Geraldine McCaughrean - Peter Pan Escarlate

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“Gosto muito de estar na companhia de Exploradores.”

J. M. Barrie

Geraldine McCaughrean

Capa e ilustrações deDavid Wyatt

Tradução deMaria Luiza Newlands Silveira

Publicado com o apoio do Hospital Infantil de Great Ormond Street. Londres

Título original: Peter Pan in Scarlet O poema de Hilaire Belloc, usado como epígrafe, foi retirado das Poesias completas do autor. Tradução de Maria Luira Newlands Silveira.

Para todos os Exploradores audazes e para o senhor Barrie, é claro.

G.M.

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COMO SURGIU ESTE LIVRO

De início, foi uma peça de teatro. Depois, um livro. Durante os primeiros anos do século 20, a história de Peter Pan foi um sucesso permanente, que transformou James Matthew Barrie em um dos mais bem-sucedidos autores da Grã-Bretanha.

Em 1929, Barrie deu um presente extraordinário para a sua instituição de caridade favorita. Doou todos os direitos autorais de Peter Pan para o Great Ormond Street Hospital, um hospital londrino para crianças. Isso significava que, sempre que alguém encenasse uma produção da peça ou comprasse um exemplar de Peter Pan and Wendy, o hospital ficaria mais rico, em vez de Barrie. Ao longo dos anos, verificou-se que o presente fora mais valioso do que ele jamais poderia imaginar.

Em 2004, o Hospital Infantil de Great Ormond Street decidiu autorizar, pela primeira vez, a criação de uma seqüência para o livro Peter Pan and Wendy. Promoveu-se um concurso para encontrar, entre autores de todo o mun-do, alguém capaz de continuar as aventuras de Peter na Terra do Nunca. Com um resumo do livro e um capítulo de amostra, Geraldine McCaughrean venceu o concurso. Peter Pan escarlate foi o livro que ela escreveu. E, agora, você pode lê-lo.

Do sossego do lar e do dia de começarAté o fim ainda por descobrir,Nada se compara ao prazer de vencerA não ser rir e ter amigos para amar

Hilaire Belloc3

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Capítulo UmSenhores de Respeito

— Não quero ir dormir — disse João, o que surpreendeu sua mulher. As crianças nunca estão com vontade de ir dormir, mas gente grande como João geralmente já sai correndo para seu travesseiro e seu edredom assim que acaba de jantar.

— Não quero ir dormir! — João disse outra vez, e de um jeito tão exaltado que a mulher percebeu que ele estava muito aflito realmente.

— Andou sonhando outra vez, não é? — disse ela, com meiguice na voz. — Coitado, que aborrecimento...

João esfregou os olhos com as mãos fechadas.— Já disse a você, eu não sonho nunca! Que coisa, ninguém

acredita em mim, nem na minha própria casa!A mulher afagou o cabelo lustroso dele e foi arrumar a cama

para a noite. E lá, no lado da cama onde João dormia, havia algo protuberante debaixo da colcha. Não era uma bolsa de água quente nem um urso de pelúcia nem um livro da biblioteca. A senhora João levantou o lençol. Era um sabre de pirata.

Dando um suspiro, pendurou-o no cabide atrás da porta do quarto, junto com a aljava cheia de flechas e o roupão de João. Tanto ela quanto o marido preferiam fingir que nada estava acontecendo (porque é assim que gente grande faz quando está em uma situação difícil), mas secretamente ambos sabiam: João estava sonhando de novo com a Terra do Nunca.

E, depois de cada sonho, alguma coisa sempre ficava para trás em sua cama, na manhã seguinte, como os caroços em um prato depois que se come ameixas. Uma espada aqui, uma vela ali, um arco, um vidro de remédio, uma cartola... Depois da noite em que ele sonhou com sereias, um cheiro de peixe pairou pelas escadas

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durante o dia inteiro. O armário estava entulhado até em cima com os refugos dos sonhos — um despertador, um cocar de índio, um tapa-olho, um chapéu de pirata, de três pontas. (As piores noites eram aquelas em que João sonhava com o Capitão Gancho.) A senhora João afofou os travesseiros com um tapinha enérgico — e um tiro de pistola ecoou pela casa, acordando os vizinhos e apavorando o cachorro. A bala disparou dentro do quarto, derrubou o pé do abajur e espatifou um vaso. Com dois dedos e o maior cuidado, a senhora João puxou a pistola de debaixo do travesseiro e jogou-a dentro da lata de lixo, como se fosse um salmão que não estivesse muito fresco.

— São tão reais! — choramingou o marido, parado à porta. — Esses sonhos desgraçados são tão incrivelmente REAIS!

Em toda a cidade de Londres, até em lugares afastados como Fotheringdene e Grimswater, senhores respeitáveis estavam sonhando o mesmo tipo de sonhos. Não eram meninos pequenos, jovens e bobos, mas meninos que já tinham crescido: senhores bem dispostos, fleumáticos, que trabalhavam em bancos ou dirigiam trens ou cultivavam morangos ou escreviam peças de teatro ou se candidatavam para o Parlamento.

No aconchego de seus lares, rodeados pelas famílias e pelos amigos, sentiam-se confortáveis e seguros... até que os sonhos começaram. Agora, sonhavam todas as noites com a Terra do Nunca e, ao acordar, encontravam sobras em suas camas — adagas, rolos de corda, montes de folhas, um gancho.

E o que eles tinham em comum, todos esses sonhadores? Só uma coisa. Haviam sido um dia Meninos na Terra do Nunca.

— Reuni vocês todos aqui porque algo precisa ser feito! — disse o juiz Piuí, torcendo seus vastos bigodes. — Esse negócio não está nada bom! Isso já foi longe demais! Assim não dá! Chega! Temos de agir!

Estavam tomando uma sopa marrom na biblioteca do Clube dos Cavalheiros, perto de Piccadilly1 — uma sala marrom com retratos marrons de cavalheiros vestindo ternos marrons. A fumaça da lareira pairava no ar parecendo um nevoeiro marrom. Em cima da mesa de jantar, encontravam-se armas variadas, uma sola de sapato, um gorro e dois gigantescos ovos de pássaro.

Sua Excelência Deleve mexeu nos objetos com ar pensativo:— Os despojos da Noite lançados às praias da Manhã! —

murmurou (é que Sua Excelência Deleve, além de tocar clarineta em um clube noturno, tinha uma certa inclinação para escrever poesia).

— Chamem a senhora Wendy! A senhora Wendy com certeza saberá o que devemos fazer! — determinou o juiz Piuí. Mas a 1 Uma praça do centro de Londres, que fica na interseção de ruas importantes como a Regent Street (um centro de compras) e a Shaftesburry Avenue (onde ficam os teatros mais importantes da cidade). (Nota da Editora.)

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senhora Wendy, é claro, não fora convidada, porque não é permitida a entrada de senhoras no Clube dos Cavalheiros.

— Acho que é melhor deixar as coisas como estão, não vale a pena mexer com cachorro bravo que está dormindo — disse o senhor Bicudo, mas ninguém aclamou a idéia porque também não permitem a entrada de cachorros no Clube dos Cavalheiros.

— A mente domina a matéria! — exclamou o senhor João. — Precisamos nos esforçar para não sonhar!

— Já fizemos isso — disseram os Gêmeos com ar sombrio. — Ficamos acordados todas as noites durante uma semana inteira.

— E o que aconteceu? — perguntou o senhor João, intrigado.— Adormecemos no ônibus em Londres quando íamos para o

trabalho e sonhamos sem parar até chegar em Putney2. Quando saltamos do ônibus, estávamos os dois pintados para a guerra como dois índios.

— Absolutamente fascinante — comentou Sua Excelência Deleve.

— Na noite passada, sonhamos com a Lagoa — acrescentou o Segundo Gêmeo.

Ouviu-se um murmúrio de suspiros de simpatia. Cada um dos Senhores de Respeito sonhara recentemente com a Lagoa e acordara com o cabelo molhado e os olhos ofuscados pelos reflexos da luz na água.

— Isso tem cura, Cabelinho? — indagou o senhor Bicudo, mas o doutor Cabelinho não sabia de nenhum tratamento que curasse surtos de sonhos in-desejados.

— Deveríamos redigir uma carta de protesto! — ressoou o vozeirão do juiz Piuí, indignado.

Mas ninguém conhecia nenhum Ministério dos Sonhos nem sabia se existia um Secretário de Estado para Pesadelos.

Por fim, nada tendo resolvido e sem ter um plano de campanha, os Senhores de Respeito mergulharam no silêncio e adormeceram em suas poltronas, e gotas marrons do café de suas xícaras pingaram no tapete marrom. E todos sonharam o mesmo sonho.

Sonharam que estavam brincando de pega-pega com as sereias, enquanto os reflexos do arco-íris moviam-se sinuosos ao redor e entre eles como se fossem cobras-d’água. Então, de algum ponto mais profundo e escuro, veio deslizando um vulto imenso e eles sentiram sua couraça encalombada e escamada roçar-lhes as solas dos pés...

Quando acordaram, as roupas dos Senhores de Respeito estavam encharcadas e, bem ali na frente, de barriga para cima, no meio da Biblioteca do Clube dos Cavalheiros, havia um crocodilo prodigioso, agitando violentamente a cauda, abrindo e fechando a

2 Bairro de Londres que fica a cerca de 5 km do centro. (Nota da Editora.)6

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bocarra com um barulhão tremendo, em um esforço para se virar e fazer deles sua ceia.

O Clube dos Cavalheiros esvaziou-se no tempo recorde de quarenta e três segundos e, no dia seguinte, todos os membros receberam uma carta da gerência.

Clube dos CavalheirosRua Marrom, esquina de Piccadilly, Londres, W1 23 de

abril de 1926Lamentamos informar que o Clube ficará fechado para

reformas de 23 de abril até aproximadamente 1999.Cordialmente,

A Gerência

No fim, é claro, foi mesmo a senhora Wendy quem explicou tudo.

— Os sonhos estão vazando da Terra do Nunca — declarou ela. — Alguma coisa deve estar errada. Se quisermos que os sonhos parem, temos de descobrir o que é.

A senhora Wendy era uma mulher adulta, e das mais sensatas. Tinha uma cabeça metódica, organizada. Durante os seis primeiros dias de todas aquelas semanas, não admitiu de modo nenhum que os sonhos atravancassem sua casa com objetos estranhos.

Mas, no sétimo, já não estava tão segura. Nos últimos tempos, dera por si com pressa de ir dormir, ansiosa para entrar naquele lampejo crepuscular que vem entre a vigília e o sono. Por trás das pálpebras fechadas, ela observava um sonho vir flutuando em sua direção — assim como outrora observara o céu da janela de seu quarto, esperando em vão que um pequeno vulto surgisse de repente entre as estrelas. Todos os dias, na hora de dormir, seu coração batia mais rápido quando pensava em avistar a Lagoa outra vez ou escutar o canto do Pássaro do Nunca. Mais que tudo, ansiava por ver Peter de novo: o amigo que deixara na Terra do Nunca tantos anos antes.

Naquele momento, porém, a Terra do Nunca estava roçando no Aqui e Agora, fazendo furos no tecido que os separava. Tentáculos de sonho esgueiravam-se pelas frestas. Algo ia mal. A senhora Wendy de alguma forma o pressentia.

— Talvez os sonhos sejam mensagens — disse um Gêmeo.— Talvez sejam avisos — sugeriu o outro.— Talvez sejam sintomas — especulou o doutor Cabelinho,

pondo seu estetoscópio na própria testa e auscultando-a para verificar os sonhos lá dentro.

— Receio muitíssimo que de fato sejam — disse Wendy. — Algo vai mal na Terra do Nunca, cavalheiros... E é por isso que temos de voltar lá.

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Capítulo

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DoisPrimeiro, encontre sua fada

— Voltar!?Voltar para a Terra do Nunca? Voltar para a ilha misteriosa,

com suas sereias, piratas e índios peles-vermelhas? Os Senhores de Respeito bufaram e vociferaram e sacudiram as cabeças até suas bochechas sacolejarem. Voltar para a Terra do Nunca? Nunca!

— Absurdo!— Ridículo!— Tolice!— Despautério! Chorumela! Disparate!— Sou um homem ocupado!Na claridade rósea de sua sala de visitas, a senhora Wendy

serviu mais chá e ofereceu os sanduíches de pepino.— A meu ver, existem três problemas — disse ela, ignorando as

exclamações de protesto deles. — Primeiro, estamos todos crescidos demais. E só crianças podem voar para a Terra do Nunca.

— Exato! — O juiz Piuí baixou os olhos para os botões repuxados de seu colete. Com o passar dos anos, ele havia realmente crescido um bocado, em todas as direções.

— Segundo, não podemos mais voar como fazíamos antes — acrescentou a senhora Wendy.

— Pois é, então! — O senhor João lembrou-se da noite em que um menino vestido com uma roupa toda feita de folhas secas entrara voando em sua vida e ensinara-lhe a voar também. Lembrou-se do salto da janela aberta de seu quarto de dormir e daquele primeiro momento de suspense em que a noite o segurara na palma da mão. Lembrou-se de mergulhar e depois subir bem alto no céu negro, detectado pelos morcegos, pinicado pelo frio da geada, agarrado ao cabo de seu guarda-chuva... Ah, como ele era corajoso naquele tempo! O senhor João sobressaltou-se quando a senhora Wendy deixou cair um torrão de açúcar na xícara dele com uma pinça de prata: seus pensamentos estavam soltos lá em cima ao luar.

— E, além disso, para podermos voar — estava dizendo a senhora Wendy —, precisamos de poeira das fadas.

— Então, a idéia é simplesmente impossível. — O olhar de Sua Excelência Deleve pousou nos farelos de pão que haviam caído em suas calças e ele sentiu um nó na garganta. Lembrou-se da poeira das fadas. De como cintilava em sua pele como se fossem gotas d’água. Lembrou-se da sensação que despertava, do formigamento que lhe corria pelas veias. Mesmo depois de tantos anos, ele ainda se lembrava.

— Acho melhor não contarmos a ninguém que vamos —

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aconselhou a senhora Wendy. — Pode preocupar aqueles que amamos. E também atrair a atenção dos jornais.

Pelo jeito, não adiantava discutir com ela, de modo que os Senhores de Respeito anotaram o que ela disse em suas agendas de compromissos, sob o título

Tarefas a cumprir:- Deixar de ser adulto- Lembrar como voar- Encontrar poeira de fadas- Inventar alguma coisa para dizer à esposa

— Acho que de sábado a uma semana vai ser a melhor data — disse a senhora Wendy. — Vai haver lua cheia nessa noite e sábado é um dia em que ninguém precisa ir buscar as crianças no colégio. Até lá, espero também que este meu incômodo resfriado já tenha passado. Portanto, cavalheiros, ficamos combinados para o dia 5 de junho, certo? Creio que posso contar com os senhores para tomar todas as providências, não é?

Os Senhores de Respeito escreveram em suas agendas:

Sábado, 5 de junho.Ir para a Terra do Nunca.

Depois, morderam seus lápis e esperaram que a senhora Wendy lhes dissesse o que fazer em seguida. Wendy saberia. Ora, pois se, mesmo resfriada, ela nem precisava de uma agenda para lembrá-la quais as tarefas a realizar!

No dia seguinte, o resfriado da senhora Wendy impediu-a de sair, mas os Senhores de Respeito encontraram-se nos Jardins de Kensington3 munidos de redes de caçar borboletas, andando de um lado para outro. Procurando fadas.

Soprava uma brisa forte. Alguma coisa branca e esvoaçante roçou no rosto do senhor Bicudo e ele deu um grito esganiçado:

— Tem uma aqui! Ela me beijou!E todos os cavalheiros saíram atrás, agitando as suas redes de

borboletas. O vento estava aumentando. Outros fragmentos brancos passaram voando por eles, até o ar parecer cheio de flocos de neve, todos rodopiando e dançando, leves como plumas. Os Senhores de Respeito achatavam a grama, pesadões, correndo para lá e para cá,

3 Um dos mais importantes parques da cidade de Londres. Lá fica o palácio de Kensington, onde nasceu e viveu a rainha Vitória, até receber a notícia de que seria coroada rainha. (Ela reinou de 1819 a 1901.) Lá também está a estátua de Peter Pan, pois foi nesses jardins que, originalmente, J. M. Barrie situou a história do menino que não queria crescer. (Nota da Editora.)

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dando golpes nas fadas com as redes, de vez em quando batendo uns nos outros sem querer, resfolegando e gritando:

— Peguei uma!— Eu tamb... Aai!— Olhe uma aqui!Quando foram espiar dentro de suas redes de borboletas,

porém, só encontraram as penugens que transportam pelo ar as sementes dos primeiros dentes-de-leão do verão. Não havia uma única fada no meio delas.

