Geografia Política, Saúde Publica e as Lideranças Locais

download Geografia Política, Saúde Publica e as Lideranças Locais

of 19

Transcript of Geografia Política, Saúde Publica e as Lideranças Locais

  • 8/11/2019 Geografia Poltica, Sade Publica e as Lideranas Locais

    1/19

    HYGEIA, Revista Brasileira de Geografia Mdica e da Sadewww.hygeia.ig.ufu.br/

    Hygeia, 1(1):18-36, dez 2005 Pgina 18

    GEOGRAFIA POLTICA, SADE PUBLICA E AS LIDERANAS LOCAIS

    POLITICAL GEOGRAPHY, PUBLIC HEALTH AND THE LOCAL LEADERS

    Raul Borges GuimaresUniversidade Estadual Paulista - Pres. Prudente

    [email protected]

    RESUMOO presente trabalho uma contribuio para o entendimento da natureza poltica dasade pblica, em uma perspectiva geogrfica. Os servios de sade soconsiderados uma rede de sociabilidade organizada pelo discurso, na qual so

    incorporadas as noes de imaginrio social e de memria, bem como suasimplicaes para a epistemologia do lugar social. Em um contexto de profundaheterogeneidade na distribuio de equipamentos coletivos, como o caso dascidades brasileiras, observou-se a variabilidade de articulaes efetivamenterealizadas, ao longo do tempo, pelos diversos atores sociais envolvidos nessa rede.Nos limites do poder local de Presidente Prudente, essas relaes foram codificadasem termos do fortalecimento da assistncia mdica e da expanso da beneficncia.Encontram-se a as matrizes do pensamento conservador das lideranas polticas quedetm o comando da poltica de sade no nvel municipal.Palavras-chaves: Geografia da sade, sade pblica, memria urbana, imaginriosocial.

    ABSTRACT This work is a contribution to the comprehension of the political nature of the publichealth care in a geographical point of view. The health care service is considered asa network of sociability organized by discourse, in which aspects of both the socialimaginary and the memory are incorporated, as well as their implications for theepistemology of the social environment. In a context where the distribution of thecollective equipment is deeply heterogeneous as is the case in Brazil, it is observedthe variability of the connections effectively established, over the years, by differentsocial actors in this network. Within the limits of the local power of PresidentePrudente, these connections were codified in terms of both a strengthening of themedical care and the expansion of benefaction. We can find in them the essence ofthe conservative ideals of the political leaders who decide on the municipal health carepolicy.Key-words: Health Geograpy, public health care, urban memory, social imaginary

    INTRODUO A idia central que gostaria de discutir neste texto a respeito do rico acervo da sadepblica para os estudos geogrficos, particularmente da geografia poltica. Apesar doreconhecimento da importncia dos conceitos da geografia na elaborao dosfundamentos tericos e metodolgicos da epidemiologia (Czeresnia e Ribeiro, 2000),pouco se tem avanado no sentido inverso, ou seja, na discusso a respeito da

  • 8/11/2019 Geografia Poltica, Sade Publica e as Lideranas Locais

    2/19

    Raul Borges Guimares

    Hygeia, 1(1):18-36, dez 2005 Pgina 19

    contribuio da sade pblica para o desenvolvimento da geografia.Em primeiro lugar, as questes polticas que envolvem a sade pblica chamam aateno para a discusso das relaes entre o Estado, o poder e a democracia,considerando-se os movimentos sociais e suas escalas geogrficas de ao. Dentre nsgegrafos, o debate a respeito da reforma agrria e da reforma urbana sempre tevemuitos adeptos. Alguns gegrafos tm procurado avanar na compreenso destesmovimentos sociais a partir de categorias geogrficas. Segundo Bernardo MananoFernandes, os movimentos socioterritoriais seriam aqueles que tm o territrio comotrunfo (Fernandes, 2000). Como veremos adiante, pela prpria origem da sade pblicabrasileira, assim como a estratgia adotada pelos sanitaristas para garantir a participaopopular na gesto da poltica de sade, a reforma sanitria pode ser considerada umexemplo de movimento socioterritorial.Sade pblica brasileira: o nacional e o localSegundo Hochmann (1998), o campo da sade foi delineado, no Brasil, valendo-se deuma negociao entre os estados e o poder central, tendo o federalismo como moldurapoltico-institucional. Desde 1904, com a implantao da legislao sanitria, asautoridades pblicas passaram a dispor de aparatos legais, institucionais e de recursoshumanos para fiscalizar as condies de salubridade dos imveis urbanos e a produo ecomercializao de alimentos, conforme Hochmann (1998). Ficaram a cargo do governocentral: o servio sanitrio dos portos, a fiscalizao das atividades mdicas,farmacuticas, laboratoriais (incluindo os controle das vacinas e soros), a organizao deestatsticas demogrfico-sanitrias, e, a imposio da notificao compulsria de vriasdoenas (tifo, clera, febre amarela, peste, varola, difteria, febre tifide, tuberculose elepra). Aos poucos, foi se constituindo uma rede de instituies pblicas quecompartilhavam uma concepo geral de sade e de doena, transformando as molstiastransmissveis em um problema poltico.

    Ainda conforme Hochmann (1998), o conflito central desse processo foi o limite do poderpblico em uma situao de risco diante de um mal considerado pblico, semdesconsiderar o respeito aos direitos individuais, includo o direito de propriedade. Oenfrentamento de tal contradio foi de fundamental importncia para o delineamento dasrelaes entre o pblico e o privado e entre poder local e poder central no Brasil,colocando em questo o princpio de submisso aos coronis que controlavam a vidamunicipal no interior do pas. O pas continuava a conviver com graves problemassanitrios. Permanecia a nfase nas aes contra a febre amarela e a peste, apesar demuitas outras molstias serem responsveis por um grande nmero de mortes nascidades (tuberculose, difteria, lepra e doenas venreas), bem como de endemias rurais,que permaneciam no esquecimento das autoridades pblicas.

    A gripe espanhola, que tomou conta do pas em 1918, teve impacto significativo sobre apercepo coletiva das relaes entre doena e sociedade e sobre o papel da autoridadepblica. Segundo Hochmann (1998), a epidemia produziu um consenso mnimo a respeitoda necessidade urgente de mudanas na rea da sade pblica ao atingir tambm aselites. Sob o impacto da gripe espanhola, o poder pblico avanou na sua capacidade deagir coercivamente sobre a sociedade, durante os anos 20. A consolidao da redenacional de servios sanitrios inviabilizou qualquer tentativa de regresso ao cenriopoltico anterior expanso do campo de atuao do poder pblico na rea da sade.O movimento sanitarista teve importncia fundamental na elaborao do discurso polticoque permeou estas aes. Mediante palestras, panfletos, artigos em jornal e garantindorepresentao poltica no Congresso Nacional, disseminou pela sociedade brasileira uma

  • 8/11/2019 Geografia Poltica, Sade Publica e as Lideranas Locais

    3/19

    Raul Borges Guimares

    Hygeia, 1(1):18-36, dez 2005 Pgina 20

    definio essencialmente poltica dos limites do poder pblico: os sertes . Para ossanitaristas, os sertes caracterizavam-se pela concomitante ausncia de poder pblicoe onipresena das doenas que pegam, em especial, das chamadas grandes endemiasrurais [...] Esses sertes estavam mais prximos e eram mais ameaadores do que se podia imaginar (Hochmann: 1998, 16).Historicamente, serto um termo utilizado para designar as regies distantes do litoral edos ncleos urbanos. No Nordeste brasileiro, desde o perodo Colonial, o sertocorrespondia a uma extensa rea para alm dos engenhos de acar em direo aosplanaltos centrais, marcada pela ocupao dispersa de uma populao que vivia dacriao do gado. Disputando o domnio do territrio com os indgenas, desenvolvendo-seisoladas dos principais centros urbanos, as populaes do serto conservaram muitostraos arcaicos: religiosidade tendendo ao messianismo, culto honra pessoal e fidelidade aos superiores, hbitos rsticos resultantes do ajustamento cultural doportugus em contato com o aborgene (Ribeiro: 1993).

