da instituição. O mesmo aconteceu com o programa de crédito educativo. Tem instituições pri­vadas que sobrevivem à custa disso. Tem 70% de alunos com crédito educativo. O Estado paga a mensalidade e o aluno fica devendo ao Estado. A instituição não tem nenhuma obrigação. Nunca houve tantas benesses para o setor privado. n

o prouni salvou da falência instituições privadas que estavam perdendo alunos por causa do provão

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Instituto de Biociências em Rio Claro é

referência em pesquisa na Unesp

A trajetória do biólogo Mauro Galetti, profes-sor do Departamento de Ecologia do IB, resume um pouco a evolução da pesquisa em Rio Claro. Desde a graduação, no final dos anos 1980, Galetti se dedica a investigar interações entre animais e plantas. Com mais de 150 artigos publicados em revistas indexadas, ele estuda como o declínio da população de animais, provocado pela ação humana, pode ter efeitos tão sérios para a flo-resta quanto os do desmatamento, ao interferir na dispersão de sementes e na polinização. Nos últimos oito anos, publicou artigos sobre tais interações na revista Science, em parceria com cientistas de outros países. O primeiro deles, de 2008, abordou as consequências da extinção de grandes animais, a chamada megafauna. “Fize-mos uma revisão sobre os maiores vertebrados extintos em ilhas oceânicas e constatamos que a extinção da megafauna é contínua e atinge até mesmo animais que não são muito grandes, mas em determinado ecossistema são os maiores”, diz

O campus da Universidade Estadual Paulista (Unesp) no município de Rio Claro, a 180 quilômetros de São Paulo, tornou-se referência internacional em pesquisas sobre a biodiversidade. Es-

tudos realizados por biólogos, zoólogos e ecólogos da instituição sobre temas como a diversidade dos anfíbios brasileiros, os efeitos do empobrecimento da fauna na saúde das florestas tropicais e a busca de antídotos para venenos de abelhas e vespas en-volveram colaborações internacionais de alto nível e foram publicados em revistas científicas de alto impacto. “Começamos, nos anos 1950, com estudos pioneiros sobre insetos sociais e levantamentos so-bre a fauna e a flora, mas conseguimos diversificar nossos interesses e nuclear grupos que trabalham na fronteira do conhecimento”, diz Claudio J. Von Zuben, atual diretor do Instituto de Biociências (IB) da Unesp em Rio Claro, unidade que abriga estas linhas de investigação e reúne mais de uma centena de docentes.

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Galetti. “Ou seja, continuamente, sempre o maior vertebrado disponível está sendo eliminado pelos seres humanos.”

“Outro artigo, publicado em 2013, é quase a mi-nha história de pesquisa”, define o pesquisador. Nesse trabalho, Galetti e seus colegas e alunos demonstraram que a extinção de grandes ani-mais comedores de frutos acarreta uma mudança evolutiva no tamanho das sementes do palmito jussara. “Estudamos quem se alimenta dos frutos do palmito jussara, se a semente germina ou não, qual o tamanho de cada ave que dispersa e nota-mos que, em locais onde os grandes dispersores foram extintos, as sementes são menores”, diz ele, que começou a analisar os dados quando fazia um estágio sabático de 18 meses em Stanford, com financiamento da FAPESP e do Conselho Nacio-nal de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), entre 2007 e 2009. “Esse estágio foi um ponto de inflexão na minha carreira. Ali, conheci laboratórios de ponta e as pessoas que lideram

as pesquisas no mundo em ecologia, mudanças climáticas e serviços ecossistêmicos. Quando retornei ao Brasil, montamos diversos projetos com alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado da Unesp para preencher lacunas da pesquisa e torná-la completa”, diz o pesquisador. “Temos toda criatividade e competência para fazer ciência de ponta”, complementa Galetti.

Graduado em biologia e mestre em ecologia pela Unicamp, Galetti fez doutorado na Univer-sidade de Cambridge, no Reino Unido, e chegou à Unesp em 1997 como beneficiário do programa Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes, da FAPESP. “A Fundação tinha acabado de criar o programa e fui um dos primeiros a receber. Estava fazendo um estágio de pós-doutorado na Indonésia pela Universidade de Cambridge, mas voltei para nuclear um grupo de pesquisa jun-to com a professora Patrícia Morellato”, conta. Ele montou um laboratório de interações entre animais e plantas no Departamento de Botânica

prédio do Instituto de Biociências, estudos com formigas e laboratório do curso de Biologia: grupos de pesquisa com interesses diversos

esta é a segunda reportagem de uma série sobre os 40 anos da Universidade estadual paulista, a Unesp

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e, em 1998, fez concurso para uma vaga de docente no De-partamento de Ecologia, onde trabalha até hoje.

A pesquisa no IB remon-ta aos anos 1950, com a cria-ção pelo governo do estado da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Cla-ro, que oferecia, entre outros, um curso de História Natural. Logo se tornou referência no estudo de insetos que se or-ganizam em sociedade, como abelhas, formigas, vespas e cupins, por força do interes-se pelo tema de pesquisado-res contratados para lecionar na faculdade. Aconteceu em Rio Claro, em 1956, um famo-so incidente no qual espécimes da abelha Apis mellifera scutellata, trazidas da África pelo pro-fessor Warwick Kerr, escaparam de uma área restrita num hortoflorestal e, dali, espalharam- -se pelo Brasil. A espécie, agressiva, fabrica mel com grande produtividade e se adaptou muito bem ao país. Mais de meio século depois, em 2010, pesquisadores do Centro de Estudos de Insetos Sociais (Ceis), vinculado ao IB, obtive-ram a primeira patente para um soro capaz de neutralizar os efeitos do veneno da Apis melli-fera scutellata, num estudo em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) e o Instituto Butantan iniciado em 2000 (ver Pesquisa FA-PESP nº 153). O soro ainda não está disponível comercialmente, mas o Instituto Butantan se prepara para iniciar a produção.

“A influência do professor Kerr com o estudo de abelhas desdobrou-se em outros in-setos sociais, como formigas, cupins e vespas, e mais tarde envolveu a área de bioquímica, no estudo dos venenos”, diz Mario Sergio Palma, coorde-nador do Laboratório de Bio-logia Estrutural e Zooquímica do Ceis e um dos responsáveis pelo desenvolvimento do soro contra o veneno de abelhas. Professor do IB desde meados dos anos 1970, Palma começou a trabalhar com a bioquímica de venenos de vespas e tes-temunhou o crescimento da pesquisa na instituição. “Co-mecei na Unesp há 38 anos,

trabalhando numa pequena cozinha de 6 me-tros quadrados.” Hoje, a infraestrutura do centro conta com sete laboratórios (formigas urbanas, formigas cortadeiras, abelhas, cupins, microbio-logia, zooquímica e evolução molecular), que ocupam uma área de mais de 1.300 metros qua-drados. “Temos um dos melhores laboratórios de espectroscopia de proteínas na América La-tina, voltado para a pesquisa com abelhas, formi-gas e vespas”, diz Palma. “Trabalhamos com 70 alunos de iniciação científica, mestrado e dou-torado usando pouquíssimos recursos humanos da universidade, com apenas quatro funcioná-rios. Nós mesmos cuidamos da manutenção e os grupos que conseguem aprovar um projeto de pesquisa ajudam momentaneamente os que estão sem financiamento.”

pesquisa com abelhas, Jardim

experimental, e sapos

Dendropsophus minutus, espécie

mapeada em projetos sobre

anfíbios anuros da Mata atlântica

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atração de jovens pesquisadores com bons currículos teve reflexo na produção científica, diz célio Haddad

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Ao longo do tempo, os interesses da institui-ção foram se ampliando. Em 1976, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras desmembrou-se em duas unidades, o Instituto de Geociências e Ciências Exatas e o Instituto de Biociências, que se tornaram parte da Unesp. Neste ano, o IB criou o primeiro curso de graduação em ecologia do país. Hoje, além desse, oferece cursos em ciências bioló-gicas, educação física e pedagogia e sete programas de pós-graduação. Mauro Galetti lembra que, em 2008, diante da oportunidade de contratar docen-tes para o Departamento de Ecologia, se discutiu quais seriam as linhas de pesquisa do futuro nesse campo do conhecimento. “Conseguimos contra-tar pessoas competentes em áreas como mudan-ças climáticas, ecologia molecular e ecologia da paisagem, que foram fundamentais para dar um novo rosto para nossa pós-graduação”, afirma.

rEnOvaçãOPara Célio Haddad, professor do Departamento de Zoologia, a evolução da pesquisa no IB tam-bém se explica pela estratégia de atrair pesqui-sadores de outras instituições para investir em linhas nas quais a instituição não tinha expertise. “É comum uma certa endogamia nas universida-des brasileiras e, no passado, muita gente forma-da no instituto continuava aqui. Mas em vários departamentos houve renovação, com a atração de jovens pesquisadores com bons currículos e isso teve um reflexo tanto na produção científica quanto na capacidade de captar recursos para pesquisa”, conta.

Haddad chegou a Rio Claro no final dos anos 1980. Egresso da Unicamp, sua missão era traba-lhar com anfíbios, uma área de investigação ainda inexplorada no IB. “Criei o grupo de pesquisa no Departamento de Zoologia em 1988. No começo foi muito difícil. Eu ainda não tinha o doutorado e arrumar financiamento era complicado”, recorda--se. Entre 1996 e 2000, Haddad foi beneficiário do

programa Jovens Pesquisadores, o que lhe permi-tiu adquirir equipamentos e ampliar as condições de fazer pesquisa. O foco principal de sua pesquisa são os anuros, ordem de animais que inclui sapos, rãs e pererecas, cuja taxonomia e comportamen-to serviram de mote para mais de 280 trabalhos publicados em revistas indexadas. Sua coleção científica, a terceira maior do Brasil, tem cerca de 30 mil exemplares e 700 espécies de anfíbios. Ele próprio já descreveu mais de 50 espécies de sapos, rãs e pererecas, além de gêneros e famílias desses animais. Em 1997, passou um ano fazendo um estágio de pós-doutorado na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e em 2013 realizou estágio sabático na Universidade Cornell, ambos com financiamento da FAPESP. Nesses estágios internacionais conheceu pesquisadores estrangei-ros que hoje fazem parte de sua rede de colabo-radores. Mantém parcerias longevas com colegas das universidades de Cornell e da cidade de Nova York, nos Estados Unidos, além de colaborações com pesquisadores de instituições na Argentina e Alemanha. Frequentemente recebe doutorandos e estagiários de pós-doutorado de vários países em seu laboratório, interessados em estudar a riqueza da fauna brasileira (ver Pesquisa FAPESP nº 179).

Em 2006, Haddad participou de uma iniciativa internacional que mudou a classificação dos an-fíbios: o Amphibian Tree of Life, publicado em 2006 no boletim do Museu Americano de Histó-ria Natural. Já liderou alguns projetos temáticos que, em comum, dedicaram-se a descrever a di-versidade de anfíbios do país. Ultimamente, vem testando uma nova técnica, conhecida como DNA ambiental, voltada a verificar se espécies conside-radas extintas eventualmente mantêm exemplares escondidos na natureza. São coletadas amostras de água de riachos onde as espécies deixaram de ser vistas. As amostras são purificadas e enviadas para a França, em busca de vestígios de material genético. “Se for encontrado material genético de espécies que desapareceram, isso pode signi-ficar que elas persistem em baixas densidades e não estamos sendo capazes de encontrá-las”, diz.

A produção dos pesquisadores do IB-Unesp foi turbinada, há alguns anos, pela melhoria da infraestrutura. A construção de novos prédios para alguns departamentos do instituto, entre 2009 e 2014, é apontada como um marco na ca-pacidade de fazer pesquisa. “Todos os docentes têm sala individual, com laboratórios anexados. E há laboratórios de uso comum em ecologia mo-lecular, informática e ecologia da paisagem”, diz Mauro Galetti. “Isso é fundamental porque temos muitos alunos de ecologia e biologia, cuja cria-tividade era tolhida pelo tamanho modesto dos laboratórios.” Hoje cada docente trabalha com vários bolsistas de iniciação científica, mestrado e doutorado, e há lugar para todos. n

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Instituto de física teórica em Natal ganha

sede e vai promover eventos de longa

duração com cientistas de vários países

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Um polo ao norte

Natal, capital do Rio Grande do Norte, deu um passo para se consolidar como polo inter-nacional de pesquisa em física

teórica. A inauguração em março da sede do Instituto Internacional de Física (IIF), no campus da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), promete estimular trabalhos e parcerias na fron-teira do conhecimento, ao reunir pes-quisadores de todas as partes do mundo em eventos com até três meses de dura-ção. A área construída de 4 mil metros quadrados dispõe de um auditório de 150 lugares, duas salas para seminários, um laboratório de computação de alto desempenho e escritórios para o staff da instituição e dezenas de convidados. “Agora temos gabinetes de trabalho para abrigar até 70 pesquisadores. Isso é fun-damental para receber bem os físicos do Brasil e do exterior, ampliar a circulação de ideias e pavimentar colaborações”, afirma o físico Álvaro Ferraz, professor da UFRN e diretor do instituto.

O IIF foi fundado em 2010 e funciona-va numa casa alugada, nas imediações do campus da universidade. Suas atividades anuais, definidas pelo seu Conselho As-

sessor Internacional, do qual participam dois detentores do Prêmio Nobel de Físi-ca, entre outros pesquisadores do país e do exterior, compreendiam cerca de uma dezena de workshops e reuniões inter-nacionais com uma ou duas semanas de duração sobre temas relacionados à fron-teira da física, como Teoria de Cordas, turbulência, átomos frios, informação quântica, supercondutividade de altas temperaturas, e aconteciam no Depar-tamento de Física Teórica e Experimen-tal da UFRN ou em auditórios alugados de hotéis da cidade. Agora, com a nova sede, a intenção é promover encontros mais robustos. “A mais recente reunião do Conselho Assessor Internacional si-nalizou que teremos encontros de lon-ga duração, alguns com até três meses”, afirma Ferraz. “Eu já me beneficiei bas-tante dos eventos do instituto, que têm sempre pesquisadores do mais alto nível tratando de temas na fronteira do co-nhecimento”, conta Mucio Continenti-no, representante do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) no Conse-lho Assessor Internacional do IIF. “Com eventos mais longos, a expectativa é de que promova um intercâmbio maior”,

diz o pesquisador. A reitora da UFRN, Ângela Cruz, ressalta o impacto que o instituto promoveu na universidade. “Só nos últimos anos o IIF trouxe à UFRN cerca de 300 cientistas, 900 estudantes de pós-graduação e realizou 32 eventos científicos de caráter internacional. A es-ses resultados acrescente-se a promoção de cerca de 100 seminários de pesquisa e o crescimento de publicações de reper-cussão internacional”, afirma.

fontes de inspiraçãoA ideia de fundar o IIF surgiu no final da década de 2000, como uma sugestão do então ministro da Ciência e Tecnolo-gia, o físico Sérgio Rezende. Ele propôs a criação de um instituto que, embora vinculado a uma universidade, tivesse o status de entidade autônoma associada ao ministério. Com isso, ganharia orça-mento próprio e capacidade de patroci-nar tanto os eventos como o salário de pesquisadores de alto nível, recrutados, em muitos casos, em outros países. As fontes de inspiração eram centros de física teórica como o Instituto Kavli de Física Teórica, em Santa Bárbara (EUA), o Instituto Yukawa, vinculado à Univer-

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Nova sede (acima) tem gabinetes para até 70 pesquisadores. À esquerda, o estagiário de pós-doutorado Fabio Novaes conversa com o professor Dmitry Melnikov

A relação do instituto com o curso de fí-sica da UFRN começa a se intensificar. “Até o ano passado, eu só havia orienta-do um aluno de doutorado. Neste ano já comecei a orientar dois alunos de douto-rado e um de mestrado”, afirma Dmitry Melnikov, pesquisador do IIF desde 2010. “A distância entre a antiga sede e o campus da universidade atrapalhava.”

Melnikov organizou no instituto, em 2013, um grande evento internacional sobre Teoria de Cordas e se prepara para promover mais um. Também coordenou encontros em que reuniu todos os pes-quisadores e estudantes de universida-des da região Nordeste interessados na área de pesquisa. O pesquisador russo se graduou numa universidade de Mos-

cou em 2003 e é PhD pe-la Universidade Rutgers, nos Estados Unidos. “Ouvi falar no IIF pela primeira vez quando fazia um está-gio de pós-doutorado na Universidade de Tel Aviv, em Israel, e procurava um novo lugar para trabalhar. Resolvi concorrer a uma vaga de pesquisador visi-tante e fui selecionado em 2010”, conta Melnikov.

Em breve, três novos professores devem inte-grar-se aos quadros do ins-tituto, depois de passarem por um processo de sele-ção de que participaram 99 candidatos. Dois são brasileiros: Rodrigo Pe-reira, pesquisador da área de Teoria da Matéria Con-densada, oriundo do Insti-tuto de Física de São Carlos da USP; e Rafael Chaves, que está na Alemanha e é especialista em informação quântica. Outro que chega-rá ao IIF é o italiano Ric-

cardo Sturani, atualmente pesquisador do Instituto Sul-americano para Pesquisa Fundamental/Centro Internacional de Física Teórica (ICTP-SAIFR, na sigla em inglês), da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Sturani é vinculado ao Observa-tório Interferométrico de Ondas Gravita-cionais (Ligo), nos Estados Unidos, que recentemente registrou pela primeira vez a passagem de ondas gravitacionais pela Terra (ver Pesquisa FAPESP nº 241). “Meu contrato com o ICTP-SAIFR ter-mina em 2017 e comecei a procurar uma nova posição. O instituto em Natal me interessou porque tem cada vez mais vi-sibilidade internacional”, afirma.

Para se consolidar, o IIF tem obstácu-los a enfrentar relacionados a seu finan-ciamento. A ideia é torná-lo um instituto autônomo com recursos garantidos pe-los ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação e da Educação. Segundo Álvaro Ferraz, cogita-se uma nova personalida-de jurídica para o instituto, que pode se tornar uma organização social, e assim diversificar suas fontes de financiamen-to. “Torcemos para que a crise econô-mica do país não demore a se resolver”, afirma Ferraz. n fabrício Marques

sidade de Kyoto (Japão), ou o Centro In-ternacional de Física Teórica – ICTP, em Trieste (Itália). Em comum, tais centros promovem eventos que envolvem pes-quisadores de vários países.

O corpo de pesquisadores permanen-tes do IIF ainda está em formação. Além de Álvaro Ferraz, há outros dois líderes de pesquisa: o russo Dmitry Melnikov, especialista em Teoria de Cordas, e o italiano Pasquale Sodano, físico estatís-tico. Completam o quadro o russo Mark Minieev-Weinstein, pesquisador visitan-te, e 11 pós-doutorandos de várias nacio-nalidades. Dezessete cientistas de outros países mantêm relação com o IIF e pas-sam temporadas anuais de até três meses na instituição, participando de eventos. fo

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Lei da Biodiversidade cria novas regras

para pesquisadores e empresas,

mas regulamentação atrasa

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Expectativa de mudança

Um impasse burocrático criou um obstáculo inusitado para cientistas e empresas que fazem pesquisas com material genéti-

co de organismos terrestres e marinhos – plantas, animais, algas e microrganismos – provenientes da biodiversidade brasileira. Há cinco meses eles estão impedidos de enviar amostras para estudos no exterior ou publicar resultados científicos desses materiais. Ocorre que a nova Lei da Bio-diversidade (nº 13.123) entrou em vigor em novembro de 2015, mas sua regula-mentação atrasou. Isso gerou um vazio jurídico, impedindo que órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Iba-ma) e o Conselho Nacional de Desenvol-vimento Científico e Tecnológico (CNPq) apreciem pedidos para envio de amostras de pesquisas em curso, como faziam an-teriormente. Novas autorizações para iniciar pesquisas também estão suspensas.

“Interromperam, do dia para a noite, o nosso trabalho. É inadmissível que não

se tenha pensado em regras para a transi-ção de uma legislação para outra”, afirma Luís Fábio Silveira, curador de coleções ornitológicas do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP). Em dezembro, ele recebeu um comunica-do do Ibama negando solicitação para enviar amostras de tecidos de aves a um laboratório nos Estados Unidos, no qual seria feito o sequenciamento genético do material. O órgão justificou que está sem amparo legal para emitir licenças.

O problema aconteceu depois que o governo optou por fazer consultas infor-mais sobre o decreto de regulamentação após a sanção da lei, em maio de 2015. As sugestões recolhidas foram consolidadas num texto apresentado em novembro, às vésperas da data em que a lei entrou em vigor. O decreto, porém, teve pontos contestados pelo Ministério Público e entidades da comunidade científica e dos ambientalistas e seu texto foi recolhido. Uma nova proposta foi aberta somente em abril para consulta pública até o dia

Bruno de Pierro

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dígenas, pequenos agricultores e comu-nidades tradicionais, como os quilombo-las, também serão afetados pela lei. Isso porque eles podem ser detentores dos chamados conhecimentos tradicionais, isto é, de informações e práticas relacio-nadas ao uso de espécies nativas, como plantas com propriedades medicinais, e serão recompensados pelo seu uso.

A principal novidade da lei é que, pa-ra ter acesso ao material biológico de espécies, passa a ser necessário apenas um cadastro eletrônico do pesquisador ou da empresa, que deverá ser realizado nas etapas mais avançadas da pesquisa, isto é, antes da remessa de material ao exterior, do requerimento de direito de propriedade intelectual, da comerciali-zação do produto ou da divulgação de resultados em meios científicos ou de comunicação. A legislação anterior, uma medida provisória de 2001, obrigava o pesquisador ou a empresa a fazer soli-citação prévia a órgãos como o Ibama e o CNPq e, sem tal autorização, não era

possível iniciar a pesquisa. “Ao desbu-rocratizar o acesso à biodiversidade, a medida deverá agilizar o processo de desenvolvimento de novos produtos”, diz Elisa Romano, especialista em política e indústria da Confederação Nacional da Indústria (CNI), uma das instituições que representaram o setor empresarial durante a elaboração da lei.

A medida atende a um pleito antigo da comunidade científica e das empresas, que nos últimos tempos trabalharam sem seguir à risca a legislação. “Isso acon-teceu devido às dificuldades impostas pela medida provisória de 2001 e pela insegurança jurídica que ela causava”, explica Elisa Romano. Em alguns casos, empresas tiveram de pagar multas vul-tosas. Em 2010, por exemplo, a empresa de cosméticos Natura foi autuada em R$ 21 milhões por uso da biodiversidade sem autorização. “O cadastro represen-ta um avanço. Será possível iniciar uma pesquisa sem a necessidade de aguardar a permissão de algum órgão público”,

2 de maio. “Esse problema poderia ter sido evitado se o governo tivesse aberto a consulta pública formal no dia seguinte à sanção da lei e discutido todas as su-gestões previamente, já que ela tinha 180 dias para entrar em vigor. Dessa forma, no dia seguinte à entrada em vigor da nova lei, a regulamentação já estaria pu-blicada”, diz Bruno Sabbag, professor de direito ambiental da Pontifícia Univer-sidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Não se pensou em manter a legislação anterior, porque havia muitos proble-mas na sua aplicação. Tinha pedido de autorização de empresas tramitando há anos por conta da burocracia excessiva.”

Quando houver regulamentação, ins-tituições de pesquisa e empresas terão novas regras para realizar estudos com a biodiversidade brasileira. Já é possível destacar um conjunto de mudanças que deverá afetar o trabalho de pesquisado-res e empresas que dependem do acesso ao patrimônio genético, como indústrias farmacêuticas e de cosméticos. Povos in-Fo

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avalia Helena Nader, presidente da So-ciedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

O texto da regulamentação prevê a criação do Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético (SISGen), vin-culado ao Ministério do Meio Ambien-te (MMA), que será responsável, entre outras funções, por gerenciar o cadastro. “O objetivo é simplificar a pesquisa e fa-cilitar a fiscalização dos cadastrados”,

o que muda com a nova Lei da

Biodiversidade

Cadastro

Para ter acesso a material biológico

de espécies, passa a ser necessário

apenas um cadastro eletrônico

do pesquisador ou da empresa.

ele será exigido antes da

remessa de material ao exterior,

do requerimento de direito

de propriedade intelectual, da

comercialização do produto ou da

divulgação de resultados em meios

científicos ou de comunicação

Consentimento prévio

cientistas e empresas serão

obrigados a pedir

autorização a povos

indígenas e comunidades

tradicionais quando a

espécie a ser estudada

estiver associada a um

conhecimento cuja origem

for atribuída a eles

diz Rafael Marques, diretor do Departa-mento de Patrimônio Genético do MMA. Outra exigência é que, em certos casos, cientistas e empresas serão obrigados a pedir autorização diretamente a povos indígenas e comunidades tradicionais envolvidos antes de começar a fazer uma pesquisa com o patrimônio genético. Isso será feito apenas quando for pos-sível identificar que uma espécie a ser estudada está associada a um conheci-

mento cuja origem pode ser atribuída a uma comunidade. A autorização po-derá ser feita por escrito, assinada por um representante da comunidade, ou por meio de recursos audiovisuais, com um depoimento gravado em vídeo do representante dando anuência. Caberá ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), ligado ao MMA, fis-calizar a autorização e a distribuição da compensação financeira.

ComPEnSAção EConômICAA lei traz também novas diretrizes refe-rentes à repartição de benefícios. Como regra geral, a empresa deverá depositar 1% da receita líquida do produto no Fun-do Nacional de Repartição de Benefícios. O dinheiro será distribuído pela União a povos indígenas e comunidades tradicio-nais. Mas, caso a espécie estudada estiver comprovadamente associada a um conhe-cimento tradicional, a empresa terá de negociar uma compensação diretamente com o grupo que detém esse conheci-mento. Além disso, terá de repassar 0,5% da receita líquida do produto ao fundo. Estão isentos de compensação econômica fornecedores de produtos intermediá-rios, como insumos e matérias-primas, microempresas, microempreendedores individuais e pesquisadores. Elisa Ro-mano, da CNI, explica que a lei permite que a compensação seja feita sem envol-ver dinheiro. “A empresa pode fazer um acordo com a comunidade tradicional e transferir a ela alguma tecnologia. São possíveis ainda outras formas de coope-ração entre as partes envolvidas, como capacitações e projetos de conservação da biodiversidade”, diz.