Procuraram durante o dia inteiro. Quando o sol se pôs e os estorninhos reuniram-se esvoaçando acima da cidade cintilante, os Meninos Perdidos esconderam-se no meio dos arbustos dos Jardins de Kensington. As primeiras estrelas aventuraram-se no céu, seu reflexo espalhando lantejoulas na água do Serpentine4. E, súbito, o ar palpitava de tanto bater de asas!

Exultantes, os emboscados saíram de seus esconderijos e lançaram-se para todos os lados, redes em punho, na caçada.

— Peguei uma!— Por Júpiter!— Cuidado, não as machuquem!— Uui! Preste mais atenção, meu caro!— Ora, mas isso é um bocado divertido! Entretanto, quando

viraram as redes do avesso, o que encontraram? Mosquitos, mariposas e cupins.

— Tenho uma aqui! Decididamente! Incontestavelmente! — gritou o senhor João, comprimindo seu chapéu-coco na cabeça para manter a cativa no interior. Os outros se reuniram em torno dele, acotovelando-se para ver. O chapéu foi retirado, produzindo um ruído de sucção; o senhor João colocou o polegar e o indicador lá dentro, pegou algo no forro de cetim e levantou-o para mostrar a eles: o corpo iridescente, purpúreo, brilhante, flexível, azul-turquesa de...

Uma libélula.O senhor João abriu os dedos e sete pares de olhos

desapontados acompanharam a linda criatura fazer um ziguezague no ar e retomar sua valsa na direção da água.

— Não acredito que haja uma única fada... — começou o doutor Cabelinho, mas os outros o derrubaram no chão e num instante taparam-lhe a boca com as mãos.

— Calado! Não diga isso! Jamais diga isso! — exclamou o senhor Bicudo, horrorizado. — Não se lembra? Toda vez que alguém diz que não acredita em fadas, uma fada morre em algum lugar!

— Eu não disse que não acreditava nelas! — retrucou o doutor, alisando o terno amarrotado. — Eu só ia dizer que não acredito que

4 Lago que fica dentro dos Jardins de Kensington. (Nota da Editora.)11

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haja uma única fada aqui. Esta noite. Neste parque. Minhas calças estão sujas de lama, os mosquitos morderam minhas canelas e ainda não jantei. Será que agora não é melhor desistirmos?

Os outros Senhores de Respeito olharam ao redor para o parque na penumbra do anoitecer, para a luz fraca e distante dos postes da rua. Examinaram as solas dos sapatos, para o caso de alguém ter pisado por engano em alguma fada. Contemplaram as águas do Serpentine, para o caso de algumas daquelas estrelas ali refletidas serem na realidade fadas, nadando. Sem fadas, não haveria poeira de fadas. Talvez, afinal de contas, eles não fossem mesmo voltar à Terra do Nunca.

— É melhor assim. Idéia mais absurda... — resmungou o senhor João, mas ninguém respondeu.

Sua Excelência Deleve tirou do bolso uma bolha diáfana e luzidia com todas as cores do arco-íris.

— Na noite passada, sonhei que estava jogando pólo aquático com as sereias — contou. — Isto estava em cima do meu travesseiro quando acordei.

A bolha rebentou e desapareceu.Os portões do parque estavam trancados quando eles os

alcançaram. Os Senhores de Respeito tiveram de pulá-los, e com isso o juiz Piuí rasgou seu melhor paletó de lã.

E afinal foi mesmo a senhora Wendy quem resolveu a questão, é claro. No dia seguinte, ela saiu com eles para os Jardins de Kensington, caminhando à frente do grupo, vestida com um casaco de linho e usando um esplêndido chapéu enfeitado com uma pluma.

— Mas nós já olhamos aqui ontem! — protestou seu irmão. — Não havia uma única fada!

— Não estamos procurando fadas — replicou a senhora Wendy. — Estamos procurando carrinhos de bebê!

Vinte anos antes, o parque estaria cheio de babás empurrando carrinhos de bebês para cima e para baixo, enchendo as crianças de bom ar puro. Mas, com o passar do tempo, as babás tinham-se tornado uma espécie mais rara. Havia apenas três naquele momento, empurrando carrinhos, dando comida aos patos, limpando os narizes dos bebês, apanhando chocalhos atirados na grama. Era uma cena que sempre perturbava os Senhores de Respeito...

Um dia, Cabelinho e Piuí, Bicudo, Deleve e os Gêmeos haviam sido bebês como aqueles dos carrinhos. Um dia, alguém os aconchegara em suas mantas e, agasalhados e confortáveis, tinham visto o céu azul com seus grandes e deslumbrados olhos azuis, olhos de recém-nascidos. Mas caíram de seus carrinhos.

E perderam-se. Extraviaram-se.Foram entregues ao departamento de Achados e Perdidos e, no

depósito, guardados na letra B, entre A de “aquários” e C de “críquete, bastões de”. Ninguém apareceu para reclamá-los e,

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depois de mais ou menos uma semana, foram mandados pelo Correio para a Terra do Nunca. Lá, juntaram-se a todos os outros Meninos Perdidos, tendo de se arranjar sem boas maneiras e sem mães, precisando se contentar com refeições de faz-de-conta e metendo-se em uma porção de aventuras com seu chefe, Peter Pan.

Quando um carrinho de bebê passou por eles, o senhor Bicudo não se conteve e pediu:

— Oh, por favor, tome muito cuidado com esse bebê, moça! Sei que não é tão terrível assim ser um Menino Perdido, mas, de qualquer maneira, tome muito cuidado para que ele não caia do carrinho! Nem todos os Meninos Perdidos têm tanta sorte quanto nós! Nem todos são adotados por gente como o senhor e a senhora Darling, e amados, e queridos, e abençoados com tortas de creme aos domingos e uma educação universitária!

— Bem, eu nunca deixei nenhum cair! — exclamou a babá. — Espero que o senhor não esteja insinuando que eu possa perder um dos meus bebês, não é, meu senhor? Como se isso fosse possível! Como se eu nunca... — Mas antes que o acesso de mau humor dela se intensificasse, o bebê dentro do carrinho começou a chorar.

Enquanto eles falavam, a senhora Wendy estivera debruçada no carrinho, usando a pluma do seu chapéu para fazer cócegas no bebê.

— O que a senhora está fazendo, madame? — assustou-se a babá. — Esse aí é alérgico a plumas.

— Droga! — disse a senhora Wendy, irritada consigo mesma e, secretamente, com o bebê também. — Senhor Deleve, não fique aí parado! Cante!

E Sua Excelência Deleve (que, caso vocês não se lembrem, tocava clarineta num clube noturno), repentinamente, percebeu que o sucesso do plano todo dependia dele. Segurando o bebê, ele começou a cantar. — Orfeu, com seu alaúde, com seu alaúde fez as árvores...

Não adiantava. O bebê berrava mais alto ainda.— Oh, o grande duque de York tinha dez mil homens...E o bebê continuava a chorar.— Venha para o jardim, Maud, Pois a noite negra qual um

morcego já voou!— Agora vejam só o que vocês fizeram! — disse a babá,

atordoada com a barulheira e olhando em torno à procura de um policial.

O senhor Deleve pôs um joelho no chão e cantou:— Mamãe! Mamãe! Eu andaria um milhão de milhas só por um

de seus sorrisos, minha Ma-a-a-mãe!E, de repente, o bebê começou a rir!Era um ruído parecido com o gorgolejar da água saindo de uma

jarra, e tão delicioso que a babá, alegre, bateu palmas e riu também.— É a primeira risadinha dele, benza Deus!

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Em um movimento conjunto, os Senhores de Respeito tiraram os chapéus. Até a senhora Wendy desalfinetou e tirou o seu. Então, diante da babá estupefata, eles jogaram o bebê de volta dentro do carrinho e saíram em disparada pelos Jardins de Kensington, pulando, brincando de pegar e agitando feito doidos seus chapéus-coco pretos e seus chapéus marrons.

— Ora, ora! — disse a babá. — Este mundo está mesmo virado!Entre canteiros de aubretia5 alaranjada, ao lado do memorial da

guerra, eles o apanharam — uma coisinha minúscula e azulada de cabelo vermelho, os olhos da cor do mel — uma fada! (Ou melhor, um elfo, a versão masculina das fadas.) Como um tordo saindo do ovo, ele nascera daquela primeira risadinha do bebê que, como vocês sabem, é o que acontece com todas as fadas.

Os Senhores de Respeito estavam cansados e sem fôlego, mas triunfantes.

Equivocadamente, a senhora Wendy batizou o elfo de Con Brio, sem saber que ele já vinha pronto, com nome e tudo.

— Sou o Pirilampo! — disse o elfo, indignado —, e estou com fome!

Assim, eles o levaram para os Salões de Chá do Serpentine, alimentaram-no com sorvete, farelos de bolo e chá frio e depois seguiram para casa levando-o no chapéu do senhor João, no alto, igual a um pequeno potentado oriental. Ao chegarem na Praça Cadogan6, o chapéu estava ligeiramente chamuscado, mas também quase cheio pela metade de poeira de fadas.

5 Planta ornamental que pertence à família do repolho e do nabo. (Nota da Editora.)6 Praça de Londres que fica próxima aos Jardins de Kensington. (Nota da Editora.)

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Capítulo TrêsA mudança de roupas

— Você conhece a Sininho? — indagou o senhor João.— Conheço tudo — respondeu Pirilampo. — O que é uma

Sininho?Com uma cúpula de abajur, Wendy improvisou uma espécie de

tenda de índio para o elfo morar, e agora ele estava ocupado arrecadando provisões, para o caso de o próximo inverno ser rigoroso.

— Ainda estamos em junho — lembrou o senhor Bicudo.— Eu sinto MUITA fome — rebateu Pirilampo.Eles já haviam notado, pois Pirilampo àquela altura já

arrancara todos os botões do sofá Chesterfield7, as borrachas de três lápis, o pingente de seda do cordão da campainha e a gravata-borboleta do senhor Deleve. Ele parecia um esquilinho, pulando pela sala, farejando e lambendo tudo, à cata de comida.

— Quem é Sininho? Respondam! — repetia Pirilampo. — As fadas e elfos morrem quando não se dá bola para eles.

Os Gêmeos explicaram que, anos antes, tinham todos vivido na Terra do Nunca, com Peter Pan e sua fiel auxiliar a Fada Sininho. Contaram como Sininho era corajosa e, ao mesmo tempo, rancorosa, e maliciosa, e ciumenta, e linda e...

— Não tão linda quanto eu! — interrompeu Pirilampo. — Ninguém é tão lindo quanto eu... nem tão faminto! — e deu tamanha dentada em uma vela que a cortou até o pavio e derrubou o toco no

7 Modelo de sofá da época da rainha Vitória, que se caracteriza por ter vários botões costurados no seu encosto e assento. (Nota da Editora.)

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chão.— Não sei como você poderia conhecer a Sininho, seu

pilantrinha — disse Deleve —, já que nasceu ontem. Aai!Pirilampo mordera-lhe o dedo.— É porque eu sou muito retrógrado, é por isso! Sei todos os

tipos de coisas que aconteceram antes. Sou tão retrógrado quanto uma ferroada de abelha, euzinho!

Deleve chupou a ponta do dedo mordido.— Pois acho que, para uma pessoinha tão pequena, você conta

mentiras extraordinariamente grandes. O elfo ruivo abriu um enorme sorriso, encantado, e fez-lhe uma profunda mesura, inclinando-se e executando um elegante volteio com as duas mãos. Daquele momento em diante, passou a demonstrar grande dedicação a Deleve, só porque ele admirara o tamanho de suas mentiras.

Apesar de todas as advertências da senhora Wendy para que não tentassem voar até voltarem a ser pequenos, os Senhores de Respeito não conseguiram resistir a uma tentativa. O juiz Piuí chegou ao extremo de agarrar Pirilampo e, como se ele fosse um sabonete, esfregar-se todo com o elfo. Depois, abriu os braços e voou igual a um pássaro!

...Melhor dizendo, igual a um grande avestruz. Ou uma daquelas emas descabeladas que bicam o pescoço das pessoas no zoológico. Piuí deslocou-se pesadamente por uns duzentos metros, batendo os braços como se fossem asas, depois ficou sem fôlego e tão incapaz de voar quanto um dodó8.

O doutor Cabelinho, magro como um galgo e em muito boa forma física, conseguiu voar até o alto de um poste de rua, mas perdeu a coragem e teve de ser resgatado com a escada comprida que se usa para entrar no forro da casa. A senhora Wendy garantiu-lhes, ao guardar a escada, que tudo daria certo na noite combinada, mas nenhum deles tinha tanta certeza assim.

Acompanharam o passar dos dias como se fossem trens indo e vindo em uma estação. Então, sem mais nem menos, chegou o 5 de junho, e o momento de embarcar nele e partir para a Terra do Nunca. Pirilampo explicara-lhes o que fazer. Era necessário efetuar uma troca de roupas.

Em toda a cidade de Londres, até em locais afastados como Fotheringdene e Grimswater, senhores respeitáveis desceram velhas malas dos seus sótãos e tiraram lá de dentro toda a coragem que possuíam. Foram aos seus bancos e retiraram toda a audácia que

8 A autora faz referência ao Raphus cucullatus, um pássaro que vivia nas Ilhas Maurício, um arquipélago na costa leste da África. Media cerca de 1 m de altura e era muito desajeitado. Por ser grande e dócil, foi muito caçado pelos portugueses, que ali chegaram em 1505. Também os animais domésticos trazidos de fora foram responsáveis por sua extinção, por destruírem os ninhos dos dodós. O último deles foi morto em 1681. (Nota da Editora.)

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tinham economizado ao longo dos anos. Verificaram o interior de todos os bolsos de todos os seus ternos e procuraram embaixo das almofadas do sofá para juntar toda a bravura que pudessem arranjar.

E, ainda assim, parecia que não era suficiente.Compraram flores para suas esposas, brinquedos para seus

filhos e lavaram as janelas dos seus vizinhos. Solicitaram licenças para se ausentar dos escritórios. Escreveram cartas para seus familiares mais próximos e queridos, mas rasgaram-nas logo depois, porque ADEUS é a palavra mais difícil que há para se escrever.

Quando chegou a hora do banho na casa do Primeiro Gêmeo, e enquanto seus filhos gêmeos brincavam na água, ele sorrateiramente apanhou umas roupas deles no chão do banheiro e saiu de fininho de casa.

Chegou a hora de rezar na casa ao lado e o Segundo Gêmeo disse aos seus filhos gêmeos idênticos:

— Mãos postas e olhos fechados.E surripiou um uniforme de colégio, saindo em seguida nas

pontas dos pés.Na casa do doutor em Fotheringdene, Cabelinho estendeu a

mão para roubar o uniforme de rugby de seu filho... mas o Cachorrinho novo chegou antes, mordeu a gola e pendurou-se nela, implacável. O animal rosnava e gania, as patinhas arranhavam o chão encerado e faziam um barulhão. O menino acordou — Quem está aí? —, de modo que Cabelinho não teve alternativa a não ser apanhar o cachorro junto com a camisa e sair correndo.

Chegou a hora de contar histórias na casa do senhor João, e ele leu para seus pequenos até eles dormirem, dirigiu-lhes um último olhar e saiu devagarinho pela porta, levando consigo uma roupa de marinheiro roubada. No alto da escada, teve um sobressalto de culpa, pois lá estava a senhora João. Ela sabia de tudo, é claro. O senhor João não deixara escapar uma única palavra sobre a Viagem, mas mesmo assim ela sabia. As esposas sempre sabem. Agora, ela entregava a ele um lanche num embrulho, além de um par de meias limpas e uma escova de dentes. Até passara a ferro a roupa de marinheiro antes que ele a vestisse.

— Tome cuidado, meu amor — disse, beijando-o com carinho e acompanhando-o à porta da frente. — Dê muitas lembranças minhas a Peter Pan.

O juiz Piuí deu-se conta, com o dia já bem avançado, que ele só tinha filhas. A idéia quase o acovardou. Seus dedos dirigiram-se para os vastos bigodes, que ele acariciou como um bicho de estimação muito querido que fosse preciso deixar para trás ao mudar de casa.

O Bicudo... bem, o senhor Bicudo simplesmente não conseguiu ir. De pé ao lado dos beliches no quarto dos fundos, contemplando os rostinhos de seus filhos adormecidos, ele simplesmente não se

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imaginava indo a qualquer lugar sem eles — jamais. Desistiu ali e naquele momento da viagem à Terra do Nunca. Na verdade, ele até acordou as crianças para perguntar:

— Em que a Terra do Nunca pode ser melhor que vocês?E Sua Excelência Deleve Darling? Bem, naquele momento, ele

estava sentado sozinho em seu apartamento elegante com a clarineta no colo. Quando Pirilampo ensinou a eles o segredo de voltar a ser criança, Deleve balançou a cabeça, mas não disse nada. Viu a data se aproximar e sonhou sonhos com a Terra do Nunca, mas não disse nada. Viu os outros se encherem de forças para a aventura, todos os dias espanando o pó da cúpula de abajur de Pirilampo para conseguir a mágica das fadas, preparando-se para a partida... e ainda assim não disse nada. E lá estava ele em seu apartamento elegante, sentado com a clarineta silenciosa no colo.