    Em So Paulo no foi muito diferente. A paisagem colonial estendia-se pelo PlanaltoOcidental por terras conquistadas mata e ao ndio, interligadas por um mosaico decaminhos distantes dos centros de consumo e dos costumes e tradies da metrpole.Esse imenso espao aberto expanso colonial, tambm denominado de serto , eraconsiderado terra de aventureiros, de viajantes e daqueles que se acostumaram a viverna fronteira longnqua da civilizao: o caipira (Holanda: 1994).

    A rea cultural caipira uma variante da cultura brasileira rstica que se espalhava pelointerior de So Paulo, do Esprito Santo, de Minas Gerais, do Mato Grosso e do norte doParan. Rude e pobre, essa populao rarefeita e dispersa, sem contato direto com avida urbana, voltara-se para o seu auto-sustento e organizara-se em pequenos ncleosfamiliares vivendo no ritmo das tradies de seus antepassados. No rancho (sua casa depalha e pau-a-pique) fazia-se de tudo: fio de algodo, chapu de palha, gamela de raiz defigueira, cuia de beber, pote de barro, colher de pau. Uma vida de bandeirante atrofiado,sem miragens, concentrado em torno dos problemas de manuteno de um equilbriomnimo entre o grupo social e o meio, conforme Cndido (1987: 46).Integrados em bairros rurais, os caipiras desenvolveram formas de solidariedade entre asfamlias para as tarefas que exigiam maior esforo. A principal delas era o mutiro, auxliomtuo e ao conjugada entre moradores de toda vizinhana que garantia uma rede detroca de favores e mantinha os laos mais solidrios entre os vizinhos. A devoo a umsanto, a promoo de missas, festas, leiles e bailes permitiam outras formas de convvioainda que condicionadas a um horizonte cultural limitado economia mais desubsistncia do que mercantil. Esse homem da fronteira do serto mais esmo, associadoao cio e a vadiagem, encarnou o smbolo do atraso e de modo depreciativo foi

    comparado ao ndio, que j sofria discriminao e era tido como preguioso (Ribeiro:1993).O Jeca Tatu , personagem de Urups, livro publicado por Monteiro Lobato em 1918,sintetizou esta imagem:

    funesto parasita da terra o caboclo, espcie de homem baldio, semi-nmade, inadaptvel civilizao, mas que vive a beira dela, na

    penumbra das zonas fronteirias. medida que o progresso vemchegando com a via frrea, o italiano, o arado, a valorizao das terras,vai ele refugindo em silncio, com seu cachorro, o seu pilo a-pica-pau eo isqueiro, de modo a sempre conservar-se mudo e sorno... MonteiroLobato (1918, p. 219).

  • 8/11/2019 Geografia Poltica, Sade Publica e as Lideranas Locais

    4/19

    Raul Borges Guimares

    Hygeia, 1(1):18-36, dez 2005 Pgina 21

    Ignorante, fraco e doente, o caipira era impedido de participar do esforo dedesenvolvimento do pas. O serto era um grande hospital abandonado e repleto de doentes.Ningum mais do que os sanitaristas do incio do Sculo XX souberam explorarpoliticamente essa idia. Convenceram a opinio pblica nacional de que a sade era umdos principais problemas do pas e chamaram para si a discusso das alternativas desuperao do que eles consideravam a principal questo sanitria do Brasil: o serto.

    A intensificao do debate sobre a sade pblica, segundo Castro Santos (1980),aconteceu no contexto do surgimento de inmeros movimentos de carter nacionalista,nas duas ltimas dcadas da Primeira Repblica. Tais movimentos pretendiam reivindicare afirmar os princpios da nacionalidade e realiz-los por intermdio do Estado,introduzindo na agenda poltica brasileira temas da sade, da educao, do civismo e dosvalores nacionais, dentre outros.Nesse ambiente de grande efervescncia poltica, So Paulo pode ser consideradavanguarda do ponto de vista da definio do campo da sade pblica e dos rumos dapoltica nacional. Foi praticamente a nica unidade da Federao capaz de formular umaestratgia sanitria e implementar permanentemente polticas de sade pblica, servindode modelo para o restante do pas.

    A explicao de tal excepcionalidade entre os autores que estudaram esta questo (Iyda,1994; Ribeiro, 1993; Telarolli Jr., 1996) reside nos interesses econmicos doscafeicultores, que precisavam importar mo-de-obra para as suas lavouras localizadas nointerior do estado. A organizao econmica de So Paulo, tendo a cidade porturia deSantos e a cidade de So Paulo como paradas obrigatrias dos imigrantes, exigia aesrigorosas de saneamento e controle sanitrio. Por esse motivo, a agenda sanitria,segundo essas interpretaes, teria incorporado gradualmente os temas da habitaopopular, dos cuidados materno-infantis, da tuberculose e das doenas venreas,

    antecipando medidas que seriam tomadas posteriormente pelo Governo Federal em todoo pas. Como a cafeicultura era o carro-chefe da economia, permitindo odesenvolvimento do capitalismo no Brasil, a questo da sade pblica passava pelodelineamento poltico dos dirigentes paulistas. Estudar a sade pblica no Brasil exigiria,necessariamente, segundo esses autores, a compreenso das relaes entre o casopaulista e as demandas impostas pelo capitalismo internacional.Hochmann (1998) apresenta uma explicao bem diferente para a excepcionalidadepaulista. Para ele, o caso de So Paulo no pode ser explicado simplesmente como umaresposta s demandas da economia agroexportadora, que na maioria das vezes transformada em varivel independente. Mais do que isso, preciso identificar asrelaes entre a poltica sanitria paulista e os problemas sanitrios enfrentados peloGoverno Federal e demais estados, esclarecendo os elos de ligao da poltica paulistade sade pblica, o movimento sanitarista brasileiro e a expanso dos servios sanitriosfederais. A to proclamada exceo seria, na verdade, parte de uma soluo negociadapoliticamente entre as elites das unidades federativas. So Paulo valia-se do seu podereconmico ocupando os postos chaves da poltica monetria e do comrcio exterior dogoverno central, mas afastava-se dos assuntos pertinentes ao saneamento e sade.

    Assim pde apoiar um acordo nacional para a questo mas, ao mesmo tempo, impedir ainterveno federal sob o seu territrio, controlado politicamente pelas elites locais.Destaco uma outra questo a respeito da excepcionalidade do caso paulista: de que SoPaulo est se falando?De fato, as elites paulistas administraram e desenvolveram autonomamente umextraordinrio servio sanitrio, preponderantemente implantado nos espaos urbano-

  • 8/11/2019 Geografia Poltica, Sade Publica e as Lideranas Locais

    5/19

    Raul Borges Guimares

    Hygeia, 1(1):18-36, dez 2005 Pgina 22

    industriais. Mas at que ponto a ampliao do espao de atuao dos servios sanitriosatingiu todo o territrio paulista? Em So Paulo tambm haveria sertes inspitos erepletos das doenas que pegam em reas mais prximas do que se poderia imaginar? claro que a tenso poltica entre o poder local e o Estado, expressa nos rumos dasade pblica, tambm se reproduziu no territrio paulista. Era de responsabilidade domunicpio a fiscalizao de todos os estabelecimentos que pudessem colocar em risco asade coletiva e garantir o saneamento bsico populao (gua e esgoto). Caberiatambm ao poder local o policiamento sanitrio das moradias, a vacinao e a assistnciaaos pobres. Caso a localidade estivesse sob surto epidmico, ficava garantida ainterveno do poder central na localidade, que assumia o controle de todas as aes eservios sanitrios. Contudo, muitos municpios no assumiam as suasresponsabilidades quanto sade pblica e resistiam presena dos representantes doEstado na sua rea de influncia poltica, ocorrendo disputas entre as decises dosdiferentes nveis do poder, como foi o caso de Campinas, Santos, Araraquara e SoCarlos (Ribeiro:1993).Esses avanos e recuos da sade pblica no interior de So Paulo devem ser analisadostendo por referncia o pacto coronelista, considerado a reproduo da poltica degovernadores as relaes estado-municpios, que sustentou politicamente a autonomiamunicipal na Primeira Repblica. De um lado, o poder estadual controlava os cargospblicos, inclusive no campo da sade, e os polticos locais o voto de cabresto. Aseleies representavam um momento de barganha poltica entre estas duas esferas dopoder.De fato, o avano das epidemias de febre amarela e da leishmaniose em direo ao oestepaulista foi motivo de preocupao das autoridades em sade pblica do interior doestado. Segundo Ribeiro (1993), as epidemias ameaavam a continuidade da expansoda economia cafeeira. Mas a questo da autonomia municipal era um ponto crucial paraa manuteno do pacto coronelista e constitua um obstculo ao avano da participaodo poder estadual no combate a essas epidemias.