Vanderlan Bolzani, professora do Ins-tituto de Química da Universidade Es-tadual Paulista (Unesp), campus de Ara-raquara, e membro da coordenação do Programa Biota-FAPESP, destaca o fato de a lei exigir que apenas empresas, e não os pesquisadores, façam a repartição de benefícios. “A pesquisa básica será be-neficiada, por exemplo, em estudos da estrutura molecular de plantas. A ciência não acessa a biodiversidade apenas para fins econômicos”, explica.

Outras questões ainda dependem da regulamentação da lei para serem defini-das. A proposta apresentada inicialmen-te pela Casa Civil, feita pelo MMA após consultas públicas, preocupa diversas entidades. A SBPC, por exemplo, queixa-

Compensação

como regra geral, a empresa deverá depositar 1% da

receita líquida do produto no Fundo Nacional de repartição

de Benefícios. mas, caso a espécie estiver associada a um

conhecimento tradicional, a empresa deverá negociar

uma compensação diretamente com os povos indígenas

ou comunidades envolvidos. além disso, terá de repassar

0,5% da receita líquida do produto ao fundo

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PESQUISA FAPESP 242 z 39

-se do ponto que obriga o pesquisador a fazer um cadastramento prévio, junto ao governo brasileiro, se quiser utilizar bancos de dados públicos de sequên-cias de DNA e de proteína do exterior, como o GenBank. “Em nenhum outro país exige-se que o pesquisador faça um cadastro para utilizar informações de bancos internacionais públicos”, diz Beatriz Bulhões, especialista em política científica e representante da SBPC no Congresso Nacional.

A SBPC também é contrária à criação do SISGen, que está previsto na regula-mentação, mas não era citado na lei. E defende que o novo cadastro seja cen-tralizado no CNPq. “Já existe hoje uma plataforma do CNPq na qual são regis-tradas as pesquisas com biodiversidade. Bastaria apenas ampliá-la, em vez de se criar um sistema do zero. Isso vai gerar custos desnecessários à administração pública”, observa Helena Nader.

RAStREAmEntoOrganizações não governamentais, co-mo o Instituto Socioambiental (ISA), também têm restrições à proposta. O argumento é de que a nova legislação e o decreto que a regulamentaria excluem questões de interesse de povos indígenas e comunidades tradicionais. Pela lei, se uma empresa encontrar uma aplicação inovadora de uma planta medicinal que não tenha relação com o uso feito pela

comunidade tradicional, não precisaria dar compensação alguma. O ISA defen-de uma compensação mais abrangente. “Nesses casos, as comunidades tiveram um papel no manejo da espécie, sem o que ela não estaria disponível para ex-ploração”, diz Nurit Bensusan, coordena-dora adjunta de Política e Direito do ISA.

O ISA também propõe que se invista em iniciativas para rastrear com eficiên-cia a origem do conhecimento tradicio-nal para produzir compensações mais justas. O problema é que esse conhe-cimento, com frequência, difundiu-se por várias comunidades. “No caso de povos mais antigos, costuma ser difícil

rastrear a origem exata do conhecimen-to”, diz Maria das Graças Lins Brandão, coordenadora do Centro Especializa-do em Plantas Aromáticas, Medicinais e Tóxicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ela cita o exem-plo de uma árvore típica do Cerrado, o barbatimão, cuja casca é rica em uma substância utilizada para tratar feridas e doenças da pele. “A bibliografia anti-ga mostra que esse conhecimento era compartilhado por várias populações que viviam no Cerrado. Não há registros suficientes para determinar a origem exata de quem começou a explorar o barbatimão”, explica. n

“A pesquisa básica será beneficiada. A ciência não acessa a biodiversidade só para fins econômicos”, diz Vanderlan Bolzani

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Árvore de copaíba no Instituto de Botânica em São Paulo: planta é usada há séculos para tratar ferimentos na pele

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Ferramenta ajuda a encontrar artigos em

acesso aberto ou cópias gratuitas de

manuscritos publicados em revistas comerciais

ComuniCação CientíFiCa y

Atalho para chegar ao paper

Uma nova plataforma on-line foi criada para ajudar a encontrar artigos científicos divulgados em acesso aberto ou cópias

gratuitas de papers publicados em pe-riódicos comerciais. O DOAI (sigla em inglês para Identificador Digital de Acesso Aberto), disponível no endereço doai.io, é um serviço capaz de rastrear a existência de versões disponíveis na internet de trabalhos científicos. É pre-ciso fornecer o código identificador do artigo desejado, no padrão conhecido como DOI, para que a ferramenta mostre, quando existirem, versões armazenadas em coleções de universidades ou perfis de seus autores. O banco de dados que alimenta o DOAI é o Base, da Univer-sidade de Bielefeld, na Alemanha, que indexa quase 90 milhões de registros de 4 mil repositórios acadêmicos e outras fontes de acesso aberto no mundo inteiro. “A abrangência é impressionante”, disse Roger Schonfeld, diretor da Ithaca S+R, empresa de comunicação científica, em seu blog no portal The Scholarly Kitchen. “E a busca parece não privilegiar canais oficiais, como grandes repositórios de acesso aberto”, diz ele, que encontrou na

plataforma textos de sua autoria indexa-dos no repositório de uma biblioteca da Universidade do Norte do Texas.

A quantidade de artigos científicos disponíveis na internet é crescente. Es-tima-se que 40% dos papers sejam publi-cados atualmente em regime de acesso aberto. Esse quinhão é maior quando se analisa o universo de artigos publicados no passado. Ocorre que um conjunto ca-da vez maior de manuscritos migra ao longo do tempo do acesso fechado, em que só podem ser vistos por assinantes das revistas que os publicaram, para o acesso aberto, em que são franqueados na internet. Um estudo divulgado em 2013 pela União Europeia mostrou que 50% de todos os artigos publicados entre 2004 e 2011 estavam naquele momento disponíveis gratuitamente.

Um dos méritos da ferramenta DOAI é difundir os artigos em acesso aberto sem exigir que o usuário compreenda as regras e a terminologia que regem esse modelo. O acesso aberto se divide em duas grandes vertentes. Uma delas é a “via dourada” (golden road), aquela em que os periódi-cos são abertos e oferecem o acesso gra-tuito a seu conteúdo. Entre os exemplos

dessa estratégia destacam-se as revistas da Public Library of Science (PLoS) ou a coleção de periódicos da biblioteca SciE-LO Brasil, um programa financiado pela FAPESP. A segunda vertente é conhecida como “via verde” (green road). Nessa mo-dalidade, um autor é autorizado a arqui-var no banco de dados de sua instituição ou em seu perfil profissional uma cópia de seus artigos científicos publicados nu-ma revista comercial. Quem quiser ler o artigo sem pagar pode recorrer a esses repositórios – e a maioria deles está no banco de dados do DOAI.

Há diversas outras variantes. Algu-mas publicações permitem que os auto-res depositem cópias de seus artigos em repositórios, mas exigem que a divulga-ção só seja feita de seis meses a um ano após a publicação, para preservar seus ganhos nesse período inicial. Institui-ções de apoio, como a Wellcome Trust, fundação britânica de apoio à pesquisa biomédica, e os National Institutes of Health (NIH), dos Estados Unidos, exi-gem que os pesquisadores financiados por elas disponibilizem seus artigos em bases de dados de acesso aberto, como o PubMed Central, após um ano da pu-

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pESQUISA FApESp 242 z 41

O DOAI é uma alternativa legal ao site Sci-Hub, criado em 2011 pela pro-gramadora e estudante do Casaquistão Alexandra Elbakyan e sediado em São Petersburgo, na Rússia. Trata-se de um repositório on-line com 48 milhões de artigos, na maioria com direitos autorais protegidos, que em fevereiro chegou a registrar 200 mil consultas por dia. O funcionamento do Sci-Hub tem seme-lhanças com o DOAI, além de uma busca mais abrangente, que não se limita ao código DOI. Seu gigantesco banco de dados oferece artigos que foram baixa-dos por meio do uso de senhas cedidas por assinantes e são disponibilizados livremente. A editora acadêmica Else-vier iniciou em 2015 um processo contra a idealizadora do Sci-Hub numa corte em Nova York por violação de direitos autorais, mas encontra dificuldade em

cercear juridicamente uma iniciativa sediada num país distante. "Uma única mulher conseguiu realizar uma colossal disponibilização pública de milhões de artigos antes restritos", diz Moreno Bar-ros, bibliotecário e doutor em História da Ciência pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Para ele, iniciativas como o DOAI e o Sci-Hub indicam que a comunicação científica está mudando num ritmo len-to e que o movimento do Acesso Aber-to, lançado em 2002 com o objetivo de franquear o acesso à produção científi-ca, teve resultados limitados. “Coletiva-mente, o esforço de 14 anos para tirar o conhecimento das mãos das editoras, um artigo de cada vez, resultou por ora em 40% de novos artigos livres”, afirma Moreno Barros. n

Fabrício Marques e Bruno de pierro

blicação original em revistas científicas de acesso fechado. Outras revistas abrem mão do embargo e divulgam artigos na internet até mesmo antes da publicação do periódico em papel – mas cobram uma taxa adicional do autor para fazer a divulgação livre e antecipada.

dIFUSão“O sistema de comunicação científica é complexo. O DOAI pode tornar-se uma ferramenta de localização importan-te, mas ainda é necessário consolidar a plataforma”, diz Abel Packer, diretor do programa SciELO. De acordo com ele, o DOAI ainda não é muito conhecido e é cedo para saber se terá uma aceitação generalizada. “A difusão deve levar um tempo. Se tudo der certo, todos os arti-gos indexados no SciELO terão código identificador”, diz Packer. Il

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Impactos vIs íveIs no mar

Poluição à vista: os resíduos que vazaram

do reservatório de Mariana formam

mancha acastanhada na foz do rio Doce

ciência ECOLOGIA y

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pESQUiSa FapESp 242 z 43

Poluentes chegam a 200 km ao norte e ao sul da foz do rio Doce, atingem unidades de

conservação, alteram equilíbrio ecológico e se acumulam no assoalho marinho

Impactos vIs íveIs no mar

carlos Fioravanti

m janeiro deste ano, ao sobrevoarem o litoral do Es-pírito Santo e do sul da Bahia, biólogos, oceanógrafos e técnicos de órgãos ambientais do governo federal reconheceram os borrões escuros na superfície do mar formados pelo acúmulo de resíduos metálicos que vazaram do reservatório da mineradora Samarco

em Mariana, Minas Gerais, em novembro de 2015. A mancha de resíduos, também chamada de pluma, aproximava-se do arquipélago de Abrolhos, uma das principais reservas de vida silvestre marinha da costa brasileira.

Os borrões não eram apenas os indesejados resquícios da extração de minério de ferro de Minas Gerais, mas uma de suas consequências, como se verificou logo depois. Em meio às man-chas verde-escuro havia colônias de algas e outros organismos marinhos microscópicos – o fitoplâncton – com dezenas de quilômetros de extensão, muito maiores que as observadas nos anos anteriores, de acordo com as análises de pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

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Outra peculiaridade é que os organismos cres-ciam e se multiplicavam rapidamente, em decor-rência do excesso de ferro dos rejeitos da mine-radora de Mariana que se espalham pelo mar a partir da foz do rio Doce, onde chegaram no final de novembro. Desde então, levados continuamente ao mar pelo rio, os resíduos formam uma mancha móvel que oscila ao longo de 200 quilômetros (km) ao norte e ao sul da foz do rio Doce, que al-terou o equilíbrio marinho, como indicado pela massa de fitoplâncton, e atingiu pelo menos três unidades de conservação de organismos marinhos.

“As manchas de fitoplâncton são comuns no verão, mas não desse modo”, explica Alex Bastos, professor de oceanografia da Ufes, no final de fe-vereiro. Análises preliminares indicaram que as colônias de algas são constituídas por organismos que se formam e morrem em poucos dias, mais rapidamente que o habitual. A decomposição acelerada dos organismos consome oxigênio da água do mar, com consequências imprevisíveis sobre as comunidades de organismos marinhos.

Além disso, a diversidade de espécies havia si-do reduzida quase à metade. Camilo Dias Júnior, com sua equipe de oceanografia da Ufes, encon-trou no máximo 40 espécies de fitoplâncton por

amostra analisada; antes da chegada dos resíduos os pesquisadores reconheciam de 50 a 70 espé-cies. A hipótese dos pesquisadores e técnicos é de que já poderia ter ocorrido uma seleção de variedades mais adaptadas ao excesso de fer-ro trazido com a descarga dos resíduos no mar.

Nos sobrevoos do litoral do Espírito Santo e da Bahia, Claudio Dupas, coordenador do Núcleo de Geoprocessamento e Monitoramento Ambiental da Superintendência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renová-veis (Ibama) em São Paulo, observou muitos bar-cos de pesca próximos às manchas de fitoplâncton na foz do rio Doce. Atraídos pela abundância de alimento, o grande número de peixes chamou a atenção dos pescadores.

Com base nas análises preliminares da qualida-de de água e na observação do cenário, a equipe do Ibama elaborou um relatório técnico alertando sobre alterações na qualidade da água, prejudica-da com a descarga de resíduos no mar. Com base no documento e no princípio da precaução – pa-ra evitar que a população seja prejudicada pelo consumo de peixes contaminados –, no dia 22 de fevereiro um juiz federal de Vitória proibiu por tempo indeterminado a pesca na região da foz

Em Governador Valadares, MG: a lama ocupou o rio Doce em novembro, prejudicando o abastecimento de água para os moradores da cidade

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pESQUiSa FapESp 242 z 45

ambiente, a vida dos organismos marinhos e dos moradores da região”, diz Dupas.

Desde que vazou da barragem de Fundão, em 5 de novembro, até chegar ao mar, a enorme mas-sa de resíduos da extração de minério de ferro causou uma transformação profunda. Destruiu casas e matas às margens do rio Doce, provocando a morte de 18 pessoas e de toneladas de peixes e outros organismos aquáticos. A bióloga Flávia Bottino participou das expedições do Grupo In-dependente para Análise do Impacto Ambiental (Giaia) ao longo do rio Doce em novembro e ob-servou uma intensa turbidez da água, que difi-cultava a penetração da luz e a sobrevivência dos organismos. Os biólogos encontraram camarões de água doce que sobreviveram ao desastre, mas os organismos bentônicos, que viviam no fundo do rio, tinham sido soterrados.

LimitES incErtoS A alta concentração de partículas sólidas que absorvem calor pode ter causado o aumento da temperatura da água para cerca de 30º Celsius. “A água do rio estava quente”, ela notou. As análises das amostras de água coletadas em dezembro ao longo de um trecho de cerca de 800 km do rio, realizadas nas unidades das universidades de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, Federal de São Carlos (UFSCar) em São Carlos e Soroca-ba, Estadual Paulista (Unesp) em São Vicente, e na de Brasília (UnB), indicaram concentrações elevadas de manganês, ferro, arsênio e chumbo. As chuvas podem agravar a situação ao lavar as margens dos rios, cobertas de resíduos, e trans-portá-los ao mar.

Por meio de coletas realizadas com o navio Vital de Oliveira Moura, da Marinha, a equipe da Ufes verificou que 25 km a leste da foz do Rio Doce os resíduos formam uma camada de 1 a 2 centímetros sobre a lama do fundo do mar, a 25 metros de profundidade. “Está havendo um acúmulo rápido do rejeito no assoalho marinho”, diz Bastos, da Ufes, com base em coletas realiza-das desde novembro, logo após o rompimento da barragem (ver Pesquisa FAPESP no 239). “Nem nas maiores cheias o acúmulo de sedimentos no rio no fundo do mar foi tão alto.”

No início de fevereiro, em uma reunião dos pesquisadores da Ufes com representantes do Ibama, Instituto Estadual do Meio Ambiente (Ie-ma) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Bastos comentou que a concentração de ferro no fundo do mar havia aumentado 20 vezes, em comparação com os ní-veis de antes do acidente, a de alumínio 10 vezes e a de cromo e manganês, cinco. Outro professor da Ufes, Renato Rodrigues Neto, observou que a vazão do rio passou de 300 metros cúbicos por segundo (m³/s), antes do rompimento da bar-

do rio Doce. “Assim que saiu a decisão do juiz, o superintendente do Ibama em Vitória, Guanadir Gonçalves, pediu-me para fazer um mapa com a delimitação da área de proibição, que foi para a internet e para os celulares dos fiscais em campo no mesmo dia”, diz Dupas.

Desde janeiro os movimentos da mancha de resíduos podem ser acompanhados por meio de mapas gerados pelo Ibama a partir de imagens de satélites no site governancapelodoce.com.br (aba acompanhamento da pluma do mar), man-tido pela Samarco. Já o site siscom.ibama.gov.br/mariana contém imagens de satélite de alta resolução de antes e depois do incidente, da bar-ragem à foz. Os mapas indicam que os resíduos já chegaram a 50 km ao sul de Vitória, capital do Espírito Santo, e atingiram três unidades de conservação do ambiente marinho, o Refúgio de Vida Silvestre de Santa Cruz, a Área de Prote-ção Ambiental (APA) Costa das Algas e uma das principais áreas de desova da tartaruga-cabeçuda (Caretta caretta), uma faixa de 37 km de praias conhecida como Reserva Biológica Comboios. “Ainda não é possível avaliar o impacto sobre o Fo

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a mancha móvelA lama oscila ao norte e ao sul, de acordo com os ventos

Foz do rio Doce

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A pluma de resíduos

começou a se espalhar

em novembro, a partir

da foz do rio Doce,

deslocou-se para o sul

em dezembro, chegou

a Abrolhos em janeiro e

à APA Costa das Algas

em fevereiro e avançou

para além de Vitória,

ao sul, em março

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ragem, para cerca de 4.000 m³/s, aumentando a quantidade de lama com resíduos metálicos despejada no mar.

As imagens de satélite indicam que os resíduos metálicos podem ter chegado até o arquipélago de Abrolhos no início de janeiro, embora, ressalta Dupas, ainda não seja possível diferenciar os se-dimentos vindos do rio Doce, a cerca de 200 km de distância, dos do rio Caravelas, que deságua na região. Segundo ele, os resultados das análises em andamento devem ser anunciados em abril.

Vários estudos em outras áreas marinhas têm indicado que os resíduos industriais podem ir muito além dos lugares onde foram produzidos, misturar-se com os sedimentos do fundo do mar, aflorando se revolvidos por redes de pesca, ou ser absorvidos por organismos marinhos. Uma equipe do Instituto Oceanográfico (IO) da USP identificou metais pesados (chumbo, cobre e zinco) e compostos orgânicos derivados de pe-tróleo produzidos na zona industrial de Santos e do polo industrial de Cubatão, a 15 km do mar, misturados com a lama do assoalho marinho a uma profundidade de 100 metros e a uma distân-cia de 200 km da costa. Não se pensava que a po-luição gerada em terra pudesse chegar tão longe.

condiçõES ambiEntaiS As conclusões ajudam a pensar o que poderia se passar no litoral do Espírito Santo e dos estados vizinhos, à medida que a lama da mineradora se espalha. “Os eventos, a rigor, não têm conexão à primeira vista”, disse Michel Mahiques, profes-sor de oceanografia do IO-USP que coordenou os estudos em Santos. O vazamento da Samarco em Mariana foi um fenômeno agudo, com uma descar-ga intensa de resíduos, enquanto Santos e outros, como a baía da Guanabara, são casos crônicos, de décadas de liberação contínua de poluentes. “O

fato comum”, ele diz, “é que existem porções do fundo marinho nas quais as condições ambientais permitem a deposição de materiais gerados pela atividade humana, ainda que a grandes distâncias”.

Em um estudo anterior no litoral de Santos, seu grupo identificou isótopos de césio 137 originários de explosões atômicas ou de usinas nucleares, nas quais esse tipo de material é gerado. “O césio foi transportado pela atmosfera e aderiu a partí-culas muito pequenas do fundo do mar”, conta. “Podemos chamar esses casos de teleconexões, em que um evento em um determinado ponto do planeta pode afetar regiões muito distantes.” Segundo ele, os casos clássicos são os acidentes das usinas nucleares de Chernobyl em 1986 e de Fukushima em 2011.

“Precisamos lançar outro olhar para o potencial de acumulação de material no meio marinho”, comenta Mahiques. Seus estudos indicaram que os poluentes se acumulam principalmente nos cinturões de lama, faixas em geral com 3 a 4 km de largura e dezenas de quilômetros de extensão, na chamada plataforma continental, sobre estru-turas antigas de relevo. “Há um efeito a distân-cia. Os sedimentos permanecem em pontos bem distantes da origem. Duzentos quilômetros foi o limite a que chegamos, mas ainda não sabemos se poderiam ir mais longe.” Mahiques argumenta que dois conceitos básicos sobre o funcionamen-to da plataforma continental deveriam ser revis-tos. O primeiro é que a quantidade de materiais do continente que chega ao mar seria pequena. O segundo é que os ambientes costeiros retêm a sujeira. “A quantidade não é pequena, nem os estuários são um filtro perfeito dos resíduos ge-rados no continente.”

Os pesquisadores analisaram 21 amostras de sedimentos coletadas em 2005 e outras, mais recentes, reunidas por meio do navio oceanográ-fico Alpha Crucis. Os resultados indicaram que os níveis de chumbo, zinco e cobre a 100 metros de profundidade a mais de 100 km da costa eram próximos aos encontrados na baía de Santos, embora mais baixos que os limites mais altos do estuário santista, um ambiente próximo à terra que mistura água de rios e do mar. No estuário, a concentração de chumbo no sedimento marinho variava de 9 miligramas por quilograma (mg/kg) em áreas não contaminadas a 59 mg/kg em amostras do fundo do porto, indicando um au-mento de cinco a 10 vezes em comparação com os valores anteriores ao processo de industriali-zação. Os autores desse trabalho afirmaram que os poluentes industriais misturados com a lama no fundo do mar poderiam facilmente voltar à circulação, como resultado de movimentos in-tensos da água ou de atividade humana como a dragagem para a ampliação de portos ou a pesca com redes pesadas que revolvem o fundo do mar.

Vila de Mariana devastada pela lama da barragem de Fundão: efeito a mais de 800 km de distância na terra, no rio e no mar

A poluição gerAdA em terrA pode ir muito mAis longe do que se pensAvA

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pESQUiSa FapESp 242 z 47

Artigos científicosFIGUEIRA, R.C.L. et al. Distribution of 137Cs, 238Pu and 239 + 240Pu in sediments of the southeastern Brazilian shelf – SW Atlantic margin. Science of the total Environment. v. 357, p. 146-59. 2006.MAhIQUES, M.M. et al. Mud depocentres on the continental shelf: a neglected sink for anthropogenic contaminants from the coastal zone. Environmental Earth Sciences. v. 75, n. 1, p. 44-55. 2016.SILVA, C.C. da et al. Metal contamination as a possible etiology of fibro-papillomatosis in juvenile female green sea turtles Chelonia mydas from the southern Atlantic Ocean. aquatic toxicology. v. 170, p. 42-51. 2016.

Estudos anteriores de pesquisadores do IO-USP já haviam mostrado que a descarga contínua de es-gotos domésticos e de poluentes industriais na baía de Santos era provavelmente uma das causas da reduzida diversidade de organismos marinhos na região, em comparação com áreas menos poluídas.

Em paralelo, uma equipe da Unesp em São Vicente encontrou níveis acima dos permitidos em lei de quatro metais pesados – cádmio, cobre, chumbo e mercúrio – em amostras de água, se-dimento e em caranguejos-uçá dos manguezais dos municípios de Cubatão, Bertioga, Iguape, São Vicente e Cananeia. Nas regiões com maior concentração desses metais, os caranguejos apre-sentavam uma proporção maior de células com alterações genéticas associadas à ocorrência de malformações (ver Pesquisa FAPESP no 225). Estudo de uma equipe da Universidade Federal do Rio Grande publicado em novembro de 2015 associou a contaminação por metal como pos-sível causa da fibropapilomatose, uma doença específica de tartarugas marinhas, caracterizada pela formação de tumores benignos sobre a pele, em tartarugas-verde (Chelonia mydas) de Ubatu-

ba, SP, já que os animais examinados apresenta-vam um nível acima do normal de cobre, ferro e chumbo, em comparação com animais saudáveis.

“Quando pensarmos em legislação e políticas públicas, para fazer uma projeção do impacto de eventuais acidentes ambientais, temos de olhar mais longe e rever o conceito de área de influên-cia, já que o efeito pode ser muito maior do que o imaginado”, disse Mahiques. Bastos, da Ufes, observou que os danos ambientais podem ser in-tensos em consequência de pequenas alterações na concentração de metais na água do mar, mes-mo que os limites ainda estejam abaixo dos má-ximos estabelecidos pela legislação ambiental. n

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Equipes no Brasil e

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registram

evidências de que o

vírus causa

microcefalia

SAÚDE y

Ricardo Zorzetto e

Rodrigo de Oliveira Andrade

No final de março, a Orga-nização Mundial da Saúde (OMS) mudou seu discurso sobre a conexão do vírus zi-ka com os casos recentes de

microcefalia e outros problemas neuro-lógicos. Em um relatório divulgado no dia 31, afirmou que há um “forte consen-so científico” de que o zika causa a mi-crocefalia, condição em que as crianças nascem com a cabeça pequena demais para o tempo de gestação, e a síndrome de Guillain-Barré, degeneração da bai-nha de mielina dos nervos que pode cau-sar paralisia. É uma mudança de posição importante, adotada dois meses depois de considerar que havia uma “possível associação” do vírus com esses proble-mas e declarar situação de emergência de saúde pública de interesse internacional.

O reconhecimento da chamada rela-ção de causalidade resulta do acúmulo de dois tipos de evidências. O primei-ro tipo é epidemiológico. Desde que foi identificado no país em 2015, o vírus já se disseminou por outros 32 países das Américas, não necessariamente a par-tir do Brasil, além de alguns da Ásia, da Europa e da África – em seis países a transmissão parece ser exclusivamente sexual. Soma-se a isso o aumento de ca-sos de microcefalia associados à infecção por zika, já registrados em oito países. Até 26 de março, o Brasil reunia o maior número de bebês (944) com microcefalia – o vírus foi detectado em 130 deles. Em segundo lugar, vêm Colômbia e Poliné-sia Francesa, com oito casos cada uma.