Não era de seu feitio estragar a diversão dos outros. Por isso não dissera nada. E todos eles tinham esquecido — seus irmãos e irmã adotivos — que Deleve não tinha filhos, ninguém cujas roupas pudesse pegar emprestado, ninguém para fazê-lo virar criança outra vez.

Porque, claro, é assim que se faz. Todo mundo sabe que quando uma pessoa veste uma fantasia ou um traje de gala, ela vira uma pessoa diferente. Deduz-se então que, se alguém vestir as roupas dos filhos, volta a ter a mesma idade deles.

Dentro de guarda-roupas e de armários de vassouras, saltitando em um pé só nas ruas iluminadas por postes de luz, esforçando-se para enfiar a cabeça em pequenas golas e os pés em minúsculas chuteiras de futebol; fazendo as costuras das roupas esticarem-se até quase rebentar e tropeçando nas faixas dos roupões, deixando cair carteiras de dinheiro e canetas-tinteiro e furtando cachorrinhos, os Senhores de Respeito lutavam para entrar nas roupas de seus filhos. Vocês podem estar aí perguntando como foi possível o juiz Piuí caber em um vestido de festa com a frente toda bordada em casinha-de-abelha e calçar sapatilhas de balé. Só posso dizer que no céu brilhava uma lua redonda como um pandeiro, havia mágica no ar e que, de alguma forma, todos os colchetes das roupas se engancharam e todos os botões se abotoaram direitinho.

As mentes deles se encheram de pensamentos sobre a Terra do Nunca e de vontade de fugir. E, coisa mais esquisita, à medida que corriam, seus pés não evitavam mais as poças d’água do caminho mas preferiam chapinhar nelas. Os dedos das mãos decidiram se arrastar pelas grades de ferro, os lábios resolveram assobiar, os olhos insistiam em brilhar.

O doutor Cabelinho sentiu seu bom senso escorrer-lhe da cabeça como se fosse areia, sendo substituído por idéias esfogueteadas, como busca-pés e estrelinhas. Cada um dos Gêmeos de repente se lembrou quais eram as histórias de fadas prediletas do

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outro. O juiz Piuí descobriu que conseguia enxergar sem os óculos e, quando se balançou no trepa-trepa do parque, seus dentes não latejaram. Mas os lábios superiores pareciam estranhamente desguarnecidos, pois durante muito tempo ela (ou melhor, ele) tivera ali um vasto bigode recurvado de que agora sentia falta, tanto quanto alguém pode sentir falta de seu hamster de estimação.

Quando os Senhores de Respeito esfregaram poeira de fadas na base dos pescoços, os cabelos espetados cortados rente ficaram sedosos sob seus dedos — com exceção de Piuí, é claro, que deu por si com longas tranças louras e sabendo as posições de balé de Um a Cinco.

...Mas Sua Excelência Deleve não tinha filhos. De modo que ficou sentado em seu apartamento elegante sentindo nos ombros o peso de cada um de seus trinta anos. Tirou a gravata do seu traje a rigor e foi dormir cedo, na esperança de ao menos sonhar com a Terra do Nunca.

Quanto à senhora Wendy, bem, ela escreveu uma carta para as pessoas de sua casa, explicando que fora visitar uma amiga distante e que voltaria logo. Antes de vestir a roupa que pertencia à filha Jane, ela serziu as meias da menina, apagou com uma borracha os erros que ela cometera naquele dia, tricotou um sonho feliz para enfiar debaixo do travesseiro dela e arrumou suas orações em ordem alfabética. Depois, colocou alguns objetos de primeira necessidade dentro de uma cesta de palha e contorceu-se toda para entrar num vestidinho limpo de verão, enfeitado com aplicações de girassóis e dois coelhos.

— Faz sempre um calor tão abafado na Terra do Nunca! — explicou à filha adormecida.

— Extraordinário! Cabe perfeitamente em mim. Surpreendeu-se com um último espirro de seu resfriado e, mais que depressa, apanhou um lenço no bolso do vestido que acabara de tirar, guardando-o dentro de sua manguinha bufante, depois saiu furtivamente para a varanda.

Enquanto espalhava com um pente sua cota de poeira das fadas no cabelo, listas e datas de aniversário foram saindo de sua cabeça e esvaziando-a, e também se foram a política, a datilografia, os poemas e as receitas. Até seu marido tornou-se uma vaga recordação. A filha Jane, não, é claro. Mãe nenhuma jamais esqueceria a sua filha. De modo nenhum. Nem por um minuto.

No céu acima dos Jardins de Kensington, um bando de crianças voadoras reuniu-se, como pássaros no outono que se preparassem para migrar. Flutuavam de costas, nadavam de peito, pegavam carona nas correntes de ar quente que saíam das chaminés da rua principal e acabaram ficando encardidas com a fumaça. Um farrapo

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de nevoeiro, que se esfiapava por cima do Rio Tamisa9 como um manto antiquado, fez todos tossirem.

Corujas piscavam, perplexas. O almirante Nelson, do alto de sua coluna10, levou a luneta ao seu único olho bom. Estátuas de homens famosos apontavam e pulavam de um pé para outro. (Uma estátua eqüestre chegou a dar um pinote.) Policiais em suas rondas ouviram risadas, mas procuraram em vão por alguém para prender.

— Onde está o Bicudo? — perguntou Wendy.— Não veio! — respondeu Pirilampo.— E o Deleve? — João quis saber.— Não veio! — gritou Pirilampo, fulgurante de alegria.— Vim, sim, senhor! — E Deleve apareceu cortando o ar como

se fosse um golfinho, movendo as pernas e os pés juntos, o cabelo ondulado cintilando com poeira de fadas. Vestia a camisa de seu traje a rigor, e as abas da camisa passavam muito dos seus joelhos de menino de nove anos, e as mangas balançavam bem além dos dedos de sua mão. Segurava com firmeza a clarineta, como uma espada de um duelista.

— Eu mergulhei no pé da cama, sabiam? Não faço isso há vinte anos! E passei do chão, fui além dele!

Lembrei como era! Você pode chegar a qualquer lugar quando toma coragem para ir até o fundo das coisas!... Para que lado vamos agora, Pirilampo?

— Como posso saber?— replicou o elfo. Mas os outros todos responderam por ele:

— A segunda à direita e depois sempre em frente, até de manhã!

Quando a lua se escondeu, depois que eles se foram, a chuva caiu como pontos de exclamação.

Quanto mais para longe voavam, mais esqueciam como era ser adulto e mais rememoravam seus tempos na Terra do Nunca. Sol! Brincadeira de pular-carniça! Piqueniques!...Dentro das cabeças deles, devaneios e excitação davam cambalhotas. E todas as suas sensações estavam em efervescência, e seus músculos estavam tensos. Quase esqueceram de lembrar por que estavam fazendo aquela viagem.

— Se os índios estiverem na trilha de guerra, eu também vou!— Você acha que Sininho vai gostar de nos ver?— Ah, então quer dizer que ela vai estar lã, essa tal de Sininho?— Mai posso esperar para ver a cara de Peter quando eu lhe

9 Rio que atravessa a cidade de Londres, ligando-a ao mar. É um dos maiores rios da Inglaterra, e já foi tematizado em várias histórias, para crianças e adultos. (Nota da Editora.) 10 Estátua de um herói da história inglesa, o almirante Nelson. Fica no alto de uma coluna, situada no coração da cidade de Londres, na Praça Trafalgar. Do alto da coluna, o almirante contempla o Rio Tâmisa. (Nota da Editora.)

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entregar seus presentes!— Estou louco para ver as sereias!— Eu perguntei: essa tal de Sininho vai estar lã? As fadas

morrem quando não se dá bola para elas, vocês sabiam?— Tomara que a gente encontre novos vilões contra quem

lutar!— Você acha que também vamos encontrar novos Meninos

Perdidos?Fez-se um silêncio repentino ao pensarem naquilo. Claro que

era mais que possível! Todos os dias caem meninos de seus carrinhos de bebê, e é sabido que as babás não costumam nem notar. Muito provavelmente, Peter Pan reunira um novo bando de seguidores em torno de si desde o tempo de Bicudo, Cabelinho, os Gêmeos, Deleve e Piuí.

— E será que vai caber todo mundo na casa subterrânea? — raciocinou Cabelinho, ansioso.

— Será que os outros vão nos deixar entrar? — murmuraram os Gêmeos.

— É melhor deixarem, senão boto a porta abaixo!— Pode ser até que haja Meninas Perdidas — disse Wendy,

meio inquieta. — As meninas de hoje são muito mais bobas que quando eu era bebê. — Ela não tinha muita certeza se queria que houvesse Meninas Perdidas; quando não são criadas da maneira certa, as meninas às vezes ficam tão... caseiras...

Pirilampo, o Elfo, soltando fagulhas no meio deles como um carvão incandescente, insinuou, com um prazer maldoso:

— Quem sabe, Peter Pan vai eliminar vocês se houver gente demais! É o que os Peters fazem, não é? — e os meninos menores ficaram brancos de medo.

— Em último caso, há sempre a Cabaninha da Wendy — tranqüilizou-os Wendy. — Se a casa subterrânea estiver lotada, podemos morar lá.

— Isso mesmo, e ninguém pode nos impedir! — declarou Piuí. — Nós mesmos é que construímos aquela cabaninha para a Wendy! E não se pode deixar uma Wendy fora de sua própria Cabaninha da Wendy!

Um rebanho de nuvens encarneiradas atravessou balindo a Alta-Estrada (a auto-estrada do céu) e causou um engarrafamento. Pirilampo meteu-se no meio delas, chamuscando umas, mordendo outras, até que as nuvens saíram trotando. E, quando o rebanho de flocos brancos se dispersou, lá embaixo apareceu... A TERRA DO NUNCA!

Um círculo sem perímetro, um quadrado sem ângulos, uma ilha sem limites: a Terra do Nunca. A imaginação trouxera-a do fundo do mar para a luz do dia. E os sonhos maus os tinham atraído de volta para lá: o lugar onde as crianças não crescem nunca!

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Mal sabiam eles (e talvez nem sequer se importassem) que, nas várias casas que tinham deixado para trás, em cima de penteadeiras e de beiradas de pias de banheiro, seus relógios de pulso abandonados pararam todos naquele exato momento. Porque, quando uma criança está na Terra do Nunca, o tempo pára.

Seus corações quase saíram pela boca. Não havia nenhum lugar como aquele! No mundo inteirinho, não existe nenhum lugar igual à Terra do Nunca! E lá estava, estendendo-se abaixo deles, totalmente e completamente e inteiramente e absolutamente...

...diferente.

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Capítulo QuatroA Única Criança

Apesar de estar voando em plena claridade da manhã, Wendy, com seu vestidinho decotado de verão, sentiu um calafrio, pois a luz do sol brilhava mais fraca e pálida do que ela se lembrava. As sombras estavam mais compridas — alguns cumes rochosos e pinheiros altos tinham três ou quatro sombras estendendo-se em direções diferentes. Wendy sabia que tinham agido certo ao vir: algo não ia bem na Terra do Nunca.

Ao voarem por cima da Floresta do Nunca, um oceano de árvores douradas, alaranjadas e escarlates ondulava e se encrespava debaixo deles, e de vez em quando espalhava no ar um borrifo de folhas secas de outono. Os postes dos totens dos índios, derrubados por guerras ou vendavais, estavam tombados em posições esquisitas, enrolados com hera e trepadeiras. Imensos globos de visco, que é uma planta parasita, rolavam soltos pelas copas das árvores como lanternas chinesas. Tudo era lindo... mas não se escutava nenhum pássaro cantar.

As clareiras, onde antigamente a Liga dos Meninos Perdidos acendia fogueiras de acampamentos e fazia seus conselhos de guerra, não existiam mais: o mato crescera e, como um buraco no mar, as clareiras tinham-se fechado e desaparecido. Se ainda havia lobos à espreita, não dava para ver. Se ainda havia índios em pé de guerra, não se avistavam suas trilhas.

— Como é que vamos achar a nossa casa debaixo da terra ou a Cabana da Wendy? — disse João, manifestando em voz alta os temores de todos. Mas a preocupação foi desnecessária, pois a casinha de paredes amarelas e telhado vermelho foi exatamente o

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que viram em seguida. A fumaça da chaminé encaracolou-se no meio das crianças, que desceram por ela segurando-a como se fosse uma corda, pouco a pouco, uma das mãos depois da outra.

A Cabana da Wendy estava equilibrada em um galho de árvore — uma árvore mais alta que todas as outras da floresta, da altura da ponta de uma torre de igreja.

— Que divertido — disse Deleve. — Tínhamos uma árvore em nossa casa antes. Agora, a casa é que está na árvore!

— Como é possível ter uma árvore dentro de uma casa? — perguntou João com ar de desdém.

— Ah, mas tinha, sim! Não se lembra? Na casa debaixo da terra! A Árvore do Nunca! Toda manhã, nós a serrávamos bem rente ao chão e, lá pela hora do jantar, ela já crescera do tamanho certo para servir de mesa.

De um varal estendido entre dois galhos, pendiam uns fiapos de nuvens que tinham ficado agarrados ali, junto com um avental que o vento esfarrapara, uma bandeira e um pé de meia solitário.

— Aquele avental é o meu! — exclamou Wendy. As crianças voadoras bateram à porta da casinha; sacudiram as janelas e fizeram um enorme alarido junto do cano da chaminé. Mas ninguém veio abrir. Depois de uma noite inteira voando, estavam começando a ficar cansados.

— Ele nos deixou aqui fora! — reclamou Wendy. — Depois de tudo o que prometeu! E eu, que nunca mais fechei a janela de meu quarto, fosse verão ou inverno! Desde que cheguei da Terra do Nunca!

— Nem quando havia nevoeiro? — perguntou Cabelinho.Wendy foi obrigada a admitir.— Pode ser, alguma vez em que houvesse nevoeiro, devo ter

fechado, sim. Você sabe como o nevoeiro de Londres pode ser perigoso para os pulmões.

— Tão perigoso quanto respirar penugem de travesseiro — confirmou Deleve. E concluíram que o dono da casa provavelmente fechara as janelas porque as nuvens ali eram quase a mesma coisa que o nevoeiro de Londres.

— Entre voando pela chaminé, Pirilampo, e solte a tranca da porta — disse Piuí. E o elfo mergulhou pelo cano da chaminé. (Que antigamente era a cartola de João, cuja copa fora arrancada, e por onde a fumaça saía para o céu.) Eles esperaram, esperaram e esperaram um tempão. Quando, enfim, Piuí usou uma de suas tranças para limpar um pedaço de uma janela em que a sujeira se acumulara, espiou lá para dentro e viu que Pirilampo se distraíra de sua missão: estava se balançando em um cabide de madeira enquanto comia os botões de um paletó.

— Criaturinha mais tola — disse ela.Wendy decidiu que precisariam adotar um método diferente

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para entrar.— Vocês, os Meninos Perdidos, é que construíram a Cabana da

Wendy — disse a eles. — Portanto, têm todo o direito de desmontá-la.

Assim, depois de baterem educadamente uma vez mais, puxaram com toda a força pelas estacas laterais e arrancaram a parede do fundo.

Deram de cara com um menino, a espada desembainhada, a cabeça inclinada para trás, a testa franzida em uma expressão feroz.

— Cuidado, Pesadelos! Vocês podem arrebentar as muralhas de meu castelo, mas depois vou tapar as brechas com os seus cadáveres!

Era Peter Pan, e ao mesmo tempo não era. Em vez da roupa feita de folhas secas, ele vestia uma túnica vermelho-sangue de penas de gaio e de folhas de outono, tiradas do bordo e da videira-virgem.

— Ora, ora, Peter — disse Wendy, entrando pela abertura. — Isso é maneira de receber seus velhos amigos?

— Não tenho amigos que sejam velhos! — bradou o menino com a espada desembainhada. — Sou Menino e, quando as coisas são grandes, eu as corto e reduzo às devidas proporções!

Ao perceber que Peter não a reconhecia, os olhos de Wendy começaram a arder, quase chegando às lágrimas, mas ela também levantou a cabeça.

— Deixe de ser bobo — replicou com vivacidade. — Você é Peter, eu sou Wendy e nós viemos... — deu tratos à bola tentando lembrar — ...porque achamos que você podia estar em apuros.

Peter olhou para ela, zombeteiro.— Como assim, “em apuros”? Dentro de um caldeirão, prestes a

ser devorado por canibais?— Bem, talvez não tanto...— Em águas infestadas de tubarões, depois de cair de um

navio?— Provavelmente não, mas...— Sendo carregado pelo céu por uma águia gigantesca para

servir de alimento para os filhotes dela, que esperavam famintos no ninho?