    A constatao de que a prpria destruio da floresta tropical era fator inibidor do avanoda febre amarela silvestre e da leishmaniose parece ter pesado na ausncia de prioridadepara a questo, deixando-se as zonas pioneiras quase que entregues prpria sorte. Ofato que os sanitaristas concentraram muito mais os seus esforos na poro urbano-industrial do territrio estadual, alocando recursos oramentrios e reorganizando osservios com nfase nas principais cidades do interior do estado, como Campinas eRibeiro Preto.

    A localizao das cidades que constituram marcos histricos da interveno sanitria noEstado de So Paulo at 1930 no mapa de distribuio dos bitos por tuberculose de1929 esclarecedor. Havia, no final da dcada de 1920, uma ntida fronteira entre duasrealidades distintas no Estado de So Paulo: uma poro urbano-industrial, marcada pelapeste da tuberculose; e outra sertaneja, impregnada de doenas endmicas rurais, nostermos concebidos pelo movimento sanitarista brasileiro.Em vista disso, os sanitaristas paulistas adotaram uma atitude pragmtica (Ribeiro: 1993).Caso as condies de sade, em razo de surtos epidmicos, colocassem em risco odesenvolvimento econmico do estado, eles agiriam. Muitas vezes essa atitude geravaforte resistncia local, o que implicava arcar com o nus poltico da quebra da autonomiamunicipal. Mas as sucessivas reformas da organizao sanitria de So Paulo,realocando servios e atribuies e expandindo os programas de ao, tiveram baixoimpacto no municpios do oeste do estado, regio na qual o isolacionismo era pea

  • 8/11/2019 Geografia Poltica, Sade Publica e as Lideranas Locais

    6/19

    Raul Borges Guimares

    Hygeia, 1(1):18-36, dez 2005 Pgina 23

    poltica importante que dava fora aos coronis.Os argumentos apresentados at o momento podem nos levar a concluir que de fatohavia uma poro significativa do oeste paulista esquecida pelo poder pblico e entregue prpria sorte, o que torna vlida a idia disseminada pelo movimento sanitaristanacional da existncia de um Brasil sertanejo, pobre e doente tambm em So Paulo.Contudo, preciso olhar para esse processo desvendando as relaes polticas quepermearam o discurso ideolgico dos sanitaristas. Eles associavam o serto comausncia de poder pblico, pressupondo como dado a priori uma certa concepo deEstado de quem olha o pas com base no contexto dos grandes centros urbanos. Nocompreendiam a existncia de outro tipo de vida social que no fosse aquela nos moldesestabelecidos pela metrpole. Os sanitaristas, tomando o Brasil pelo Rio de Janeiro e oRio de Janeiro pelas cidades europias, apresentavam a medicina como uma forma deinterveno elaborada pelos grupos sociais hegemnicos sobre a sade dos cidados e asalubridade das cidades . (Telarolli Jnior: 1996, p. 18)

    De fato, o ambiente de abandono e doena dos sertes do Paranapanema, marcadopelo conflito de terras e o predomnio da vida rural distante dos grandes centros urbanos,foi propcio para assegurar a reproduo do coronelismo como estrutura de poder local. Ottulo de coronel era fruto do patrimnio pessoal e capacidade de transformar o podereconmico em voto de cabresto (Leal: 1976). Sustentadas pela ordem patrimonial, asrelaes polticas permeadas pelo coronelismo eram de tolerncia. Era o coronel quepermitia, consentia, proibia, recusava, aceitava, reprimia, admitia (Faoro: 1993). Nosdizeres de Melo:a utopia do cidado pleno era continuamente postergada em funo da segurana dosistema de apropriao da terra e do trabalho mais nos moldes senhoriais do que nomercado. Da a permanncia da grilagem de terras e do voto de cabresto [...] A sociedadecivil ficava merc da tolerncia do coronel. Cidado era o coronel, no seuscomandados. Estes adquirem cidadania no chefe. Ele concentra em si a cidadania,negando-a. No a reconhece na acepo liberal de cidado, mas requer para si o acessoao mercado, lugar da cidadania. Eis a contradio inerente ao coronelismo. A sociedadecivil fica circunscrita tolerncia do coronel. nesses limites que as pessoas transitam .(Melo: 1995, p.43).Qual foi a poltica de sade consentida pelo coronel na boca do serto do oeste paulista? o que pretendo responder analisando a relao da poltica de sade com a memriaurbana de Presidente Prudente.Poltica de sade e coronelismoCom o sucesso obtido pela Sade Pblica no controle das principais epidemias em So

    Paulo at a primeira dcada do sculo XX, houve progressivo declnio do modelo deorganizao dos servios enquanto poder de polcia, que se esvaziava de sentido. Ocampo da sade pblica vivia um perodo de redefinio de rumos e de inverses deprioridades expressas segundo a agenda definida pelo movimento sanitarista, comnfase na educao sanitria e no combate s endemias rurais, de acordo comGonalves (1994). As reformas do Servio Sanitrio de 1917 foram um marco inicialdessas mudanas.

    A inovao mais importante da nova legislao foi a definio de um Cdigo SanitrioRural (Ribeiro: 1993). At ento, as propriedades rurais no se constituam terras sujeitasao controle sanitrio. A polcia sanitria s podeia entrar nas fazendas mediante aautorizao de seus proprietrios. Agora, pela primeira vez no Brasil, o delegado desade passaria a exercer amplos poderes de fiscalizao sob qualquer estabelecimento

  • 8/11/2019 Geografia Poltica, Sade Publica e as Lideranas Locais

    7/19

    Raul Borges Guimares

    Hygeia, 1(1):18-36, dez 2005 Pgina 24

    suspeito, podendo verificar as condies higinicas e a sade de seus habitantes, aindaque essas aes estivessem acima do direito de propriedade.

    A primeira tarefa dos inspetores sanitrios nos sertes do Paranapanema foi fiscalizaras fazendas. Desconsiderou-se, inicialmente, a existncia do espao urbano, onde jhavia alguma riqueza econmica acumulada e crescente nmero de habitantes, quegerava problemas de sade pblica, como sfilis, difteria, mal de Chagas, hansenase,tracoma e parasitoses diversas (Librio: 1997).Foram os coronis que atraram para as cidades da regio os primeiros mdicos,mediando com o governo do estado, quando era o caso, o encaminhamento de doentesmais graves para atendimento ambulatorial ou hospitalar em algum servio da capital oulocalidade mais prxima. Isso quando no era ele mesmo que dispunha de recursosprprios para a compra de remdios ou custeio de tratamento de pessoas da sua baseeleitoral, o que contribua para a manuteno dos mecanismos de barganha poltica emsua rea de influncia.

    A partir de 1925, a poltica de sade adquiriu definitivamente a sua nova concepo,centrada na educao sanitria dos indivduos, segundo Ribeiro (1993). A recm-criadaInspetoria de Higiene dos Municpios substitua a extinta Inspetoria do Servio deProfilaxia Geral, recebendo a incumbncia do saneamento do interior. Para tal finalidade,foram instalados postos de higiene em todos os municpios do Estado, o que representouum incremento de 67% no oramento da sade pblica.Como decorrncia desse novo modelo de organizao dos servios, segundo Ribeiro(1993), surgiram mais tarde os centros de sade, que passaram a ser o eixo organizadorda reforma implementada pelo Dr. Geraldo Horcio de Paula Souza. Os Centrosrealizavam palestras educativas, elaboravam cartazes e folhetos explicativos eorganizavam exposies com projees de slides e filmes. Dessa forma, difundiam a

    educao com o objetivo de criar uma conscincia sanitria, introduzindo novapersonagem no servio pblico de sade: a educadora sanitria. Priorizavam-se oscuidados com as doenas sexualmente transmissveis, a lepra e a tuberculose.Presidente Prudente surgiu nesse processo de mudanas nas polticas de sade pblicade So Paulo. O ncleo urbano no era dotado de qualquer infra-estrutura enormatizao do uso do solo e o poder pblico municipal mostrava-se ausente nasquestes fundamentais da sade pblica da poca, como educao sanitria e controlede focos de doenas infecto-contagiosas. A sade da populao no passava de maisum instrumento de afirmao do compromisso entre o poder pblico e o poder privado dogrande proprietrio de terras.Mas isso no quer dizer ausncia de poltica de sade, como bem entendiam os

    sanitaristas da poca. Se o desenvolvimento dos servios sanitrios em nvel localsignificou fortalecimento do espao pblico, o que era incompatvel com o tipo decidadania mediada pela pessoa do coronel, o avano da sade pblica em PresidentePrudente deve ser associado ao processo de acomodao poltica que ocorreu aps acrise gerada pela ruptura da hegemonia oligrquica paulista e mineira no comando dapoltica nacional com a chamada Revoluo de 1930.