O segundo tipo de evidência é bioló-gica. Desde que o assunto ganhou re-levância internacional, em novembro

passado, o número de trabalhos cien-tíficos sobre zika aumentou exponen-cialmente. O Pub med, base de artigos na área biomédica, registrava 218 trabalhos de 1952 a 2015. Apenas em 2016 surgi-ram outros 307. A causa do aumento é a união de pesquisadores de diferentes especialidades e países em torno de um problema em comum. “Raramente cien-tistas se engajaram em uma nova agenda de pesquisa com tal senso de urgência”, escreveu a epidemiologista brasileira Laura Rodrigues, da Escola de Higie-ne e Medicina Tropical de Londres, em um comentário sobre o tema na Lancet.

Um dos estudos que começou a alterar a visão da comunidade científica sobre a causalidade da microcefalia foi con-duzido por pesquisadores da Eslovênia. O grupo da virologista Tatjana Avsic--Zupanc, da Universidade de Liubliana, encontrou o vírus e quantificou sua pre-sença no cérebro de um bebê de 8 me-ses com microcefalia. A mãe da criança havia morado em Natal, no Rio Grande do Norte, onde engravidou em fevereiro de 2015. Três meses depois ela apresen-tou sinais de infecção por zika – febre, manchas vermelhas pelo corpo, coceira, dores musculares e nos olhos. O terceiro exame de ultrassom, feito na 29a sema-na de gestação, identificou restrição de crescimento do bebê e tamanho reduzido do crânio. Além da microcefalia, os pes-quisadores observaram lesões (calcifica-ções) no cérebro. Publicado em fevereiro no New England Journal of Medicine, o trabalho foi considerado uma das pri-meiras evidências sólidas da conexão entre o vírus e a microcefalia, embora o virologista brasileiro Pedro Vasconcelos, do Instituto Evandro Chagas, no Pará, já tivesse isolado o vírus do cérebro e de ou-tros tecidos de um bebê com microcefalia do Ceará (ver Pesquisa FAPESP nº 239).

De lá para cá, outros estudos acumu-laram indicações de que o zika transpõe a placenta e infecta o líquido aminiótico, algo que poucos vírus conseguem fazer. A presença do vírus em diferentes tecidos, entretanto, não é suficiente para confir-mar a causalidade. Ele poderia estar ali sem causar danos. Dois estudos apresen-

As conexões do zika

Zika no minicérebro: receptor AXL (verde), possível chave para o vírus penetrar nas células precursoras (vermelho) do tecido cerebral

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Células-tronco infectadas com zika originaram minicérebros 40% menores que os obtidos de células-tronco sadias

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tados no início de março demonstraram que o zika é capaz de infectar células neurais humanas e matá-las. Em um de-les, depositado no dia 2 no repositório Peer J Preprints, pesquisadores do Rio de Janeiro e de São Paulo verificaram que o zika invade e mata as células-tronco precursoras de células neurais.

O grupo coordenado por Stevens Rehen e Patrícia Garcez, neurocientis-tas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), induziu qui-micamente células da pele a se tornar células-tronco pluripotentes, capazes de originar diferentes tecidos, e depois as estimularam a se transformar em células cerebrais. Sob as condições adequadas, essas células se organizam em camadas e geram as neuroesferas e os organoides cerebrais (minicérebros), modelos do cérebro em diferentes estágios de desen-volvimento. As primeiras mimetizam o cérebro de um embrião em um estágio rudimentar; os minicérebros equivalem ao cérebro de um feto de 3 meses.

Em laboratório, os pesquisadores in-fectaram as células-tronco com amostras da linhagem africana do zika, isolada em 1947 e aparentemente distinta da que cir-cula hoje no Brasil, e analisaram como elas se desenvolviam em comparação com células não expostas ao vírus. Após três dias, Rehen e sua equipe observaram que o zika havia comprometido a capacidade das células-tronco de gerar neuroesferas. “As poucas neuroesferas formadas se de-gradaram em até seis dias, enquanto as originadas de células não infectadas se de-senvolveram normalmente”, conta Rehen.

Imagens de microscopia eletrônica mostraram que o vírus havia se multipli-

cado rapidamente no interior das células e disparado a morte celular programada (apoptose). E os minicérebros infectados eram 40% menores do que os saudáveis 11 dias após o início dos testes. Além de crescerem menos, eles também eram deformados.

Em uma versão estendida do estudo, publicada em abril na Science, o grupo do Rio infectou as células-tronco com o ví-rus da dengue, geneticamente muito se-melhante ao zika e também amplamente disseminado no Brasil. O vírus invadiu as células progenitoras neurais de mo-do ainda mais eficaz que o zika, mas não causou problemas. “Diferentemente do zika, o vírus da dengue não comprome-teu o desenvolvimento das neuroesferas e dos organoides”, afirma Rehen.

Dois dias após o grupo do Rio depo-sitar o trabalho no Peer J Preprints, pes-quisadores dos Estados Unidos apre-sentaram na revista Cell Stem Cell uma confirmação da afinidade do zika pelas células do tecido cerebral. Eles coloca-ram células-tronco precursoras das célu-las neurais em contato com o vírus e ve-rificaram que, três dias depois, 85% delas estavam infectadas e haviam ativado as vias bioquímicas da apoptose. O experi-mento foi repetido com células imaturas de rim e o vírus invadiu pouco mais de 10% delas, indicando sua preferência por células do sistema nervoso. “Mostramos que o zika infecta in vitro as células neu-rais que correspondem às que formam o córtex”, disse o neurocientista Hongjun Song, da Universidade Johns Hopkins, em um comunicado à imprensa.

Evidências semelhantes foram obtidas por pesquisadores da Rede de Pesquisa sobre Zika Vírus em São Paulo (Rede Zi-ka), apoiada pela FAPESP. Além do zika africano, eles usaram a cepa brasileira do vírus para infectar células-tronco precur-soras das células neurais, neuroesferas, minicérebros e fêmeas de camundongo prenhes. Submetidos para publicação, os resultados, segundo os autores, con-firmam que o vírus causa microcefalia.

CRItéRIOS dE CAUSAlIdAdE“Canonicamente, usam-se os critérios de Hill para demonstrar que um vírus causa uma doença”, explica o virologista Paolo Zanotto, da Universidade de São Paulo (USP). Propostos em 1965 pelo epidemiologista britânico Austin Brad-ford Hill, esses critérios são uma lista de nove características que em geral devem ser satisfeitas. São eles: força ou efeito

Efeito devastador: neuroesfera saudável (à esq.) e neuroesfera gerada a partir de células infectadas pelo vírus zika

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pESQUISA FApESp 242 z 51

Artigos científicosMlAKAR, J. et al. zika virus associated with microcephaly. New England Journal of medicine. 10 fev. 2016.GARCEz, P. P. et al. zika virus impairs growth in human neurospheres and brain organoids. peer J preprints. tANG, h. et al. zika virus infects human cortical neural progenitors and attenuates their growth. Cell Stem Cell. mai. 2016.SiRohi, D. et al. the 3.8 Å resolution cryo-EM structure of zika virus. Science. 31 mar. 2016.BRASil, P. et al. zika virus infection in pregnant women in Rio de Janeiro – preliminary report. New England Journal of medicine. 4 mar. 2016.CAuChEMEz, S. et al. Association between zika virus and microcephaly in French Polynesia, 2013-15: a retrospec-tive study. lancet. 15 mar. 2016.

de tamanho (quanto mais ampla a as-sociação maior a probabilidade causal); consistência (observações semelhantes feitas por grupos diferentes em locais distintos aumentam a probabilidade de o efeito existir); especificidade (quanto maior a associação entre um fator e seu efeito, maior é a probabilidade de haver relação causal); temporalidade (o efeito deve ocorrer após exposição ao fator que o provoca); gradiente biológico (quan-to maior a exposição ao fator causador, maior o efeito); plausibilidade (existên-cia de mecanismo biológico que explica a relação entre causa e feito); coerência (a conexão entre os achados laborato-riais e epidemiológicos aumenta a pro-babilidade de o fator provocar o efeito); experimentação (ocasionalmente é pos-sível buscar evidências experimentais); analogia (o efeito de fatores semelhantes deve ser levado em consideração).

Apesar desses avanços, não se sabe ao certo como o vírus, uma vez no orga-nismo do feto, chega ao tecido cerebral. Arnold Kriegstein e seu grupo na Univer-sidade da Califórnia em São Francisco suspeitam que o vírus alcance o sistema nervoso por meio do líquido que banha o sistema nervoso central (líquor) e use o receptor AXL expresso nas células pre-cursoras do cérebro para invadi-las (leia explicação detalhada no texto on-line).

A confirmação mais importante de que o zika causa microcefalia vem de estudos como o feito pela infectologista Patrícia Brasil, da Fiocruz no Rio de Janeiro. Des-de setembro, ela acompanha grávidas que apresentaram sinais de infecção por zika em diferentes momentos da gestação. Em março, Patrícia revelou seus primeiros resultados no New England Journal of Medicine. Os pesquisadores identificaram o vírus em 72 das 88 participantes – só 42

continuaram no estudo e aceitaram reali-zar exames de imagem nos bebês. Das 42 crianças, 12 (29% do total) apresentavam graus diferentes de comprometimento: de restrição de crescimento intrauteri-no (cinco casos) a lesões cerebrais (sete) e morte do feto (dois) – alguns tinham mais de um problema.

RISCO NO pRImEIRO tRImEStREMais evidências de causalidade vieram de um estudo que analisou retrospec-tivamente o surto de zika na Polinésia Francesa. Simon Cauchemez, do Insti-tuto Pasteur em Paris, estimou o total de casos da infecção a partir dos dados de testes sorológicos. Em uma busca nos re-gistros médicos, ele e colegas identifica-ram oito casos de microcefalia entre se-tembro de 2013 e julho de 2015. Usando um modelo matemático, eles concluíram que a infecção no primeiro trimestre de gestação é a que mais aumenta a probabi-lidade de ter um bebê com microcefalia. Segundo os resultados, apresentados na Lancet, esse risco é de 1%.

Os estudos medem fenômenos dife-rentes e não podem ser comparados. Mas

parecem suficientes para comprovar a causalidade. “É prematuro calcular o ris-co de a infecção levar ao nascimento de um bebê com microcefalia com base nos dados do estudo do Rio e da Polinésia, já que o número de pessoas é pequeno”, diz o epidemiologista Cesar Victora, da Universidade Federal de Pelotas. “Sobre a relação causal, não há dúvida”, afirma.

“Ambos os trabalhos são importantes, mas não exaurem a questão”, diz Zanot-to, da USP. “Ainda é preciso saber se o risco depende da pré-exposição a outros patógenos, da existência anterior de ou-tras doenças, das características genéti-cas e do estado nutricional da mãe”, con-ta. Zanotto coordena a Rede Zika, que desenvolveu um teste capaz de identifi-car no sangue anticorpos contra o vírus.

Embora não permitam estimar o risco de uma gestante brasileira com zika ter um bebê com microcefalia, os dados da Fiocruz vão além de confirmar a causa-lidade. O trabalho reforça a ideia de que o zika não provoca só microcefalia, mas uma síndrome congênita, como alguns já haviam sugerido. Nessa síndrome, o tipo de problema apresentado pelo be-bê depende do período da gravidez em que ocorreu a infecção. “Uma vez que a gestante é diagnosticada com zika”, diz Patrícia Brasil, “o obstetra deve moni-torar o bebê realizando exames a inter-valos mais curtos”. Foi assim que seu grupo identificou a tempo um caso em que o líquido amniótico secou. O bebê foi salvo por meio de um parto cirúrgico. n

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Sósia da dengue: cópias congeladas do vírus zika (ao lado) usadas para determinar a sua estrutura detalhada (abaixo)

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Odor de filhotes ativa em camundongos adultos células

de órgão nasal associado a comportamentos instintivos

NEUROCIêNCIAS y

Na raiz Do iNfaNticíDio aNimal

teses sobre a função que elas poderiam desempenhar.”

As células que detectam o odor dos filhotes expressam em sua superfície a proteína OLFr692, sigla de membro 692 da família de receptores olfativos. Essa proteína transpassa a membrana celular do neurônio e capta compostos químicos emanados pelos filhotes. Os re-ceptores olfativos integram uma extensa família de 1.300 proteínas especializadas na identificação de moléculas orgânicas pequenas e voláteis, os odorantes. Com exceção do OLFr692, esses receptores em geral estão presentes nas células sen-soriais do maior órgão olfativo do nariz, o epitélio olfativo principal. Nos camun-dongos, esse epitélio é formado por 1.300 tipos de células sensitivas que, como um tapete, forram a porção mais profunda da cavidade nasal e permitem o reco-nhecimento do ambiente e a criação de uma memória aromática dele.

Um aspecto peculiar das células des-critas na BMC Biology é que elas pos-suem proteínas da família dos recep-tores olfativos, mas não estão no epi-

filhotes mais novos chega pelo ar. Nas primeiras semanas de vida, o corpo dos filhotes libera moléculas de odor ainda desconhecidas que ativam um grupo par-ticular de células no nariz dos animais mais velhos. Essas células, identificadas pelo grupo da Unicamp e descritas em fevereiro na revista BMC Biology, trans-formam a informação química em sinais elétricos que mobilizam as áreas cere-brais associadas à agressividade.

As células especializadas em perce-ber o cheiro dos filhotes são neurônios, assim como as demais células sensoriais que permitem aos mamíferos identificar os aromas do ambiente. Mas algumas diferenças as tornam únicas no sistema olfativo. A primeira e mais importante é que elas só existem nos camundongos adultos e estão mais ativas nos machos virgens, que nunca tiveram filhotes, do que nas fêmeas (que já pariram ou não) e nos machos que já se reproduziram. “Esse é o primeiro caso documentado de células do sistema olfativo com es-se padrão de ativação”, conta Papes. “Essa diferença ajudou a definir as hipó-

Q uem trabalha com roedores em laboratório sabe que colo-car no mesmo ambiente ani-mais de ninhadas diferentes

costuma não dar certo. Em geral os ma-chos adultos se agridem mutuamente e eliminam os filhotes mais novos, mesmo quando todos, adultos e recém-nascidos, são filhos dos mesmos pais. O compor-tamento, chamado de infanticídio, é frequente entre ratos e camundongos e, segundo estudo publicado em 2014 na revista Science, é compartilhado com pouco mais de uma centena de espécies de mamíferos – de predadores como ur-sos e leões a primatas como chimpanzés, babuínos e gorilas. Experimentos feitos pelo biólogo Fabio Papes e sua equipe no Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp) começam a desvendar parte do misté-rio que cerca esse comportamento e a identificar os mecanismos moleculares que, em certas situações, levam os ca-mundongos a cometerem infanticídio.

Papes e seu grupo estão seguros de que o sinal que leva os machos a matarem os

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télio olfativo principal. Em vez disso, o biólogo Thiago Nakahara, aluno de doutorado orientado por Papes, encon-trou-as somente no órgão vomeronasal, outro tecido olfativo no nariz, com fei-ções moleculares distintas. Nos camun-dongos, esse órgão é formado por duas estruturas cilíndricas com 2 milímetros de comprimento, uma de cada lado do nariz. Até então, os pesquisadores ima-ginavam que suas células apresentavam apenas proteínas de superfície da famí-lia dos receptores vomeronasais (VRs), especializados na detecção de feromô-nios, moléculas orgânicas que deflagram comportamentos instintivos de defesa, acasalamento, agressividade e alarme.

“Técnicas mais sensíveis começam a mostrar que células expressando as proteínas OLFr podem estar também em tecidos distantes do nariz”, conta a bioquímica Bettina Malnic, pesquisadora da Universidade de São Paulo que ajudou a decifrar como as moléculas de odor interagem com as células do epitélio ol-fativo e disparam as informações que serão interpretadas pelo cérebro. Como

exemplo, Bettina lembra que no final de 2015 pesquisadores dos Estados Unidos identificaram células com o receptor OLFr78 em uma estrutura sensitiva da artéria carótida, onde elas monitoram os níveis de oxigenação do sangue.

mEdIAdorES dA AgrESSIvIdAdEEm Campinas, identificada a população de células OLFr692 no órgão vomerona-sal, veio o passo mais desafiador: desco-brir qual função essas células desempe-nham no sistema olfativo dos roedores. A pista inicial de que camundongos nas primeiras semanas de vida não apresen-tavam essas células levou os pesquisado-res a imaginar que estariam envolvidas na sinalização de comportamentos ca-racterísticos dos animais adultos.

O grupo de Papes iniciou, então, testes com camundongos de diferentes idades para analisar o padrão de ativação das cé-lulas OLFr692. Em alguns experimentos, machos foram colocados para conviver com fêmeas, a fim de verificar se essas cé-lulas mediavam a atração sexual. Em ou-tros, machos interagiram por um período

com outros machos na mesma gaiola. O objetivo era averiguar se as células OLFr692 estariam ativas e participariam da indução do comportamento agressivo comum no contato entre machos. Alguns animais foram expostos ainda a odores de predadores (gatos, ratos, cobras e ara-nhas), para avaliar se as células estariam envolvidas em reações instintivas de de-fesa e medo (ver Pesquisa FAPESP nº 172). Em nenhum caso, porém, houve ativação das células OLFr692.

A última hipótese foi de que essas cé-lulas poderiam modular alguma intera-ção entre adultos e filhotes. Assim como outros roedores, os camundongos adul-tos machos e fêmeas exibem cuidado pa-rental: limpam os filhotes, lambendo-os, e os trazem de volta ao ninho quando tentam escapar – as mães também os alimentam. Nakahara mediu a ativação das células OLFr692 em animais adul-tos e verificou que, nos machos virgens, elas participavam da detecção de odor dos recém-nascidos. Quando interagem com os filhotes, esses machos, ao invés de os proteger, matam-nos. “É um com-portamento comum em camundongos”, diz Papes. “Quem cuida de biotério sabe que não deve colocar um macho estra-nho com os filhotes.”

Os pesquisadores buscam agora com-provar que as células OLFr692 são ne-cessárias para gerar esse comportamento. Para isso, repetirão os testes com camun-dongos geneticamente alterados para não produzir a OLFr692. “Nosso palpite é que o comportamento infanticida deve desa-parecer”, conta Papes. “Estudar como um circuito neuronal como o ativado pelas células OLFr692 gera comportamentos específicos”, diz Bettina, “pode contri-buir para compreender como o cérebro é organizado e revelar como alterações em circuitos neurais levam a desordens neurológicas e comportamentais em se-res humanos”. n ricardo Zorzetto

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projetomolecular biology of the olfactory system in mammals: study on the detection of odors and their neural repre-sentation in the brain (nº 2009/00473-0); Modalidade programa Jovens pesquisadores em Centros Emergentes; Pesquisador responsável Fabio papes (IB-Unicamp); Investimento R$ 780.405,02.

Artigo científicoNAkAhARA, T. S. et al. Detection of pup odors by non--canonical adult vomeronasal neurons expressing an odorant receptor gene is influenced by sex and parenting status. Bmc Biology. v. 14. 15 fev. 2016.

Cérebro

Epitélio olfativo principal

Cavidade nasal Órgão

vomeronasal

combinação singularCélulas que detectam o cheiro de filhotes só existem nos animais adultos e são mais ativas nos machos virgens

localizadas no órgão vomeronasal, as células OlFr692 exibem característica de células de outro tecido, o epitélio olfativo

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54 z abril DE 2016

Estudo reforça hipótese de que o maior dinossauro

carnívoro também vivia em ambientes semiaquáticos

Espinossauro

Algumas formas

do maior dinossauro

carnívoro eram

adaptadas ao

ambiente terrestre

(acima) e ao aquático

(à dir.) do Cretáceo

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Na água com o espinossauro

Marcos Pivetta

não passa de ficção. Os dois grupos de dinossauros não coexistiram no tempo ou no espaço.

Não foi apenas por suas medidas su-perlativas que os espinossauros se tor-naram recentemente um interessante objeto de estudo. Alguns trabalhos desta década, como um artigo de pesquisado-res da Universidade de Chicago publi-cado na revista Science em setembro de 2014, indicam que eles parecem ser os únicos representantes de uma linhagem de dinossauros adaptada tanto à vida terrestre como ao meio aquático, nos arredores da costa, de rios ou de lagos. Certos traços ósseos da espécie Spino-saurus aegyptiacus, como o focinho de crocodilo, os dentes cônicos e os pés em formato de pá, e restos de peixe encon-trados em seu intestino sugerem que essa família de dinossauros podia nadar e caçar no ambiente aquático. Um es-

No imaginário popular, o Ty-rannosaurus rex, com seus 13 metros de comprimento e 7 toneladas, é a represen-tação máxima da ferocidade

dos dinossauros. Mas, nos últimos anos, estudos sucessivos têm se dedicado a caracterizar melhor os atributos ana-tômicos e em especial o modo de vida de um grupo de dinossauros, igualmen-te carnívoros, cujos maiores exempla-res ultrapassavam as medidas do “rei dos lagartos tiranos”: os espinossauros, gigantes de esqueleto alongado como crocodilos, dotados de uma sequência de vértebras no dorso com formato pa-recido ao de uma vela náutica. No filme Jurassic Park III, de 2001, um desses “lagartos-espinhos”, que podiam che-gar a 15 metros de comprimento e talvez 20 toneladas, vence uma batalha con-tra um T. rex. A rivalidade entre ambos

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PESQUISA FAPESP 242 z 55

tudo recente de paleontólogos da Uni-versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) corrobora essa ideia por meio de um outro tipo de evidência.

Cálculos estatísticos sugerem que a chance de um “lagarto-espinho” ter ha-bitado ambientes aquáticos era significa-tivamente maior do que a de um abelis-sauro ou de um carcarodontossauro, duas famílias de grandes dinossauros carnívo-ros, de hábitos sabidamente terrestres, mais ou menos contemporâneas aos es-pinossauros. “De acordo com nossos tes-tes estatísticos, apenas os espinossauros apresentaram uma correlação positiva com ambientes costeiros do passado”, afirma César Schultz, da UFRGS, um dos autores do estudo, cujos resultados saí-ram em 1º de fevereiro na revista PloS One. “Mas eles não devem ter sido exclu-sivos das áreas com água. Devem também ter habitado zonas terrestres, a exemplo

dos abelissauros e carcarodontossauros.” Os três grupos de dinossauros alcança-ram seu auge em distintos intervalos de tempo do período Cretáceo, entre 145 e 66 milhões de anos atrás, e habitaram terras do antigo supercontinente austral Gondwana, hoje equivalentes ao norte

da África e à América do Sul, inclusive o Nordeste do Brasil.

Para fazer o trabalho, os pesquisadores coletaram dados sobre as ocorrências de fósseis das três famílias de dinossauros disponíveis até o final de 2014 no Paleo-biology Database, um banco de dados in-IM

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56 z abril DE 2016

ternacional que reúne mais de 58 mil re-ferências sobre achados paleontológicos. Depois de separarem os registros mais duvidosos, chegaram a um total de 198 lugares no globo onde foram encontra-dos vestígios razoavelmente confiáveis de, ao menos, um exemplar de espinos-sauro, abelissauro ou carcarodontossau-ro. “As localidades podiam apresentar desde apenas um fóssil de uma das fa-mílias até vários representantes dos três grupos de dinossauros”, diz Marcos Sa-les, principal autor do trabalho, que faz doutorado sob orientação de Schultz.

Os espinossauros foram os campeões de ocorrência, com 81 registros. A seguir vieram os abelissauros (72) e os carca-rondotossauros (66). Dos lugares co-nhecidos com fósseis de espinossauros, 16 estavam em camadas geológicas que representavam ambientes costeiros do Cretáceo e 65 em registros associados a hábitats terrestres, situados na parte mais interna dos antigos continentes. O banco de dados também reúne infor-mações sobre fósseis de abelissauros e de carcarondotossauros achados em se-

um grupo extinto de crocodilos carnívoros típicos da América do sul, os baurusuquídeos, tinha provavelmente orelhas similares às dos mamíferos de hoje e um sistema auditivo mais refinado do que os pesquisadores da área imaginavam. A ideia é proposta por pesquisadores da universidade Estadual paulista (unesp) e da universidade mcgill (Canadá) em um trabalho publicado em 4 de fevereiro no Journal of Anatomy. segundo os autores do estudo, esses répteis, que viveram em ambientes terrestres no período Cretáceo superior, entre 100 e 66 milhões de anos atrás, apresentavam um ouvido externo avantajado, bem maior do que o de seus antecessores e do que o encontrado nos atuais jacarés e crocodilos. “ter a capacidade de ouvir sons no ar deve ter sido importante para a origem e evolução dos crocodiliformes”, afirma o paleontólogo Felipe montefeltro, professor do Departamento de biologia e Zootecnia do campus de ilha solteira da unesp, autor principal do estudo. “naquela época, alguns deles viviam fora da água.” uma boa audição facilita, por exemplo, a localização de presas em terra firme.

À medida que os crocodilos foram deixando os ambientes secos e migrando para o entorno do meio aquático, seu pavilhão auditivo teria sofrido modificações anatômicas e assumido outras funções. “o aparecimento de novas formas de crocodiliformes esteve associada a uma dramática alteração no ouvido externo”, diz o biólogo hans larsson, da universidade canadense. no lugar das antigas orelhas, os répteis, ao se tornarem anfíbios, teriam passado a exibir uma espécie de tampão composto

de tecidos moles, um traço anatômico muito mais funcional em seu novo hábitat aquático. hoje todas as espécies de crocodilos e jacarés vivem perto da água. A maioria é encontrada à beira de rios, embora existam formas marinhas.

para embasar as conclusões do estudo, montefeltro analisou coleções de fósseis de baurusuquídeos, abundantes no estado de são paulo, e de outras formas extintas de crocodilos e dissecou exemplares de jacarés pertencentes a espécies viventes, como o jacaré-do-papo-amarelo (Caiman latirostris). A estrutura anatômica analisada mais detalhadamente pelos pesquisadores foi a câmara meatal, nome técnico da caixa de ressonância que constitui o ouvido externo desses répteis. o trabalho foi feito no âmbito de um projeto temático sobre a origem e evolução dos dinossauros e outros répteis, coordenado por max langer, da universidade de são paulo (usp), campus de Ribeirão preto.

Jacaré-do-papo-amarelo tem um “tampão” de tecido mole onde no passado haveria orelhas

Crocodilo com orelhasForma extinta e terrestre do réptil que viveu no interior paulista pode ter tido um grande pavilhão auditivo externo

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Carcarodontossauro

grupo de carnívoros com dentes

afiados, similares aos do tubarão,

tinha hábitos terrestres.