Era evidente que Peter gostava um bocado da idéia de estar em apuros. E também era evidente que nada daquilo de que falava estava acontecendo com ele. Wendy começou a sentir-se meio boboca, algo que sempre a aborrecia.

— Você tem rezado direitinho as suas orações? — indagou ela (uma pergunta tão assustadora quanto uma espada balançando junto do nariz).

— Ora, não seriam as dos outros que eu iria rezar! — retrucou Peter.

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Então, pela primeira vez, Peter olhou direito para eles. A ponta da espada oscilou, hesitante, e um largo sorriso iluminou-lhe o rosto.

— Ah, então vocês voltaram, hein? Pensei que estivesse sonhando com vocês. Tenho sonhado muito com vocês ultimamente. — E acrescentou, em tom acusador:

— Vocês estavam grandes à beça nos meus sonhos.Os Gêmeos apressaram-se em colocar a parede de volta no

lugar, provando que não estavam tão grandes assim e que ainda cabiam na Cabana da Wendy.

— Que sortudo você é, Peter! Deve ser sensacional morar aqui no alto das árvores! Foram as fadas que puseram a casa aqui em cima para você?

— Que nada — respondeu Peter. — Elas não quiseram, as danadinhas preguiçosas. Disseram para todo mundo que foram elas, mas eu fiz tudo sozinho!

(Na realidade, para deixar tudo bem claro, a Árvore do Nunca é que foi a responsável. Peter não se dava ao trabalho de cortar a Árvore do Nunca rente ao chão todas as manhãs. E assim ela foi crescendo, crescendo — e atravessou a casa subterrânea à procura da luz do sol. Um de seus galhos levantou a Cabana da Wendy, que ficava próxima, mais alto que todas as outras árvores do bosque.)

— Para que mesmo você disse que vieram?— Para fazer a faxina da primavera, é claro! — respondeu

Wendy, pois era muito mais fácil que explicar.Displicentemente, Peter jogou a espada para um canto.— Pode começar limpando os pesadelos, se quiser — disse ele.Wendy não sabia muito bem como eram os pesadelos de Peter,

de modo que limpou as escuras teias de aranha que encontrou nos cantos do teto.

— Pronto! Agora não há mais nenhum — disse ela, acrescentando com ar despreocupado: — Nós andamos tendo pesadelos, também. Sobre a Terra do Nunca. Achamos que poderia haver qualquer coisa errada por aqui.

Entretanto, ou Peter não sabia ou não se impõe tava com os sonhos que vazavam da Terra do Nunca: ali, havia sonhos de sobra.

— As coisas lá fora estão muito... diferentes — observou Wendy com cautela.

Mas Peter apreciava a Terra do Nunca coberta de escarlate e dourado tanto quanto em sua roupagem verde do verão, e não via nada de errado naquilo. Wendy não o pressionou com mais comentários. Quem sabe ela estivesse enganada e não houvesse de fato nada errado.

— Você está bem mesmo, Chefe? — disse Piuí com carinho, tomando o pulso de Peter e a temperatura de sua testa.

— Caso não esteja, podemos brincar de médicos e enfermeiras!— Estou morrendo! — exclamou Peter, cobrindo o rosto com

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um dos braços.Wendy deu um grito de aflição:— Ah, eu sabia! Eu sabia que alguma coisa não ia bem! Ah,

tomara que você não esteja mesmo morrendo!— Estou morrendo de tédio! — gemeu Peter. Depois, mudou de

idéia e pôs-se de pé num salto. — Mas agora que imaginei que vocês estão aqui, podemos ter as melhores aventuras do mundo!

E soltou um cocoricó triunfante, que era emocionante e arrepiante e atordoante, todas as coisas ao mesmo tempo:

“Có-cori-cóóó!”E esqueceu até que um dia eles tinham ido embora. Não notou

que Piuí virara menina nem que Deleve sabia tocar clarineta. E nem que faltava o Bicudo.

E muito menos que faltava o Miguel, já que falamos no assunto.— Não há ninguém mais aqui? — perguntou Wendy. — Nenhum

Menino Perdido novo?... Ou Menina?— Mandei todos embora quando quebraram as Regras —

respondeu Peter prontamente. — Ou matei.A explicação era bem improvável, mas fazia ele parecer

maravilhosamente feroz. Se algum Menino Perdido tivesse conseguido chegar ao topo da Árvore do Nunca, certamente não estava por ali naquele momento. Durante anos, Peter fora a única criança — a Única e Exclusiva Criança na Floresta do Nunca, como se fosse um filho único, sem ninguém mais para lhe fazer companhia a não ser sua sombra e os pássaros e as estrelas.

— Onde está Sininho? — perguntou Cabelinho, procurando dentro de todas as gavetas. Peter limitou-se a dar de ombros e dizer que ela fugira.

Um dos visitantes, porém, atraiu a atenção dele. Viu a cabeça do Cachorrinho saindo do bolso de Cabelinho e exclamou:

— Vocês lavaram a Naná e ela encolheu!A última vez que ele vira as crianças Darling com um cachorro,

havia sido com a Naná, uma gigantesca pastora terra-nova que lhes servia de babá. O Cachorrinho sabiamente preferiu não comentar que ele era o ta-ta-tataraneto da maravilhosa Naná. Limitou-se a ficar quietinho nas mãos do Menino Maravilhoso, e lambeu tanta poeira de fadas, e pensou tantos pensamentos agradáveis que flutuou até o teto.

— Onde está a Sininho? — perguntaram os Gêmeos, mas Peter só encolheu os ombros e respondeu que a transformara em um marimbondo por causa do gênio difícil dela. Ninguém acreditou naquilo também.

Peter estendeu-lhes o punho de sua espada.— Primeiro, vocês todos têm de jurar que não vão crescer. — E

todos deram sua palavra de honra. Em seguida, Peter proclamou-os

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membros da Liga de Pan e acrescentou: — Amanhã, vamos sair e fazer alguma coisa perigosa e tremendamente corajosa!

Piuí entrelaçou as mãos sob o queixo e os olhos dela brilharam.— Oh, isso mesmo, Peter, vamos! Vocês todos podem sair em

uma aventura, como as dos cavaleiros andantes! E podemos chamá-la de A Aventura de Piuí, e aí todo mundo parte para procurar aquilo que é o meu maior desejo, e aí luta com um inimigo mortal, e aí um de vocês conquista a minha mão em casamento!

Peter olhou fixo para ela. O plano tinha méritos, mas não fora ele o autor. Sua boca pequena ficou tensa, com uma expressão dura. No segundo seguinte, os lábios contraíram-se e ele deu o assobio agudo de um trem prestes a partir.

— Todos a bordo! — gritou.E, na mesma hora, a Cabana da Wendy virou um vagão do

Expresso Trans-Sigobiano, deslocando-se rapidamente pelo deserto de Gobi e pela estepe siberiana com um carregamento de ursos e caixas de música e um modelo exclusivo de máquina de passar roupa para a tsarina. O vagão sacolejava ao passar por frágeis pontes que atravessavam precipícios tão íngremes e altos que não se avistava o fundo. Mergulhava em túneis escavados nas montanhas, escuros como poços. Foi atacado por bandoleiros e salteadores, uma vez até por Barbarruiva, o tímido corsário. Os viajantes foram perseguidos por mongóis e mogóis cavalgando mamutes. Pararam em uma estação cujos funcionários eram fantasmas vestidos com uniformes roxos que tentaram comer a bagagem. Bebiam Bovril, que saía da torneirinha de um samovar e, quando João pôs uma vara de pescar para fora da janela, fisgou um salmão do tamanho de um cavalo. Quando havia uma emergência (e houve um montão delas), eles se debruçavam na janela e puxavam a corda do varal para que o trem parasse. Era Faz-de-Conta, claro, mas tão divertido!

E a mágica do Faz-de-Conta entrou em ação, e a Terra do Nunca lançou seu feitiço. Os adultos que tinham saído de Londres cheios de boas intenções esqueceram por completo os motivos de sua vinda: eram crianças outra vez, e estavam se divertindo demais para se preocuparem com pesadelos ou apreensões ou outono na Terra do Nunca. Naquela noite, dormiram nos porta-malas feitos de redes das cabines do Expresso Trans-Sigobiano, e a trama das cordas marcou suas bochechas com riscos entrelaçados.

Mas João, sem querer, deixou solto o freio do trem na hora de dormir e quando, muito tempo depois, o vagão foi bater com os amortecedores dianteiros em Vladivostinopleburgo, a Árvore do Nunca estremeceu com tanta violência que toda a terra que cobria suas raízes se soltou.

Um prato de louça caiu de uma prateleira em Grimswater. Um bebê desatou a chorar em Fotheringdene.

O choque acordou Wendy, mas ela continuou deitada mais um 28

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pouco assistindo Pirilampo mastigar os cordões de seus próprios sapatinhos. Pensou outra vez na fada que era amiga de Peter, a Sininho. Quanto tempo vivem as fadas? Um tantão quanto as tartarugas ou só um tantinho como as borboletas? Será que as asas delas caem no outono e crescem de novo na primavera? Ou se desintegram no inverno como as casas de barro das vespas? Não, com certeza. Nem devia haver inverno na Terra do Nunca. Cochichando, fez a pergunta a Pirilampo:

— Quanto tempo vivem as fadas?E Pirilampo respondeu aos berros, sem hesitar um momento

sequer e sem qualquer sombra de dúvida:— Claro que nós vivemos para sempre! Acordou todo mundo.— Ah, você é um mentiroso de marca maior! — resmungou

Deleve, sonolento, e Pirilampo deu um sorriso largo, inclinando-se para ele em uma profunda mesura que foi quase até o chão.

Durante a noite, os farrapos de nuvens no varal tinham sido batidos pelo vento até se esgarçarem e voarem para longe. Em seu lugar, pendiam agora negras nuvens de temporal, estalando de tantos relâmpagos. Embaixo da Cabana da Wendy, a floresta se agitava e se debatia, e as folhas das árvores passavam rodopiando pelas janelas.

Destemido, Peter saltou pelos galhos para apanhar gravetos, arrumou primorosamente a lenha na lareira e acendeu o fogo usando apenas centelhas da Imaginação. Então, Wendy contou histórias do mar tão sensacionais que os Gêmeos ficaram enjoados e, quando foram tomar seu imaginário copo de leite do meio-dia, sentiram gosto de rum. Lá fora, colônias inteiras de gralhas foram carregadas das copas das árvores pela ventania, mas no alto da Árvore do Nunca, sacudida pela tempestade, os Gêmeos declararam que estavam “prontos para navegar em ondas da altura de uma casa!”. Cabelinho disse que ele navegaria em ondas da altura de um morro. João disse que ele navegaria em ondas da altura de uma montanha. Então, todos olharam para Peter. Ele ergueu um punho acima da cabeça e bradou:

— Pois eu navegaria em ondas da altura da LUUUUA! E depois até o fundo do mar!

Nesse momento, ouviu-se um barulho como o de um mastro de navio se quebrando e a Cabana da Wendy deu uma guinada para um lado. A Liga de Pan escorregou pelo chão e amontoou-se no canto, formando uma pilha, junto com a lenha da lareira e o Cachorrinho ainda por cima. Seguraram-se uns nos outros e esforçaram-se para pensar pensamentos felizes a fim de desafiar a lei da gravidade. Mas ia ser difícil, como, um por um, eles logo perceberam: pois a Árvore do Nunca inteira estava tombando, indo abaixo, despencando... CAINDO.

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Durante a queda, a árvore ainda tentou desajeitadamente agarrar a Cabana, que com isso rodopiou no espaço vazio, teto para baixo, chão para cima, janelas para baixo e para cima. Galhos perfuravam suas paredes; ramos a apanhavam no ar, então no mesmo instante se quebravam e a deixavam cair mais ainda, uma caixinha giratória cheia de gente mergulhando na direção do solo da floresta. João teve a presença de espírito de puxar o cordão do freio de emergência...

O que não impediu que todos se estatelassem no chão.

Capítulo CincoA Aventura de Piuí

Graças ao temporal, um milhão de folhas caíra no chão da floresta antes da Cabana da Wendy. A pancada lá embaixo soou como se fosse na água, mas o impacto com a água teria sido mais duro. Eles afundaram, afundaram, depois subiram de volta no colchão macio de gravetos, folhas e velhos ninhos de passarinhos. Era impossível verificar os danos causados pela queda, pois ali embaixo, junto à vegetação rasteira, quase não havia claridade. Só a luzinha fraca e trêmula de Pirilampo, que voava zangado ao redor, aliviava o peso da escuridão que se abatia sobre eles. A Liga de Pan recompôs-se e ponderou o que fazer. Wendy examinou um por um para ver se estavam machucados. Só encontrou alguns arranhões e manchas roxas, além das roupas rasgadas.

Quando topou com Peter, achou que ele fora o que mais se ferira: um filete de sangue escorria de seu nariz. Ligeira, tirou o

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lencinho de dentro da manga do vestido e tentou estancar o sangue, mas Peter desviou a cabeça num repelão e encarou-a com o olhar carregado, reclamando:

— Tire a mão de mim! Não quero que ninguém ponha a mão em mim!

Foi quando ela notou que ele estava terrivelmente emburrado.— Olhem só o que vocês fizeram, vocês todos. Eu bem que disse

que vocês estavam grandes demais! Agora, vejam só. Vocês despedaçaram a minha casa! Não deviam ter vindo!

— Foi o temporal, Peter! — protestou Wendy; apesar de não se ter ferido na queda, agora o coração dela é que doía, magoado.

— Eu estava melhor sozinho — resmungou o Único Menino, com um jeito de filho único mimado.

A Árvore do Nunca jazia estendida no chão, suas raízes sangrando gotas de terra. A tempestade continuava a roncar ao longe.

Em diversos troncos de árvore, havia cartazes colados anunciando:

Mas as beiradas dos cartazes estavam se enroscando e o papel se soltava à medida que a cola ia se dissolvendo com a chuva. O Cachorrinho latia em algum lugar, que soava como se fosse outro lugar. Aos gritos e assobios deles, só respondiam pios de corujas, rosnados e silvos vindos do mato: animais selvagens rondavam pela Terra do Nunca à procura de presas, com olhos que enxergavam no escuro melhor que os deles.

— Estou ouvindo o Cachorrinho! — disse um dos Gêmeos. — Aqui embaixo de nós!

— Acho que ele encontrou a nossa velha e querida casa subterrânea! — disse o outro.

— A MINHA casa subterrânea! — corrigiu Peter, ríspido. — Só 31

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que não a uso mais.Seguindo o som do latido aflito do Cachorrinho, encontraram o

caminho para o círculo de cogumelos que marcava o local da toca subterrânea de Peter Pan e percorreram com dificuldade as imediações, tentando lembrar onde ficavam as entradas. Anos antes, cada um deslizava para o interior por sua própria árvore oca. Piuí encontrou a dela, mas também descobriu que não cabia mais no oco da árvore: seu corpo mudara ligeiramente de forma desde os remotos dias de Antes. Os outros tentaram encaixá-la na rampa para a descida —Ai, cuidado com meu vestido!— virando-a e torcendo-a — Ai, cuidado com as minhas tranças! — para um lado e para o outro — Ui, não puxem meu bigode!

— Piuí, você não tem bigode nenhum!Lá embaixo, os latidos do Cachorrinho tornaram-se frenéticos.

Algo se instalara na câmara subterrânea: seria um texugo? Um píton, aquela cobra enorme? Uma trufa gigante? O que quer que fosse, o Cachorrinho fazia muito mau juízo do que encontrara. Na realidade, ao mesmo tempo que Piuí tentava descer, o Cachorrinho estava tentando subir, de modo que nenhum dos dois conseguia o que queria. O Algo começou a se mexer e se movimentar por lá.

— Então, é por isso que você não mora mais aí embaixo! — disse Deleve, chegando para trás e tiritando de frio, com sua camisa comprida de traje a rigor e as pernas de fora.

— Não, foi porque não tive vontade! — retorquiu Peter. — Poderia muito bem matar isso aí se quisesse, mas gostei de morar no alto das árvores... até vocês chegarem e quebrarem minha casa!

O mau humor de Peter fez todos se sentirem culpados e desanimados. Arrastavam os pés a esmo, mexiam nos cartazes do circo pregados nas árvores, tentavam aquecer as palmas das mãos em torno de Pirilampo e relanceavam os olhos para Wendy, esperando ajuda.

— Será que podemos ir ao circo daqui a pouco? — pediu João.— Aaah, Peter, podemos? Podemos, hein? — suplicaram os

Gêmeos. — E aí não ficaríamos mais na chuva!— Pode ser que haja palhaços lá!— Detesto palhaços — disse Peter. — Não dá para saber o que

eles estão pensando.Ao redor, ouviam as árvores apertando suas raízes no solo,

estalando as juntas. Também era impossível dizer o que as árvores estariam pensando.

— Assim que clarear — disse Wendy —, vamos construir uma casa nova!