    A rea da higiene pblica foi, de imediato, um dos setores mais visados por GetlioVargas, sobretudo em So Paulo, onde a reforma sanitria conferira autonomia sregionais de sade. Uma srie de medidas centralizadoras dos revolucionrios atingiramo Servio Sanitrio entre os anos de 1930 e 1931: reduziram-se as atividades dos Centrosde Sade, que se transformaram em dispensrios subordinados Inspetoria de Higiene e

    Assistncia Infncia, anulando-se as aes preventivas em favor da medicina curativa.

  • 8/11/2019 Geografia Poltica, Sade Publica e as Lideranas Locais

    8/19

    Raul Borges Guimares

    Hygeia, 1(1):18-36, dez 2005 Pgina 25

    As mudanas impostas pela chegada de Getlio Vargas ao poder coincidiram com o incioda institucionalizao da assistncia mdica individual previdenciria, que foi seconstituindo gradativamente no eixo principal das prticas de sade, de acordo comGonalves (1994). A partir da, a Sade Pblica perdeu cada vez mais importncia tantodo ponto de vista da dotao oramentria quanto no que diz respeito s representaessociais.Como o desenvolvimento urbano de Presidente Prudente ocorreu em especial depois de1930, talvez por isso a sade pblica nunca tenha ocupado muito espao no imaginriosocial da cidade. Pelo contrrio, os servios de assistncia mdica sempre foram maisvalorizados, conforme irei analisar a seguir.

    As minhas incurses pelo tema tiveram como referncia as pesquisas que esto sendorealizadas pelo Grupo Acadmico Produo do Espao e suas Redefinies Regionais GASPERR, do Departamento de Geografia da Faculdade de Cincias e Tecnologia daUNESP, principalmente as produzidas por Melo (1995 e 1996) tomando-se por base

    dados coletados no jornal prudentino A Voz do Povo. Na perspectiva terica de Melo,A Voz do Povo considerada uma fonte privilegiada de anlise, pois enquanto portadorde ideologia e, por conseguinte, de discurso contraditrio no seio de elites dirigentes [...]esclarece parte da histria do poder local no municpio (Melo: 1996, p.141).O acervo iconogrfico e documental existente na Fundao Museu e Arquivo HistricoMunicipal de Presidente Prudente foi uma fonte complementar da pesquisa. Superando-se os riscos da descontextualizao da informao, conforme nos alerta Meneses (1999),revela aspectos que, no plano da vida pblica e privada, vieram reforar a interpretaoadotada a respeito do contedo veiculado pelo jornal A Voz do Povo.Os trabalhos realizados por Dires Santos Abreu (1972 e 1996) tambm so refernciasobrigatrias para qualquer pesquisador que queira estudar o contexto histrico do

    coronelismo na regio da Alta Sorocabana, dado o carter e o grau de abrangncia deseu esforo. Segundo Abreu (1972), Presidente Prudente tornou-se sede da InspetoriaSanitria do 3 Distrito de Sade de Botucatu em 1930, responsabilizando-se pelaeducao sanitria de 22 ncleos urbanos da regio. A Inspetoria passou a fiscalizar ascondies higinicas dos estabelecimentos comerciais e logradouros pblicos, retendoces vadios, exigindo instalaes adequadas para aougues e padarias, intervindo naforma de comercializao do leite e seus derivados e interferindo no destino do lixodomstico. Tambm coube Inspetoria a concesso de habite-se para as construesnovas e a autorizao de reformas de edificaes de acordo com as normas tcnicas doCdigo Sanitrio.O Relatrio apresentado ao Delegado de Sade de Botucatu dos servios efetuados em1931 pela Inspetoria Sanitria de Presidente Prudente e os Editais dos meses defevereiro e maro de 1932, ainda que extensos, so dignos de registro, j que comprovamo alcance do poder do inspetor sanitrio na esfera pblica local:Relatrio apresentado ao Delegado de Sade de Botucatu pelo Dr. Macedo SoaresGuimares dos servios efetuados pela Inspetoria sanitria de Presidente Prudente.

    Assumindo o exerccio nesta Inspetoria, em maio ltimo, orientei imediatamente a minhaatividade no sentido de vacinar a populao escolar e a populao urbana de PresidentePrudente contra a febre tifide, infeco que graa endemicamente em toda a zona e nestacidade com especial freqncia, servio este efetuado sob minha direo pessoal [...] Em1931 foram aplicadas 1740 primeiras doses, 1475 segundas doses e 179 terceiras doces,num total de 3394 injees intramusculares. Assim ficou vacinada contra a febre tifide,pode-se afirmar, toda a populao escolar de Presidente Prudente, com 718 alunos

  • 8/11/2019 Geografia Poltica, Sade Publica e as Lideranas Locais

    9/19

    Raul Borges Guimares

    Hygeia, 1(1):18-36, dez 2005 Pgina 26

    imunizados.Visitas de vigilncia foram feitas 104

    A fim de obter uma estatstica aproximada da incidncia da febre tifide em PresidentePrudente no ano de 1931 procurei cada um dos mdicos desta cidade. Segundoinformaes por eles prestadas, verificaram-se neste ano 60 casos de febre tifide emPresidente Prudente [...]

    Propaganda e Educao Sanitria

    Este captulo da maior importncia para este distrito, pois em nenhuma outra zona hmaior necessidade de propaganda e educao sanitria..No incio da ao desta Inspetoriagrandes eram as dificuldades para se conseguir a realizao de qualquer iniciativa: atenacidade, o critrio e o tempo trouxe-nos, porm, a boa vontade do povo e, hoje, o serviose realiza sem maiores impecilhos. No intuito de prestigiar a ao dos guardas sanitrioscompareci pessoalmente na visita s construes, s casas vagas, fiz em pessoa parte doservio de vacinao, dirigi-me s casas de gnero alimentcios para fichamentos dosempregados, examinei de visu qualquer reclamao e da o nmero de 763 visitas queefetuei na cidade-sede durante 8 meses. Foram distribudas 3537 impressos de propaganda.Tiveram efeito 10925 palestras individuais e prelees [...].

    Expediente e contabilidade

    [...] Foram recebidos 8 requerimentos: 1 de uma parteira diplomada pedindo providnciassobre a prtica ilegal desta profisso por parte de uma curiosa; 1 de um proprietrio deaougue solicitando licena para conservar carne no gelo; e de proprietrios de farmcias

    pedindo a prorrogao do prazo para cumprimento de intimaes sobre a instalao dasmesmas [...]

    Alimentao pblica

    Teve incio o fichamento dos empregados em casas de gneros alimentcios, atingindo a umtotal de 87 fichamentos; dentre estes foram fichados 40 leiteiros, 22 empregados emarmazns, 7 em fbricas de gelo e de bebidas, 10 em padarias, 1 em aougue, 2 emsorveteria, 4 em cafs e botequins e 1 cozinheiro.

    Padarias

    Verifiquei ao primeiro exame que as padarias de Presidente Prudente estavam instaladas demaneira absurda e que exigiam uma remodelao completa e urgente altura do progressodesta cidade. Chamando os proprietrios de padaria a minha presena, aps umacombinao prvia com os mesmos, em 27 de junho foram eles intimados a instalar asmesmas de acordo com o Cdigo Sanitrio dentro de um prazo de 6 meses. No fim do prazoterminado a 27 de dezembro, uma padaria foi instalada, uma estava em construo, e umaterceira se instalaria em um novo prdio cuja construo se iniciava. Aos outros proprietriosdas padarias concedi mais 4 meses de prazo, despachando os requerimentos que, pelosmesmos, me foram dirigidos.