Abaixo, ilustração da espécie

Concavenator corcovatus

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PESQUISA FAPESP 242 z 57

projetoA origem e irradiação dos dinossauros no gondwana (neotriássico – Eojurássico) (nº 2014/03825-3); Mo-dalidade projeto temático; Pesquisador responsável max langer (usp-Ribeirão preto); Investimento R$ 1.706.876,45 (para todo o projeto).

Artigos científicossAlEs, m. A. F. et al. the “χ” of the matter: testing the relationship between paleoenvironments and three the-ropod clades. PLoS One. 1° fev. 2016.montEFEltRo, F. C. et al. the evolution of the meatal chamber in crocodyliforms. Journal of Anatomy. 4 fev. 2016.3

2

dimentos de origem costeira, ainda que em menor número do que no caso dos espinossauros (três registros para o pri-meiro grupo de dinossauros e 10 para o segundo). “Mas, segundo nossos testes estatísticos, as ocorrências de fósseis dessas duas famílias em paleoambientes costeiros se deve provavelmente ao aca-so, a algum fator aleatório”, afirma Sales.

TESTE dO QUI-QUAdrAdO Encontrar fósseis de espinossauros, ou de qualquer dinossauro ou vertebrado, em sedimentos associados a antigos la-gos ou áreas litorâneas não quer dizer necessariamente que esse tipo de lugar era um de seus nichos ecológicos. Os animais podem ter vivido e morrido no interior dos continentes e seus fósseis simplesmente transportados para uma região costeira. Em tese, processos sedi-mentares e o acaso — e não a hipótese de que realmente viveram perto ou dentro da água — podem ser os responsáveis por haver um certo número de vestígios de espinossauros em camadas geológicas representativas de zonas de vida aquá-tica do Cretáceo. É esperado que haja um número bem maior de registros fós-seis de dinossauros associados a antigos ambientes terrestres do que ligados a áreas de vida aquática. O processo de sedimentação, necessário para a forma-ção de fósseis, é muito mais comum nas regiões internas de um continente, dis-tantes dos grandes corpos de água, do

que em suas zonas costeiras ou fluviais. “Há muito mais espaço no interior do que na costa e isso, com certeza, deve enviesar o registro de muitos grupos de animais terrestres”, diz Sales.

Uma forma de contornar esse pro-blema é usar métodos estatísticos que permitem uma análise mais criteriosa dos dados. No estudo com os dinossau-ros, os paleontólogos da UFRGS usaram uma ferramenta matemática denomina-da teste do qui-quadrado. Grosso modo, essa abordagem visa determinar se as variáveis de um conjunto de dados são independentes — ou seja, se seus valo-res variam aleatoriamente, de maneira fortuita — ou apresentam alguma asso-ciação, um nexo causal, entre si. No caso dos dinossauros, o objetivo era averiguar se a quantidade de fósseis de cada grupo encontrada em depósitos que represen-tam ambientes costeiros (e terrestres) do Cretáceo pode ser interpretada co-mo uma evidência de que algum desses répteis realmente habitou esses lugares ou deve ser encarada como um capricho da natureza. Para ambientes costeiros,

apenas o conjunto de ocorrências dos espinossauros apresentou a robustez necessária para passar no teste. Abelis-sauros e carcarodontossauros exibiram afinidades estatísticas com hábitats ex-clusivamente terrestres.

O trabalho de Sales e Schultz fornece mais um tipo de indício de que os “lagar-tos-espinhos” podem ter exibido hábitos semiaquáticos durante o Cretáceo. “O estudo é interessante e corrobora essa ideia”, afirma Alexander Kellner, paleon-tólogo do Museu Nacional da Universi-dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Mas o tema é extremamente polêmico.” Segundo Kellner, que descobriu espécies de espinossauros, como o Angaturama limae e o Oxalaia quilombensis, na bacia do Araripe em sedimentos do Cretáceo, as camadas geológicas em que são en-contrados muitos fósseis dessa família de dinossauros nem sempre estão bem delimitadas. Por isso pode ser difícil as-sociá-las com precisão a ambientes ma-rinhos do passado remoto. n

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Abelissauro

Reconstituição do esqueleto

de um Majungasaurus

crenatissimus, espécie

desse grupo de bípedes

carnívoros terrestres

com pequenos

membros anteriores

Page 58: Geogenômica

Gigantes gasosos situados

próximo a suas estrelas podem

lançar ao espaço moléculas

essenciais à vida

Planetas com cauda

Algumas estrelas não muito dis-tantes do Sol abrigam planetas com uma cauda semelhante à dos cometas. Identificados

pelos astrônomos nos últimos 13 anos, esses planetas são gigantes gasosos das dimensões de Júpiter, o maior planeta do Sistema Solar. A principal diferença é que, em geral, eles se encontram muito próximos de suas estrelas, que erodem a atmosfera planetária lançando um rastro de gás e poeira no espaço. Dois astrônomos brasileiros especialistas em química do meio interestelar resolveram investigar as reações que poderiam acon-tecer na cauda de alguns desses planetas e verificaram que, sob certas condições, ali podem se formar moléculas muito simples, como a de água, essencial à vida.

A astrônoma Heloísa Boechat-Roberty e seu aluno de doutorado Rafael Pinotti chegaram a essa conclusão ao simular o que ocorre na cauda do planeta Osíris, um gigante gasoso semelhante a Júpiter que orbita a estrela HD 209458, localiza-da na direção da constelação de Pégaso e distante 154 anos-luz do Sistema Solar. A HD 209458 tem características muito próximas às do Sol. Mas Osíris se encon-tra tão próximo dela que a HD 209458 aquece e erode a atmosfera do planeta, formando uma cauda gigantesca de gás e poeira no espaço.

Osíris foi descoberto em 1999 e já foi observado pelos telescópios espaciais Hubble e Spitzer, da Nasa. É um planeta como Júpiter que se encontra mais perto de sua estrela do que Mercúrio está do Sol. Em 2003 astrônomos identificaram a cauda de Osíris, uma correnteza de mais de 10 mil toneladas de gás escapando da atmosfera do planeta a cada segundo, a velocidades de até 130 quilômetros por segundo. “Achamos instigante investi-gar as reações químicas que poderiam acontecer ali”, diz Heloisa, professora e pesquisadora do Observatório do Va-longo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Heloisa e Pinotti imaginavam que as partículas presentes na corrente de gás lançada no espaço podiam interagir e gerar moléculas estáveis. Antes deles, outros astrônomos já haviam confirma-do a presença de diferentes moléculas na

AstronomiA y

Igor Zolnerkevic

Page 59: Geogenômica

PESQUISA FAPESP 242 z 59

atmosfera de Osíris. Lá existe hidrogênio molecular (H2) em abundância na forma de gás e também moléculas simples de carbono e vapor-d’água, além de molécu-las de carbeto de silício, óxido de titânio e vanádio, que formariam grãos de poeira. Mas muitos imaginavam que essas mo-léculas seriam destruídas à medida que fossem arrastadas para a cauda de Osíris.

Uma das razões é que, logo acima da atmosfera do planeta, na base de sua cau-da, a temperatura do gás alcança 10 mil graus Celsius. Além da alta temperatu-ra, a radiação ultravioleta da estrela se-ria intensa o bastante para desmanchar qualquer molécula de gás vinda da at-mosfera de Osíris. “Estudos feitos por outros pesquisadores apontavam para a inexistência de moléculas ali”, diz Pi-notti. “A radiação seria tão forte que o gás seria composto apenas por átomos e íons isolados.”

O pesquisador explica, entretanto, que a maioria dos estudos teóricos anteriores se concentrava em calcular as tempera-turas, as velocidades e as densidades do gás da cauda a uma distância relativa-mente próxima do planeta. Um mode-lo físico criado pelo astrofísico francês Vincent Bourrier, do Observatório de Genebra, na Suíça, chamou a atenção de Pinotti por estimar densidades e veloci-

dades em uma região da cauda bem mais afastada do planeta, onde a tem-peratura do gás seria bai-xa o suficiente para que átomos e íons pudessem se combinar novamente e formar moléculas. To-mando esse modelo como base, Heloisa e Pinotti simularam 566 reações químicas diferentes envolven-do 56 moléculas e íons que poderiam acontecer na cauda de Osíris.

Apresentados em fevereiro na revista Planetary and Space Science, os resul-tados dessa análise indicam que, caso uma fração do hidrogênio molecular da atmosfera de Osíris sobreviva aos efeitos da radiação, moléculas de água poderiam se formar na cauda do planeta. Segundo os cálculos da dupla, telescópios espa-ciais podem comprovar essa hipótese caso busquem na cauda de Osíris sinais de íons OH+, as moléculas mais abun-dantes ali, de acordo com as simulações.

Por enquanto, as observações feitas por meio dos telescópios espaciais só confirmaram a existência de hidrogênio, carbono e oxigênio na forma de átomos e íons isolados na cauda de Osíris. Mas evidências observacionais ainda contro-versas sugerem que a cauda do planeta

pode arrastar consigo um pouco da poeira de Osíris, o que poderia proteger uma proporção das mo-léculas de hidrogênio dos efeitos da radiação.

“No caso de Osíris, as moléculas de água se desfazem logo depois de

formadas, dissipando-se no meio inter-planetário como íons”, explica Pinotti. Existem outros planetas com caudas, po-rém, atingidos por doses mais suaves de radiação ultravioleta do que Osíris. Um deles é Gliese 436b, um planeta gasoso menor, semelhante a Netuno, orbitando uma estrela anã vermelha, a 30 anos-luz da Terra, cuja cauda foi descoberta ano passado. “É pura especulação no mo-mento”, diz o pesquisador, “mas vejo a possibilidade de que moléculas de água, ou até mesmo moléculas orgânicas sim-ples, sobrevivam e façam uma pequena viagem interplanetária pela cauda, aca-bando na atmosfera de um planeta mais exterior, na zona habitável da estrela”. n

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Semeadores do espaço: concepção artística dos planetas Osíris (à esq.) e Gliese 436b, que estão perdendo a atmosfera

Artigo científicoPinotti, r. e BoEcHAt-roBErtY, H. m. molecular for-mation along the atmospheric mass loss of Hd 209458b and similar Hot Jupiters. Planetary and Space Science. v. 121, p. 83-93. 2016.

Page 60: Geogenômica

60 z abril DE 2016

física y

Os quarks e suas combinações exóticas

Page 61: Geogenômica

pESQUISA FApESp 2XX z 61

Partículas recém-descobertas

revelam novos arranjos

possíveis para os principais

componentes da matéria

No dia 25 de fevereiro, físicos da colaboração internacional DZero anunciaram a descoberta de uma nova partícula subatômica: a X(5568). A nova partícula não é elementar – ou seja, indivisível – como o elétron, o fóton ou o bóson de Higgs. Em vez disso, a

X(5568) é composta de quatro partículas menores de um tipo já conhecido: os quarks, razão por que é classificada como tetraquark.

A novidade da X(5568) é a combinação incomum de seus quatro quarks. Esse tipo raro de partícula – as mais comuns são formadas por dois ou três quarks – vem sendo observado desde 2003. Mas a X(5568) é o primeiro tetraquark feito de tipos totalmente distintos. Verificar todas as possíveis maneiras como os quarks podem se combinar ajuda os físicos a entenderem melhor a chamada interação nuclear forte. Ela é a força fundamental que mantém os quarks unidos e origina a maior parte da massa e da energia dos prótons e nêutrons que constituem os núcleos atômicos.

Igor Zolnerkevic

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O acelerador de partículas Tevatron,

em Batavia, Estados Unidos: o

mais poderoso antes do LHc

Page 62: Geogenômica

62 z abril DE 2016

Os pesquisadores observaram indícios da existência do novo tetraquark ao anali-sar os dados coletados durante nove anos pelo detector de partículas DZero, um dos instrumentos do acelerador Tevatron no Laboratório Nacional Fermi (Fermilab), nos Estados Unidos. O acelerador foi desa-tivado em 2011, três anos depois de perder o título de acelerador de partículas mais energético do mundo para o Grande Co-lisor de Hádrons (LHC), da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern), na Suíça. A colaboração DZero conta com a participação de pesquisadores de sete instituições de pesquisa brasileiras, entre elas o Centro Brasileiro de Pesquisas Fí-sicas (CBPF), no Rio de Janeiro.

O anúncio da descoberta motivou ou-tras colaborações internacionais de físi-cos a buscarem evidências da existência da X(5568) em seus dados. Até o término desta edição, apenas o grupo que opera o experimento LHCb, um dos quatro detectores de partículas do LHC, havia anunciado o resultado de suas análises. “Procuramos indícios do tetraquark en-contrado pelo DZero e não achamos na-da”, diz Ignácio Bediaga, coordenador dos físicos do CBPF que colaboram com o LHCb. “O resultado do DZero, entre-tanto, é muito bom e sua análise bastante consistente”, ressalta. “Meu palpite é que estejamos diante de um novo fenômeno.”

Bediaga explica que a equipe do LHCb procurou sinais da existência da X(5568) em seus dados da criação das partícu-las chamadas de méson b e méson pi, cada uma formada por dois quarks. Equipamentos como o LHC costumam acelerar partículas formadas por muitos quarks, como os prótons, a velocidades

próximas à da luz. Quando se chocam, os prótons se desfazem e originam par-tículas fugidias de toda espécie possível, algumas formadas por quarks. Uma de-las poderia ser a X(5568), uma partícula de vida muito breve, que em uma fração de segundo se desmancharia em dois ti-pos de partículas de massa menor. Cada X(5568) poderia originar um méson b e um méson pi, ambos com valores de energia bastante específicos. Os físicos observariam, então, um excesso de mé-sons b e pi com essa energia – algo que o DZero viu e o LHCb não.

Há, porém, uma diferença estrutural importante entre os dois detectores que pode estar permitindo ao tetraquark es-capar do LHCb, explica Bediaga. O LHCb foi construído para detectar as partícu-las que surgem muito próximo à direção de propagação dos feixes de prótons que colidem. Já o DZero era um detector se-melhante ao CMS e ao Atlas, dois outros detectores do LHC. Esses detectores têm o formato de um barril e foram projeta-dos para captar as partículas que surgem em todas as direções ao redor do feixe. É possível que a X(5568) esteja sendo criada nas colisões do LHC, mas percorra ape-nas trajetórias fora do alcance do LHCb.

“Se o CMS ou o Atlas encontrarem a X(5568), estaremos diante de um que-bra-cabeça muito interessante”, diz Be-diaga. “Se não acharem, pode ser que a análise do DZero tenha algum problema que passou despercebido.”

DInâmIcAS colorIDAS“Quando apenas uma colaboração expe-rimental vê um novo tetraquark, ficamos com um pé atrás”, diz a física teórica

no coração da matériaOs núcleos dos átomos são compostos de prótons e nêutrons, partículas feitas de quarks

Próton

Nêutron

Hádrons

3 quarks

3 quarksFontE mariNa NiELsEN / UsP

corES E SAborES

partículas raras, os tetraquarks

só começaram a ser observados

com o uso de aceleradores

mais potentes e detectores mais

sensíveis

áTOmO dE dEUTériO(hidrogênio pesado)

as partículas elementares têm massa, spin e carga elétrica.

Os quarks possuem ainda duas outras propriedades: sabor e cor

cor

Quarks não existem isolados na natureza. Eles se unem por meio de uma propriedade chamada "carga de cor". Os quarks mudam de cor trocando partículas (glúons), de acordo com as leis da cromodinâmica quântica (ao lado)

SAbor

Há seis tipos (ou sabores) de quarks. Prótons e nêutrons são feitos de quarks up e down. Os demais sabores de quarks foram observados compondo partículas que duram frações de segundo, criadas em aceleradores de partículas

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NúcleoPróton + nêutron (partículas compostas)

ElétronPartícula elementar (indivisível)

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Bottom

Top

Page 63: Geogenômica

pESQUISA FApESp 242 z 63

Marina Nielsen, da Universidade de São Paulo (USP). Ela coordena uma equipe que foi uma das primeiras no mundo a realizar cálculos verificando que, caso se-ja confirmada, a X(5568) observada pelo DZero pode mesmo ser um tetraquark.

Marina e seus colegas Jorgivan Dias e Alberto Torres, da USP, e Kanchan Khemchandani e Carina Zanetti, da Uni-versidade do Estado do Rio de Janeiro, correram contra o tempo entre os dias 25 e 29 de fevereiro para verificar se a massa e outras propriedades do novo tetraquark poderiam ser explicadas pela interação nuclear forte.

Tetraquarks são partículas extrema-mente raras, que começaram a ser ob-servadas apenas nos últimos anos com o aumento da energia das colisões dos aceleradores de partículas e da sensibi-lidade de seus detectores. Sua existência foi prevista em 1964 pelos físicos teóricos

Projetofísica de hádrons (nº 2012/50984-4); modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável marina Nielsen (if--UsP); investimento r$ 290.720,00.

artigos científicosaBaZOV, V. m. et al. Observation of a new B0

s π ± state. physical review letters. No prelo.dias, J. m. et al. a Qcd sum rule calculation oftheX±(5568) → B0

s π ± decay width. arxiv.org pdf/1603.02249v1.pdf.ZaNETTi, c. m.; NiELsEN, m. e KHEmcHaNdaNi, K. P. a Qcd sum rule study for a charged bottom-strange scalar meson. arxiv.org/pdf/1602.09041.pdf.

George Zweig e Murray Gell-Mann, os primeiros a conceberem a ideia de que várias das dezenas de partículas observa-das nos aceleradores da época, incluindo os prótons e os nêutrons, seriam feitas de duplas ou trios de quarks. As teorias de Zweig e Gell-Mann foram comprovadas e refinadas por vários físicos nas décadas seguintes, dando origem à cromodinâ-mica quântica, teoria que também prevê a existência de quartetos e quintetos de quarks (ver infográfico acima).

Foi só a partir de 2003 que experi-mentos em diferentes aceleradores de partículas comprovaram a existência de um tetraquark, o X(3872). De lá para cá, colaborações internacionais já confir-maram a observação de 15 candidatos a tetraquarks e, em julho do ano passado, o grupo que opera o experimento LHCb anunciou a descoberta de dois penta-quarks: o Pc(4450) e o Pc(4380).

Podem ainda existir outras partícu-las formadas pela combinação de mais quarks e suas antipartículas, os anti-quarks, desde que os arranjos sigam as regras da cromodinâmica quântica. “Es-sa teoria permite que exista qualquer combinação formada por quatro, cinco ou mais quarks, desde que uma proprie-dade chamada carga de cor seja sempre neutra”, diz Marina.

Ela e seus colegas são especialistas em um método matemático chamado de “regras de somas”, que permite realizar cálculos próximos aos propostos pela cromodinâmica quântica. Esse método é necessário porque a cromodinâmica quântica apresenta princípios gerais apa-rentemente simples, mas as suas equa-ções matemáticas estão entre as mais intratáveis de toda a física, sendo impos-sível de resolvê-las com exatidão, mes-mo com a ajuda de supercomputadores.

Com base nas regras de somas, Ma-rina e seu grupo calcularam a massa e as outras propriedades observadas da X(5568) e concluíram que elas podem ser explicadas se a partícula for com-posta por dois quarks (up e bottom) e dois antiquarks (strange e down). Seus cálculos, porém, não descartam outra possibilidade. Em vez de formar um ver-dadeiro tetraquark, a X(5568) poderia ser interpretada como dois mésons (cada um contendo dois quarks) unidos muito fracamente. Essa combinação, chamada de molécula de mésons, é uma maneira alternativa de se anularem as cargas de cor sendo, portanto, permitida pela cro-modinâmica quântica. Os colaboradores de Marina devem concluir em breve no-vos cálculos nos quais assumem que a X(5568) é uma molécula de mésons. Se chegarem a uma massa diferente da me-dida pelo DZero, saberão que a X(5568) não é uma molécula de mésons. Já se o valor calculado for próximo ao medido, a dúvida permanecerá. n Igor Zolnerkevic

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bárIonS

Partículas formadas por trios de quarks ou de antiquarks

corES AntIcorES

anula-se a cor do trio ao se combinar quarks de cores diferentes e antiquarks de anticores distintas

anula-se a cor do par ao combinar um quark de certa cor com um antiquark de anticor complementar

Tetraquark

cores somadas dão uma anticor

anticores somadas resultam numa cor

méSonS

Partículas formadas por pares de quarks e antiquarks

Há dois modos de neutralizar um quarteto de quarks contendo dois quarks e dois antiquarks

cada quark combina com um antiquark produzindo dois mésons de cores neutras. Os mésons interagem entre si e se mantêm fracamente unidos, gerando uma "molécula de mésons"

Quarks se unem em um quark duplo (di-quark) com uma anticor. Os antiquarks interagem produzindo um antiquark duplo (di-antiquark) com uma cor. di-quark e di-antiquark geram um tetraquark

AlgUmAS HArmonIZAçõES

segundo a cromodinâmica quântica, os

quarks têm uma das três cores possíveis.

Já os antiquarks, uma das anticores, que

se combinam como se vê ao lado. as

partículas compostas são formadas por

conjuntos de quarks e/ou antiquarks

que, combinados, têm uma cor neutra

1

2

Vermelho

azulVerde antiverde(magenta)

antivermelho (ciano)

antiazul(amarelo)

molécula de mésonsméson méson

di-quark di-antiquark

cor neutra

Page 64: Geogenômica

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A Olimpíada da Matemática está mudando o ensino nas escolas do país

ED. 03 - ABRIL 2016

Cientistas do CNPEM avançam nas pesquisas sobre o zika vírus

MCTI integra força-tarefa do clima para os Jogos Olímpicos de 2016

P esquisadores do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio) descobriram uma proteína ligada ao zika vírus que pode ser a chave para o desenvolvimento de medicamentos e

vacinas para combater a doença. Usando técnicas de bioinformática e bioquímica, os cientistas observaram que o vírus da zika é bastante similar ao da dengue. Três proteínas seriam responsáveis por manter a estrutura das membranas que revestem o material genético do zika e da dengue. No entanto, a diferença entre os dois vírus estaria na proteína E.

“Uma das pistas é procurar nessa proteína se ela tem alguma diferença, se apresenta alguma peculiaridade que vá determinar essas características que estamos procurando. Utilizamos uma série de técnicas para identifi car possíveis regiões que vão determinar as diferenças entre o que é zika e o que é dengue. Isso é insumo para uma série de desenvolvimentos adicionais”, explicou o diretor do LNBio, Kleber Franchini.

Ainda, segundo Franchini, as pesquisas têm pelo menos dois impactos: a produção de insumos para um kit diagnóstico que

permita a detecção de traços do vírus em pessoas que foram infectadas anteriormente e que já não apresentam os sintomas da doença e a produção de uma molécula capaz de combater a infecção provocada pelo zika. A ideia é produzir um anticorpo monoclonal para tratar exclusivamente da enfermidade.

O pesquisador alerta, no entanto, que o desenvolvimento desse “antídoto” é uma medida paliativa até que seja desenvolvida uma vacina efi caz contra o zika vírus.

Mulheres na Ciência é lançado para reduzir desigualdade de gênero

N o dia 7 de março, foi lançado, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, o programa Mulheres na Ciência, com ações de combate à desigualdade entre homens

e mulheres no ambiente de pesquisa, além da ampliação da participação feminina na produção científi ca e tecnológica do Brasil por meio de atividades de promoção da paridade, de inserção social e de conhecimento e difusão no âmbito da CT&I.

Para isso, o programa prevê ações de promoção da igualdade no MCTI e o lançamento da quarta edição do edital de pesquisas sobre relações de gênero, mulheres e feminismos. Além disso, devem ser lançadas publicações com análises demográficas de dados de gênero no ministério e em grupos de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq/MCTI) e a instalação do Comitê de Gênero do MCTI que, dentre as atribuições, destacam-se a elaboração e coordenação das políticas de combate à discriminação de gênero na pasta, a proposição de ferramentas de prevenção, o fomento à transversalidade da abordagem de gênero em pesquisas nacionais e internacionais e a elaboração e disponibilização da publicação anual Gênero no MCTI.

A Obmep é uma iniciativa do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa), organização social ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação

(MCTI). O objetivo é revelar e estimular talentos, além de incentivar o estudo da matemática no Brasil. Em 2015, a olimpíada teve a participação de 47.580 escolas de quase todos os municípios do país. Na primeira fase, 17.972.333 estudantes foram inscritos. Os números revelam um entusiasmo de estudantes e professores com a matemática nem sempre visto nas salas de aula.

Segundo Marcelo Viana, diretor do Impa, muito mais que descobrir talentos, a iniciativa está mudando o ensino dessa disciplina.

“Em muitas escolas e municípios a Obmep vem ajudando a mudar a cultura em torno da matemática, estimulando professores a ensinar e os alunos a aprender a disciplina de modo muito mais motivador e ajudando a conectar com a experiência diária”, afi rma.

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O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) colocou à disposição da organização dos Jogos Olímpicos 2016 uma infraestrutura de monitoramento meteorológico para a

preparação do evento e realização das provas. Sistemas meteorológicos avançados e recursos de supercomputação, somados à expertise de modelagem dos cientistas, resultam em previsões com alto índice de acerto. Os dados, fornecidos com pontualidade e precisão, podem fazer a diferença no desempenho de um atleta olímpico, além, é claro, da técnica e do preparo físico.

Dois institutos de pesquisa do MCTI, o Centro de Previsão e Estudos

Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CPTEC/Inpe/MCTI) e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden/MCTI), participam do Serviço Meteorológico Esportivo, uma força-tarefa coordenada pela Autoridade Pública Olímpica, responsável por fornecer, reunir e consolidar as previsões de tempo e oceânicas com informações sobre temperatura, maré, umidade, ventos e correntes.

“Não existe competição de vela sem vento”, afi rma o pesquisador Sérgio Henrique Ferreira, do CPTEC/Inpe. “Uma prova pode mudar de local ou até ser cancelada em função das condições desfavoráveis do tempo.”

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ED. 03 - ABRIL 2016

Cientistas do CNPEM avançam nas pesquisas sobre o zika vírus

MCTI integra força-tarefa do clima para os Jogos Olímpicos de 2016

P esquisadores do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio) descobriram uma proteína ligada ao zika vírus que pode ser a chave para o desenvolvimento de medicamentos e

vacinas para combater a doença. Usando técnicas de bioinformática e bioquímica, os cientistas observaram que o vírus da zika é bastante similar ao da dengue. Três proteínas seriam responsáveis por manter a estrutura das membranas que revestem o material genético do zika e da dengue. No entanto, a diferença entre os dois vírus estaria na proteína E.