E no mesmo instante todos se sentiram mais animados... exceto o Menino Único. Talvez escutasse o chamado da Aventura, ou talvez tivesse se acostumado demais a tomar todas as decisões.

— Não, não vamos! — disse ele, jogando para o lado o lenço de 32

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Wendy manchado de sangue. — Para que ficar em casa? Vamos todos partir em uma aventura! — decidiu ele, falando como se ninguém em toda a história do mundo tivesse pronunciado antes aquelas palavras ou tivesse tido uma idéia tão espetacular.

— Ah, uma aventura, isso mesmo! — disse Piuí, extasiada. — Que idéia genial!

— Pois é, veio sem querer, é que sou assim mesmo, tão maravilhosamente inteligente! — explicou Peter. — Bem, o Cavaleiro Andante que trouxer o coração de um dragão para a Princesa Piuí ganha a mão dela em casamento e eles Serão Felizes como Nunca!

— Dragão? — disse Piuí, admirada, e coçou o lábio superior.Wendy olhou para Peter com ar severo, pensando que já tinham

passado por perigos demais para uma noite.— Mas está chovendo! — alegou um dos Gêmeos.— Então, vamos ficar molhados! — replicou Peter.— E enlameados! — exclamou Cabelinho.— E imundos!Aquilo encerrou a questão. Uma aventura e a oportunidade de

se sujarem era bom demais para não se aproveitar.Os Gêmeos declararam que sairiam juntos em aventura e

dividiriam o prêmio (já que Piuí tinha duas mãos). Deleve perguntou se poderia ganhar metade de um reino em vez da mão de Piuí em casamento. Cabelinho começou a dizer que não poderia ganhar a mão de Piuí porque já era casado, mas parou pelo meio, pois aquilo não fazia qualquer sentido e ele não imaginava de onde lhe viera aquela idéia.

Pirilampo disse que estava faminto demais para partir em uma aventura onde quer que fosse, e pôs-se a explorar os arredores em busca de castanhas para comer. Quando a cartola que servia de chaminé na Cabana caiu de repente do alto das árvores fazendo uma grande barulheira, ele foi se proteger da chuva dentro dela. Os Cavaleiros Andantes cataram galhos secos para usar como espadas.

— Vão logo! — apressou-os Piuí, entusiasmada. — Vou contar até vinte! — e virou o rosto para uma árvore, cobrindo os olhos.

Os Cavaleiros Andantes partiram com a maior dificuldade no meio das folhas secas, que lhes chegavam à cintura, para todos os pontos da rosa-dos-ventos.

— Quando eu voltar — disse Peter a Wendy, em voz baixa —, vou construir uma paliçada e chamá-la de Forte Pan. Os outros não vão poder entrar porque eles quebraram minha casa. Mas você pode, se quiser — acrescentou, como se não fizesse grande diferença para ele. — Você fica aqui com Piuí enquanto vou para a aventura.

— Nada disso! — exaltou-se Wendy. — Também quero ir para a aventura! Não faço muita questão da mão de Piuí, mas nunca vi um dragão!

A Princesa Piuí, depois de contar mais ou menos até vinte, 33

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apanhou a cartola com Pirilampo dentro e saiu da floresta, também com a maior dificuldade por causa das folhas acumuladas. Abrigou-se da chuva na boca de uma caverna que ficava numa cabeça-de-praia e construiu para si mesma um trono de algas marinhas e uma coroa com umas peças de metal bonitinhas que encontrou espalhadas pelo chão.

— Nomeio você Real Mentiroso Extraordinário! — disse ela a Pirilampo, e ele se sentiu tão lisonjeado com o título que seu corpinho chamuscante fez pipocarem as algas marinhas que estavam por perto.

Veio o amanhecer e Piuí vislumbrou o reflexo cambiante, oleoso, da Lagoa. Em sua memória, ela guardara a imagem da água azul-turquesa cintilante em forma de meia-lua, rodeada por praias de areia branca. A Lagoa que via agora ondulava com esforço, pesada; parecia o flanco negro e suado de um cavalo todo estriado de espuma. A crina de algas atirada à praia jazia em meio aos pedregulhos, fervilhante de moscas. Ao longo das margens, na linha da maré alta, havia uns estranhos recipientes brancos parecidos com gaiolas de pássaros ou armadilhas para caranguejos. Vistos de perto, percebia-se que eram pedaços dos esqueletos das sereias, com um outro osso e uma mecha de cabelo louro aqui e ali. Piuí olhou ao redor de si, nervosa, e voltou correndo para a caverna.

Enquanto isso, os Gêmeos encontraram um Dragão da Floresta, com braços e pernas de madeira, corpo de madeira e uma cabeleira espetada e pontuda feita de gravetos. Igualzinho a uma pilha de árvores caídas, na verdade. Eles o mataram com fogo.

Por volta do meio da manhã, Deleve avistou um Dragão de Nuvem. Enchia o céu de um lado a outro do horizonte... até que o vento se levantou de chofre e o dragão se desfez em mil pedaços.

Era quase meio-dia quando Cabelinho chegou a uma praia e encontrou um Dragão da Água. Com intervalos de segundos, o Dragão crescia para cima dele na praia, sem uma forma definida e cheirando a sal, depois recuava outra vez. Cabelinho tentou matá-lo, mas sua lâmina penetrava direto no couro líquido do monstro e suas botas ficaram molhadas. Sendo assim, achou melhor sentar-se na areia e ficar jogando pedras no dragão.

Lá pelo meio da tarde, João deu de cara com um Dragão Rochoso: uma espinha dorsal cheia de protuberâncias de calcário, uma enorme cabeça de pedra inteiriça, uma cauda feita com uma cascata de pedregulhos. João deixou sua espada de madeira espetada no pescoço dele. Um triunfo, disse consigo mesmo.

Enquanto isso, Wendy não sabia onde procurar um dragão. Com certeza, eles não vivem ao ar livre, pensou ela, senão as pessoas os veriam o tempo todo e tirariam fotografias. Então, achou que vira um — o ombro dele, pelo menos — uma coisa cor de sangue que se salientava por detrás de um morro. O coração dela tentou

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sair pela boca mas ficou entalado. Quis assobiar para chamar Peter, mas seus lábios estavam secos demais para soprar. Wendy fechou os olhos bem apertados. Só lembrou que não tinha fabricado uma espada para si quando rastejou mais para perto, de gatinhas. O dragão produzia uns estalos horrivelmente altos — decerto se tratava de um monstro molengo, balofo, com a pele solta sacolejante... E incrivelmente grande!

Quando afinal se atreveu a abrir os olhos, Wendy caiu na gargalhada. Não era dragão coisa nenhuma — só uma imensa tenda de circo batida pelo vento! Dava para ler a palavra

NOVELLOpintada em letras desbotadas no teto de lona. Cabos de navio prendiam-na ao chão. Em volta da tenda, encontravam-se várias jaulas sobre rodas, algumas vazias, outras contendo zebras ou avestruzes; um gorila, três tigres e um cotillo, um puma, um ocapi e um palmerion. Nenhuma das portas das jaulas estava fechada. Pôneis com plumas presas em faixas na cabeça pastavam nas redondezas. De dentro da tenda, vinham acordes de piano. Intrigada, Wendy desceu e aproximou-se para espiar mais de perto. Não era um piano de verdade, mas uma pianola, lendo a música em um rolo de papel. As teclas se mexiam, apesar de não haver dedos tocando-as, e uma figura de madeira esculpida em cima da tampa regia a música com movimentos espasmódicos, rangendo por falta de óleo nas articulações. Wendy estava tão ansiosa para vê-la de perto que abaixou a cabeça e entrou. Havia uma claridade amarelada no ar e o ruído do vento reboava no grande espaço vazio. Pairava ali um cheiro de gotas para tosse e de ovelhas molhadas.

Ah, e vestígios de cheiro de leão.Wendy chegou ao centro, no chão coberto de serragem, e então

os viu. Estavam dispostos em torno da tenda como os números do mostrador de um relógio: doze leões sentados em cima de tinas de metal emborcadas.

— Ah! — disse uma voz atrás dela. — Uma espectadora. — A voz soava baixa, suave, macia como veludo, com os sons sibilantes fluindo como o marulho da água do mar. — Bem-vinda ao Circo Novello. Eu esperava muito que viesse. — O rosnado surdo dos leões parecia trovoada. — Sou um seu criado, madame. Faça-me o favor de permanecer imóvel, ou meus companheiros felinos podem confundi-la com o almoço deles.

Contra a claridade da porta, a pessoa que falava era uma mancha escura rodeada por um halo de luz do dia. Sua silhueta era toda arrepiada. Wendy apenas conseguia distinguir uma roupa

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extravagante, cujas mangas iam muito além das pontas dos dedos, cuja bainha aparecia aqui e ali junto aos debruns de suas botas sem brilho: milhares de fiapos de lã arrebentados, enovelando-se, enredando-se, tornando imprecisos os limites entre o homem e sua sombra. Não havia como definir onde seu cabelo desgrenhado terminava e onde começava o capuz do casaco de malha de lã. As cores de ambos também se tinham desgastado. Uma ovelha emaranhada em arame farpado, era o que aquela mixórdia de homem lembrava muito. E, no entanto, ele se movia com a graciosidade de um gato, pousando os pés no chão um na frente do outro, como um equilibrista atravessando um desfiladeiro em cima de uma corda bamba.

— Desejei tanto que viesse — disse ele de novo. — Meu coração se rejubila com isso. Minhas criaturas e eu ficamos honrados com a sua amabilidade.

A voz dele escorria para dentro dela como uma calda dourada em cima de um pudim fumegante. Os caracóis da cerrada cabeleira sem brilho e o capuz de lã encobriam-lhe o rosto, mas mesmo assim ela conseguiu divisar um par de grandes olhos claros cor de avelã a observá-la tão atentamente quanto os leões.

— Venha — disse ele, estendendo-lhe um braço lanudo. — Ande devagar em minha direção e não faça nenhum movimento brusco. Meus felinos ainda não comeram hoje. Acima de tudo, não... peço que perdoe a indelicadeza de um vulgar treinador de animais... procure não suar, haja o que houver. O suor, veja bem, penetra intensamente nas narinas de um felino faminto.

Sua voz derramava-se como chocolate quente num sorvete de baunilha. Até as orelhas dos leões se reviravam para captá-la. As garras de suas patas arranhavam a superfície das doze tinas de metal com um ruído de panelas sendo areadas. Wendy, enquanto andava para perto do domador de leões, via como todas as costuras e beiradas e recortes do disforme casaco de malha de lã dele estavam se es-fiapando. Buracos de traças espalhavam-se pelo tecido, e cada um dos buracos também começara a se esfiapar. Ele era um miasma lanoso de pontas soltas penduradas.

— Sou a senhorita Wendy Darling — disse, estendendo o braço para um aperto de mãos (embora as mãos do homem fossem quase invisíveis). Se conseguisse fazer amizade com o dono, quem sabe seus leões parassem de pensar nela como um almoço.

Os olhos castanho-claros estreitaram-se como se o próprio nome dela proporcionasse ao homem a maior das alegrias.

— E eu sou Novello, proprietário deste lamentavelmente humilde estabelecimento. Tenho a impressão de que você vai se sair melhor em sua vida que eu me saí na minha.

Ele também estendeu o braço, e Wendy sentiu sua mão encher-se com o punho desfiado da manga excessivamente comprida do

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casaco de lã que o homem usava.— Diga-me, criança, o que deseja ser quando crescer?— Eu... — Mas antes que Wendy tivesse tempo de responder,

um grito de gelar o sangue nas veias dispersou seus pensamentos e molhou de suor a palma de sua mão estendida.

— Piuí! É Piuí! — exclamou ela, assustada, e saiu da tenda em disparada, deixando para trás o dono do circo. Só pensou em salvar Piuí do perigo. Atrás de si, escutou o retinido de doze tinas de metal sendo desviradas e a voz de Novello, alta e incisiva, tentando acalmar os leões. Mas ela só fez correr.

Numa cabeça-de-praia, havia uma caverna e, de dentro da boca da caverna, saía a voz de Piuí, em um grito estridente:

— DRAAAAAAAGÃO!Cansada de esperar pela volta de seus Cavaleiros Andantes,

Piuí tinha começado a explorar a caverna. A escuridão gotejava lá dentro. Lindas conchas brilhavam na água das poças do chão e as paredes eram felpudas, revestidas por um limo verde e frio. Mais no fundo, entretanto, não havia cor nem brilho nenhum — só o pinga-pinga da água, como a nota mais alta de um piano tocada sem parar. Sua cabeça esbarrou no teto baixo e a coroa ficou de banda em cima de uma das orelhas. Logo, teve de continuar a exploração apenas com as pontas dos dedos porque não havia mais luz nenhuma. Foi quando sua mão estendida encontrou o couro áspero e caloso, o focinho e a fieira que não acabava mais de dentes horripilantes, e então Piuí deu um berro esganiçado — DRAAAAAAAGÃO! — depois saiu correndo. Bateu de novo com a cabeça no teto baixo e, dessa vez, a coroa se fez em pedaços.

Os ecos do grito dela perderam-se ao longe. Plink plink, respondeu a escuridão, desafinada. Então, alguém agarrou seu ombro, e seus joelhos dobraram-se de medo quando a mão fez seu corpo girar.

— Mostre onde o dragão está e eu acabo com ele!— disse uma voz junto ao seu ouvido.Era Peter, com uma tocha flamejante na mão. Um a um, os

outros membros da Liga de Pan foram surgindo atrás dele.— Onde? — perguntou Peter outra vez.Piuí apontou sem dizer palavra, e a Liga passou atrás de Peter

enquanto ela permanecia plantada no chão, os dedos acariciando, distraídos, o lábio superior. A última a chegar, Wendy deu-lhe um tapinha carinhoso e correu para alcançar os meninos.

E lá estava — a órbita de um olho, a mandíbula escancarada, uma dentadura do comprimento do braço de um adulto.

— Para trás, homens! — gritou Pan, investindo com sua espada e golpeando o crânio do monstro, depois recuando com um salto, na expectativa de vê-lo sair depressa de seu covil, pronto para atacar,

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de boca aberta. À claridade trêmula do fogo de suas tochas, o monstro pareceu estremecer e se encolher... mas quando João atirou-lhe uma pedra, só se ouviu um chacoalhar de dentes. Então, Pirilampo entrou voando por uma órbita e saiu pela outra, iluminando a caveira horrorosa.

— Não hã nada aqui! — reclamou ele, examinando o crânio como um turista desapontado com o teto de uma catedral. O dragão estava morto.

Peter enfiou a mão pela narina do bicho e todos juntos o arrastaram para a claridade do dia. Era monstruosamente grande. Se todos os Meninos Perdidos deitassem ao comprido, um depois do outro, não seriam do tamanho do dragão morto, do focinho à cauda. Eles o viraram de costas e descobriram que o couro do estômago se desfizera inteiro, deixando apenas as costelas, que pareciam os degraus de uma escada, e um resto de espinha dorsal. Dali se desprendia um cheiro de peixe podre, sereia e, estranhamente, de pólvora.

— Ganhei! — disse Peter. — Achei o dragão!— Muito bem! — exclamou Piuí.— Isto não é dragão coisa nenhuma — disse Pirilampo, ainda

sentado em cima do focinho do bicho. Peter mandou-lhe um pontapé, mas ele se abaixou. — Ora, não é mesmo! Os dragões têm amígdalas à prova de fogo. Todo mundo sabe! Isto aqui é um Zacaré.

— NÃO é Zacaré, não senhor! — insistiu Piuí, que estava encantada por Peter ter conquistado a sua mão. — Não liguem para ele. Esse elfo está sempre mentindo.

— Seja ou não seja Zacaré — disse Cabelinho, apertando o nariz —, está morto à beça.

— Não é Zacaré — balbuciou Piuí, baixinho.— Ora, ora, meninos — disse Wendy, conciliadora —, parem de

brigar. O que interessa é que...— Não é Zacaré — resmungou Piuí uma porção de vezes

seguidas, emburrada.Wendy reparou que havia algo brilhante pendurado no cabelo

de Piuí e puxou-o. Era uma mola de metal. Piuí contou como encontrara o material para fazer a coroa dentro da caverna.

Wendy sacudiu a cabeça, sensata.— Desta vez — disse ela — Pirilampo está dizendo a verdade.

Não é mesmo um Zacaré...— Eu falei! — gabou-se Peter. — É um dragão!— Eu nunca digo a verdade! — protestou Pirilampo (o que não

era verdade, claro).— ...Nem um dragão! — declarou ela, levantando a mão com a

mola. — É um crocodilo. Na realidade, é O Crocodilo, com letra maiúscula! O que devorou nosso mais terrível inimigo. Aqui, caros Meninos, na coroa de Piuí, vocês estão vendo tudo o que sobrou do

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despertador que ele trazia dentro do estômago quando andava caçando pela Terra do Nunca, procurando, para comer mais um pedaço, o Capitão Jaime Gancho!