    O leite

    Nesta cidade o leite era vendido em garrafas escuras e imprprias, tampadas com palha demilho. A 1o de outubro dei aos leiteiros um prazo de 30 dias para usarem garrafastransparentes, de boca larga e obturada com disco de papelo, prazo que prorroguei at 31de dezembro. Ainda em outubro foi dado incio a fiscalizao do leite, tendo sido feitos nos 3ltimos meses do ano 699 exames de densidade do leite. Hoje todos os leiteiros usam asgarrafas apropriadas para o acondicionamento do leite [...] Ao Matadouro Municipal dePresidente Prudente fiz vrias visitas [...]Casas vagas

    Grande parte de minha atividade foi gasta na fiscalizao das casas que se vagaram, tendofeito durante o ano 233 visitas s mesmas. Esta cidade construiu-se em uma rapidez

  • 8/11/2019 Geografia Poltica, Sade Publica e as Lideranas Locais

    10/19

    Raul Borges Guimares

    Hygeia, 1(1):18-36, dez 2005 Pgina 27

    espantosa com grande desvantagem para a qualidade das construes. No incio de suavida as iniciativas neste municpio, como era natural, no obedeciam a um critrio prprio sexigncias do progresso tendo sido construdo um grande nmero de casas de madeira,

    empregando-se material de ltima qualidade nas casas de tijolos. No havendo fiscalizaonem legislao municipais a esse respeito , plantas absurdas foram executadas com todasorte de falta de senso No dispondo Presidente Prudente de abastecimento de gua e redede esgotos, deveria ter sido aqui limitada a rea mnima necessria a uma determinadaconstruo, para no se verificar o que atualmente em muitas vezes acontece: no haverespao no terreno para se abrir um novo poo ou uma nova fossa; inmeros terrenos de 10metros por 22 metros tem construes que os ocupam por inteiro.No intuito de estudar de perto e detidamente este assunto nesta cidade chamei a mim afiscalizao das casas que se vagaram [...] Das casas que se vagaram 11 foram interditadasdefinitivamente e 3 o foram provisoriamente afim de se submeterem a reformas completas,depois do que tiveram o habite-se.

    Construes

    Verifiquei, assim que assumi a direo da Inspetoria, que este assunto necessitava de umaateno especial porquanto no havia nesta cidade fiscalizao da construo dehabitaes. Afim de fazer pblica a fiscalizao que seria iniciada, divulguei pelos jornaislocais, em 13 de setembro um edital enumerando as condies do Cdigo Sanitrioconcernentes s construes, que deveriam ser adotadas nesta cidade e cuja execuoseria fiscalizada pela Inspetoria. Este servio, aps as dificuldades que se apresentaramnos primeiros dias, est hoje regularizado.Foram feitas 221 visitas a construes. Foramaprovadas 27 plantas [...] Antes de haver a fiscalizao desta Inspetoria relativa sconstrues empregava-se argamassa de barro, construam-se as paredes externas com tijolo, sem planta aprovada de acordo com o Cdigo Sanitrio. Hoje, todas as construestem plantas previamente por mim aprovadas, s se usando argamassa de cal e areia,

    paredes externas construdas com 1 tijolo, colocao de assoalho precedida deimpermeabilizao do solo, venezianas nas janelas de dormitrios, paredes

    impermeabilizadas a leo nas cozinhas, etc.Focos de mosquitos e moscas

    Durante o ano foram encontrados e destrudos 134 focos de mosquitos [...] e 311 focos demoscas. Esta cidade no sendo dotada de gua canalizada e rede de esgotos que sosubstitudos pelo poo e pela fossa absorvente, tem focos permanentes de mosquitos e demoscas [...] Felizmente no esta zona assolada pelo impaludismo a no ser nas

    povoaes vizinhas do Rio Paran. No intuito de diminuir o nmero desses focos estaInspetoria tem fiscalizado de perto as fossas e poos, tendo sido aterradas 34 fossas,melhoradas 37, construdas 57 e melhorados muitos poos.

    Servios feitos principalmente pelos guardas

    Casas cadastradas , 1290; visitas domiciliares, 11432; visitas a terrenos e quintais, 15074;visitas a aougues e congneres, 270; visitas a armazns e depsitos, 990; visitas a

    padarias e confeitarias, 316; visitas a estbulos e cocheiras, 353 [...]. Relatrio publicadoem partes no jornal A Voz do Povo, nos dias 04, 11 e 18 de fevereiro de 1932. (grifos meus)

    Fao pblico que: a) os proprietrios dos terrenos que foremencontrados com mato e focos de moscas e mosquitos ficam sujeitos auma multa de cem mil ris, de acordo com o Cdigo Sanitrio em vigor; b)a observao desta lei ser rigorosamente aplicada a partir de primeirode maro prximo, afim de ter esta cidade uma diminuio no avultadonmero de moscas e mosquitos, transmissores de tantas enfermidadesgraves. O Inspetor Sanitrio, Dr. Macedo Soares Guimares. PresidentePrudente, Jornal A Voz do Povo, 18/02/1932. (grifo meu)Fao pblico que: de acordo com as disposies do Cdigo Sanitrio do

  • 8/11/2019 Geografia Poltica, Sade Publica e as Lideranas Locais

    11/19

    Raul Borges Guimares

    Hygeia, 1(1):18-36, dez 2005 Pgina 28

    Estado de So Paulo, em vigor, esto interditados os prdios sito s ruasJoaquim Tvora, nmero 36 e 64, Nilo Peanha, nmeros 57 e 66, RuyBarbosa, nmeros 1 e 74, Siqueira Campos, nmero 76, Rio Branco,

    nmero 21 e Avenida Antnio Prado, nmero 68, nesta cidade, no podendo mais serem habitados. Os proprietrios sero responsabilizados,sujeitando-se aos rigores da lei, por qualquer infrao a estas interdies.O Inspetor Sanitrio, Dr. Macedo Soares Guimares. PresidentePrudente, Jornal A Voz do Povo, 18/02/1932 (grifo meu).Fao pblico que, a bem da sade do povo, os bovinos e sunos a seremabatidos no Matadouro Municipal desta cidade devem ser nesse localrecolhidos de vspera, evitando-se assim serem abatidos visivelmentecansados e os inconvenientes oriundos desse fato. O Inspetor Sanitrio,Dr. Macedo Soares Guimares. Presidente Prudente, Jornal A Voz doPovo, 24 de maro de 1932. (grifo meu)

    Note-se que o relato do Inspetor Sanitrio um raro testemunho das condies de vida e

    situao social de Presidente Prudente do incio da dcada de 1930. A chegada doInspetor de Sade na cidade significou uma mudana muito significativa quanto apresena e agilidade da autoridade pblica. A partir da ocorreram inmeras melhoriasurbanas. O inspetor fazia-se presente nos estabelecimentos comerciais, nos logradourospblicos e propriedades particulares, fiscalizando de perto, interditando, negociandoprazos e intimando a adequao s normas, no em nome de qualquer compromisso como poder privado dos proprietrios rurais e urbanos, mas exaltando o poder pblico e oprprio Estado.Mas isso no quer dizer que a poltica de sade implantada em Presidente Prudente notenha provocado conflitos e resistncias por parte das lideranas locais. O relatrio escritopelo Dr. Macedo Soares Guimares discreto quanto a esta questo, fazendo vagasreferncias s dificuldades para se conseguir realizar as atividades.