“Uma das pistas é procurar nessa proteína se ela tem alguma diferença, se apresenta alguma peculiaridade que vá determinar essas características que estamos procurando. Utilizamos uma série de técnicas para identifi car possíveis regiões que vão determinar as diferenças entre o que é zika e o que é dengue. Isso é insumo para uma série de desenvolvimentos adicionais”, explicou o diretor do LNBio, Kleber Franchini.

Ainda, segundo Franchini, as pesquisas têm pelo menos dois impactos: a produção de insumos para um kit diagnóstico que

permita a detecção de traços do vírus em pessoas que foram infectadas anteriormente e que já não apresentam os sintomas da doença e a produção de uma molécula capaz de combater a infecção provocada pelo zika. A ideia é produzir um anticorpo monoclonal para tratar exclusivamente da enfermidade.

O pesquisador alerta, no entanto, que o desenvolvimento desse “antídoto” é uma medida paliativa até que seja desenvolvida uma vacina efi caz contra o zika vírus.

Mulheres na Ciência é lançado para reduzir desigualdade de gênero

N o dia 7 de março, foi lançado, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, o programa Mulheres na Ciência, com ações de combate à desigualdade entre homens

e mulheres no ambiente de pesquisa, além da ampliação da participação feminina na produção científi ca e tecnológica do Brasil por meio de atividades de promoção da paridade, de inserção social e de conhecimento e difusão no âmbito da CT&I.

Para isso, o programa prevê ações de promoção da igualdade no MCTI e o lançamento da quarta edição do edital de pesquisas sobre relações de gênero, mulheres e feminismos. Além disso, devem ser lançadas publicações com análises demográficas de dados de gênero no ministério e em grupos de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq/MCTI) e a instalação do Comitê de Gênero do MCTI que, dentre as atribuições, destacam-se a elaboração e coordenação das políticas de combate à discriminação de gênero na pasta, a proposição de ferramentas de prevenção, o fomento à transversalidade da abordagem de gênero em pesquisas nacionais e internacionais e a elaboração e disponibilização da publicação anual Gênero no MCTI.

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(MCTI). O objetivo é revelar e estimular talentos, além de incentivar o estudo da matemática no Brasil. Em 2015, a olimpíada teve a participação de 47.580 escolas de quase todos os municípios do país. Na primeira fase, 17.972.333 estudantes foram inscritos. Os números revelam um entusiasmo de estudantes e professores com a matemática nem sempre visto nas salas de aula.

Segundo Marcelo Viana, diretor do Impa, muito mais que descobrir talentos, a iniciativa está mudando o ensino dessa disciplina.

“Em muitas escolas e municípios a Obmep vem ajudando a mudar a cultura em torno da matemática, estimulando professores a ensinar e os alunos a aprender a disciplina de modo muito mais motivador e ajudando a conectar com a experiência diária”, afi rma.

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preparação do evento e realização das provas. Sistemas meteorológicos avançados e recursos de supercomputação, somados à expertise de modelagem dos cientistas, resultam em previsões com alto índice de acerto. Os dados, fornecidos com pontualidade e precisão, podem fazer a diferença no desempenho de um atleta olímpico, além, é claro, da técnica e do preparo físico.

Dois institutos de pesquisa do MCTI, o Centro de Previsão e Estudos

Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CPTEC/Inpe/MCTI) e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden/MCTI), participam do Serviço Meteorológico Esportivo, uma força-tarefa coordenada pela Autoridade Pública Olímpica, responsável por fornecer, reunir e consolidar as previsões de tempo e oceânicas com informações sobre temperatura, maré, umidade, ventos e correntes.

“Não existe competição de vela sem vento”, afi rma o pesquisador Sérgio Henrique Ferreira, do CPTEC/Inpe. “Uma prova pode mudar de local ou até ser cancelada em função das condições desfavoráveis do tempo.”

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Bengalas eletrônicas, exoesqueletos e máquinas

de escrever em braille procuram melhorar

a vida de pessoas com deficiência

ítima de um acidente de trânsito em 2014, que resultou na perda de parte dos movimentos das pernas, o motoboy Reginaldo Santos Fer-

reira, de 33 anos, começa a dar alguns passos com a ajuda de um exoesqueleto robótico desenvolvido por pesquisadores da Faculdade de Medicina (FM) e da Es-cola Politécnica (Poli) da Universidade de São Paulo (USP). Desde maio do ano passado ele participa de testes com um protótipo desse aparelho no Instituto de Medicina Física e Reabilitação (Imrea) da Rede de Reabilitação Lucy Montoro, no bairro da Vila Mariana, em São Paulo. “Quando uso o exoesqueleto, sinto mais firmeza para caminhar. Meu quadril fi-ca alinhado e estável”, relata Ferreira. O retorno dado pelo paciente tem sido fundamental para que médicos, fisiote-rapeutas e engenheiros envolvidos no projeto possam fazer ajustes necessários no equipamento. O objetivo é torná-lo mais funcional, quando comparado a

Bruno de Pierro

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Para ampliar a autonomia

modelos disponíveis no mercado. “Os exoesqueletos convencionais exigem que o usuário se sustente com os dois braços em um andador ou muletas. Isso leva o paciente a ter que fazer muita força para se equilibrar”, explica Linamara Rizzo Battistella, professora da FM-USP.

O exoesqueleto é um dos 75 projetos contemplados em um edital lançado pe-lo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) em 2013, que dispo-nibilizou R$ 13 milhões com a finalidade de apoiar iniciativas em tecnologia as-sistiva. O termo é empregado para iden-tificar o arsenal de recursos e serviços que contribuem para proporcionar ou ampliar as habilidades de pessoas com algum tipo de deficiência física, visual, auditiva, mental ou intelectual. Em no-vembro de 2015, em um evento realizado em Brasília, foram apresentados resul-tados parciais de projetos apoiados pelo ministério.

Antes de chegar ao mercado, o exoes-queleto ainda precisa passar por mais testes. Para assegurar a estabilidade do

paciente, os pesquisadores trabalham em um novo sistema, capaz de controlar a marcha daqueles que sofreram lesão medular ou acidente vascular cerebral (AVC). A partir da análise laboratorial da função do joelho e do tornozelo du-rante a caminhada, foi projetado um exoesqueleto em que é possível ajustar a altura de um motor elétrico acoplado ao aparelho e controlado por um soft-ware que define a intensidade dos mo-vimentos. O motor, a parte mais cara do equipamento, custa cerca de US$ 2,5 mil. Por enquanto, o exoesqueleto passa por testes com o aparelho desligado. Mesmo assim o paciente ganha estabilidade com a estrutura. Essa etapa serve para avaliar com precisão se o peso do motor atra-palha os movimentos ou se há risco de deslocamento. “A expectativa é de que os testes com o equipamento em funcio-namento comecem até o final do ano, depois de análise do Comitê de Ética da FM-USP”, diz Arturo Forner-Cordero, coordenador do Laboratório de Biome-catrônica da Poli-USP.

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tecnologia Bioengenharia y

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Testes do exoesqueleto desenvolvido na UsP: objetivo é garantir que pacientes com lesão medular ou que sofreram aVC possam voltar a caminhar com mais firmeza e estabilidade durante sessões de reabilitação

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68 z abril DE 2016

tivos no país são o Ministério da Educa-ção e o Sistema Único de Saúde (SUS).

Em São Paulo, há projetos apoiados pela FAPESP dentro do Programa Pes-quisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) que tentam responder a esses de-safios. Uma das iniciativas une pesquisa-dores da Universidade Estadual de Cam-pinas (Unicamp) e a empresa e-Sense Biomedical Engineering Innovation no desenvolvimento de um dispositivo por-tátil que monitora, por meio de sensores, sinais vitais, tais como níveis de glicose e pressão arterial em pessoas com difi-culdade de movimento ou totalmente imobilizadas, e disponibiliza os dados em tempo real para profissionais da saúde utilizando a internet.

“Isso facilita o monitoramento de ido-sos, obesos mórbidos ou pessoas com deficiência física, possibilitando um diag-nóstico precoce”, explica André Luiz Jar-dini Munhoz, pesquisador da Faculdade de Engenharia Química da Unicamp, res-ponsável pelo projeto. Também é possível localizar o paciente por GPS, para que o médico possa acionar uma ambulância em caso de emergência. “Temos um pro-tótipo pronto para ser testado em pacien-tes do Hospital de Clínicas da Unicamp. Estamos aguardando a autorização do comitê de ética da universidade”, diz Alexandre Chiachiri Rodrigues Silva, engenheiro e sócio da e-Sense.

Em Rio Claro, interior de São Paulo, a Tece, empresa fundada pela bióloga Aline Piccoli Otalara, desenvolveu, com apoio do Pipe, uma nova versão de um instrumento de escrita manual em braille, a reglete, que ainda hoje é a única forma de leitura para deficientes visuais. Nesse modelo o tempo de aprendizado do sis-tema braille diminui em 60%. A empresa já comercializa o produto, inclusive para países da Europa. A reglete convencio-nal existe desde 1837 e funciona da se-guinte maneira: os pontos que formam os caracteres em braille são escritos em baixo-relevo (pontos côncavos), enquan-to a leitura desses sinais é feita em alto--relevo (pontos convexos). Isso faz com que o usuário tenha que escrever de for-

Outras iniciativas que participaram do edital do MCTI estão próximas de con-quistar o mercado. Uma delas é a bengala eletrônica desenvolvida na Universida-de do Vale do Itajaí (Univali), em Santa Catarina. Ela é equipada com sensores semelhantes a um sonar, que avisam por meio de sons e vibrações no próprio ca-bo se há obstáculos à frente. “Uma quei-xa das pessoas com deficiência visual é que a bengala convencional não ajuda a identificar objetos acima da cintura, como orelhões, caixas de correio e vasos de flor suspensos no teto”, diz Alejandro Rafael Garcia Ramirez, coordenador do projeto e professor de engenharia da computação na Univali.

Com o apoio do MCTI, foram produzi-das 30 unidades, que serão testadas este ano. O projeto é desenvolvido em parce-ria com a Produza, empresa catarinense que atua na montagem de placas e com-ponentes eletrônicos, e a Fastparts, que fabrica componentes de plástico . “A ino-vação em tecnologia assistiva depende do diálogo entre universidades, empresas e pessoas com deficiência. É preciso saber identificar as demandas dos usuários”, afirma Ramirez, lembrando que no país existem 6,5 milhões de pessoas com de-ficiência visual, sendo mais de 500 mil cegas e 6 milhões com baixa visão, se-gundo dados do Censo Demográfico de 2010, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Produção nacionalDados do instituto mostram aproxima-damente 45 milhões de pessoas com de-ficiência física, mental ou intelectual no Brasil, o que corresponde a 24% da popu-lação. Nos Estados Unidos, por exemplo,

são 54 milhões de pessoas, equivalentes a 17% da população. Ocorre que aqui a de-manda por dispositivos assistivos, como cadeiras de rodas e próteses, para citar os mais comuns, é atendida por meio de produtos importados. “Existe produção nacional, mas muito pequena e pouco conhecida”, avalia Linamara Battistel-la. “Muitos projetos ficam restritos ao âmbito acadêmico. Quanto mais dispo-nibilizarmos tecnologia nacional, menor será o custo a longo prazo para o país”, acrescenta Linamara, ressaltando que os maiores compradores de produtos assis-

uma das dificuldades das empresas é a necessidade de os produtos, em grande parte, precisarem atender às particularidadesde cada usuário

1

máquina de escrever em braille, da Tece, empresa de rio Claro (sP): mais barata e leve do que modelos convencionais

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PesQuisa faPesP 242 z 69

da ajuda de outra pessoa para ter acesso às informações de sua conta. Com uma impressora em braille, ele terá mais auto-nomia e segurança”, diz Guilherme Lira, diretor da empresa, que começou a testar um protótipo em outubro em parceria com o Centro de Referência em Inovação Tecnológica (Certi) Amazônia, em Ma-naus. O desafio encarado pela Tecassis-tiva foi desenvolver uma impressora em braille em escala reduzida, capaz de ser instalada nos caixas eletrônicos. As im-pressoras convencionais são bem maiores. Além disso, era preciso que o papel fosse impresso na horizontal, e não na vertical. Foi necessário criar um software próprio e também realizar pesquisas para o de-senvolvimento de novos componentes eletrônicos. “Estabelecemos parceria com empresas da Suécia e dos Estados Unidos, que nos forneceram parte do sistema de hardware para ser avaliado”, diz Lira, que teve apoio financeiro da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

Desde 2005 a Finep tem realizado chamadas públicas para apoiar projetos de tecnologia assistiva envolvendo insti-tuições de pesquisa e empresas. “Reco-nhecemos que as empresas precisam ser estimuladas a ocupar um mercado que ainda é incipiente no país”, afirma Mau-rício França, superintendente da área de Tecnologia para o Desenvolvimento Sustentável da Finep. De acordo com ele, uma dificuldade enfrentada pelas empresas desse setor é que os produtos

ma espelhada, começando da direita para a esquerda, exigindo um esforço maior de quem está aprendendo – tanto pessoas com defi-ciência quanto professores e familiares.

“O que fizemos foi de-senvolver uma reglete muito parecida com a con-vencional, mas que per-mite escrever os pontos já em alto-relevo, sem que seja necessário escrever de forma espelhada ou in-verter o lado do papel para a leitura, o que também facilita a escrita de equa-ções matemáticas”, explica Aline, que fundou a Tece com colegas da Univer-sidade Estadual Paulista (Unesp).

Em outro projeto mais recente, tam-bém com apoio do Pipe, a Tece começou a desenvolver uma máquina de escrever em braille. Modelos disponíveis no mercado são utilizados em ambientes como salas de aula e escritórios. “Apesar de ser muito utilizada, as pessoas geralmente não têm uma máquina em casa, principalmente em razão do custo elevado”, diz Aline. De acordo com ela, a máquina mais utilizada pelos deficientes visuais é importada e custa R$ 6,5 mil. “A máquina que estamos desenvolvendo será mais leve, produzirá menos ruído e não deverá ultrapassar R$ 800.” Para reduzir os custos, a Tece inves-te em pesquisas com novos materiais e em design. As seis teclas que correspondem aos pontos braille e o material impresso seguem o padrão da reglete positiva de-senvolvido pela empresa.

imPressora em Braille Outro exemplo de tecnologia desenvol-vida a partir da demanda apresentada por pessoas com deficiência visual é uma impressora em braille que poderá ser ins-talada em caixas eletrônicos em agências bancárias. O sistema foi criado pela em-presa Tecassistiva, de São Paulo. “Perce-bemos que quando o deficiente visual vai ao banco retirar um extrato, ele precisa

assistivos geralmente necessitam aten-der às particularidades de cada usuário. Há produtos, como próteses, encostos ortopédicos ou mesmo cadeiras de ro-das que são feitos sob medida para cada usuário, o que demanda um maior grau de customização e exige da empresa a oferta de um amplo portfólio de produ-tos, bem como uma rede de profissionais para prescrição e assistência. “Apenas algumas empresas têm estrutura para atender a essa exigência”, explica.

Outra particularidade do setor é que o mercado ainda é muito dependente das compras públicas. “Uma forma de melhorar essa situação seria promover uma maior inclusão das pessoas com deficiência no mundo do trabalho. Isso obrigaria muitas empresas a terem que se adaptar e, assim, comprar produtos de tecnologia assistiva”, sugere França. n

Projetos1. Desenvolvimento de um monitor multiparamétrico por-tátil (nº 2012/50124-5); Modalidade Programa Pesquisa inovativa em Pequenas empresas (Pipe); Pesquisador responsável andré luiz Jardini munhoz (Unicamp/e--sense); Investimento r$ 75.847,50 e Us$ 2.500,00.2. Desenvolvimento de tecnologias assistivas voltadas para pessoas cegas ou com visão subnormal (Prover) (nº 2009/52626-5); Modalidade Programa Pesquisa inovativa em Pequenas empresas (Pipe); Pesquisadora responsável aline Piccoli otalara (Tece); Investimento r$ 163.524,00.3. Dati Braille: pesquisa, desenvolvimento e inovação de máquina de datilografia em braille (nº 2012/50389-9); Modalidade Programa Pesquisa inovativa em Pequenas empresas (Pipe); Pesquisadora responsável aline Piccoli otalara (Tece); Investimento r$ 117.725,00.fo

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Teste da bengala eletrônica

desenvolvida por pesquisadores da

Univali, nas ruas de Florianópolis

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70 z abril DE 2016

AcústicA y Sons sub-

marinos

Marcos de Oliveira

alguns exemplares que foram ce-didos, em parceria, para grupos de pesquisa e estamos monito-rando experimentalmente a Laje de Santos e Alcatrazes [arqui-pélago no litoral norte paulista integrante da Estação Ecológi-ca Federal Tupinambás, onde também não é possível pescar e navegar nas proximidades].” Esses últimos possuem quatro cartões SD com capacidade para 128 gigabytes (GB) cada e pilhas para uma autonomia de até cinco meses de monitoramento contí-nuo. “O equipamento pode ser programado para realizar uma gravação contínua ou agenda-da”, diz. Com essa estratégia, é possível manter o equipamento embaixo d’água por até um ano. O aparelho foi testado em relação à vedação em até 300 metros de profundidade, mas a instalação e a retirada na Laje de Santos e em Alcatrazes foram realizadas por mergulhadores a 20 metros.

Saber o horário de invasão do espaço marítimo do parque ma-rinho facilita a abordagem das lanchas de fiscalização da Fun-dação Florestal, da Secretaria do Meio Ambiente estadual, gesto-ra do Parque da Laje de Santos, ou da Polícia Militar Ambien-tal. “Também já pensamos em

um sistema de monitoramento acústico submarino em tempo real, com a cone-xão do hidrofone a um equipamento de transmissão por rádio a partir da Laje até a sede da fundação em São Vicente [SP]”, diz Padovese.

Para o gestor do Parque da Laje de San tos, José Edmilson Mello Júnior, o hidrofone mostrou-se importante para a fiscalização e proteção ambiental. “O local é uma unidade de conservação de

restrição comercial, precisando da au-torização de venda dos governos onde estão as fábricas.

Padovese decidiu então desenvolver tecnologia própria nessa área. “Proje-tamos um gravador eletrônico, de bai-xíssimo consumo de energia, que regis-tra os sons em cartões SD, iguais aos de câmeras fotográficas, que é instalado com pilhas alcalinas em um recipiente cilíndrico vedado”, explica. “Fizemos

Na Laje de santos, a 20 metros de profundidade, equipamento com hidrofone grava sons de barcos e peixes

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No Parque Estadual Ma-rinho da Laje de San-tos, distante 42 quilô-metros da costa, é proi-

bido pescar. O local serve para reprodução de organismos aquá-ticos e permite-se apenas o mer-gulho com guias em dias e horá-rios delimitados. Como essa determinação nem sempre é seguida, a equipe do professor Linilson Padovese usa o local para testar um equipamento au-tônomo de monitoramento acús-tico submarino instalado no fundo do mar, desenvolvido no Laboratório de Dinâmica e Ins-trumentação (Ladin) da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). “Detecta-mos, por exemplo, o ruído dos motores dos barcos entre 20h30 e 23 horas. Os pescadores che-gam, desligam o motor, demoram de duas a três horas e vão embo-ra”, diz Padovese.

O equipamento é composto por um hidrofone, uma espé-cie de microfone especial para captar ondas sonoras embaixo d’água, além de um conjunto ele-trônico de gravação e baterias. “O teste na Laje de Santos foi um dos primeiros experimentos que realizamos com o aparelho”, diz Padovese. Tudo começou quan-do o pesquisador pensava em estudar o processamento de sinais acústicos mari-nhos, uma área ainda incipiente no Bra-sil. “O problema é que não existe fábrica de hidrofones e de equipamentos para hidroacústica no país e, no exterior, os aparelhos custam entre US$ 5 mil e US$ 30 mil, dependendo da configuração e uso.” Outro empecilho é que os hidro-fones mais sofisticados, por terem uso militar em navios e submarinos, sofrem

Hidrofones revelam a paisagem

sonora do fundo do mar

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pesQUisa fapesp 242 z 71

proteção integral e se a fiscalização pa-rar um barco, mesmo que esteja apenas passando com apetrechos de pesca, os ocupantes podem ter os equipamentos apreendidos e recebem multa”, explica Mello Júnior. Padovese conta que é pos-sível registrar e estudar vários outros tipos de eventos acústicos, alguns a mui-tos quilômetros de distância – na água, o som viaja quase cinco vezes mais rá-pido e pode ser detectado a distâncias muito maiores do que no ar. Vocalizações de baleias e movimentos de cardumes de peixes podem ser identificados. Em geral, os dados são estudados na forma de gráficos, chamados de espectrogra-mas, que mostram como o conteúdo de frequências acústicas varia com o tempo.

prOcessaMentO de dadOsO volume de dados obtidos com um hi-drofone é grande. Para processar as in-formações, o grupo da Poli desenvolveu

um software que permite essa visualiza-ção tempo-frequência do som e possi-bilita o reconhecimento de padrões de sinais. Os pesquisadores conseguem, por exemplo, identificar diferentes espécies de peixes utilizando apenas esses sinais acústicos, assim como de baleias, que têm um registro bem característico das vocalizações. No caso particular de car-dumes de peixes, associar os diferentes padrões acústicos com as espécies ainda depende de um estudo multidisciplinar, com pesquisadores das áreas de biologia, oceanografia ou ciências do mar.

Para Mello Júnior, a necessidade ini-cial é fazer um levantamento dos animais que frequentam a Laje, como as baleias e golfinhos. “Três ruídos podem atrapalhar a vida desses mamíferos na bacia de San-tos: a prospecção de petróleo na região do pré-sal, o emissário submarino [que leva o esgoto tratado para o alto-mar] e a área relacionada ao fundeio de navios

do Porto de Santo.” Padovese estabeleceu uma parceria e cedeu os hidrofones pa-ra um grupo que estuda baleias jubarte (Megaptera novaeangliae) no municí-pio de Uruçuca, próximo a Ilhéus (BA). “Acompanhamos visualmente entre ju-lho e novembro as baleias a partir de um morro na serra Grande a 90 metros acima do mar. O registro acústico com o equipamento foi importante porque complementa o visual, principalmente nessa fase em que elas estão parindo e nadam com os filhotes”, diz Júlio Bau-mgarten, professor da Universidade Es-tadual de Santa Cruz (Uesc), de Ilhéus. Duas vezes no ano foram instalados três aparelhos no fundo do mar capazes de fazer o registro acústico de uma área de cerca de 200 quilômetros quadra-dos. “Com a gravação podemos acom-panhar a atividade das baleias inclusive à noite”, diz.

O equipamento autônomo para uso no fundo do mar já está pronto, teve fi-nanciamento da FAPESP e é similar aos que existem no exterior. Padovese estima que o modelo construído por sua equipe custaria no mercado entre US$ 2 mil e US$ 4 mil. A tecnologia desenvolvida também está sendo utilizada e otimizada em parceria com o Instituto de Pesquisas da Marinha (IPqM), no Rio de Janeiro.

“Tem crescido muito a demanda por estudos de impacto de ruído acústico sub-marino na fauna marinha, gerados por empreendimentos, como ampliações de portos, rios e hidrelétricas”, diz Padovese. Além de continuar a agregar informações ao software de processamento de sinais, ele tem incentivado seus alunos a estru-turar uma empresa. “A ideia é prestar ser-viços em acústica submarina nas áreas de infraestrutura e pesquisa científica. Mas também há perspectivas para uma asso-ciação com uma indústria de equipamen-tos eletrônicos, que demonstrou interesse na comercialização desses aparelhos. São planos que ainda estão sendo avaliados.” n

projetos1. observatório Acústico submarino para Monitoramento de parques Marinhos (n° 2012/04785-0); Modalidade Auxílio à pesquisa – regular; Pesquisador responsá-vel Linilson rodrigues padovese (usp); Investimento r$ 238.194,70 e us$ 24.207,17.2. plataforma de sensoriamento acústico submarino para redes de monitoramento (n° 2012/23016-7); Modalidade Bolsa no país – regular – pós-doutorado; Bolsista Manuel Alfredo caldas Morgan (usp); Pesquisador responsá-vel Linilson rodrigues padovese (usp); investimento r$ 166.859,21.

tempo (horário)

03 04 05 06 07 08 09 10 11 12 13

18 19 20 21 22 23 00 01 02 03 04

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frequências reveladorasNo software é feita a identificação dos sons submarinos

vocalIzação de BaleIa juBarte

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uruçuca (Ba)

laje de santos (sP)

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72 z abril DE 2016

Goiaba ao lado de plástico comestível feito com substâncias extraídas da polpa e da casca da fruta

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Frutas e legumes são matéria-prima

de plásticos que protegem alimentos

e são comestíveis

Embalagens verdes

Evanildo da Silveira

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Imaginar um futuro com embalagens plásticas comestíveis, que podem fazer parte de sopas e sucos sem causar mal à saúde, não é estar descolado da realidade. Novas possibili-dades de armazenagem de alimentos que evitem o descarte pós-consumo das embalagens e ainda ajudam a nutrir os

consumidores estão se concretizando de forma experimental em laboratórios de universidades e centros de pesquisa. No Brasil, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Em-brapa) estuda novos materiais que poderão ser transformados em embalagens ou mesmo ingredientes alimentícios. São cha-mados pelos pesquisadores de bioplásticos ou biopolímeros e podem fazer parte também de embalagens biodegradáveis. “Esses materiais têm características nutricionais, sabor e cor dos vegetais, ou podem ser transparentes, finos e com a mesma aparência que os plásticos comuns”, explica Luiz Henrique Capparelli Mattoso, pesquisador da Embrapa Instrumentação Agropecuária, localizada em São Carlos (SP).