Bastou escutarem o nome de Gancho para um arrepio de emoção percorrer-lhes a espinha. Cabelinho sentiu os caracóis de seu cabelinho ficarem em pé. Pois apesar de terem presenciado o fim com seus próprios olhos — tinham visto o chefe dos piratas saltar para a morte dentro da bocarra de um crocodilo gigantesco, o Capitão Jas (a abreviatura em inglês de Jaime, que ele sempre adotava) Gancho ainda tinha a capacidade de assombrar seus sonhos.

Ficaram olhando fixo para a carcaça, estupefatos, enquanto a bocarra arreganhava os dentes para eles, convencida.

— Então, e aí, alguém conquistou a minha mão? — gemeu a Princesa Piuí, querendo muito que alguém tivesse ganhado.

— Eu encontrei um dragão de pedra! — disse João. — E esses são os piores!

— Eu encontrei um dragão de nuvem — disse D eleve.— E eu, um dragão de água — disse Cabelinho, desamarrando

seus sapatos molhados.— O nosso era de madeira — disseram os Gêmeos —, e nós o

matamos com fogo!— Eu encontrei doze leões — disse Wendy, com ar modesto —

mas acho que isso não conta.Peter simplesmente chutou o Crocodilo. Uma articulação na

cara se quebrou e a mandíbula superior levantou-se devagar. Tiveram até a impressão de que saía fumaça de dentro da boca, mas tratava-se apenas da neblina que vinha da Lagoa. O tempo estava mesmo esquisito: é raro alguém ser ofuscado por relâmpagos e sentir a neblina fazendo cócegas, tudo na mesma noite.

— Vocês todos se saíram muito bem — disse Wendy, pressentindo encrencas. — Agora, gostariam de ouvir sobre os meus leões? E sobre o Circo?

— Bom, não podemos repartir — disse Cabelinho. — Não se pode repartir uma princesa. Como vocês dividiriam ela?

Peter pousou a mão em sua adaga, para a qual Piuí olhou com visível apreensão.

— Há uma porção de dias diferentes em uma semana — disse Wendy com ar animado. Talvez Piuí possa dar a mão a você na quarta-feira, Deleve, e a você na quinta-feira...

— Ainda prefiro ganhar a metade de um reino — interrompeu Deleve.

— É, mas não pode — disse João —, porque eu fiz melhor, pois matei um dragão de pedra, e eles são os piores de todos!

Os Meninos começaram a dar encontrões e empurrões uns nos outros. Até os Gêmeos brigaram porque discordavam sobre quem

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teria posto fogo no Dragão da Floresta.— Vamos ouvir uma história — sugeriu Wendy, mais que

depressa.Peter saltou para cima de uma grande pedra.— Não! Vamos fazer uma GUERRA!Aquela idéia magnífica fez Pirilampo sair rodopiando e dando

voltas no ar todo alvoroçado, com acessos de alegria.— Ah, uma guerra, isso mesmo! Nunca vi uma guerra! — e o

elfo agarrou-se ao cabelo despenteado de Peter, como fogo a um estopim.

Os Gêmeos pararam de brigar. João pôs-se a limpar a areia de sua roupinha de marinheiro.

— Não — disse Wendy. — Nada disso.— Não — disse Cabelinho. — Não vamos, não.— Não — disse João. — Guerra, não.Talvez fosse a umidade fria do nevoeiro. Talvez fosse o

fantasma de uma lembrança. Quem sabe, na distante Fotheringdene, alguém tivesse se encostado no memorial da guerra que fora erguido no gramado do povoado...

— Estive na guerra — disse um dos Gêmeos.— Eu também — disse o outro.— Miguel não iria gostar — disse Deleve. Peter bateu o pé,

ofendido.— E quem é esse tal de Miguel?João prendeu a respiração, em suspense. Wendy virou-se de

costas. Será que Peter realmente esquecera o irmão deles? Seu maravilhoso irmão Miguel?

Ninguém falou nada durante um longo tempo. O único ruído era o que Pirilampo fazia, chiando e voando impaciente à volta da cabeça deles.

— Miguel Darling foi para a Grande Guerra — disse Deleve. — Ele... foi dado como perdido.

Peter olhou fixamente para eles, aqueles amotinados, com seus rostos brancos, cabelos molhados, olhos tristes. Então, desceu da pedra com um salto mortal despreocupado.

— Ah! Um dos Meninos Perdidos! Como querem que me lembre de todos? Foram tantos!

Ninguém tentou explicar. Sabiam que seria muito melhor para Peter Pan (e para jovens elfos tolos como Pirilampo) não saber o que era a Guerra... Além disso, algo havia tirado completamente aquele assunto de suas cabeças.

Cinco grandes ursos negros, a baba pingando das bocas abertas, vinham na direção deles pulando por cima dos rochedos.

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Capítulo SeisUm homem esfiapado

— Upa, ursarada! — disse uma voz profunda, autoritária.Os ursos levantaram-se nas ancas, bamboleantes, rugindo, as

cabeças negras rolando em cima dos grossos não-pescoços, babando e dançando em ritmo de valsa: um-dois-três; um-dois-três.

Peter Pan abriu os braços: protegeria do Mal a sua Liga ou morreria! Atrás dos ursos, do meio do nevoeiro coleante, surgiu um sexto vulto, quase tão alto, quase tão peludo e desgrenhado quanto os animais. Ouviu-se um estalo seco como o de um tiro.

— Vão tomar um gole, ursolinos! — disse o Grande Novello, enrolando seu comprido chicote de couro cru.

Os ursos caíram de quatro, as garras enormes afundando como croques na areia macia, e encaminharam-se para a margem em seu passo pesado para beber água.

— Cavalheiros... damas, espero que meus bichinhos de estimação não os tenham amedrontado.

— O medo é um estranho para mim! — declarou Peter, com as mãos na cintura.

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— São dois estranhos que você então encontra num dia só, Peter Pan — disse o dono do circo. — O Medo e Eu.

Peter espantou-se.— Sabe meu nome?Novello aproximou-se, arrastando seus trajes de lã desfiados,

que iam apagando as marcas leves de seus próprios passos. Sua voz era ainda mais macia que a areia.

— Naturalmente que conheço você, Peter Pan. Quem não ouviu falar do Menino Maravilhoso? Do Menino das Altas Árvores? Do Vingador Destemido! Do Prodígio da Floresta do Nunca! A chama de sua fama ilumina a monotonia dos meus dias. Você é uma lenda!

A Liga de Pan deu um viva entusiasmado, com exceção de Wendy, que achou que tantos elogios poderiam subir à cabeça de Peter. E acertou, porque Pan soltou um estridente cocoricó de prazer:

“Có-cori-cóóó!”Os ursos na beira d’água puseram-se abruptamente de pé e

balançaram-se de um pé para o outro, as garras chocalhando como talheres de metal.

— Ah, devo preveni-lo sobre os ruídos muito altos — aconselhou o dono do circo, em tons de voz tão doces que os ursos, farejando o ar, sentiram cheiro de mel. — Meus ursitos ficam nervosos com ruídos altos. Podem entrar em um estado de fúria descontrolada.

Cabelinho, observando os ursos com uma mistura de terror e fascinação, perguntou se eles podiam realmente beber a água da Lagoa.

— Li em algum lugar: beber água do mar não faz a pessoa ficar doida? — acrescentou.

— Não se incomode com eles, meu rapaz. Já são todos doidos varridos.

Ao ver Wendy, o dono do circo curvou a cintura, inclinando profundamente o corpo.

— Eis que nos encontramos novamente, senhorita Wendy. Seu criado, senhorita, seu mui humilde criado. — E dirigiu-se novamente a Peter. — Eu poderia igualmente perguntar se é prudente que, sendo tão tarde, pessoas de tenra idade estejam ao relento. Por favor, digam-me se têm a perspectiva de camas quentes e de um jantar substancioso?

Quando as crianças responderam que não, não tinham, na mesma hora os convidou para voltar com ele ao Circo Novello.

— Nesses tempos de escassez e penúria, muitas de minhas jaulas encontram-se vazias. Estão limpas e forradas com palha macia e fresca. Consideraria uma honra...

— Não andamos com adultos — interrompeu-o Peter, escavando a areia com o sapato.

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— Ah. Muito bem, então. Mas pelo menos virão ao Circo, não é? — insistiu Novello. — Trouxe ingressos para vocês, vejam! Não querem ingressos para o circo? Todo mundo gosta de ir ao circo! Palhaços e acrobatas! Ursos, tigres, leões! Malabaristas! Escapologistas? Ilusionistas. Exímios cavaleiros! Um trapézio...!

E tirou de algum lugar um maço de ingressos escarlates, que abanou, antes de jogá-los para cima a fim de que caíssem como folhas de outono nas cabeças das crianças.

— Ah, sim, Peter! Um circo!Piuí não foi a única cujo rosto se iluminou com a idéia.— E muito menos achamos conveniente dormir em jaulas! —

completou Peter.— ...mas obrigada mesmo assim — Wendy acrescentou

depressa.Novello não aparentou ter ficado ofendido.— Será que você nunca sonhou... será que nenhum de vocês

nunca sonhou em fazer parte de um circo? Em fugir para uma vida de emoção, risos e vivas num grande picadeiro? Imaginem só! Dançar com as sedutoras ciganas ao som dos trombones da banda! Os corações acompanhando as batidas dos cascos dos cavalos da serragem do chão! As lantejoulas das malhas dos acrobatas cintilando à luz dos holofotes!

Seguiu-se uma pausa embaraçosa, durante a qual Novello fixou em uma criança depois da outra o seu olhar ávido, estranho.

O Cachorrinho foi o único que se dirigiu para ele, e com a intenção de cheirar a curiosa fiapeira que envolvia o dono do circo da cabeça aos pés. O bichinho deu um bote em um emaranhado de fios de lã que se arrastava pelo chão e no mesmo instante se enredou nele, e tanto que Cabelinho teve de acudir para procurar soltá-lo. Seus dedos embaralharam-se de modo constrangedor em algum ponto entre as botas deformadas e mosqueadas do homem. Novello baixou a cabeça e fitou-o pacientemente, com olhos da cor do mar da Inglaterra.

— Você demonstra uma grande preocupação com os animais, meu jovem. Não vê a si mesmo como um veterinário, talvez? Um dia? Quando for mais velho?

— Eu...O Cachorrinho, de repente e indelicadamente, mordeu o dono

do circo, que deu um grito de dor. Isso assustou os ursos e os trouxe de volta pela praia, com suas passadas barulhentas, os focinhos negros molhados, os olhos negros brilhantes como contas. Um peixe morto balançava na boca de um deles, um caranguejo na de outro. Ficaram de pé, altos, para passar entre as crianças, elevando-se muito acima delas, pelo menos duas vezes mais altos, grandes mantas de pêlo reluzente roçando em seus pequenos braços nus.

— Calma, minhas fúrias felpudas — sussurrou Novello. — Nada 43

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de dança esta noite. Não nos querem aqui.Arrepanhando sua roupa mais junto ao corpo, virou-se para

partir, a ponta de seu chicote de couro cru rastejando como uma cobra pela areia. Os ursos puseram-se de quatro e saíram trotando atrás dele.

— Quem é você? — perguntou Deleve. Ele era sensível a mágoas e percebia-as de longe, assim como os leões farejam suor e os ursos, o mel.

Novello virou-se.— Eu? Ah, só um viajante, um homem em viagem,

simplesmente — respondeu. — Mas não vou incomodá-los mais, já que não necessitam de minha pessoa nem de meus préstimos. Preciso ir agora: alimentar minhas feras e conter a minha decepção. Tinha a esperança de poder prestar algum serviço ao Menino Maravilhoso. Lamentavelmente, porém, a Esperança nada mais é que um cruel ardil que os deuses nos preparam. Boa noite, cavalheiros... e damas.

A neblina fechou-se atrás dele como as portas de uma catedral, e o único som que restou foi o suspiro da água na mudança da maré.

Os Gêmeos abaixaram-se para pegar os ingressos, mas Peter arrancou-os deles e rasgou todos em pedacinhos.

— Não precisamos de adultos! — disse. — Estamos muito bem assim! — e a expressão de seu rosto revelava que ele não admitiria discussão.

— Ele poderia ter-nos dado umas torradinhas com ovo e manteiga ao jantar, aquele homem em fiapos — disse Pirilampo, imprudente, o que fez Peter dar-lhe um tapa que o atirou dentro de uma das poças d’água entre os rochedos.

— Homem em viagem — Wendy corrigiu Pirilampo, enquanto o resgatava da poça e enxugava com a saia de seu vestido. — Não em fiapos.

— Talvez ele não seja um adulto — sugeriu Piuí. — Não dava para ver bem, não é? Podia ser como nós, só que bem grande.

— Ou talvez o casaco de lã dele fosse comprido demais — concordou João, balançando a cabeça.

Mas Peter recusava-se a lhes dar ouvidos. A idéia de dormir em uma jaula (com palha seca ou não) enchia de horror a sua alma ciosa por liberdade. Pensar em animais presos em jaulas era quase tão ruim. Estarrecia-o imaginar criaturas selvagens encerradas atrás de grades. Tinha a impressão de que estavam engaioladas dentro dele — aqueles ursos e tigres e leões — andando de um lado para outro, enfiando os narizes de pelúcia entre as barras de suas costelas — e aquilo o afligia tanto que ele queria abrir seu peito e soltá-los todos... Um terrível pressentimento tomou conta de seu coração, algo que ele não compreendeu. E não compreender alguma coisa sempre incomodava muito Peter.

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— Bem, onde vamos dormir esta noite? — choramingou a Princesa Piuí.

— Peter, está sentindo cheiro de fumaça? — perguntou Wendy.Peter levantou o rosto e suas narinas se agitaram.— Sinais de fumaça — disse. — Ou fogueiras... Talvez as Tribos

estejam comemorando alguma coisa.Entretanto, um ruído diferente chegava até eles acima do ruído

do mar, como um gigante gemendo durante o sono e mudando de posição em um colchão de palha seca. Estralejando. Ouviam-se gritos de animais, também, de animais amedrontados, agitados. Era impossível afirmar se o nevoeiro tornara-se mais denso ou se havia fumaça misturada nele. Mas àquela altura a fumaça com certeza estava bastante densa, pois fez as crianças tossirem.

— Quanto àquele Dragão da Floresta e vocês, Gêmeos... — começou Peter. — Como foi mesmo que o mataram?

— Com fogo. Por quê? Oh. Ooh!E a Floresta do Nunca começou a refulgir, pondo à mostra seus

ossos, suas árvores mortas e tortas aqui e ali. Algo monstruoso vinha vindo através da mata, e dessa vez não era um bando de ursos nem o Expresso TransSigobiano.

Era o Fogo.Uma forma fantasmagórica, ondulante como um vagalhão,

desprendeu-se das copas das árvores e elevou-se no céu noturno, arrastando consigo uns dez estopins pendurados. Fulgia com uma luz alaranjada, pois estava cheia de fogo. Escrita nela, enxergava-se claramente a palavra

NOVELLOA tenda do circo, com seus cabos de retenção em chamas,

continuou a subir até se transformar em uma bola de fogo e cair de volta no inferno que se formara embaixo.

— Oh, Gêmeos! Olhem só o que vocês fizeram! — murmurou Piuí.

— Só matamos um dragão! — protestaram os Gêmeos. Dentro da floresta, devorada pelas labaredas, estavam os restos da Cabana da Wendy, da Casa Subterrânea, várias jaulas forradas de palha seca e limpa e um dono de circo vestido com uma roupa de lã toda desfiada e emaranhada. A Floresta do Nunca enchia-se dos gritos dos linces e leões, zebras e gorilas, tigres e palmerions. Choveram fagulhas do céu, como se as estrelas caíssem aos pedaços.

— Está na hora de irmos embora — disse Peter quando o calor os alcançou na praia e a Lagoa começou a soltar vapor.

Mas para onde? Estavam encurralados entre a floresta

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incendiada e o mar. A Floresta do Nunca tornara-se um borrão. A caverna desaparecera da vista. Sem que se dessem conta, a fumaça enevoada e o nevoeiro enfumaçado adensaram-se a tal ponto que as crianças mal distinguiam uma à outra.

Assim, todos se viraram de frente para a Lagoa. E, de dentro da Lagoa, como se arautos a anunciassem, veio a visão mais fantástica de todas. Os olhos deles ardiam, mas arregalavam-se cada vez mais. Os lábios de João formularam as benditas palavras:

— Navio à vista!