    A utilizao de A Voz do Povo como parmetro de anlise de quais seriam essasdificuldades demonstrou-se frtil. Esse jornal teve sua primeira edio em 1926.Pretende-se autnomo e independente da poltica dos coronis, na condio de tribunado Partido Democrtico, que se dizia oposio ao Partido Republicano Paulista PRP, opartido da oligarquia cafeeira. No perodo de circulao do jornal analisado (de 1926 a1940) inmeros so os episdios relacionados com a Inspetoria de Higiene que tiveramapoio e foram amplamente veiculados pelo "A Voz do Povo. Entusiasta que era dospropsitos revolucionrios de Vargas, o jornal abria o seu espao, sempre que possvel,para a manifestao do Inspetor Sanitrio, espcie de interventor estadual em assuntospertinentes sade pblica. claro que a presena da Inspetoria Sanitria no municpio, rgo estadual com amplos

    poderes de polcia, gerou conflitos. O episdio a respeito do controle da comercializaodo leite bastante esclarecedor quanto a este aspecto. Por ordem da Inspetoria deHigiene os leiteiros deveriam adequar-se s normas tcnicas definidas no CdigoSanitrio quanto forma de acondicionamento das mercadorias e ao tipo de veculo detransporte. A Voz do Povo relata a revolta de um leiteiro diante das determinaesimpostas, nos seguintes termos:

    Esse destemido leiteiro, pela sua bravura ou valentia, falou isso em tomalto para outro leiteiro que mandou fazer um carrinho, de acordo com aordem da Inspetoria de Higiene desta cidade. O destemido leiteiro falou

    para o dono do carro: Voc obrou mal fazer carro, voc muitocovarde. Ns temos que entrar na cidade com leite em lombo de animalnem que seja a muque . A Voz do Povo, 24/12/1933.

  • 8/11/2019 Geografia Poltica, Sade Publica e as Lideranas Locais

    12/19

    Raul Borges Guimares

    Hygeia, 1(1):18-36, dez 2005 Pgina 29

    Diante dos fatos, o jornal coloca-se como guardio da lei e da coisa pblica, conclamandoa Delegacia de Polcia e a Prefeitura Municipal a apoiarem incondicionalmente asmedidas tomadas em nome da sade pblica:

    Isso no tem cabimento numa cidade dotada de alguns melhoramentos, principalmente, executados na gesto do atual prefeito. Perguntamos:Por que a Inspetoria de Higiene tambm no pode sustentar o seu pontode vista, de acordo com a lei ou de conformidade com suas atribuies?Julgamos ns que essa lei da Inspetoria no pode sofrer restries,sendo pois, uma medida de carter e de incontestvel utilidade pblica,no podemos compreender que a ela no deve obedecer todos osleiteiros desta cidade. Entretanto, o Exmo Sr. Dr. Inspetor Sanitrio tendoexigido uma coisa legal dever ter para a garantia de seu ato no s adelegacia de polcia, como tambm a Prefeitura Municipal, pois esses

    poderes pblicos devem colaborar para a sade pblica. Jornal A Vozdo Povo, 24/12/1933. (grifos meus)

    Ainda que procurando manter-se cuidadoso nas crticas autoridade local, que no casose tratava de Felcio Tarabay, de origem perrepista e pouco alinhado linha ideolgica do jornal, A Voz do Povo cobra o apoio do prefeito s medidas tomadas pela Inspetoria. Acredito que tal posicionamento possa ser interpretado como um indicador da ausnciade colaborao do poder pblico local para o pleno andamento das aes sanitriasempreendidas pelo rgo estadual.Um cidado que interdita definitivamente o uso de imveis, que ordena a limpeza deterrenos e desautoriza o andamento de construes irregulares no deve ter sido bemquisto nos crculos sociais de uma cidade acostumada poltica de troca de favores e deum tipo de poder definido pelo tamanho das posses dos cidados. O levantamentoefetuado no acervo de A Voz do Povo tambm foi bastante rico para elucidar essaquesto.Inicialmente, no levantamento de dados no acervo do jornal, causou-me estranheza aausncia do inspetor sanitrio nos eventos sociais mais importantes ocorridos emPresidente Prudente daquela poca, tais como bailes, inauguraes de obras pblicas efestas cvicas. Como explicar tamanho isolamento imposto ao mdico da Inspetoriasanitria? Passei a associar este fato existncia de uma certa hostilidade s suas aes,tidas como afronta aos mandatrios locais. Alm disso, as atividades desenvolvidas peloinspetor sanitrio detinham menor prestgio social do que aquelas empreendidas pelosmdicos da cidade. Pelo menos, o que posso julgar pela importncia dada s notciasveiculadas pelo A Voz do Povo s constantes conquistas de Presidente Prudente nocampo da assistncia mdica, o que nos indica um claro vis ideolgico do significado domoderno e do progresso nas prticas em sade.

    Assim, pode-se acompanhar atravs das pginas de A Voz do Povo o crescimento domovimento mdico-hospitalar de Presidente Prudente. Nos primeiros nmeros do jornal, odestaque fica para as realizaes do Dr. Romeu Leo. A matria de 04 de julho de 1926vem parabeniz-lo pela defesa de doutorado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

    Ainda no mesmo ms, no dia 25, o jornal parabeniza-o pela instalao de um completolaboratrio de anlises em Presidente Prudente. O assunto referente s obras deconstruo de sua casa de sade, o sanatrio So Paulo, ganhou espao de setembro adezembro do mesmo ano.O Sanatrio So Paulo foi inaugurado em fevereiro de 1927. Depois de 1 ano defuncionamento, A Voz do Povo dedica um artigo a respeito do funcionamento do mesmo.So elogiosas as menes do jornal ao nmero de internaes realizadas na instituio

  • 8/11/2019 Geografia Poltica, Sade Publica e as Lideranas Locais

    13/19

    Raul Borges Guimares

    Hygeia, 1(1):18-36, dez 2005 Pgina 30

    durante aquele perodo (total de 196), com destaque para as cirurgias de maiorcomplexidade. O caso de uma apendicite supurada e com incio de gangrena, porexemplo, foi motivo de um artigo especial, rico em detalhes pitorescos, quase uma crnicacotidiana, no jornal do dia 23 de maro de 1928.Um outro assunto que foi motivo de ateno do jornal diz respeito instalao doaparelho de Raio X no consultrio mdico do Doutor Augusto Pena, em 05 de maio de1929. A matria faz meno ao grande auxlio que o aparelho vinha proporcionando comunidade, assinalando a importncia da chegada de tal equipamento como um forteindicador do progresso da cidade. Na seqncia de realizaes do Dr. Augusto Pena, AVoz do Povo fez cobertura da inaugurao de seu Sanatrio So Bento, em 14 dedezembro de 1930. Segundo o jornal, a inaugurao do sanatrio era um atestado dogrande sucesso alcanado na Alta Sorocabana:

    O Sanatrio So Bento, edificado inteligentemente, tem uma distribuiode dependncias para o fim a que se destina: sala de espera, instalao

    de Raio X, sala de curativos, sala de operaes com projetor especialpara as que se fizerem noite, quarto para internao de doentes, comcampainha eltrica cabeceira de cada cama, cozinha e sala derefeies. A Voz do Povo, 14/12/30.

    Nenhuma outra realizao no campo da sade teve maior destaque no jornal do que oprocesso para angariar fundos, construir e inaugurar a Santa Casa de Misericrdia dePresidente Prudente. So 57 artigos referentes a esse empreendimento entre 03 de maiode 1926 e 07 de janeiro de 1940.Dentre os artigos dedicados Santa Casa, ocuparam o maior nmero de pginas asatividades das quermesses, chs danantes e bailes organizados para angariar fundospara a construo do hospital. Representavam grandes eventos sociais que mobilizavamcomisses de senhoras da nossa melhor sociedade dos segmentos do Comrcio, daLavoura (entenda-se, latifundirios) e da Indstria.O relato de Joo Pires de Campos, que se encontra no acervo do Museu Municipal desdeas comemoraes do cinqentenrio da fundao do hospital, refora o fato de A Voz doPovo ter dedicado tanto espao a este tipo de evento:

    Para angariar dinheiro para o trmino dos primeiros pavilhes foramfeitas muitas festas, inclusive bailes carnavalescos. A mais importante,que mais rendeu, foram as quermesses do Navio* e dos Corsrios. A

    primeira, com todos os elementos do comrcio e o professorado dapoca. A barraca dos Corsrios com a elite: mdicos e alta sociedade.Havia rivalidade entre as duas barracas, mas a unio das diretoriassuperava tudo pois a finalidade era a mesma. As barracas funcionavamoficialmente 3 vezes por semana; mas, na realidade, todas as noites nosreunamos, moos e moas e at famlias para l no Naviocomemorarmos aniversrios e batermos papo. No havia em Prudenteum ponto de encontro para os jovens e tudo era pretexto para nos 3meses de festejos todos l no Navio se encontrassem. poca feliz.Primeiro os ensaios, onde todos nos reunamos em casa de Jos Seppa,depois nos sales do ex-hospital do Dr. Romeu Leo. Pires fez a letra dohino dos piratas e o Seppa e Dr. Pires fizeram a msica. Na inaugurao,como de praxe, os padrinhos Dr. Romeu e Dona Lurdes Leo foramquem quebraram a champanhe e aps os discursos, navio lanado aomar, estava a festa comeada. Todas as noites que funcionava aquermesse as famlias faziam pratos especiais, fora os salgadinhos edoces. De bebidas somente refrigerantes e cerveja com pouco lcool,todos se animavam e se danava at as 4 da manh. Tudo se vendia,

  • 8/11/2019 Geografia Poltica, Sade Publica e as Lideranas Locais

    14/19

    Raul Borges Guimares

    Hygeia, 1(1):18-36, dez 2005 Pgina 31

    correio elegante, flores que vinham de So Paulo... Tudo era difcil deconseguir e para ns se tornava fcil. Festejamos o dia do viajante econcentramos toda a classe sorocabana para uma grande festa no navio.