Esses bioplásticos são feitos a partir de alimentos frescos ou de resíduos da fabricação de sucos ou de outros processos industriais. Dessas matérias-primas são extraídos compostos, como os polissacarídeos, considerados polímeros naturais. De modo similar aos plásticos produzidos com derivados de petróleo, eles são formados por macromoléculas de longas ca-

deias de carboidratos. A maioria dos biopolímeros é também biodegradável: as embalagens que não tiverem a função de ser levadas à mesa se deterioram no lixo naturalmente em poucos dias ou semanas. Para Mattoso, que estuda esses materiais há 20 anos, os bioplásticos degradáveis e comestíveis são uma resposta ao impacto ambiental provocado pelo plástico sin-tético. “Diminuir a quantidade de embalagens plásticas sin-téticas em lixões e aterros é uma necessidade”, diz Mattoso. Dentro da mesma versatilidade dos plásticos tradicionais, os novos materiais abrem uma infinidade de uso e possibilida-des de formulações para atender as áreas de embalagens e alimentos funcionais.

Os plásticos comestíveis do grupo de Mattoso começaram a ser criados há oito anos no âmbito da Rede de Nanotecnologia Aplicada ao Agronegócio (AgroNano), formada por pesquisa-dores de empresas e de várias instituições de pesquisa, como a professora Márcia Aouada, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Ilha Solteira, a pesquisadora Henriette Monteiro Cordeiro de Azeredo, da Embrapa Agroindústria Tropical, lo-calizada em Fortaleza (CE), além de Tara McHugh, do grupo de pesquisadores do Serviço de Pesquisa do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. Os filmes plásticos são feitos basicamente de tipos de polissacarídeos como amido, pectina

novos materiais y

pESQUISA FApESp 242 z 73

Page 74: Geogenômica

74 z abril DE 2016

e hidroxipropil metilcelulose. A extração desses componentes é feita, por exem-plo, da polpa e cascas de frutas – como goiaba, mamão, maracujá, banana, açaí, kiwi e pêssego – ou de legumes – beter-raba e cenoura. As aplicações são múl-tiplas. Comestíveis ou biodegradáveis, eles poderiam embalar vários tipos de alimento, inclusive rações para animais.

Uma questão ainda não resolvida é um eventual risco de o biopolímero atrair animais na estocagem ou nas gôndolas dos supermercados. “Não sabemos se atrairia ratos e baratas, não fizemos tes-tes específicos, mas não tivemos esse ti-po de problema ao longo desses anos de pesquisa”, diz Mattoso. A possibilidade de as embalagens ficarem contaminadas com bactérias e outras sujidades poderia ser resolvida, segundo o pesquisador, com a adição de substâncias como qui-tosana, canela e própolis, que têm efeito bactericida. “Outra solução seria utilizar por fora uma embalagem apenas biode-gradável, e não comestível, para embalar alguns alimentos consumidos in natura”, explica. Os biopolímeros podem ser la-vados com água, mas não com sabão.

“Colegas norte-americanos, como Ta-ra McHugh, já utilizam filmes comestí-veis em restaurantes de comida japone-sa”, conta. “Alguns fregueses são alérgi-cos às algas utilizadas para envolver um tipo de sushi. As películas as substituem, sem que se percam o sabor e a qualida-de do alimento.” O pesquisador solta a imaginação com as novas possibilidades que os biopolímeros trazem para a in-

dústria alimentícia. “É possível produzir plásticos com sabor de qualquer tempe-ro e adicioná-los à comida.” Um frango poderia ser embalado com um tipo de bioplástico que teria em suas moléculas o próprio tempero para o alimento. “Ao levá-lo ao forno, a evaporação da água da carne solubiliza o filme, fragmentando-o e temperando o alimento durante o cozi-mento”, explica. A vantagem em levar o tempero na embalagem seria a de usá-la como alimento e evitar o descarte. Algu-mas embalagens também poderiam ser batidas no liquidificador para preparar sucos. “É possível trabalhar com novos conceitos de alimento”, diz Mattoso. Nos estudos sobre plásticos comestíveis rea-lizados em São Carlos, nos últimos oito anos, foram investidos R$ 200 mil, da Embrapa, do Conselho Nacional de De-senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da FAPESP.

RAvIólI dE RomãEm Fortaleza, Henriette desenvolveu um plástico comestível a partir de pec-tina, além de suco de romã, ácido cítrico e glicerol, uma substância que pode ser um subproduto do processamento de óleos vegetais. “Ele tem boas proprie-dades mecânicas, cor e sabor de romã”, explica. “Criamos o produto para ser in-gerido junto com o alimento.” De acordo com Henriette, a ideia de desenvolver o filme surgiu em 2014, quando ela passou um período como pesquisadora visitante em Norwich, na Inglaterra, por meio do programa Embrapa Labex, de coopera-

ção científica com instituições de ou-tros países. “A romã é muito apreciada e consumida na Inglaterra, e eu sabia do apelo mercadológico da fruta por causa de suas alegadas propriedades benéficas à saúde, como a de ser um antioxidante”, explica. “Pensei que seria interessante aproveitar a cor atraente da sua polpa para incorporar a um biopolímero.” Es-sa pesquisa foi realizada em 2014, mas a pesquisadora trabalha com plásticos comestíveis e biodegradáveis desde 2007.

Quanto às aplicações, Henriette diz que o filme desenvolvido na Inglaterra, a exemplo dos similares criados por Mat-toso, também poderia ser usado por res-taurantes para envolver sushis, formar falsos pastéis ou raviólis transparentes, que seriam pequenos saquinhos rechea-dos de carne para consumo ou mesmo para efeito decorativo em refeições. “O produto também poderia ser comerciali-zado em forma de pó, para ser dissolvido em água e revestir frutas”, explica. “Pa-ra isso, os bioplásticos seriam imersos e retirados do líquido para a formação de uma película após a secagem.” Segundo Henriette, o filme formado agiria como barreira de proteção – uma espécie de casca fina que diminuiria a entrada e saída de gases e umidade –, ajudando a aumentar a estabilidade do alimento.

Outra possível aplicação é a produção de fitas de frutas semelhantes aos fruit by the foot, ou fruta por metro, existentes nos Estados Unidos, formadas por tiras de goma enroladas e vendidas na forma de uma fita adesiva. São bioplásticos fei-tos de frutas e acréscimo de vitaminas. “Nos Estados Unidos existe uma empre-sa que produz filmes à base de polpa de diversas frutas e hortaliças e os comer-cializa para que o consumidor prepare na forma de sushis ou wraps [sanduíches

acima, bioplástico feito de açaí

e nanopartículas de quitosana,

substância que tem efeito bactericida. ao lado, plásticos

comestíveis desenvolvidos

na embrapa

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pESQUISA FApESp 242 z 75

enrolados em pães de massa bem fina, no caso substituída pelo plástico comes-tível] de vários sabores.”

Desenvolver um filme que evite a oxi-dação de frutas cortadas em pedaços é objetivo do grupo de pesquisa da pro-fessora Florencia Cecília Menegalli, da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ela e sua aluna de doutorado Tanara Sartori utilizam amido de banana verde da variedade terra como matéria--prima para filmes que preservam frutas cortadas em pedaços. A esse material fo-ram acrescidas micropartículas lipídicas (mistura de ácidos graxos) contendo um

antioxidante (vitamina C). “Já havíamos utilizado anteriormente o amido de ba-nana para o desenvolvimento de embala-gens biodegradáveis. Agora optamos por uma embalagem ativa a partir da adição do antioxidante à formulação”, explica Tanara. Antes, elas precisaram encapsular essas substâncias para inseri-las no filme. “Encapsular o antioxidante dentro das mi-cropartículas é importante para manter a liberação controlada da substância durante o armazenamento dos produtos, preser-vando-os até chegar ao consumidor final.”

O uso de micropartículas também é uti-lizado na cobertura, que é um líquido vis-coso no qual as frutas a serem protegidas devem ser imersas. Em seguida, elas são retiradas para secagem durante alguns minutos. Ao final, forma-se uma pelícu-la de proteção sobre as frutas. Segundo Tanara, resultados do trabalho ainda não publicados mostram efetiva preserva-ção da cor das maçãs, mesmo cortadas Fo

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Projetoestudo e otimização de biocompósitos poliméricos co-mestíveis formulados com resíduos do processamento de frutas e hortaliças e reforçados com fibras vegetais (nº 2014/23098-9); Modalidade Bolsa no País – regular – Doutorado Direto; Bolsista Caio Gomide otoni (embra-pa); Pesquisador responsável luiz Henrique Capparelli mattoso (embrapa); Investimento r$ 92.264,64.

artigos científicossartori, t. et al. Development and characterization of unripe banana starch films incorporated with solid lipid microparticles containing ascorbic acid. Food Hydrocol-loids. v.55, p. 210-19. abr. 2016.azereDo, H. m. C. et al. Development of pectin films with pomegranate juice and citric acid. Food Chemistry. v. 198, p. 101-6. mai. 2016.

ao meio, sobre as quais a cobertura com propriedades antioxidantes foi aplicada.

O passo para todos esses produtos che-garem ao mercado depende de alguns fa-tores. Henriette, da Embrapa, na década passada desenvolveu um filme à base de polpa de manga, com a adição de nano-fibras de celulose obtidas da fibra do al-godão (ver Pesquisa FAPESP nº 176), que não chegou a gerar patentes nem produto comercial. “Na época, algumas empresas me contataram, mas nenhuma se interes-sou em levar a tecnologia para o mercado”, conta. “Os filmes ainda não são produzidos industrialmente. Não foram feitos estudos de ampliação de escala e, portanto, seu custo é apenas estimado e considerado elevado. Por isso, são de difícil competi-ção com os plásticos sintéticos”, comenta o professor Paulo Sobral, da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos, da Universidade de São Paulo (USP), de Pi-rassununga. “O uso de resíduos poderia reduzir o preço final do bioplástico, mas é muito difícil quantificar o valor porque depende da formulação, da escala e do tipo de biopolímero”, diz Mattoso.

Os trabalhos dos três grupos gera-ram artigos recentes publicados em pe-riódicos científicos. Os que estão mais próximos de serem transformados em produtos comerciais são os filmes cria-dos por Mattoso. “Já realizamos a prova de conceito, desenvolvemos várias for-mulações de embalagens e um processo de produção em escala piloto”, conta. Até o momento, sete empresas interes-sadas nos filmes comestíveis entraram em contato com a Embrapa. “Estamos em negociação com algumas delas. Ao acertar com uma empresa e fazer um contrato de parceria, partiríamos para adequar a formulação e desenvolver o produto final”, diz Mattoso. n

etapa da produção de plástico comestível de morango para uso em embalagens

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Novos biossensores

devem detectar tumor

no pâncreas e ovário

com mais rapidez

química y

Diagnóstico precoce de câncer

Yuri Vasconcelos

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pESQUISA FApESp 242 z 77

O Brasil deverá ter 600 mil novos casos de câncer em 2016, segundo estima-tiva do Instituto Nacional do Câncer (Inca). Como o diagnóstico precoce

é uma das principais armas para combater a doença, duas equipes de pesquisa de São Paulo desenvolveram um novo dispositivo para a detec-ção de tumores no estágio inicial. Um grupo do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP), em colaboração com o Hospital de Câncer de Barretos, no interior paulista, criou um biossensor para diagnóstico do câncer de pâncreas. Em Araraquara, pesqui-sadores do Centro de Desenvolvimento de Ma-teriais Funcionais (CDMF), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP, desenvolveram outro biossensor capaz de detectar tumores de ovário e hepatite C, outra enfermidade prevalente no país. Os dois dispositivos estão em fase de protótipo e ainda precisam da aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para serem usados em hospitais, laboratórios de análises clínicas e consultórios médicos.

Os biossensor são dispositivos que utilizam em sua estrutura um elemento biológico de re-conhecimento, como uma enzima, um anticorpo ou um antígeno, para medir de modo seletivo de-terminadas substâncias relacionadas ao câncer e outras enfermidades presentes em amostras de sangue. A ideia dos dois grupos que pesquisam biossensores e trabalham de forma independen-te, é criar também aparelhos portáteis, similares aos glicosímetros usados hoje para medição das taxas de glicose no sangue, que façam a leitura do resultado do teste e indiquem se o paciente é ou não portador de câncer (ver infográfico).

Um dos métodos mais conhecidos para diag-nóstico de câncer, já implementado em grande escala, é o teste Elisa. Trata-se de um exame de sangue que se baseia também na interação espe-

cífica entre antígenos e anticorpos e a detecção é feita por meio de reagentes e reações enzimá-ticas. Nos biossensores não há necessidade de enzimas intermediárias, mas apenas a interação entre moléculas do antígeno e do anticorpo. O tempo de duração do teste Elisa é de 1h30 a 2 horas, enquanto no biossensor o tempo pode ser reduzido para 30 minutos. Outras vantagens são o uso de sangue no biossensor, cerca de quatro vezes menor em relação ao Elisa, e a sensibilida-de maior, em mil vezes, do novo tipo de exame.

“O objetivo do nosso trabalho é criar um mé-todo mais barato e simples”, explica o físico An-drey Soares, doutorando do Grupo de Polímeros Bernhard Gross do IFSC e responsável pela cria-ção do biodispositivo para detecção de câncer de pâncreas. “Na literatura científica, há rela-tos de diferentes biossensores para essa doença utilizando técnicas eletroquímicas ou ópticas. O nosso é baseado em medidas elétricas.” O estudo foi feito sob a orientação de Osvaldo Novais de Oliveira Junior, professor no IFSC, com a parti-cipação de pesquisadores do Hospital de Câncer de Barretos. Na análise dos dados colhidos pelo biossensor foram empregados métodos compu-tacionais para visualização, desenvolvidos pelos professores Fernando Vieira Paulovich e Maria Cristina Ferreira de Oliveira, do Instituto de Ciên-cias Matemáticas e da Computação (ICMC) da USP de São Carlos.

O dispositivo eletrônico criado na USP é for-mado por duas finas películas: uma contendo quitosana (polissacarídeo retirado da casca do camarão) e concanavalina A (proteína extraída das sementes de feijão-de-porco) e outra com uma camada ativa de anticorpos capazes de reco-nhecer o antígeno CA19-9. Presente no organis-mo humano, esse antígeno tem sua concentração aumentada em pessoas acometidas de câncer de pâncreas. Essas duas películas em escala nano-métrica repousam sobre um eletrodo (material

dispositivo eletrônico desenvolvido no instituto de Física de são carlos da usP: sobre ele uma camada de anticorpos que reconhecem o antígeno relacionado ao câncer de pâncreas

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condutor de eletricidade) impresso em uma fi-ta, parecida com as usadas em testes rápidos de índice glicêmico. “Ao colocarmos a amostra de sangue do paciente sobre o biossensor, há uma interação com a camada ativa de anticorpos, ge-rando um sinal elétrico que nos permite saber se existe ou não uma quantidade excessiva de CA19-9 no material coletado”, diz Soares.

Um dos principais desafios na produção de um biossensor, explica Osvaldo, é preservar a função das biomoléculas que servem como elementos ativos do dispositivo. Para tanto, empregam-se matrizes feitas com materiais que ajudam na pre-servação da atividade da biomolécula. “Em nosso biossensor, o papel de matriz é desempenhado pela quitosana e concanavalina A, dois materiais de baixo custo e que podem ser obtidos de fon-tes naturais. A concanavalina A interage com a quitosana formando um filme fino estável na su-perfície do eletrodo”, diz o físico Osvaldo, eleito em janeiro deste ano presidente da Sociedade Brasileira de Pesquisa em Materiais (SBPMat). “A estabilidade é importante para a imobilização mecânica da camada ativa, permitindo a constru-ção de dispositivos com alta sensibilidade e sele-tividade.” A pesquisa conta com financiamento da FAPESP e parceria com o Hospital de Câncer de Barretos. “Até o momento, nossos ensaios foram feitos com células cancerosas produzidas em la-boratório. O próximo passo será a realização de testes com amostras reais de sangue de pacien-tes”, conta Andrey Soares. Segundo ele, ainda não foi definido o número de amostras de pacientes.

N o CDMF, instalado no Instituto de Quí-mica da Universidade Estadual Paulista (IQ-Unesp) de Araraquara, a investigação

para desenvolvimento do biossensor para detec-ção de câncer de ovário e hepatite C foi coorde-nada pela professora Maria Aparecida Zaghete Bertochi, com a colaboração do mestrando João Paulo de Campos da Costa e das doutorandas Gisane Gasparotto e Glenda Biasotto. O pro-fessor Paulo Inácio da Costa, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp, e a pesqui-sadora Talita Mazon, do Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI), também colaboraram com o trabalho.

O biossensor tem uma arquitetura similar à do dispositivo da USP: uma camada ativa com biomoléculas, uma matriz estabilizadora – nesse caso, formada por cistamina e glutaraldeído – e um eletrodo de trabalho, responsável por conver-ter o sinal gerado pela interação química entre as biomoléculas e os marcadores das doenças-alvo em um sinal elétrico. “Nosso biossensor é um dispositivo analítico que converte a resposta de uma reação imunoquímica, bioquímica ou bioló-gica em um sinal mensurável. Ele é descartável e

seu método de medida eletroquímica faz com que o diagnóstico tenha um custo reduzido quando comparado aos sistemas atuais”, explica o enge-nheiro eletricista João Paulo. Hoje, o resultado no biossensor é dado em uma hora e os pesquisadores trabalham em modificações para reduzir esse tempo para 10 minutos. Os testes atuais para detecção de hepatite são o Elisa e outros, que servem para confirmar o resulta-do positivo, baseados em proteí-nas do vírus. Ao todo demoram mais de duas horas.

Por enquanto, o biossensor é capaz de diagnosticar o cân-cer de ovário e a hepatite C de forma individual – ou seja, uma doença por vez. O objeti-vo é aprimorá-lo para a detec-ção conjunta de mais doenças. No caso do câncer de ovário, o dispositivo permite a detecção de uma glicopro-teína de alto peso molecular, denominada antí-geno CA 125, que é associada ao aparecimento do câncer. Estudos apontam que 90% das mu-lheres que apresentaram elevada concentração

No diagnóstico para hepatite C, o sensor detecta anticorpos específicos da proteína do vírus

Teste biotecnológicocom uma gota de sangue, os biossensores podem detectar um tipo de câncer específico. eles têm camadas ultrafinas que interagem e emitem um sinal elétrico

FONTE: iFsc/usP e iq/uNicamP

os biossensores

são dotados de

biomoléculas, como

antígenos, anticorpos

ou enzimas, que têm

interação específica

com marcadores de

doenças

as biomoléculas são

depositadas em

filmes ultrafinos, em

geral de espessura

nanométrica,

formando a

camada ativa

uma matriz formada

por diferentes materiais

como quitosana e

concanavalina ou

cistamina e

glutaraldeído

é usada para fixar

as biomoléculas

no dispositivo

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Nanobastão de zinco

Nanopartículas de ouro

camada de ouro

substrato de vidro

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dessa glicoproteína no sangue desenvolveram a doença. “Um anticorpo monoclonal foi ligado à superfície do eletrodo de trabalho com a finali-dade de, na presença do antígeno CA 125, ligar-se especificamente a essa glicoproteína e promover uma interferência na corrente elétrica do dispo-sitivo”, explica João Paulo.

Para diagnóstico de infecções virais da hepatite C, o mesmo sensor possibilita a detecção de an-ticorpos específicos para uma proteína presente no vírus. “Se a proteína de interesse estiver pre-sente no sangue, a ligação entre ela e o anticorpo incubado no eletrodo produz um sinal que altera o potencial elétrico do eletrodo. Um software in-terpreta esse sinal e o diagnóstico é realizado”, diz o pesquisador da Unesp. O Ministério da Saúde estima que entre 1,4 milhão e 1,7 milhão de pes-soas no país podem ter tido contato com o vírus causador da hepatite C, sendo que parte desse contingente desenvolverá a infecção crônica.

De acordo com os pesquisadores da Unesp, um pedido de patente do biodispositivo será submeti-do em breve ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). O projeto para desenvolver um equipamento portátil para a leitura do biossen-sor já está em andamento em colaboração com a área de Processamento de Sinais e Instrumen-tação do Programa de Pós-graduação em Enge-nharia Elétrica da USP de São Carlos. Quando tudo estiver pronto, os pesquisadores da Unesp pensam em criar uma empresa para produzir e comercializar o aparelho.

Segundo o professor Emanuel Carrilho, do Ins-tituto de Química da USP de São Carlos e membro do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Bioanalítica (INCT Bioanalítica), os biossensores para detecção de câncer constituem uma linha de pesquisa que teve forte desenvolvimento nos últi-mos anos. “O maior desafio hoje é identificarmos as moléculas que indiquem que o câncer está em seu estágio inicial”, diz Carrilho. “Uma vez que tenhamos, de fato, esses biomarcadores prediti-vos, os biossensores serão ferramentas impor-tantes para o diagnóstico precoce da doença.” n

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Projetos1. cdmF – centro de desenvolvimento de materiais Funcionais (n° 2013/07296-2); Modalidade centros de Pesquisa, inovação e difusão (cepid); Pesquisador responsável elson longo (unesp); Investimento: r$ 20.965.210,37 (durante cinco anos).2. Filmes nanoestruturados de materiais de interesse biológico (nº 2013/14262-7); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador res-ponsável osvaldo Novais de oliveira Junior (usP); Investimento r$ 2.539.907,03.3. desenvolvimento de nanoestruturas e filmes de Zno para aplicação em sensores e nanogeradores (nº 2011/19561-7); Modalidade Bolsa no País – regular – doutorado; Bolsista Glenda Biasotto (iq-unesp); Pesquisadora responsável maria aparecida Zaghete Bertochi (iq--unesp); Investimento r$ 31.239,12.4. desenvolvimento de nanoestruturas e filmes de Zno para extração de energia: nanogeradores e piezotrônicos (nº 2012/11979-5); Moda-lidade auxílio à Pesquisa – regular; Pesquisadora responsável maria aparecida Zaghete Bertochi (unesp); Investimento r$ 296.813,67.

artigo científicosoares, a.c. et al. controlled film architectures to detect a biomarker for pancreatic cancer using impedance spectroscopy. ACS Applied Materials & Interfaces. v. 7, n. 46, p. 25930-7. nov. 2015.

antígeno

anticorpo

a camada ativa contendo

a matriz de imobilização

se liga quimicamente

sobre o eletrodo, que

funciona como um sistema

de transdução do sinal

esse sistema de transdução do sinal é

capaz de transformar as alterações

causadas pela interação entre as

biomoléculas e os marcadores presentes

na amostra sob análise em um sinal

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camada de imobilização

Nanobastão de zinco

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um aparelho portátil faz a leitura

do biossensor, indicando a

presenca ou não dos

biomarcadores – e, em caso

positivo, a concentração da

substância no sangue ou no fluido

que serviu de amostra

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Saída de escravos da senzala para a roça em 1861: atividade agrícola serviria de aprendizado para sustento econômico dos quilombos

humanidades hiStória y

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trocas de excedentes agrícolas com o

entorno ainda sobrevivem nas comunidades

rurais negras da atualidade

A economia dos quilombos

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Há no Brasil hoje, segundo levan-tamento do pesquisador Flávio dos Santos Gomes, quase 5 mil comunidades negras rurais re-

manescentes de antigos quilombos de escravos fugidos. Ao tentar estudar o fio de continuidade entre a atualidade e o passado escravista, Gomes encontrou um hiato desde a abolição da escravidão (1888) até pouco menos de 100 anos de-pois, quando as comunidades quilombo-las vieram a ganhar visibilidade com a oficialização do termo “remanescente de quilombos” na Constituição de 1988. Historiador e professor da Universida-de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o pesquisador estuda a escravidão desde o início dos anos 1990. As fontes habituais sobre o assunto, como processos-crimes, registros policiais e relatos de jornais, “falavam dos quilombos e das tentativas de destruí-los e capturar seus habitan-tes”, de acordo com o pesquisador, mas não do modo como sobreviviam.

“Resolvi partir de outra perspectiva”, conta Gomes. “Fui estudar as comuni-dades negras rurais em todo o país, suas origens e transformações, principalmen-

te no período pós-abolição. Vi que era possível avaliar a formação de um cam-pesinato negro no Brasil.” O resultado do trabalho está no livro recém-lançado Mocambos e quilombos – Uma história do campesinato negro no Brasil (Companhia das Letras), baseado principalmente na pesquisa “Cartografias da plantation: de-mografia, cultura material e arqueologia da escravidão e do pós-emancipação do Brasil”, em curso no Instituto de His-tória da UFRJ, com o apoio da Funda-ção Guggenheim, dos Estados Unidos, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O li-vro inclui a lista de todos os quilombos remanescentes no país.

O traço de continuidade entre o pas-sado e o presente foi encontrado na ati-vidade comercial. A visão tradicional é de que os mocambos e quilombos – de-nominações que, em épocas e lugares diferentes, designaram o mesmo fenô-meno – eram redutos isolados de ne-gros fugitivos que apenas produziam para consumo próprio. “O tempo todo

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Flávio Gomes é ligar a experiência da roça ao quilombo e este à comunidade camponesa”, comenta Maria Helena.

Quilombos existem desde pelo menos 1575, quando se deu o primeiro registro da existência de um “mocambo” na Ba-hia. Gomes explica essa precocidade pela ideia de que não havia forma de protesto mais eficaz contra o escravismo do que a fuga. “Muitas escapadas coletivas foram antecedidas de levantes ou motins”, diz o historiador. Os quilombos nunca eram totalmente fixos e contavam com os lo-cais de difícil acesso, como montanhas, cavernas, florestas e manguezais, como refúgio. Diante dos grandes prejuízos com a perda de mão de obra, fazendei-ros mandavam capitães do mato e tropas irem ao encalço dos fugitivos, o que não impedia as comunidades de se multipli-carem. “O surgimento de um quilombo atraía a repressão, assim como mais fu-gas para ele”, conta Gomes. Além disso, quilombolas, portando armas artesanais

mulheres escravas preparam comida

durante a colheita do café no século XiX

as comunidades estavam conectadas com agentes da sociedade do seu en-torno, como taberneiros, vendeiros e redes mercantis”, afirma Gomes. “Eram aglomerados agrários articulados, e os excedentes de sua produção abasteciam as redes locais, compostas por fazendas, vilas, feiras e entrepostos de trocas.” Com as transações comerciais, vieram tam-bém intercâmbios religiosos e culturais e miscigenação étnica.