Capítulo SeteUm certo casaco

— Navio à vista! — gritou ele, pulando, exultante. Através de rolos de fumaça amarela, surgia o gurupés, o mastro do bico de proa de um navio, tal e qual a espada de um duelista — en garde! Logo em seguida, apareceu a proa achatada e negra de um brigue que navegara por muitas aventuras, abrindo caminho nas ondas escuras como óleo. Um ruído de pano úmido sendo agitado falava de velas negras frouxas e pontas soltas de cabos oscilando, sinuosas como serpentes. Com um suave ranger de cascalho e areia, a quilha encostou no fundo e o navio estremeceu de ponta a ponta, zangado por ser a reles terra firme a se intrometer em seu caminho. Ao sabor da corrente, no meio do nevoeiro, o Terror dos Mares simplesmente não tinha mais mar onde navegar. Naquele momento, a proa erguida, altiva e desdenhosa, desafiava as pequeninas ondas que saltavam e latiam em torno de seus pés a continuarem a aborrecê-la.

— Conheço esse navio! — exclamou Peter, e os outros disseram o mesmo.

Pois até os que não sabiam ler direito para decifrar o nome escrito na proa conseguiam distinguir a caveira e os ossos cruzados, ondulando na bandeira do topo do mastro.

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— É o navio DELE! — disse Deleve com um fio de voz.Esperaram pelo ribombar dos canhões. Prestaram atenção para

escutar o grito de “Alto, seus lambazes!” vindo do tombadilho. Mas o navio estava silencioso, exceto pelo ranger das madeiras gemendo: Encalhou! Encalhou!

Peter foi o primeiro a bordo, é claro, escalando o costado pelas cracas agarradas nele, pelas portinholas, as aberturas por onde saem os tiros dos canhões, e chamando o resto para segui-lo.

— De que têm medo? Gancho está morto e liquidado, não é? E lá está o Crocodilo que o devorou!

Piuí e Deleve acompanharam-no, mas os meninos mais novos deixaram-se ficar para trás, lembrando que certa vez tinham sido prisioneiros naquele navio, que tinham sido amarrados ao mastro e condenados a andar pela prancha. Mesmo com o incêndio na floresta alastrando-se às suas costas e nada mais para respirar a não ser fumaça, foi preciso Wendy deixá-los encabulados para que se mexessem. Ela subiu atrás de Peter cantando uma canção de marinheiros.

Procurou não lembrar nem a si mesma o medo que sentia ao andar pelo convés, subir as escadas do tombadilho, abrir portas de cabines e espiar lá para dentro. De vez em quando, uma figura sombria assomava repentinamente dos aposentos abafados e escuros com um grito e um gesto rápido para pegar a espada. Então, a névoa se dissipava e lá estava Cabelinho, ou João, ou Deleve, de pescoço esticado, espiando, tremendo de pavor porque eles tinham acabado de ver a figura sombria dela. Cabelinho tropeçou em um canhão; Deleve vinha andando e topou com o sino de bordo, que retiniu, lúgubre, como se anunciasse o Dia do Juízo Final. Quando a fumaça momentaneamente se dissipou e o luar se derramou sobre o navio, o mastro parecia tão alto que se poderia subir por ele com um abafador de velas na mão e apagar todas as estrelas.

Tudo estava exatamente como na noite de ah-tanto-tempo-atrás em que Peter Pan e o vil pirata Capitão Gancho haviam lutado até a morte para decidir quem ficaria com Wendy para lhe servir de mãe. Desde então, aranhas haviam tecido suas teias entre os vãos da roda do leme. A ferrugem prendera as bolas de canhão em seus suportes. Ratos tinham nascido ali, criado seus filhos, envelhecido e se mudado para celeiros no campo. As gaivotas tinham tingido de branco as velas e a chuva as lavara e deixara negras outra vez. Mas nenhum sapato de sola de corda nem bota de cano longo pisara o tombadilho superior durante vinte anos. Nenhuma canção soara no castelo de proa; nenhum contramestre soprara mais seu apito a bordo do Terror dos Mares. Era um navio-fantasma num oceano de miasmas. Mofado, molhado, morto.

Mas para aventureiros desabrigados que precisavam fugir da praia — tarde da noite e sem ter onde dormir —, era um sonho que

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virava realidade. Ainda havia redes penduradas nas anteparas. Havia bolachas de bordo nos barris de biscoitos e pudins de Natal feitos de ameixa, conservados dentro de barris de conhaque, e água fresca da chuva nas barricas de água. Havia botas dentro de arcas individuais e também vários sacos de marinheiro marcados com nomes: Barrica, Metido a Besta, Cecco, Jukes...

— Quanto tempo você acha que os piratas vivem? — perguntou Cabelinho.

E havia um baú de bordo.Wendy arejou o castelo de proa do mesmo jeito como dava suas

opiniões, ou seja, apenas durante o tempo necessário, e depois ajeitou os Meninos em suas redes e colocou-as para balançar.

Havia mapas — as cartas náuticas — no camarim de navegação, bandeiras de sinalização e capas de chuva, um telescópio para se enxergar ao longe e uma bússola para se orientar. Havia uma chaleira e chocolate em pó e algo branco em barriletes que serviria como farinha de trigo — ou talco, em caso de necessidade.

E havia o baú de bordo.J.G. estava escrito na tampa, que se abria como a de um

guarda-louça e dentro tinha gavetas para meias, golas de renda e medalhas. Havia uma luneta de bronze tão pesada quanto uma espingarda. Havia um outro instrumento de bronze com peças corrediças e calibradores e botões serrilhados, de utilidade desconhecida. Havia uma sobrecasaca de brocado vermelho e, enrolada em um canto como uma serpente pálida, uma tira branca de pano para usar ao pescoço como gravata. Peter Pan vestiu a sobrecasaca, admirou sua imagem no espelho manchado da cabine, depois embolsou a luneta e subiu ao mastro principal até o cesto de gávea. Fazendo estalar a gravata como se fosse um chicote, ele jogou a cabeça para trás e cocoricou tão alto que as estrelas chegaram a piscar.

“Có-cori-cóóó!”— Agora serei o Capitão Peter Pan, e vou navegar pelos sete

mares! — gritou ele, espantando um albatroz que estava chocando em um ninho no mastro da mezena.

De volta ao convés, Wendy teve de dar o nó da gravata para ele: nunca usara uma gravata de homem em seu pescoço antes.

— Acho que você vai descobrir que há sete mares, mas apenas cinco oceanos — disse ela, enquanto dava o nó.

Peter afundou as mãos nos bolsos fundos do casaco de brocado vermelho. Havia furos no forro por onde moedas espanholas de prata passariam facilmente; aquele devia ser o segundo melhor casaco de Gancho. Ora, claro que era! O melhor fora parar, junto com seu dono, no fundo da garganta do Crocodilo.

— Fique quieto, não se mexa — disse Wendy, severa (porque

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amarrar a gravata de um cavalheiro leva tempo e exige habilidade).Peter, porém, tinha encontrado algo mais em seu bolso além de

furos. Sentiu esfacelar-se entre seus dedos parte de um pergaminho macio, da melhor qualidade, com o qual são feitos os mapas.

— Olhe! Veja o que encontrei! — exclamou, sacudindo o mapa acima da cabeça. — Um mapa de tesouro! E aqui está o lugar onde Gancho empilhava seu tesouro!

Em uma paisagem de pergaminho cor de creme, havia florestas e colinas, faróis e montanhas. E ali, realmente, como se tivesse sido feito por um professor zangado, havia um enorme e negro X cortando a montanha mais alta de todas. Abaixo, fora rabiscado à tinta: “Monte do Nunca”.

— Içar a amarra da âncora com o cabrestante e guarnecer as vergas! — ordenou Peter. — Preparar o navio! — e se ele se surpreendeu com palavras tão marinheiras em sua boca, não o demonstrou.

Cabeças apareceram em todas as escotilhas.— O quê? Por quê? Aonde vamos?— Sim — repetiu Wendy, irritada —, aonde vamos? Vai haver

muito o que arrumar depois do incêndio.— Vamos partir em uma viagem de descoberta!— bradou Peter. — Vamos sair à procura de um tesouro!— Uma caça ao tesouro! — gritaram todos. — Uma caça ao

tesouro!Uma caça ao tesouro por águas inexploradas, ao redor da ilha e

para desembarcar em territórios desconhecidos — por caminhos nunca trilhados da Terra do Nunca e em meio aos insondáveis perigos da Terra-do-Nunca-Estive-Lá! Qualquer outro pensamento que não fosse esse, qualquer outro plano além desse, apagou-se por completo da mente dos companheiros de Pan.

Até o oceano pressentiu a onda de empolgação— TESOURO! — pois afluiu abundantemente para a baía. A

maré subiu muito mais depressa que nos dias sem importância. Fez flutuar o Terror dos Mares de novo e depois girar, de modo que sua proa — e seu gurupés — apontaram para o mar: en garde! A fiel tripulação de Peter empoleirou-se toda no cordame, esperando que, dali de cima, conseguisse ver além do horizonte. Fagulhas da floresta em chamas enxamearam ao redor de suas cabeças e roçaram a lona das velas. No momento exato, os viajantes deixaram para trás a Baía dos Dragões e navegaram para dentro da noite. Ao cruzarem a barra e sentirem no rosto os borrifos da água salgada, até o navio pareceu tomado pelo esplendor do empreendimento, pois à meia-noite o sino de bordo tocou oito vezes. E não havia ninguém por perto.

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Capítulo OitoTodos ao mar

O Terror dos Mares, depois de tanto tempo sem uma tripulação, obedecia animadamente ao mais leve toque no timão. Peter ficou tão bonito com seu casaco escarlate (depois que as mangas foram encurtadas) que a Liga de Pan seria capaz até de andar sobre a água para agradá-lo. Em alguns pontos do litoral, ele os levou a terra para se abastecerem de fruta-pão, e também de nozes-manteiga e favos de mel para comer junto. Armava toldos feitos de velas do navio para que se abrigassem da chuva. Concedeu-lhes postos: Contra-Almirante, Almirante-A-Favor, Primeiro Lorde do Almirantado, Outro Primeiro Lorde do Almirantado, Melhor-Imediato-Não-Há, Contramestre do Convés, Contramestre dos Mastros e Guardião do Cesto da Gávea. E disse a eles:

— Serei fiel a vocês para sempre e darei minha vida por vocês se fizerem parte da minha Companhia de Exploradores!

E eles teriam jurado sobre o punho de suas espadas se tivessem espadas que prestassem.

Às vezes, o tom enfurecido de suas ordens pegava-os de surpresa, mas valia a pena ser um membro daquela tripulação feliz. A habilidade dele para governar o navio impressionava-os. Os nomes de obscuros cabos e peças do navio ocorriam-lhe instantaneamente. Sabia até praguejar como um marinheiro.

— Já chega, sim, por favor — disse Wendy.Por horas a fio, permanecia sentado diante da mesa de mapas

no camarote particular de Gancho, na popa do navio, e escrevia no diário de bordo usando uma pena de corvo, que mergulhava em um jarro de porcelana cheio de tinta vermelho-sangue. Como nunca aprendera a ler nem a escrever, enchia as páginas com desenhos em

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vez de palavras, registrando os acontecimentos do dia.

Então, voltava a examinar com atenção o mapa do tesouro de Gancho, perguntando a si mesmo o que teria levado o patife a se afastar tanto do mar carregando

uma pesada arca de tesouro, especulando que butim seria aquele que Gancho tivera tanto trabalho para esconder. Que dificuldades iriam enfrentar os Exploradores que fossem procurá-lo?

Peter mudou o nome do brigue, evidentemente — para Galo dos Mares — e recusou-se a navegar sob a bandeira do pirata.

— Não sou um bandido desprezível para hastear esse estandarte com a caveira-e-dois-ossos-cruzados! — disse a Wendy. — Faça-me uma bandeira, menina!

— Qual é a palavrinha sem a qual não se faz nada? — perguntou Wendy, que era rigorosa quando se tratava de boas maneiras.

Peter deu tratos à bola. Como não tivera mãe para ensinar-lhe a ser educado, não tinha a menor idéia de que palavrinha podia ser aquela.

— Botão? — arriscou. — Dedal? Bandeira? Wendy sorriu, deu-lhe um beijo ligeiro no rosto e foi fazer a bandeira com seu vestido de verão e um vestido para si com a bandeira dos piratas. Assim, foi sob o emblema do girassol-e-dois-coelhos que o Galo dos Mares atravessou os Canais de Ziguezague e os Estreitos Vaiquedá para chegar ao Mar das Mil Ilhas. Peixes-voadores saltavam por cima do navio e gaivotas mergulhavam por baixo dele, voltando à tona com os bicos cheios de peixe miúdo.

As Mil Ilhas foram aparecendo em todas as suas formas e tamanhos. Havia rochedos que só serviam para abandonar um marinheiro rebelde; ilhas desertas com uma única palmeira e um pouco de palha de coqueiro; ilhas com manguezais e cheias de papagaios barulhentos; arquipélagos de coral vermelho e archipe-louses com belos gramados verdes. Havia atóis vulcânicos extintos e ilhas com vulcões nada extintos que fumegavam e estrondeavam e lançavam pedaços de rocha derretida a distância no mar. Havia ilhas com formato de tartaruga e outras com formato de ilhas mesmo, mas repletas de tartarugas. Todas elas Peter encontrou assinaladas nos mapas, assim como os faróis e promontórios, redemoinhos e estuários. Em trechos sombreados marcados com as palavras “Águas Piscosas”, bastava balançar um ímã junto ao costado do navio e

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apanhava-se uma lata de sardinhas ou de espadilhas. Havia restos de naufrágios e aldeias submersas cujos sinos de igrejas tocavam quando o mar estava bravo...

Peter irritava-se quando as ilhas que passavam pelas janelas de batente — iguais às de uma casa, e não escotilhas comuns de navio — de sua cabine não se pareciam nem um pouco com as do mapa. Os desenhistas dos mapas haviam burramente desenhado tudo como se estivessem olhando de cima: muito bom para quem viajasse de balão pelo ar, mas muito confuso para um capitão de navio. Deveriam ter mostrado como cada ilha aparecia vista de lado, através de uma luneta de bronze.

Ele sabia que sem dúvida haveria outras coisas pela frente — coisas não assinaladas nos mapas, como ondulações causadas pela maré, baleias e trombas d’água — que constituíam perigo de vida. Mas tudo bem. A exploração era mesmo uma tarefa para heróis. Peter acariciava a gravata branca em torno de seu pescoço e fechava os olhos, cansados de tanto ler mapas. Pintas coloridas expandiam-se dentro de suas pálpebras e convertiam-se em estranhas paisagens e vistas: amplos gramados verdes, remadores em um rio ensolarado, um prédio esbranquiçado que parecia um palácio, com janelas altas e estreitas com vidros coloridos... Não existiam lugares assim na Terra do Nunca — pelo menos, que ele tivesse visto. Que maravilha, então, ter aquelas imagens dentro da cabeça!

— Navio à vista!Peter largou sua pena e a tinta vermelha respingou no Mar das

Mil Ilhas. Peter subiu correndo para o convés.— Navio à vista!— avisou Cabelinho de novo, do alto do cesto

da gávea.— Não é apenas um navio, meu caro — disse Deleve. — É um

navio a vapor.Pela luneta de bronze de Gancho, Peter avistou um pequeno

navio acinzentado como o aço da armadura de um cavaleiro. Cheio de ferrugem, que parecia sangue coagulado, vinha na direção deles bufando e sacolejando e repenicando sem parar, dentro de uma nuvem de fumaça suja que saía de sua chaminé. Uma boca aberta cheia de dentes fora pintada na proa, e tinha-se a impressão de que o naviozinho vinha mastigando seu caminho pela água. Wendy sinalizou com as bandeiras:

A-M-I-G-O O-U I-N-I-M-I-G-O?Os Meninos assistiam admirados os braços esticados de Wendy

movimentando-se como os ponteiros de um relógio. Infelizmente, ninguém na tripulação do navio a vapor sabia ler os sinais das bandeiras. E continuavam seguindo em frente, a toda velocidade. Nem com tanta velocidade assim, mas como o SS Tubarão mantinha o curso para abalroar o Galo dos Mares a meia-nau, não havia tempo

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a perder. Não havia tempo para carregar o canhão com pólvora (ou farinha de trigo). Não havia tempo para vasculhar o navio à procura de mosquetes.

— Cambar para bombordo! — gritou Peter.A tripulação olhou para ele piscando, apatetada. Estavam muito

impressionados, mas não tinham a menor noção do que aquilo significava: Peter devia ter encontrado algum livro de frases de alto-mar no baú de bordo de Gancho.

— Rumem para aquele lado de lá, seus palermas! — berrou ele.João girou a roda do leme. O Galo dos Mares adernou e fez a

volta. O sino de bordo tocou. As velas se agitaram e ondularam. Os cabos se retesaram com um zunido. O Cachorrinho escorregou pelo convés. A proa do Galo dos Mares girou até ficar apontando quase na mesma direção que a do SS Tubarão. Em vez de serem cortados ao meio por uma lâmina de aço, talvez conseguissem desviar-se de seu caminho ou correr mais depressa que ele.