    Fizemos baile da passagem do Equador baile de gala, prestigiados portodas as cidades vizinhas e at alta Mogiana, Barretos e Ribeiro Preto. Aqui chegavam atrados pela festa famlias, moas, rapazes das grandescidades, como Bauru, Botocucatu e Araraquara. Aps 3 mesesacabavam-se as festas. Do Navio partiram os pares para o casamento.Os jovens daquela poca somos os velhos de hoje e muitos j se foramdesta vida. Depoimento prestado Fundao Museu e Arquivo HistricoMunicipal, por Joo Pires Campos, na ocasio da comemorao doscinqenta anos da Santa Casa, 16 de agosto de 1980.

    Tudo que se referia Santa Casa era objeto de interesse de divulgao pelo jornal.Balancetes anuais das diretorias executivas, visitas de pessoas ilustres, montante dosdonativos. Comparando as notcias de jornal com o relato acima, concluo que aconstruo da Santa Casa foi motivo de orgulho para a cidade, mobilizando todos ossegmentos da elite local 1. Segundo o jornal,

    esta cidade que tem fros de civilizada, centro populoso e rico, paraonde convergem todas as economias de reas de imensa extenso, tematrado mdicos de proficincia, indiscutveis advogados, engenheiros,artistas, industriais, comerciantes, sem mencionar muitos outroselementos de progressos inestimveis. Entretanto, seja nos permitidodizer, falta at hoje o verdadeiro cunho de civilizao, que s possuirquando puder ostentar o quadro incomparavelmente encantados dacincia de mos dadas com a f, militando sob a mesma cpula da SantaCasa. O edifcio da Santa Casa, dotado dos necessrios aparelhoscientficos, confortar-nos-h com a confiana que inspira a todos nssuscetveis das prolongadas enfermidades. A voz do Povo, 19/11/1933.

    (grifos meus)A construo da Santa Casa de Misericrdia representou um dosacontecimentos mais arrojados de Presidente Prudente e, alis, da AltaSorocabana .... A Voz do Povo deixa aqui consignado o seu apelo asvrias classes sociais de Presidente Prudente, no sentido deconcorrerem aos festivais de beneficncia em favor da instituiobenemrita. A voz do Povo, 26/07/1937. (grifo meu)A nossa Santa Casa est, como as mais modernas casas congneres,aparelhada para desempenhar a sua finalidade. Alm de suas vastashygienizadas enfermarias e quartos para pensionistas, dispe de um

    pavilho que serve de maternidade, de magnfica sala de operaes,farmcia, etc. A Voz do Povo, 26/01/1939. (grifos meus)

    Aos poucos, no imaginrio social, a Santa Casa foi se transformando em sinnimo desade, de poltica de sade. O exame dos elementos determinantes desse processocontribuiu para o entendimento da natureza poltica da sade pblica em terras sob poderdos coronis. Nesse sentido, a compreenso da dialtica interna do signo2 foi defundamental importncia para a anlise do contedo geogrfico contido nesse imaginrio

    1 A pesquisa de iniciao cientfica desenvolvida por Silva (1999) apresenta esta questo como objeto deateno especial.2 Para Bakhtin, o signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes. Aquilo mesmo que torna osigno ideolgico vivo e dinmico faz dele um instrumento de refrao e de deformao do ser. A classedominante tende a conferir ao signo ideolgico um carter intangvel e acima das diferenas de classe, a fimde abafar ou de ocultar a luta dos ndices sociais de valor que a se trava, a fim de tornar o signomonovalente Bakhtin: 1995, p.47).

  • 8/11/2019 Geografia Poltica, Sade Publica e as Lideranas Locais

    15/19

    Raul Borges Guimares

    Hygeia, 1(1):18-36, dez 2005 Pgina 32

    social, o que ampliou em muito os horizontes de leitura dos padres espaciais dosservios de sade forjados no discurso e nas prticas em sade pblica.Dentre os atores sociais que participaram desse jogo poltico destaco os mdicos, umavez que foram suficientemente providos de um dos diferentes tipos de capital simblico(cultural ou econmico) para manter ou disputar posio na estrutura de poder,contribuindo assim para a conservao ou a transformao da estrutura social. E isso noseria possvel se o campo da sade no fosse uma instituio de memria que reorganizasimbolicamente o universo das pessoas e das coisas pela legitimao que produz, emsuas diversas dimenses.Como j analisei nos captulos 1 e 2, o conceito histrico de sade um capital simblicoacumulado nos lugares, representando mediaes passveis de informar certas relaesentre sociedade e sade, orientando polticas pblicas e fundando sentidos profundos daprpria vida urbana. a sade assumindo a forma especfica de comunicao entre parese o outro, em relaes intersubjetivas. Ou seja, a vida social como expresso de

    interaes e significados. A cultura inscrita no espao pblico. O uso de metforas representou, ento, uma estratgia de convivncia discursivadesenvolvida pelos atores sociais, a fim de construir a compreenso das mudanas e deseu lugar no mundo tambm em mudana (Kearns, 1997). Como nenhum indivduorealiza essa tarefa sozinho, mas em sua interao como sujeito com os outros, esseconjunto de idias-fora comps-se no arcabouo do imaginrio social que marcou o lugare a poca.O acervo iconogrfico da Fundao Museu e Arquivo Histrico Municipal de PresidentePrudente demonstrou-se uma fonte significativa para a anlise do capital simblicoacumulado pelos mdicos de Presidente Prudente na dcada de 1930. As fotografiasantigas tm sido utilizadas nos estudos do imaginrio social. Elas no apenas retratam

    uma poca, mas denunciam a compreenso daquele real por parte de quem as produz, oque tem sido considerado um rico auxiliar na aproximao da esfera das mentalidades eda memria coletiva (Kossoy: 1999).Intencionalmente, escolhi 3 fotografias que considero uma documentao visualrepresentativa do imaginrio social da poca. A primeira delas, registra a cena deinaugurao do equipamento de Raio X dos Doutores Domingos Leonardo Cervoloe Gabriel Costa, em 30 de janeiro de 1936, no Sanatrio So Paulo. Sentados daesquerda para direita esto o Dr. Domingos Leonardo Cervolo; Dr. Gabriel Costa,sua filha Leila Costa e esposa, Maria C. Costa; F. Mota; e o casal Hayde e AldericoGoulart. No segundo plano, em p, da direita para esquerda, um conjunto demdicos (Dr. Luiz Leite, Dr. Antnio Corra, Dr. Queiroz Leite, Dr. Smnio Di Migueli,Dr. Sobrado, Dr. Faria Mota, Dr. Jacinto Ferreira da Silva, Dr. Picarelli),acompanhados por Adalberto Goulart.

    Assim como na inaugurao de outros equipamentos de Raio X divulgados pelo jornal AVoz do Povo, a presena de vrios mdicos da cidade e pessoas de parentesco prximo(esposas e filha) do a medida do prestgio social de tais iniciativas naquela poca. Adisposio das personagens no registro fotogrfico tambm digna de nota. Os mdicos-proprietrios frente, acompanhados de representantes da famlia do coronel Goulart, umdos principais mandatrios da regio.Veja a fotografia seguinte (figura 2). Autoridades, equipe mdica, freiras vicentinas epacientes posam na frente da Santa Casa de Misericrdia, recm inaugurada, em 12 de

    julho de 1935.