A atividade econômica nos quilombos, que sobrevive, em essência, nos atuais aglomerados remanescentes, teria sua origem numa peculiaridade da escra-vidão no Brasil: o hábito dos senhores de conceder parcelas de terra e um ou dois dias por semana aos escravos para o cultivo de alimentos, a fim de se mante-rem. Era um modo de os proprietários se eximirem dos gastos com o sustento dos cativos, pelo menos em parte, mas havia outras razões, como reforçar o “amor à terra” para desestimular as insurreições e fugas em grupo. Nesse aspecto, o efeito foi o oposto: o hábito e o domínio da agri-cultura, incluindo a comercialização de excedentes, inspiraram escravos a fugir e a construir uma vida sustentada pelo cultivo da terra. “A economia dentro da fazenda foi também fundamental para

a constituição de famílias e a criação de uma margem de autonomia financei-ra, com uma lógica contrária à da plan-tation, que era a da monocultura”, diz Maria Helena Machado, professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH--USP) e especialista em história social da escravidão.

ataQue e deFesaA experiência da roça nas proprieda-des dos senhores de escravos brasileiros já havia sido analisada pelo historiador Ciro Flamarion Cardoso (1942-2013) e pelo antropólogo norte-americano Sid-ney Mintz (1922-2015), ambos nos anos 1970. Cardoso criou a expressão “proto-campesinato” e utilizou o conceito de “brecha camponesa” em referência ao fenômeno. Para Gomes, que explorou a questão no livro A hidra e os pântanos (Unesp/Polis, 2005), tais termos reve-lam uma subavaliação da importância das roças permitidas pelos proprietários de escravos na formação de um campe-sinato negro autônomo. Também não havia naqueles estudiosos a dimensão de continuidade que chegaria até os dias de hoje. “A importância dos estudos de

1

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pesQuisa Fapesp 242 z 83

cias dos jornais”, diz Gomes. Nos primei-ros tempos pós-Lei Áurea, “continuaram migrando, desaparecendo, emergindo e se dissolvendo no emaranhado das for-mas camponesas do Brasil”, mantendo a característica de interagir e misturar--se com seus entornos. O pesquisador atribui a invisibilidade dos quilombos depois da abolição aos recenseamentos populacionais e censos agrícolas que não tinham critérios claros e constan-tes sobre raça ou cor e não sabiam como classificar atividades econômicas “entre a agricultura familiar, o trabalho sazonal e o extrativismo”. Além disso, as comu-nidades negras rurais do início do século XX eram marcadas por deslocamentos determinados por arranjos de moradia e trabalho. O sustento principal continuou sendo o comércio da produção agrícola. “Muitas comunidades fabricam farinha e, como no passado, vendem parte da produção”, diz Gomes.

A antropóloga Neusa Gusmão, profes-sora aposentada da Faculdade de Educa-ção da Universidade Estadual de Campi-nas (Unicamp), relativiza a continuidade estrita entre os aglomerados de escravos fugidos e as atuais comunidades negras

trabalhadores transportam produtos e colhem arroz no quilombo de morro Seco (Sp), em 2015

ou pistolas e espingardas roubadas ou cedidas por parceiros comerciais, faziam expedições que induziam os cativos das senzalas a escapar e realizavam seques-tros para aumentar a população da co-munidade fugitiva. A articulação entre quilombolas e escravos das senzalas de grandes engenhos provocou uma rebe-lião no engenho de Santana, na Bahia, em 1789. Ocorreram sucessivos levan-tes até 1828, período em que se formou, de acordo com Gomes, uma economia camponesa de negros fugidos.

Os quilombos costumavam ser cerca-dos por valas e madeiras pontiagudas, mas seus habitantes não se limitavam a se proteger. “Circunstâncias de tempo e lugar faziam de alguns quilombos uni-dades de guerrilha, espalhando o me-do nas fazendas”, diz o pesquisador. A forma mais eficaz e lucrativa de prote-ção, entretanto, era a formação da re-de de parceiros econômicos, incluindo outros roceiros, garimpeiros, pescado-res, mascates e quitandeiros, indígenas e soldados desertores, além de escravos ao ganho, aqueles que compravam a al-forria dos senhores. Na década de 1870, a lenha que abastecia a Corte imperial era produzida por quilombolas do man-gue do rio Iguaçu, no estado do Rio de Janeiro, e comercializada por escravos recém-libertos.

“Os quilombos continuaram a se re-produzir mesmo com o fim da escravi-dão, porém não foram mais encontrados na documentação da polícia e nas denún-

livrogomeS, f. S. Mocambos e quilombos – Uma história do campesinato negro no Brasil. São paulo: companhia das letras, 2015, 238 p.Fo

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rurais. “Não se pode dizer com certeza que o campesinato negro atual seja origi-nário de antigos quilombos”, diz ela, que pesquisou e escreveu sobre cultura ne-gra no campo. “A denominação atual de quilombo obedece a uma reconfiguração do termo que os identifica como ligados à terra e a práticas culturais próprias.”

Ela concorda, entretanto, que a invisi-bilidade desses grupos nos anos de 1970 e 1980 “era quase absoluta, tanto no meio social quanto no acadêmico”. O ganho de visibilidade, para o qual contribuiu o aperfeiçoamento dos métodos de pes-quisa demográfica, teve na Constituição de 1988 apenas uma de suas etapas. No mesmo ano, a questão dos quilombos as-sociados à identidade negra foi trazida à tona pelos eventos e protestos organiza-dos para lembrar os 100 anos da abolição. Algo semelhante ocorreu em 1995, nos 300 anos da morte de Zumbi, líder de Palmares, o quilombo mais conhecido. Segundo o pesquisador, tem sido im-portante a atuação de entidades como a Fundação Cultural Palmares, ligada ao Ministério da Cultura, que reconhece e certifica as comunidades remanescen-tes de quilombos, e principalmente dos estudos acadêmicos em várias áreas que “têm ajudado a articular os movimentos sociais em torno dessas comunidades”. n

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Em agosto de 2015, Regina Szylit Bousso, professo-ra da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), voltou de uma temporada de seis meses de pesquisa em um hospital pediátrico da Universidade George Washington, Estados Unidos, disposta a motivar médicos, enfermeiros e outros

especialistas a falar mais, com mais segurança e mais naturali-dade sobre a morte. “Lidamos com essa possibilidade [de morte do paciente] o tempo todo, mas os profissionais da saúde ainda falam pouco sobre o fim da vida entre eles e com as famílias”, observa Regina, agora à frente de cursos e de entrevistas com equipes de hospitais para rever a forma de tratar esse assunto.

Desde 1985 trabalhando em unidades de terapias intensivas, onde o risco de morte dos pacientes é sempre alto, ela tem visto que em geral as equipes dos hospitais continuam retraí-das, expondo pouco as opiniões, o que, a seu ver, poderia levar a decisões erradas sobre o melhor tratamento ou cuidados a serem oferecidos a um paciente no fim da vida. Da comuni-cação precária resultam também lembranças inesquecíveis para quem perdeu um familiar em um hospital. Em uma das pesquisas do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Perdas

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Diante do silêncio sobre a morte

e Luto (Nippel) da Escola de Enfermagem da USP, que ela coordena, Maiara Rodrigues dos Santos entrevistou mulhe-res de São José dos Campos, no interior paulista, cujos filhos haviam morrido em hospitais. Dez anos depois, as mulheres se lembravam com gratidão ou ressentimento de detalhes do atendimento e dos nomes de médicos e enfermeiros que elas acharam que haviam lhes tratado bem ou mal.

Procurando enfrentar essa situação, Regina coordenou um curso extracurricular para cerca de 40 enfermeiros, psicólogos e terapeutas ocupacionais interessados em se preparar melhor para atender os doentes e as famílias. Na primeira aula, no dia 2 de fevereiro, uma de suas primeiras perguntas aos partici-pantes foi: “Vocês já estiveram ao lado de uma pessoa mor-rendo?” Aos poucos brotaram relatos pessoais que indicavam a necessidade de mais informação sobre como lidar com o fim da vida, algo pouco lembrado nos cursos de medicina e enfer-magem. Uma das enfermeiras relatou que não sabia o que fazer para amparar uma mulher que havia perdido o bebê no parto, teve de ficar entre as mulheres que amamentavam enquanto se recuperava e se sentia envergonhada de voltar para casa e ter de explicar para a família que o filho tinha morrido ao

Profissionais da saúde deveriam falar sobre o assunto entre si e

com a família dos pacientes, sugerem especialistas

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retrato da dor: escultura em cemitério da cidade de são Paulo expressa a solidão e a angústia de uma mulher diante da morte

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nascer. Para Regina, “a dor da outra pessoa deve ser reconhecida e respeitada, para que a perda possa ser atravessada com menos sofrimento”.

Outra pergunta feita aos participantes do cur-so promovido na Escola de Enfermagem da USP: “Quem conversa sobre a morte em sua família?”. Poucos. A maioria conhecia o Testamento Vital, uma declaração aprovada pelo Conselho Federal de Medicina em 2012 que determina os trata-mentos ou procedimentos aos quais uma pessoa aceita ou não ser submetida quando não puder mais escolher de modo consciente. Poucos parti-cipantes, porém, haviam feito o testamento para eles próprios ou para familiares, indicando que esse assunto raramente é lembrado, inclusive nos cursos de enferma gem e medicina. O mes-mo acontece nas escolas de ensino fundamental e médio. “Nas escolas hoje se fala de sexo, antes um assunto proibido, mas quase não se toca em assuntos como morte e luto, mesmo quando as crianças perdem amigos ou professores”, co-menta Regina.

Não se trata de um fenômeno exclusivo do Bra-sil. Com base em 15.617 entrevistas com pessoas com pelo menos 65 anos de 11 países (Austrália, Canadá, França, Alemanha, Holanda, Nova Ze-lândia, Noruega, Suécia, Suíça, Reino Unido e Estados Unidos), uma equipe da Commonwealth Fund, fundação americana que apoia pesquisas em saúde, verificou que apenas 12% dos entrevis-tados na França falam com os familiares e amigos sobre os cuidados que aceitariam receber se es-tivessem muito doentes e não pudessem decidir por conta própria; inversamente, a porcentagem é de 78% nos Estados Unidos e 72% na Alemanha. Em 10 de dezembro de 2014, falando para um pro-grama de rádio da BBC, Tony Walter, diretor do Centro da Morte e Sociedade da Universidade de Bath, Inglaterra, observou que as pessoas ainda se sentem inseguras sobre como expressar seus sentimentos com relação à morte de familiares. Seu comentário marcava o lançamento de uma campanha com sugestões de medidas de apoio a pessoas que perderam familiares e poderiam precisar de mais atenção principalmente em épo-cas como o Natal, em que a perda é sentida com maior intensidade.

CUIdAdoS pAlIAtIvoS“Muitos médicos acham que falar em insucesso de tratamento é se declarar fracassado. Eles pre-ferem sempre animar o paciente, muitas vezes o submetendo a procedimentos dolorosos e des-necessários, sem brecha para falar da morte, até se ver à porta dela”, observa Maria Goretti Sales Maciel, diretora do Serviço de Cuidados Paliati-vos do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo e presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP). Cuidados paliativos

são as medidas de apoio que procuram melho-rar a qualidade de vida de uma pessoa com uma doença grave, e de seus familiares. A ausência de diálogo sobre o fim da vida pode levar ao que ela chama de transferência de responsabilida-de: quando o médico, diante da morte iminente, pergunta aos familiares o que gostariam que ele fizesse pelo paciente. “Quando as possibilidades de tratamento são conversadas entre a equipe, os familiares e o paciente desde o início, é muito mais confortável para todos.” Ela lembra de uma situação recente: a equipe de cuidados paliativos reconheceu que estava em dúvida se haveria be-nefícios compensadores em tratar uma mulher com câncer avançado no cérebro com radiote-rapia e decidiu conversar com a paciente. “Ela também não queria passar pela radioterapia e voltou para casa. Temos de decidir em conjunto”, diz Maria Goretti, que tem formação em medi-cina da família e da comunidade.

Em um estudo realizado com 300 famílias de pessoas com câncer internadas na unidade de te-rapia intensiva do A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo, a psicóloga Renata Fumis, atual-mente pesquisadora no Hospital Sírio-Libanês, verificou que a maioria dos familiares de pacien-tes (78,6%) deseja participar da decisão sobre a eventual retirada do tratamento de suporte de vida, como a ventilação artificial, principalmente em casos muito graves. Em outro estudo no A.C. Camargo, ela verificou que metade das 164 famí-lias entrevistadas não entendia o diagnóstico, o tratamento ou o prognóstico dos pacientes inter-nados, uma proporção muito próxima à verifica-da em levantamentos realizados na França e na Índia. “Quanto mais tempo a equipe do hospital dedicar à família, ouvindo o que dizem, reconhe-cendo suas emoções e respondendo às dúvidas, maior será a satisfação com o atendimento e me-nor o estresse emocional”, diz Renata.

A “comunicação sensível e empática entre pro-fissionais, pacientes, parentes e colegas” é uma das ações propostas às equipes que cuidam de pacientes sem possibilidades de cura, segundo o manual publicado em 2012 pela ANCP, mas ain-da há muitos desafios nessa área. “A prática [dos cuidados paliativos] ainda carece de regulamen-tação, definições e inserção nas políticas assisten-ciais, tanto no setor público como no privado”, reconhece o documento. “A maioria das equipes trabalha sem educação formal e o conhecimento se baseia nas iniciativas autodidatas de profissio-nais dedicados e cursos de curta duração, muitas vezes sem adequação à nossa realidade.”

Uma das estratégias adotadas pela equipe da USP para ajudar as famílias a lidar com os sen-timentos ligados à perda, como a tristeza, a an-siedade e a angústia, são as chamadas cartas te-rapêuticas, enviadas geralmente às mães alguns

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meses depois da perda de um filho, reconhecendo a coragem das mulheres ao longo dos meses de internação, por meio de um vocabulário que elas próprias usaram nas conversas com a equipe do hospital, como descrito em um artigo da equipe da USP publicado na Online Brazilian Journal of Nursing em 2010.

tEnSão ContínUA“Os pais precisam reconstruir o significado das perdas que sofreram e encontrar novos sentidos para a vida”, diz Regina. Ela conta que nos Esta-dos Unidos as pessoas falam mais abertamente sobre morte. Hospitais que ela visitou durante seis meses em Washington promovem ações com o propósito de aliviar a angústia dos familiares, como acampamentos ou celebrações, quando os participantes escrevem um bilhete para pessoas que morreram; depois a mensagem é colocada em um balão, solto no pátio do hospital. “Podemos falar de morte de muitos modos, sem necessa-riamente mencionar a palavra morte. Por exem-plo: ‘Como está sendo passar por este momento? Como podemos planejar os próximos dias? Que cuidados vocês esperam para o seu filho agora e nos próximos dias?’ .”

Tanto quanto os familiares dos pacientes, mé-dicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e fisioterapeutas que trabalham com pacientes em estado grave necessitam de cuidados, por apre-sentarem exaustão emocional, baixa realização pessoal e outros sintomas de uma síndrome cha-mada burnout, concluiu Renata Fumis, com base em um levantamento recém-concluído. “O bur-nout está associado ao sofrimento moral quando, por exemplo, a equipe assiste o prolongamento da vida dos pacientes inutilmente”, disse ela.

O pneumologista Pedro Paulo Ayres pretende começar neste mês de abril exercícios de simula-ção de atendimento a pacientes em unidades de terapia intensiva com médicos, enfermeiros, fisio-terapeutas e farmacêuticos em uma das salas do centro de treinamento do Sírio-Libanês. Por meio de monitores, os profissionais mais experientes acompanham as decisões e o comportamento da equipe. Desse modo se pretende promover a lide-rança, o respeito à equipe e a comunicação clara. “Queremos reduzir o desequilíbrio de poder nas decisões, resolver os conflitos e dar voz a todos os integrantes das equipes”, disse ele.

Há um ano, a oncologista Ana Lucia Coradaz-zi, do hospital Amaral Carvalho, de Jaú, interior paulista, mantém um blog (nofinaldocorredor.com) para apresentar histórias de pessoas que perderam familiares e mostrar que “a morte não precisa ser tão triste e tão amarga”. A médica to-mou a iniciativa depois de anos observando cole-gas sem preparo para lidar com a morte evitando os pacientes e as famílias. Para ela, o sofrimento pode ser amenizado por meio do diálogo, da em-patia e do reconhecimento dos desejos e dos va-lores dos pacientes e de seus familiares. “Temos de reconhecer os limites da ação médica e ver quando é necessário indicar outros profissionais para atender as famílias”, disse ela. n

Momento de conforto: o contato físico contribui para amenizar as inquietações das pessoas em hospitais

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Projetos1. a experiência da família e de profissionais em relação ao cuidado no final de vida da criança: a enfermagem na prevenção do luto com-plicado (nº 2014/19361-6); Modalidade Bolsas no exterior – regular (children’s research institute, estados unidos); Pesquisadora res-ponsável regina szylit Bousso (ee-usP); Investimento r$ 51.327,43. 2. avaliação das condições físicas e psíquicas dos pacientes e fa-miliares após a alta da uTi: análise das diferenças entre pacientes oncológicos e não oncológicos (nº 2011/05672-1); Modalidade Pro-grama Jovens Pesquisadores em centros emergentes; Pesquisadora responsável renata rego Lins Fumis (Hospital sírio-Libanês); Inves-timento r$ 321.467,40.

artigos científicosBousso, r. s. et al. a arte das cartas terapêuticas no cuidado de famílias enlutadas. online Brazilian Journal of nursing. v. 9, n. 2, 2010. carVaLHo, r. T. de e ParsoNs, H. a. (orgs.). Manual de cuidados paliativos ANCP. 2ª ed. são Paulo: academia Nacional de cuidados Paliativos. 2012.FuMis, r. r. L. e deHeiNZeLiN, d. respiratory support withdrawal in intensive care units: families, physicians and nurses views on two hypothetical clinical scenarios. Critical Care. v. 14, p. 1-8. 2010.osBorN, r. et al. international survey of older adults finds shortco-mings in access, coordination, and patient-centered care. Health Affairs. v. 33, n. 12, p. 2247-55. 2014.

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História da saúde y

Preventivismo orientou

a prática médica no

estado de são Paulo

na segunda metade

do século XX

laboratório paulista

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Nos anos 1960 e 1970, o estado de São Paulo passou por uma reformulação nas políticas pú-blicas de saúde, representada

por novos modelos de gestão e produção científica, que vieram a definir o campo da saúde coletiva no Brasil e a influen-ciar a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) pela Constituição de 1988. Essa é a conclusão da pesquisa, em fase de finalização, “História da saúde coletiva no estado de São Paulo: Emergência e desenvolvimento de um campo de saber e práticas”, do historiador André Mota, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e coordenador do Museu Histórico da Fo

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instituição. Foram feitas, segundo a metodologia da história oral, dezenas de entrevistas com agentes do campo da saúde coletiva em escolas e associa-ções médicas paulistas e formuladores de políticas públicas de várias regiões, complementadas pela leitura de docu-mentação institucional.

“As diversas faculdades de medicina criadas no estado sob o impacto do pre-ventivismo, entre as décadas de 1950 e 1960, criaram perspectivas para o surgi-mento, nos anos seguintes, de uma agen-da pública que articulou relações entre medicina, saúde e sociedade”, argumenta Mota. Até o fim da década de 1950 só ha-via três faculdades de medicina no esta-

do: na capital, a da USP (1913) e a Escola Paulista de Medicina (1933) – que deu origem à Universidade Federal de São Paulo, Unifesp –, e a de Ribeirão Preto, um braço da USP no interior. Nos anos seguintes foram fundadas as faculda-des de medicina de Botucatu (1962, ho-je incorporada à Universidade Estadual Paulista, Unesp, criada em 1976), a de Campinas (em 1963, que foi a primeira unidade da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, criada em 1966) e a Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia do Estado de São Paulo (1963), na capital.

Foi na escola de Ribeirão Preto que a medicina preventiva ganhou impor-

Prédio atual da FM-UsP em construção em 1931, arnaldo Vieira de Carvalho durante o lançamento da pedra fundamental e aula no laboratório da instituição nos anos 1910

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90 z abril DE 2016

des demorou pelo menos uma década. Na FM-USP só ocorreu nos anos 1930.

O quadro mudou depois da Segunda Guerra Mundial, quando emergiu mun-dialmente a ideia de estado de bem-estar social. É a fase da medicina preventiva. Os serviços de saúde começam a mapear as áreas urbanas carentes e vulneráveis e a deixar mais clara a relação entre pobre-za e doença. “Embora fosse dado forte peso à prevenção, não se tratava de uma visão necessariamente democratizante”, observa Mota. “As ações públicas eram essencialmente intervencionistas, sem compartilhamento com os cidadãos. Não se reconheciam diferentes culturas e mo-dos de vida. O saber ainda era cindido entre o normal e o patológico.”

O surgimento das várias faculdades de medicina nos anos 1960 obedeceu à de-manda feita por uma nova classe média surgida de uma fase de desenvolvimento no estado – a capital paulistana trans-formou-se definitivamente em centro financeiro e o interior ganhou impulso com a mecanização da agricultura. André Mota destaca a atuação nesse período de Walter Leser (1909-2004), professor do Departamento de Saúde Coletiva da FM--USP e duas vezes secretário estadual da Saúde, nos governos de Roberto de Abreu Sodré (1967-1970) e Paulo Egydio Martins (1975-1979).

A chamada reforma Leser, lançada em seu primeiro mandato, insti-tuiu centros de saúde em todo o

estado como “eixo da organização sanitá-ria” e a criação de 622 postos de médicos sanitaristas, que só viriam a ser preen-chidos integralmente em seu segundo mandato. Leser também criou cursos for-madores para essa função na Faculdade de Saúde Pública. Foi com esse pano de fundo que se criou, com algum atraso em relação às instituições fundadas no início dos anos 1960, um Departamento de Me-dicina Preventiva na FM-USP em 1969.

Segundo Mota, o ativismo político dos agentes envolvidos, de oposição ao regime militar, foi fundamental para a compreensão de uma visão de “saúde como dever do Estado”, lema incorpo-rado à estruturação legal do SUS. Ou-tra das “particularidades paulistas” que influiria no sistema de saúde nacional foi a descentralização do sistema. Sob a administração de Leser, alguns ser-viços, como pré-natal e puericultura,

tância e foi institucionalizada. “A cria-ção do programa de residência médica, em 1962, foi um marco importante pa-ra a formação de um profissional com foco nas ações preventivas de saúde”, diz o professor Carlos Henrique Assun-ção Paiva, coordenador do Observatório História e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), citando um estudo do pesquisador Everardo Nunes, professor do Departamento de Medicina Preven-tiva e Social da Unicamp.

Em maior ou menor grau, todas as de-mais faculdades citadas também estru-turaram seus currículos com base nas diretrizes da medicina preventiva. “Até então prevalecia a ideia de que o bom médico era um especialista em doen-ças que, como tal, teria o conhecimento para atuar no corpo do paciente”, con-ta Mota. “Depois, nos anos 1960 e 1970, passava-se a esperar dos profissionais uma intervenção social, para prevenir o surgimento de enfermidades.”

ApoIo NoRtE-AMERICANoA medicina que se praticava em São Pau-lo desde a terceira década do século XX era fortemente marcada pelo modelo flex neriano, referência a Abraham Flex-ner (1866-1959), educador norte-ame-ricano. Em 1908, Flexner publicou um relatório sobre os currículos de todas as 155 faculdades de medicina dos Estados Unidos e do Canadá que provocou uma reformulação do ensino médico nos dois países, marcada por padronização, trei-namento prático e formação científica, com os hospitais-escola fazendo as ve-zes de laboratório de formação de novos médicos. Era essa a orientação da comis-são da Fundação Rockefeller que veio ao Brasil em 1916 para uma avaliação do estudo da medicina no país, conjugada ao oferecimento de bolsas para brasileiros se formarem nos Estados Unidos. Em 1918, por intermédio do diretor da Fa-culdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo (futura FM-USP), Arnaldo Vieira de Carvalho (1867-1920), o governo de São Paulo assinou acordos com a fun-dação norte-americana e recebeu um aporte do qual US$ 1 milhão foi destina-do à FM-USP. No mesmo ano foi criado o Instituto de Higiene (hoje Faculdade de Saúde Pública), anexo à Faculdade de Medicina e Cirurgia.

“Até então o médico atuava no leito do paciente; com as novas concepções

Flexner, educador norte-americano cujos estudos orientaram a reforma da saúde brasileira no início do século XX

do âmbito da medicina, passou a ser ne-cessário aos recém-formados o conhe-cimento de laboratório”, relata Mota, referindo-se à reforma Flexner. Já existia nessa época no Brasil a figura do médico sanitarista, que respondia à necessidade de uma atuação de profilaxia, entre eles Oswaldo Cruz e Vital Brazil, no Rio de Janeiro. “Surgiu um serviço sanitário nas principais capitais para fazer frente aos surtos epidemiológicos e criar um am-biente que não desestimulasse a vinda da mão de obra imigrante”, diz Tânia de Luca, professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulis-ta (Unesp), campus de Assis, e pesqui-sadora da medicina paulista do início do século XX.

A cidade de São Paulo, que crescia ver-tiginosamente – o que aumentava o risco de doenças contagiosas –, passou a con-tar com o Instituto Butantan (1901) e o Instituto Pasteur (1903), e o sistema mé-dico passou por um aparelhamento, com a criação de laboratórios e bibliotecas. A instituição de cadeiras de especialida-

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Lina. “O modelo de assistência básica, portanto, tem raiz profunda na história da saúde pública paulista e brasileira.”

De acordo com Mota, os anos 1970 veem os conceitos da medicina preven-tiva serem em parte e lentamente con-testados com o surgimento do campo da saúde coletiva. “A teoria deixa de ser tão normativa e a função dos profissionais da saúde perde em parte o caráter inter-vencionista e normativo para ganhar a de intérpretes do social”, diz o pesquisador. Segundo ele, uma característica central da saúde coletiva é a incorporação no campo do saber médico, inclusive no corpo docente das faculdades, de profis-sionais de outras áreas, como psicólogos, sociólogos, enfermeiros, antropólogos e historiadores. “Ampliou-se o raio de ex-plicação da saúde”, afirma o pesquisador.

para Mota, trata-se de uma supe-ração da dualidade entre as ideias de normalidade e patologia, pró-

prias de uma perspectiva conservado-ra ao olhar para o paciente. Essa pola-rização, segundo ele, favorecia a ideia de um “corpo-máquina” voltado para a produtividade social e concepções mo-ralistas em relação aos comportamentos “fora do padrão”. Exemplos de novida-des trazidas pela saúde coletiva seriam a percepção de como os pacientes falam sobre o próprio corpo nas consultas, a compreensão da complementaridade entre o social e o corporal e o olhar pa-ra segmentos específicos da sociedade, como as mulheres negras. Um sinal re-presentativo das mudanças de concep-

deixaram de ser da alçada de hospitais e foram assumidos pelos centros de saúde, aos quais coube também implementar medidas de medicina preventiva. Car-los Henrique Assunção Paiva cita ainda como avanço que viria a inspirar políti-cas de âmbito federal, “uma perspectiva que, ao legar profissionais como o para-sitologista Samuel Pessoa, preocupado com questões sociais, colocou a ideia do saneamento rural como questão-chave a ser enfrentada”.

Lina de Faria, professora da Univer-sidade Federal do Sul da Bahia, campus Sosígenes Costa, e doutora em Saúde Coletiva, percebe a origem da medicina preventiva no Brasil num momento an-terior. Segundo ela, “aquilo que depois ficou conhecido como medicina preven-tiva deu passos decisivos com a criação, em 1918, do Instituto de Higiene em São Paulo”. A pesquisadora vê ainda uma continuidade entre aquele período e as leis aprovadas na década de 1980. “A uni-versalização da saúde já era uma bandei-ra dos sanitaristas dos anos 1920”, afirma

ProjetoHistória da saúde coletiva no estado de são Paulo: emergência e desenvolvimento de um campo de saber e práticas (nº 2013/12137-0); Modalidade auxílio à Pes-quisa – regular; Pesquisador responsável andré Mota (FM-UsP); Investimento r$ 151.882,75.

walter leser (esq.), futuro secretário da saúde, ao lado dos médicos abrahão rotberg e Julio abramczyk em 1962

ções ocorreu na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, que trocou em 2011 o nome de seu Departamento de Medi-cina Preventiva para Departamento de Saúde Coletiva.

O estudo é circunscrito a São Paulo, mas o pesquisador não subestima a im-portância de outros estados na formula-ção da política nacional de saúde. Para ele, a medicina paulista se destacou pela tecnologia, enquanto o Rio de Janeiro in-fluiu nas políticas públicas, entre outros motivos por ter sido capital federal até 1960. Nesse aspecto, o Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), criado como Insti-tuto Soroterápico em 1900, tem protago-nismo nacional. Mota ressalta a atuação, na construção do SUS, do sanitarista e parlamentar Sergio Arouca (1941-2003), que foi presidente do IOC/Fiocruz entre 1995 e 1998. “No Rio de Janeiro as inicia-tivas em saúde modernas foram princi-palmente estatais, enquanto em São Paulo a benemerência exerceu um papel mais destacado”, conclui Mota. Para Paiva, “a trajetória da saúde pública brasileira pode ser percebida como um processo cumu-lativo, ainda que não linear, de longa du-ração”. Segundo ele, “nesse aspecto uma ‘herança paulista’ ganharia um lugar mais privilegiado na linha do tempo da saúde coletiva brasileira”. n Márcio Ferrari

Cursos criados no início dos anos 1960 incorporaram princípios da medicina preventiva

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92 | abril DE 2016

Mostra celebra 20 anos

do setor educativo do

MAM de São Paulo

Sem título, 1946, do fotógrafo

esloveno Evgen Bavcar, figura

central da exposição

Educação como matéria-prima, exposição em car-taz no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, ilumina um aspecto pouco visível, mas

fundamental para as instituições museológicas: a re-lação entre a experiência artística e a produção de conhecimento. A mostra, que celebra os 20 anos de atividade do setor educativo do museu, lida com as-pectos importantes da criação e da percepção estéti-ca. Uma equipe fixa de sete educadores, responsáveis, entre outras tarefas, por uma agenda de programas permanentes e temporários, além de atendimento a escolas e formação de professores, constitui o setor. Na exposição atual, a educação não é apenas um te-ma ou um mote curatorial, mas um conjunto de obras em diálogo, de sete autores, que compartilham o fato de terem o conhecimento, o aprendizado e a relação entre o público e a obra como elementos constitutivos do próprio trabalho artístico.

Maria Hirszman

Arte

Aprendizado no museu1

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Acima e abaixo, duas visões da obra Café educativo, de Jorge Menna Barreto, que aproxima educadores e visitantes

“O museu é uma es-cola: o artista aprende a se comunicar e o públi-co aprende a fazer co-nexões.” Esta frase do artista uruguaio Luis Camnitzer, estampada na fachada do museu, sinte-tiza a proposta da mostra. “Nosso objetivo é levar o visitante a desenvolver uma percepção própria, com atribuição e amplia-ção de sentido”, explica Daina Leyton, curadora da mostra e docente con-vidada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ao lado de Felipe Chaimovich, professor titular do curso de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Pentea-do (Faap). Toda a exposição foi concebida para reforçar essa abertura perceptiva, que orientou a seleção das obras e as atividades para o público dos educadores e dos artistas, encarregados de uma série de debates, oficinas e outras atividades até o encerramento da mostra, em 5 de junho.

Dois trabalhos pertencentes ao acervo do mu-seu foram escolhidos como eixos centrais do pro-jeto curatorial: as obras Café educativo, de Jorge Menna Barreto, e Expediente, de Paulo Bruscky. Ambas dependem da presença e da ação do pú-blico para serem ativadas. Como só adquirem significado quando vivenciadas pelo público, tornam-se instrumentos de mobilização da per-cepção poética. Café educativo, uma obra em curso, alterada a cada apresentação, consiste na instalação de um café no espaço expositivo, que funciona como uma ilha de mediação não diretiva entre os educadores e o público. Na atual versão o artista optou por adotar móveis baixos, almo-fadas e mesinhas de leitura, podendo-se andar descalço e folhear livros enquanto se toma um café. Expediente traz para dentro da sala de expo-

sições o ambiente de trabalho dos educadores do museu. Seus escritórios foram transferidos para o espaço expositivo, e é lá que estão trabalhando até o fim da exposição. “A presença do setor edu-cativo ali é visível, está acontecendo de fato. Não é uma obra de arte passiva”, destaca Chaimovich.

O diálogo entre arte e público prossegue nos outros trabalhos da mostra. Stephan Doitschinoff, por exemplo, criou especialmente para a exposi-ção um videogame que lida com noções inspira-das no pensador francês Michel Foucault. Com ironia, as fases do jogo estão associadas àquilo que Foucault classificava de instituições discipli-nares, como a escola, a indústria, o manicômio ou o condomínio. Para jogar, é preciso ajoelhar--se num genuflexório. Amilcar Packer lida com questões ligadas à colonização, ao consumismo e à exploração comercial em Constelações, instalação formada por objetos de uso cotidiano pendurados no teto e acessíveis por meio de roldanas, com informações sobre suas origens e nomenclaturas.

“Ver é saber; se você não sabe, não vê”, costu-ma dizer o fotógrafo e filósofo esloveno Evgen Bavcar, figura central no amadurecimento da reflexão sobre acessibilidade e liberdade poética que orienta a mostra. Cego desde os 12 anos, ele desenvolve um trabalho de ampliação da percep-ção além dos limites da visão e está representado na mostra por uma seleção de fotos que registrou e um conjunto de reproduções em 3D de obje-tos presentes em suas imagens, que podem ser tocadas pelo público.

Além da exposição e de um ciclo de conferên-cias e atividades propostas pelos artistas convi-dados, a celebração do aniversário do setor edu-cativo inclui o lançamento do livro Obras media-das, no qual 10 educadores elegem uma obra do acervo para analisar, demonstrando na prática a importância da investigação nessa área. “Ca-da educador é um pesquisador”, afirma Daina. n

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94 | abril DE 2016

Rodrigo de Oliveira Andrade

Produção literária do poeta alemão foi

influenciada por obras de naturalistas

que viajaram pelo Brasil no século XIX

memóRiA

Em 1817, em vista do casamento da arquiduquesa Leopoldina com o príncipe herdeiro e futuro imperador do Brasil, dom Pedro, começou a ser planejado na

Áustria o que ficou conhecido como expedição austríaca, investigação científica que trouxe ao país pesquisadores e artistas para estudar e retratar espécies e paisagens próprias da biodiversidade brasileira. Entre os membros da comitiva que acompanhou a arquiduquesa na viagem nupcial ao Brasil, estavam o zoólogo Johann Baptist von Spix e o botânico Carl Friedrich von Martius, que iniciaram no Rio de Janeiro uma longa jornada pelo interior do país. A viagem deu origem à Flora brasiliensis, obra que revelou detalhes do Brasil ao Velho Mundo. Essa história, bem documentada, deu origem a outra, menos conhecida: as literaturas de viagem incluíram o Brasil no círculo de estudos e interesses do poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), que não só se correspondeu com Martius como também o encontrou várias vezes após seu retorno à Alemanha.

No dia 13 de setembro de 1824, Goethe registrou em seu diário a visita de Martius a sua casa em Weimar, Alemanha. Entre outros detalhes do encontro, o poeta menciona ter pendurado em seu escritório um grande mapa do Brasil para saudar o naturalista, ao qual se referia como “o brasileiro Martius”. “Podemos tomar esse gesto como símbolo do interesse que Goethe demonstrou pelo Brasil em vários momentos de sua vida”, diz o pesquisador Marcus Mazzari, do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP). Mazzari estudou os diários de Goethe e consultou suas fichas de empréstimos na biblioteca de Weimar, que registram a

Tulipas, prímulas e rosas ilustram o estudo de Goethe A metamorfose das plantas (página ao lado)

Goethe à brasileira

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Goethe: constante intercâmbio científico com naturalistas alemães

2Gênero de malvácea

ao qual Martius e o botânico Nees von Esenbeck deram o nome de Goethea

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PeSQUiSA FAPeSP 242 | 95

concepções do poeta sobre o formato das plantas e seu processo de metamorfose. Em março de 1831, Goethe retirou mais uma vez da biblioteca de Weimar o atlas da descrição da viagem de Spix e Martius pelo Brasil, enquanto se ocupava com os estudos feitos pelo botânico sobre a vegetação brasileira. Ao estudar o Brasil, o escritor estava interessado em dois assuntos: geologia e botânica, especialmente a teoria de Martius sobre a “tendência espiral das plantas”. Para Mazzari, isso mostra a amplitude dos interesses de Goethe, que pesquisou várias áreas do conhecimento e se correspondeu com os mais influentes cientistas de seu tempo até o fim da vida.

As obras de Goethe também ajudaram a aperfeiçoar os recursos literários de Martius. O jovem botânico, em seus anos brasileiros, carregava consigo os livros Fausto I e Metamorfose das plantas, investigação botânica de Goethe publicada pela primeira vez em 1790. “Os escritos de Martius revelam excelentes recursos literários, como demonstra o relato Viagem pelo Brasil 1817-1820”, destaca Mazzari. A leitura das obras de Goethe, principalmente do Fausto I, parece ter sido importante para o Martius escritor. Durante a expedição brasileira, sobretudo na etapa amazônica, o naturalista escreveu poemas sobre os ambientes que visitou e os enviou a Goethe. Outro exemplo do interesse literário de Martius é observado em Frei Apolônio – Um romance do Brasil, escrito em 1831 e ambientado no país. n

de seu contato pessoal com Martius e as primeiras versões do que viria a ser a Flora brasiliensis, que o poeta alemão leu e releu enquanto elaborava a conclusão de Fausto II, segunda parte de sua obra clássica. “No Fausto II há diversas metáforas botânicas, que talvez possam ser tributárias do intenso intercâmbio científico que Goethe estabeleceu com Martius”, explica Mazzari.

O naturalista chegou a enviar a Goethe amostras do material recolhido durante a expedição no Brasil, o que teria influenciado as

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reprodução de espécie no livro flora brasiliensis, de Martius, autor de uma teoria sobre a “tendência espiral das plantas”

retirada de vários livros sobre o Brasil, entre eles Viagem ao Brasil nos anos de 1815 a 1817, do príncipe Maximilian zu Wied-Neuwied, primeiro naturalista de renome vindo da Alemanha para estudar o Brasil. Na obra de 1820, Wied-Neuwied apresenta um registro dos locais por onde passou, com descrições sobre geologia, fauna e flora, além dos habitantes e seus costumes. Em outro trecho de seu diário, Goethe assinala a leitura do livro Viagem ao interior do Brasil, publicado em 1812 pelo geólogo inglês John Mawe.

Mazzari apresentou esses e outros aspectos de suas pesquisas sobre as relações de Goethe com cientistas que viajaram pela América do Sul no século XIX em um colóquio na Biblioteca Brasiliana Mindlin, em março, na USP. Segundo o pesquisador, o poeta alemão começou a se interessar pelo Brasil em 1782, quando escreveu dois poemas, com o subtítulo Brasilianisch, inspirados no ensaio “Dos canibais”, do filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592). Nele, Montaigne faz sua interpretação de duas canções em tupi que ouvira em Rouen, França, de três índios brasileiros. A relação de Goethe com o Brasil intensificou-se quatro décadas mais tarde, a partir

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a leitura das obras de Goethe

aperfeiçoou o talento literário

de Martius, observado no relato Viagem

pelo brasil

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maneira Nepomuceno “valeu-se da musicalidade inerente ao idioma para flexionar a linguagem mu-sical europeia e, assim, criar música brasileira”.

O livro está dividido em três partes: a primeira explora as relações entre música e texto desde o Lied romântico, passando pela mélodie francesa até as origens da canção brasileira, com as modi-nhas do final do século XVIII. Além disso, o autor realiza um estudo sobre a formação artística e in-telectual de Nepomuceno, fortemente marcada pelo seu contato com a figura de Tobias Barreto e a Escola de Recife. A segunda parte do livro anali-sa a primeira canção publicada por Nepomuceno em 1887, bem como aquelas produzidas durante seus anos de estudo na Europa. Chama a aten-ção a análise de Oraison, sobre texto de Maurice Maeterlinck, que demonstra a modernidade de Nepomuceno, que estava alinhado ao que havia de mais avançado nas vanguardas europeias da época. Como bem ressaltou o compositor Ro-dolfo Coelho de Souza, “a contribuição efetiva de Nepomuceno foi ter incorporado organica-mente à música brasileira as novas linguagens da vanguarda europeia: o abundante cromatismo pós-wagneriano, o gosto francês pelo modalismo exótico, a tonalidade suspensa ultrarromântica, as escalas simétricas de tons inteiros e pentatônicas”.

Por fim, a terceira parte do livro dedica-se à análise minuciosa das canções brasileiras do au-tor. Com escrita elegante e clara, Pignatari de-monstra que o estilo de Nepomuceno se cons-titui “mediante a incorporação e a mistura de ingredientes muito diversos oriundos da musi-calidade da língua portuguesa falada e cantada no Brasil, da música folclórica tradicional, da música popular urbana e das práticas europeias contemporâneas”. Corrigindo as visões tradicio-nais sobre a música do autor, o livro Canto da lín-gua constitui-se numa importante contribuição aos estudos sobre o compositor Alberto Nepo-muceno, mostrando que sua grandeza consiste “em ter fincado as raízes da música brasileira na vanguarda europeia, de um lado, e, de outro, na musicalidade da língua portuguesa”.

Durante muito tempo a figura do composi-tor cearense Alberto Nepomuceno (1864-1920) foi considerada predominantemente

sob o prisma de uma certa ideologia do que deve-ria ser a música brasileira. Dessa forma, tal como ocorrera com outros compositores do roman-tismo musical brasileiro – como Carlos Gomes, Henrique Oswald e Alexandre Levy –, muito da bibliografia tradicional sobre Nepomuceno foi contaminada por essa perspectiva, segundo a qual o valor de determinadas obras seria diretamente proporcional às preocupações nacionalistas de seu autor. Luiz Heitor Corrêa de Azevedo definia Nepomuceno como “artista de transição entre o espírito do século XIX na música brasileira, que era o da servidão à Europa, e o do século XX, que era o da libertação”; Vasco Mariz, por sua vez, em sua célebre História da música no Brasil, afir-mava que Nepomuceno “não chegou a ser mo-derno, apesar de haver falecido em 1920”, e que grande parte de seu valor estava em “ter aberto o caminho para Villa-Lobos”, de modo que, sem ele, “talvez ficasse retardada a aceitação da cor-rente nacionalista”.

Desde meados dos anos 1990, uma nova gera-ção de musicólogos tem contribuído decisiva-mente para a revisão da figura de Nepomuceno como um mero “precursor” do nacionalismo musical. Trabalhos como os de Luiz Guilherme Goldberg, Avelino Romero Pereira e João Vidal, dentre outros, são paradigmáticos nesse sentido.

É nessa nova leva de estudos que se insere o livro Canto da língua: Alberto Nepomuceno e a invenção da canção brasileira, de Dante Pignata-ri. Resultado de uma pesquisa de doutoramento defendida em 2009 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), o autor se concentra no estudo das canções de Alberto Nepomuceno. Cabe lembrar que já em 2004 Pignatari publicou Canções para voz e piano (Edusp), de Nepomuce-no, primeira edição moderna dessas partituras.

Gênero de destaque no conjunto das obras do artista cearense, que compôs cerca de 70 canções para canto e piano ao longo de toda a sua vida, es-sas obras refletem de maneira privilegiada as trans-formações estilísticas do compositor. Ao longo de suas análises, Pignatari procura demonstrar de que

alberto Nepomuceno e a canção brasileira

resenha

Canto da língua: alberto nepomuceno e a invenção da canção brasileiraDante PignatariEdusp464 páginas | R$ 64,00

Mário Videira

Mário Videira é professor de piano, estética musical e história da ópera no Departamento de Música da USP. Publicou o livro O romantismo e o belo musical (Editora Unesp, 2006). É coordenador do Programa de Pós-graduação em Música da ECA-USP. E

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PESQUISA FAPESP 242 | 97

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Atraídos pela possibilidade de transformar os resultados de suas pesquisas em soluções concretas e viáveis para problemas socioambientais, alguns pesquisadores estão deixando as universidades para trabalhar em organizações não governamentais (ONGs). Estas, por sua vez, investem na contratação de profissionais qualificados na expectativa de que produzam dados e conhecimento que deem maior respaldo a seus projetos. As ONGs emergem, desse modo, como um mercado de trabalho alternativo para pesquisadores. Entre as vantagens estão a influência e a visibilidade que algumas dessas organizações adquiriram nas últimas décadas em setores políticos e na mídia. É possível criar condições favoráveis para que os estudos científicos tenham um impacto maior no processo de tomada de decisão e elaboração de políticas públicas.

As atividades nas ONGs são abrangentes. No IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas, em Nazaré Paulista (SP), os pesquisadores são encorajados a participar de reuniões com moradores da região em que a ONG desenvolve seus projetos, permitindo um contato maior com a realidade local. “Isso é importante para que o pesquisador desenvolva seus projetos tendo em perspectiva as demandas locais”, diz o engenheiro agrônomo Eduardo Ditt, secretário- -executivo do IPÊ. Ele se juntou à ONG ainda na graduação, na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP). Mesmo durante o mestrado, no Programa de Pós-graduação em Ciência Ambiental da USP, e no doutorado em Pesquisa Ambiental no Imperial College London, na Inglaterra, Ditt sempre procurou adequar suas pesquisas ao trabalho no IPÊ.

“O objetivo das pesquisas feitas dentro das ONGs é a obtenção de resultados que possam ser revertidos em ações para a implantação de políticas de conservação ambiental”, explica.

Além de questões envolvendo a pesquisa científica, os pesquisadores do IPÊ lidam com aspectos administrativos e institucionais da ONG e dedicam parte de seu tempo à elaboração de estratégias para captação de recursos financeiros. Esse talvez seja um dos principais desafios relacionados ao trabalho dentro dessas organizações. Muitas instituições têm políticas específicas de arrecadação. No Greenpeace, por exemplo, todas as pesquisas são feitas com dinheiro próprio, de doações de pessoas físicas, conforme explica a bióloga Renata Nitta, coordenadora de pesquisa da ONG. No caso do IPÊ, o esforço para captação de recursos é compartilhado entre os pesquisadores.

“Por esses motivos, é difícil uma ONG fazer pesquisa isoladamente, sem a universidade”, comenta Osvaldo Stella, fundador da ONG Iniciativa Verde e também responsável pelo Departamento de Mudanças Climáticas do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Como Ditt, Stella seguiu a trajetória acadêmica e concluiu o doutorado em 2004 em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no interior paulista. “Em qualquer ONG é quase impossível atingir os mesmos níveis de financiamento da universidade ou de grandes centros de pesquisa”, ele diz. A solução é investir em projetos conjuntos. “Enquanto a vocação da universidade é a produção de conhecimento, nas ONGs o objetivo é transformar esse conhecimento em ações concretas e viáveis”, explica Stella. “São características distintas, mas complementares e com grande potencial de expansão.” n rodrigo de Oliveira AndradeIl

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Alternativa à vistaonGs emergem como potencial mercado de trabalho para pesquisadores no Brasil e no exterior

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perfil

A arte de comunicarBiólogo Glauco machado viaja pelo país ministrando curso de redação científica para alunos de pós-graduação

Em 2004, aos 29 anos, o biólogo carioca Glauco Machado, na época pesquisador em estágio de pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), foi convidado para coordenar um curso de campo de ecologia no

Amazonas em reservas florestais nas cercanias de Manaus. Um grupo de 20 estudantes de mestrado e doutorado, sob sua orientação e de outros professores, passou quase um mês na floresta coletando e analisando dados. O trabalho final deveria ser um texto na forma de um artigo científico escrito pelos próprios estudantes. “Os alunos não conseguiram discutir os resultados dos estudos que haviam desenvolvido em campo”, conta Machado. Ele, então, resolveu organizar um curso de escrita científica, a princípio voltado à apresentação de métodos para a redação de artigos.

O resultado foi satisfatório e o curso cresceu. Em 2007, em São Paulo, já como professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), Machado organizou a mesma dinâmica para estudantes do curso de campo de ecologia na Mata Atlântica, que coordena em parceria com os biólogos Paulo Inácio Prado e Adriana Martini, do mesmo instituto. Nas aulas, ele verificou que as dificuldades dos estudantes iam além da redação do artigo científico. “A elaboração de um paper exige do pesquisador o domínio de aspectos básicos do método científico”, explica. “A maioria dos pós-graduandos, contudo, sequer consegue escrever

uma introdução ou mesmo encadear argumentos lógicos que ponham seus resultados em perspectiva na discussão.” Muitos estudantes não sabiam como formular uma hipótese, segundo ele.

O curso, que antes durava um dia, teve de ser ampliado; hoje tem duração média de uma semana. Nesse período, os alunos aprendem a comunicar os resultados de seus trabalhos, a escrever uma introdução e a organizar a descrição da metodologia, entre outros aspectos que envolvem a elaboração de artigos científicos. “Passamos por todos os desdobramentos do processo de redação do artigo até chegar à submissão para as revistas especializadas”, conta. “Também discutimos como escolher as publicações mais adequadas para o tipo de pesquisa que fizeram, de acordo com o perfil do trabalho.”

Em 2009, Machado cruzou as fronteiras da universidade. O IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas, em Nazaré Paulista, interior paulista, foi o primeiro a receber uma edição do curso, que se tornou itinerante. Além do trabalho no IB-USP, onde estuda o comportamento de opiliões (ver Pesquisa FAPESP nº 144), o biólogo, hoje aos 40 anos, também viaja pelo país ministrando aulas sobre redação científica em universidades, ONGs e institutos de pesquisa. “Ao todo, já visitei 10 estados no Brasil”, diz. Um aspecto importante do curso, segundo ele, é a questão da ética em pesquisa. “Os estudantes têm muitas dúvidas sobre questões de má conduta”, explica. “Ainda não sabem bem o que se configura como plágio e autoplágio, por exemplo.” n r.O.A.

Espaço para pensar a profissãoComeçou a operar em março o Escritório de Desenvolvimento de Carreiras da Universidade de São Paulo (USP). O objetivo é assessorar os alunos da USP na reflexão, preparação e planejamento de carreira. “Temos, tanto na graduação como na pós-graduação, problemas específicos em relação às vocações acadêmicas”, explica a professora Tania Casado, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), que coordena o escritório vinculado à Pró-reitoria de Graduação. Tania explica que a prioridade, neste primeiro momento, é atender à demanda dos alunos de graduação. Ela conta com 30 voluntários para assessorar os alunos da graduação e da pós. São profissionais com mestrado, doutorado e experiência de mercado. “Alguns são executivos de grandes empresas na área de gestão de carreiras e vão nos ajudar a preparar e participar de oficinas coletivas de carreiras e workshops sobre o tema que serão oferecidos aos alunos”, diz a professora da FEA. Contatos com o Escritório de Carreiras: (11) 2648-0991 e [email protected].

congresso sobre patentesAcontece em São Paulo, entre os dias 28 e 30 de agosto, o 36º Congresso Internacional de Propriedade Intelectual, promovido pela Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI) com apoio da Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inovadoras (Anpei). O tema é “Inovação e competitividade no cenário econômico global”. Entre os subtemas, estão assuntos como direito autoral, transferência de tecnologia, biotecnologia, cultivares, internet e esportes. Inscrições: www.abpi.org.br.

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_ Anuncie você também: tel. (11) 3087-4212 | www.revistapesquisa.fapesp.brclassificados

UM BRINDE À CIÊNCIAEm 2016, o festival internacional de divulgação científica

Pint of Science chega a sete cidades brasileiras

Nos dias 23, 24 e 25 de maiovocê é nosso convidado especial

para um brinde à ciência noPint of Science Brasil

Confira a programação completa no sitewww.pintofscience.com.br

Belo Horizonte (MG), Campinas (SP), Dourados (MS)Ribeirão Preto (SP), Rio de Janeiro (RJ), São Carlos (SP)

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Concursos Públicos para cargo de Professor Doutor na Faculdade de Engenharia Mecânica da UNICAMP.

Inscrições até 19/05/2016.

Área: Energia, Térmica e Fluidos e Petróleo Disciplinas: EM570 - Transferência de Calor I, EM670 - Transferência de Calor II do Departamento de Energia.

Área: Projeto Mecânico Disciplinas: ES626 - Modelagem de Dispositivos Eletromecânicos, ES963 - Laboratório de Dispositivos Eletromecânicos do Departamento de Sistemas Integrados.

Os editais poderão ser acessados no endereço abaixo: http://www.sg.unicamp.br/dca/concursos/abertos/concursos-para-professor-doutor/faculdade-de-engenharia-mecanica

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O que a ciência brasileira prOduz vOcê encOntra aqui

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