  • 8/11/2019 Geografia Poltica, Sade Publica e as Lideranas Locais

    16/19

    Raul Borges Guimares

    Hygeia, 1(1):18-36, dez 2005 Pgina 33

    Observe-se a disposio hierrquica das personagens dispostas ao longo da escadaria.No topo e de p, encontram-se os mdicos do corpo clnico do hospital (Dr. DomingosCervolo, Dr. Gabriel Costa e Dr. Olympio Ribeiro da Luz). De modo mais discreto, nocanto inferior direito, duas irms vicentinas. Por fim, todos os doentes sentados,apresentando vestes mais rsticas e semblantes fechados.Por fim, a terceira fotografia escolhida por mim desfecha o quadro social que a fotografiaanterior representa. Trata-se do registro da primeira paciente do hospital, foto datada de11 de julho de 1935.

    Assim como na foto anterior, mantm-se a ordem hierrquica entre os mdicos do corpoclnico do hospital, as irms vicentinas e a paciente. Os mdicos olham para o infinito,com posio altiva e predestinada. A primeira paciente a nica sentada, tristonha edoente. Finalmente as freiras, sempre discretas, cumprindo o papel resignado de ajudaaos pobres.

    Esse arranjo dissimulado da fotografia chamou-me para seus possveis contedoslatentes, metafricos. No estaramos diante do prprio Jeca Tatu assistido pelos mdicos,conforme evocava o Movimento Sanitarista Brasileiro? Sim e no.O profissional vestido de branco, dotado dos necessrios aparelhos cientficos, refora opoder da tecnologia mdica e de um trabalho altamente complexo, prestigiado e de umcerto nvel de infalibilidade. Em oposio, a senhora de negro, desanimada e triste, comotantos Jecas do famigerado serto paulista, finalmente assistida. Presidente Prudente esua regio no poderiam mais ser consideradas abandonadas prpria sorte, possuamum moderno e equipado hospital.

    Figura 1 - A inaugurao do Raio XFonte: Acervo da Fundao Museu e Arquivo Histrico Municipal de Presidente Prudente

  • 8/11/2019 Geografia Poltica, Sade Publica e as Lideranas Locais

    17/19

    Raul Borges Guimares

    Hygeia, 1(1):18-36, dez 2005 Pgina 34

    Figura 2 - O dia da inaugurao da Santa Casa de Presidente PrudenteFonte: Acervo da Fundao Museu e Arquivo Histrico Municipal de Presidente Prudente

    Figura 3 - A primeira paciente da Santa CasaFonte: Acervo da Fundao Museu e Arquivo Histrico Municipal de Presidente Prudente

  • 8/11/2019 Geografia Poltica, Sade Publica e as Lideranas Locais

    18/19

    Raul Borges Guimares

    Hygeia, 1(1):18-36, dez 2005 Pgina 35

    Por outro lado, preciso considerar que, na agenda poltica dos sanitaristas, sade erasinnimo de fortalecimento do espao pblico e expanso da vigilncia sanitria eepidemiolgica. Nos limites do poder local, essa relao foi codificada em termos defortalecimento da assistncia mdica e expanso da beneficncia. A assistncia mdica,numa cadeia de relaes sinonmicas cada vez maior com o direito sade, resultou deum culto coisa, ao saber fazer, tcnica. A expanso da beneficncia, por sua vez,pode ser entendida como a transfigurao do espao pblico em circuito de filantropia, oque reforou mecanismos de controle social dos mdicos preservando, ao mesmo tempo,relaes de subalternidade e troca de favores originados na poca do coronelismo.No por acaso a principal liderana do Movimento Pr-Santa Casa de PresidentePrudente, Dr. Domingos Leonardo Cervolo, transformou-se no herdeiro poltico doscoronis, personificando na figura do mdico a imagem do poltico realizador.CONSIDERAES FINAIS

    A sade pblica brasileira tem dado visibilidade dificuldade de articulao entre asdiferentes esferas de poder - municipal, estadual e federal, fruto da ausncia de um pactofederativo efetivo na repblica brasileira desde a sua gnese. Em determinados perodosda histria da sade pblica no pas, observa-se um processo de concentrao na esferacentral e a presena e controle das instituies estatais sobre o territrio a partir do centro.Em outros momentos, observa-se com maior clareza a autoridade do governo estadual ede iniciativas no nvel local para atender as necessidades de sade da populao. Tantonuma situao como na outra, o estudo da sade pblica d visibilidade s relaessociais de competio e cooperao, delimitando-se as escalas geogrficas em torno dasquais o poder exercido e contestado.REFERNCIAS

    ABREU, Dires Santos. Formao histrica de uma cidade pioneira paulista .Presidente Prudente, FFCL, 1972.

    ABREU, Dires Santos. Poder poltico local no populismo: Presidente Prudente (SP) 1928 a 1959. Presidente Prudente, Impress, 1996.BAKHTIN, M.Marxismo e filosofia da linguagem . So Paulo: Hucitec, 1995.CNDIDO, Antnio.Os parceiros do rio Bonito . So Paulo: Livraria Duas Cidades,1987.CASTRO SANTOS, L. A de. Estado e sade no Brasil, (1889-1930).Dados Revistade Cincias Sociais , Rio de Janeiro, vol.28, n.2, p.237-50.CZERESNIA, D. e RIBEIRO, A. M. O conceito de espao em epidemiologia: umainterpretao histrica e epistemolgica. Cadernos de sade pblica Rio de Janeiro,Escola Nacional de Sade Pblica, v.16, n.3, 2000. pp. 595-617.FAORO, Raymundo. A aventura patrimonial numa ordem patrimonialista.Revista USP .So Paulo, Universidade de So Paulo, n.17, mar./mai. 1993.FERNANDES, B.M. Movimento social como categoria geogrfica.Terra livre . So Paulo,

    AGB, n.15, 2000. pp.59-85.GONALVES, Ricardo Bruno Mendes.Tecnologia e organizao social das prticasde sade . So Paulo: Hucitec, 1994.HOCHMANN, G.A Era do Saneamento . So Paulo: Hucitec, 1998.HOLANDA, Srgio Buarque. Caminhos e fronteiras . So Paulo: Companhia das Letras,

  • 8/11/2019 Geografia Poltica, Sade Publica e as Lideranas Locais

    19/19

    Raul Borges Guimares

    Hygeia, 1(1):18-36, dez 2005 Pgina 36

    1994.IYDA, Massako. Cem anos de sade pblica . A cidadania negada. So Paulo: Editorada Unesp, 1994.KEARNS, Robin A. Narrative and metaphor in health geographies.Progress in HumanGeography, London, Edward Arnold, v.21, n.2, pp 269-277, 1997.KOSSOY, Boris.Realidades e fices na trama fotogrfica . Cotia (SP): Ateli Editorial,1999.LEAL, Victor Nunes.Coronelismo, enxada e voto . So Paulo: Alfa Omega, 1976.LIBRIO, Marlia (org.).50 anos da Sociedade de Medicina de Presidente Prudente eRegio . Presidente Prudente: Sociedade de Medicina de Presidente Prudente e Regio,1997.LOBATO, Monteiro.Urups . So Paulo: Revista do Brasil, 1918.

    MELO, Jayro Gonalves. Imprensa e coronelismo . Presidente Prudente,UNESP, Ps-graduao em Geografia, 1995. (srie Ideologia e Poder)MELO, Jayro Gonalves. Ideologia e poder. In ________. Regio, cidade e poder .Presidente Prudente, GAsPERR, 1996.RIBEIRO, M. R.Histria sem fim....Inventrio da sade pblica . So Paulo: Editora daUnesp, 1993.SILVA, Valria Cristina Pereira da. Atores polticos e suas representaes sociais: ocaso da Santa Casa de Misericrdia de Presidente Prudente . Presidente Prudente,UNESP, 1999. (relatrio final de Iniciao cientfica)TELAROLLI JNIOR, Rodolpho. Poder e sade . As epidemias e a formao dosservios de sade em So Paulo. So Paulo: Editora da Unesp, 1996.