Vã esperança. As velas encheram-se de vento; o Galo dos Mares balançou e foi jogado de um lado para outro na água. E lá vinha sem parar o SS Tubarão, agora tão perto que as crianças enxergavam a bandeira de piratas na ponta do mastro e a tripulação preparando-se para a abordagem. Era uma visão alarmante, pois esses piratas, apesar de baixinhos, estavam todos pintados para a guerra e armados com machadinhas, arcos e flechas e facões de mato de lâmina longa.

— Os índios peles-vermelhas de Metido a Besta! — murmurou Peter.

A proa de aço com sua arcada dentária pintada não abriu ao meio o casco do Galo dos Mares. Abalroou-o na popa, espatifando as janelas da cabine de

Peter e sacudindo o navio de popa a proa. Incapaz de resistir, o grande brigue foi empurrado pelo navio a vapor para diante como se fosse um carrinho de criança empurrado por uma babá. O Capitão do vapor surgiu da ponte de comando, carregado em uma cadeira giratória forrada de couro, destinada ao capitão do navio, transportado no alto por quatro crianças guerreiras. Tratava-se nada mais nada menos que Metido a Besta: primeiro imediato do Capitão Jas Gancho nos dias longínquos do passado, antes da grande vitória de Pan sobre o capitão e sua abominável tripulação!

— E agora, meninos, o que me dizem disso? — perguntou Metido a Besta, a fisionomia triunfante franzindo-se toda como um pedaço de couro velho.

— Apresentem-se para essa gente distinta.Aliás, não eram todos meninos. A metade era de meninas, com

longos cabelos sedosos e túnicas de pele de gamo mais limpas. Mas todos estavam armados. Com a corda de seus arcos esticada até o fim, eles fizeram uma reverência, curvando o corpo para a frente ou

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dobrando levemente os joelhos, piscaram com seus grandes olhos escuros para a tripulação do Galo dos Mares e gritaram:

— Olá. Muito agradecidos. Como têm passado? Muito prazer. Façam a gentileza de deixar cair aqui perto de nós os seus pertences que estamos roubando e depois se deitem com o rosto para baixo no convés, senão, infelizmente, teremos de cortar suas goelas e alimentar os peixes com as suas pessoas. Lamentamos muito. Por favor, não peçam que tenhamos misericórdia para não ficarem ofendidos com uma recusa. Muito gratos. O tempo tem estado de fato bastante agradável.

Capitão Metido a Besta aprovou balançando a cabeça e deu um giro completo em sua cadeira.

— Muito bem, marujos, mas vocês esqueceram de falar sobre os escalpos deles. Devem sempre mencionar o assunto dos escalpos.

Subitamente, ele pareceu reconhecer o navio. Seu olhar então caiu em Peter — ou melhor, no casaco de Peter —, e nem a pele queimada por uma vida inteira ao sol conseguiu esconder a palidez que se espalhou pelo seu rosto.

Enquanto isso, o vapor empurrava o Galo dos Mares pela água como se fosse um carrinho de mão. Os Meninos viam agora que o nome lambuzado com tinta na proa do navio a vapor não era SS Tubarão, mas sim SS Metidão. O casco de madeira estalava e rangia. As balas de canhão caíam de seus suportes e rolavam pelo convés, fazendo a tripulação e o Cachorrinho pularem para sair de seu caminho. As faces de Peter estavam rubras de humilhação.

— Virou Capitão agora, hein, Metido a Besta! Você, que nunca passou de um pano sujo para limpar o convés de Jas Gancho!

Um ou dois dos Exploradores já haviam deitado com o rosto para baixo. Ao ouvirem Peter rir na cara de seu atacante, levantaram-se outra vez.

— Ouvi dizer que você tinha sido capturado pelos índios peles-vermelhas, Metido a Besta! Depois que derrotei vocês na Grande Batalha, não foi? Soube que você foi incumbido de tomar conta dos bebês-índios! Que destino terrível para um homem que se dizia pirata! — Peter carregou as palavras com uma grande dose de desprezo, da mesma forma como teria carregado um mosquete com pólvora.

O Capitão Metido a Besta deu dois rodopios seguidos em sua cadeira giratória. A cor voltara às suas faces.

— Macacos me mordam! Se não é o danado do cocoricó! Por um momento, achei que fosse o... Ora, ora, não é que a vingança é doce mesmo, como se diz por aí! Destino terrível, você disse? Nem me fale! Pior que a morte, foi o que pensei na época. Obrigado a tomar conta de um monte de bebês e de pirralhos? Uma vergonha, uma situação degradante prum homem com a minha vocação! Mas até que tirei bom proveito dela, não vê? Transformei em vantagem

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pra mim. Deu pra notar o trabalho que fiz com eles, com as minhas indiazinhas e meus pequenos bravos? Nem na sala de visitas do rei da Inglaterra ‘cê vai encontrar boas maneiras assim. E ensinei um ofício a eles, também, o que a maioria dos professores nem faz nas escolas. Ensinei a eles tudo o que aprendi. Transformei eles em piratas, todos eles, sem exceção. Alguns têm um bocado de talento, ‘cê nem imagina! São meu orgulho, esses pestinhas, cortam uma garganta igual a gente grande! São o orgulho da minha vida. Qual é a carga que ‘cê traz aí, ô cocoricó? Diga logo, porque agora a sua carga vai ser minha!

Como Peter recusou-se a responder, Metido a Besta mandou que uns dez de seus pequenos cortadores de gargantas subissem a bordo do Galo dos Mares para saquear o navio.

— E tragam meu velho saco de marinheiro que está no castelo de proa! — acrescentou. — O que tem meu nome escrito bem grande em cima.

Quando a Liga bravamente sacou suas espadas de madeira para defender o navio, Metido a Besta caiu na gargalhada, e riu tanto que quase caiu da cadeira.

— O quê? Será que as suas mamãezinhas não deixam vocês brincarem com espadas de verdade?

Nem Peter, que sempre carregava uma adaga de verdade no cinto, podia desafiar as vinte flechas apontadas para a sua cabeça.

Os piratas pintados para a guerra saltaram agilmente a bordo pelo local onde a proa do SS Metidão estava encravada na popa espatifada do Galo dos Mares. No porão, como só encontraram teias de aranha e bolachas de navio, eles reuniram os Darlings e os empacotaram nos velhos e fedorentos sacos de marinheiro que estavam no castelo de proa, amarrando-lhes os cordões em torno dos pescoços.

— Vou obter um bom preço por eles como escravos! — gabou-se Metido a Besta, com ar de maldosa satisfação.

Os guerreiros foram muito educados e suas mãos pequenas eram macias e bem lavadas. Mas roubaram o guarda-chuva e o canivete de João e, enquanto os amarravam, discutiam se o Cachorrinho ficaria mais gostoso se o cozinhassem com gengibre, com mariscos ou com molho de piripiri. Nenhum deles sequer ousou colocar as mãos em Peter Pan, que segurava o punho de sua adaga com ar de desafio. Mas trabalharam ao redor dele, ignorando suas pragas de gelar o sangue e sua promessa de “fazer Metido a Besta pagar por isso”.

Enquanto isso, o naviozinho a vapor resfolegava e espoucava e se esfalfava, empurrando o Galo dos Mares como se fosse um carrinho de chá num daqueles enormes restaurantes tradicionais de Londres. Pelos barulhos que produzia, tinha-se a impressão de que o brigue poderia morrer de vergonha a qualquer minuto, partir-se ao

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meio e ir para o fundo do mar. Depois que Cabelinho desceu arrastado do cesto da gávea e foi enfiado dentro de um saco de marinheiro, não restou ninguém de vigia para avisar sobre a aproximação de recifes ou redemoinhos. Sem suas cartas náuticas diante de si, Peter não tinha meios de saber o que havia à frente. A qualquer momento, podiam encalhar — ou alcançar o horizonte e despencar pela beirada do mundo abaixo! A única coisa que o consolava era pensar que o Galo dos Mares arrastaria junto o SS Metidão para as profundezas do abismo.

— Vire seus bolsos para fora! — disse Metido a Besta para Peter.

(E pôr o mapa do tesouro de Gancho nas mãos gananciosas de um pirata ordinário?)

— Nunca!— Vire logo seus bolsos para fora, cocoricó, ou mando meus

cortadores de gargantas flecharem você todinho e depois eu mesmo vou aí dar uma olhada no que você está escondendo dentro deles!

Wendy viu o menino com a roupa de penas de gaio vermelhas e a sobrecasaca escarlate olhar de soslaio para a amurada do navio. Percebeu na hora que ele preferia saltar para a morte a entregar seu mapa do tesouro para Metido a Besta.

— Não faça isso, Peter! — gritou ela.Com um gesto paternal, Metido a Besta colocou a mão no

ombro de uma jovem índia, cujo arco estava retesado, pronto para atirar.

— Quando eu mandar, marujo... atire na coxa dele — disse, e a índia mirou o alvo com cuidado. — Vamos ver se uma flecha não fura esse orgulho todo como se fosse um balão!

Ora, se Peter tivesse seus mapas naquele instante à sua frente, teria visto que o Mar das Mil Ilhas ganhara recentemente um pequeno acréscimo. Cinco pequeninas ilhas tinham surgido a bombordo e, o que era muito incomum em se tratando de ilhas, pareciam estar avançando na direção deles. Além do mais, subiam e desciam na ondulação da água, singrando as ondas, movendo-se contra a correnteza. Quando Metido a Besta as viu também, ficou estupefato. A temida ordem “Atire” ficou em suspenso em sua boca, sem ser pronunciada, enquanto ele acompanhava com os olhos a flotilha de pequenas elevações deslizar para cada vez mais perto.

Naquele exato momento, os velhos motores do navio a vapor, no esforço de empurrar o Galo dos Mares, não agüentaram mais e explodiram. A chaminé cuspiu um pouco de fuligem negra para cima e depois parou de soltar fumaça. O nauseante avanço tornou-se mais lento, e por fim os dois navios ficaram ao sabor das vagas. As cinco ilhas os alcançaram e acomodaram-se ao redor. Eram viçosas, felpudas de tantas árvores, de tanta alfafa e capim-dos-pampas, e aparentemente presas umas às outras por metros e metros de

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cordas esfiapadas. Teriam habitantes, aquelas balouçantes extensões de terra?

Ah, sim, senhores, tinham.Apareceram croques de atracação que seguraram a amurada

do navio como se fossem garras gigantescas. Em seguida, vieram... bem... garras gigantescas. Os índios peles-vermelhas foram os que viram os tigres primeiro. As panteras saltaram mais ligeiro para bordo, mas tinham o pêlo tão negro que eram quase invisíveis. Os ursos moviam-se devagar, mas também era impossível detê-los, e eles apoiavam as enormes barrigas peludas em cima da amurada para em seguida se deixarem cair pesadamente no convés como sacos de açúcar mascavo. Os babuínos vinham voando pelo cordame do navio, mão-depois-punho-depois-cauda. Os cascos dos palmerions batiam com um ruído oco nas tábuas do convés.

Em circunstâncias normais, ninguém duvidaria que os antigos bebês de Metido a Besta fossem maravilhosos como arqueiros ou cortadores de gargantas. Mas diante daquela chusma de panteras, daquele magote de leões, daquela batelada de macacos e do mundaréu de ursos, as mãozinhas macias deles tremeram e os arcos escorregaram nos dedos suados. Fugiram correndo para baixo do convés principal. O grupo que estava a bordo do Galo dos Mares para fazer a pilhagem pulou de volta para a proa do SS Metidão, derrubando seu capitão-babá da cadeira giratória para dentro do paiol de tintas. Tentaram soltar as embarcações uma da outra, mas a proa do navio a vapor estava cravada muito fundo.

As cinco ilhas encostaram levemente no Galo dos Mares suas defensas feitas de seringueiras, as árvores da borracha. Quatro das cinco ilhas estavam repletas de animais de espécies exóticas. Na quinta, encontrava-se apenas uma espécie de animal. Uma criatura solitária, de duas pernas.

— Encontrou dificuldades, senhor? Que sorte eu estar passando — disse O Grande Novello.

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Capítulo NoveJusta partilha

Peter Pan sacou sua adaga e cortou os cordões dos sete sacos de marinheiros. A Liga de Pan estava livre. A primeira preocupação dos meninos foi ficar o mais longe possível dos animais selvagens que andavam pelo navio, rugindo, investindo contra tudo e pingando baba no convés.

— Oh, por favor! — disse Novello. — Não liguem para meus dentuços. Eles sabem qual é o seu lugar e raramente comem entre as refeições.

E estalou seu chicote de mestre de cerimônias do circo. Os animais encolheram-se, interromperam o que estavam fazendo, pularam por cima da amurada e voltaram nadando para suas diversas ilhas flutuantes. Exceto os ursos, que subiram a bordo do SS Metidão, sentaram-se ao redor da escotilha do castelo da proa para enfiar as patas imensas por ela, como se tentassem apanhar peixes por um buraco no gelo. Ouviam-se os indiozinhos lá dentro gritando e choramingando, chamando suas mães. Peter Pan segurava firme a adaga.

— Obrigada, senhor Novello! — disse Wendy. — O senhor nos salvou!

— Foi um prazer, senhorita — respondeu Novello, inclinando-se. Seus amplos trajes estavam chamuscados e pairava em torno dele um odor de lã queimada. — Tinha grandes esperanças de que nossos caminhos se cruzassem novamente.

Peter, minúsculo ao lado do dono do circo, recuou ao ouvir isso.— Por quê? — perguntou ele.— Houve um incêndio na Floresta do Nunca... que aliás vocês

devem ter visto enquanto se afastavam no navio, não foi mesmo? (Os Gêmeos cobriram as bocas com as mãos, apavorados, cheios de culpa: será que Novello iria fazê-los pagar pelo prejuízo, por terem queimado seu circo? Teria vindo atrás deles planejando vingar-se,

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castigá-los?) Meus meios de subsistência foram totalmente destruídos com aquele incêndio. Tudo se foi. Tenda, jaulas, auxiliares... Portanto, encontro-me sem uma profissão, sem recursos para ganhar meu pão de cada dia. (Os Gêmeos miaram de pânico e amargo remorso e tentaram escorregar para baixo da lona encerada de um escaler para se esconder. O Grande Novello interceptou-os, envolvendo cada menino em uma de suas mangas esfarrapadas, trazendo as cabeças deles para junto de seu próprio corpo com um puxão firme.) Sendo assim, procuro emprego. Precisamos trabalhar por nossa travessia nesta viagem pela Vida, não concorda?

— Trabalho é coisa de gente grande! — replicou Peter, que não concordava nem um pouco.

Novello abanou a ponta desfiada da manga e deixou-a cair.— Ah, sim. Claro. Já ia esquecendo. Vocês aqui fizeram da

Infância a sua profissão. Lamentavelmente, eu preferi perder o barco, no que se refere a ser menino. Ergo, tenho de seguir uma outra linha de conduta. — Dentro da sombra lanosa do capuz de seu casaco, os claros olhos castanhos de Novello fecharam-se por um momento. — Então, espero... atrevo-me a esperar?... que me permita servir, de alguma humilde forma, o maravilhoso Peter Pan.

Peter ficou genuinamente perplexo.— Eu?Novello inclinou-se até tocar as pontas das botas de Peter com

os fiapos de suas mangas.— Como seu mordomo, talvez? Ou seu criado pessoal? Ou seu

copeiro? Não peço pagamento algum, senhor! Só meu sustento, senhor! A honra de servi-lo já será mais que um pagamento para mim. Só desejo ser útil, senhor! Diga que me perdoa o pecado de ter crescido, senhor! — Os ombros dobraram-se para a frente, a cabeça descaiu. Até um carneiro morto teria parecido arrogante em comparação com o Grande Novello quando ele se abaixou com um joelho no chão na frente de Peter Pan. — Deixe-me servi-lo de todas as maneiras que eu puder!

Por um instante, Peter não conseguiu pensar no que deveria dizer.

— Como devo chamá-lo? Grande ou Senhor? — perguntou Peter, desconcertado.

— Dispensemos as formalidades, meu senhor — disse o Homem Esfiapado. — E de que maneira poderia eu reivindicar o título de Grande estando diante da sua pessoa? Minha mãe chamou-me de... — Levou um momento para se lembrar de seu primeiro nome. — Minha mãe deu-me o nome de Crichton, porém, como a maioria das coisas dadas pelas mães, não valeu muito a pena. Novello será suficiente, meu senhor.

— Ótimo — disse Pan. — .. .Mas vamos ser Exploradores, sabe? E é minha obrigação preveni-lo: pode ser perigoso. A coragem é

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tudo.— Tirou as palavras de minha boca! — disse o Homem

Esfiapado com tamanha intensidade que o mercúrio do barômetro do navio desceu depressa. — A coragem, sem dúvida nenhuma, é mesmo tudo.

A essa altura, Metido a Besta, com muito esforço, saiu sorrateiramente do paiol de tintas e espiou por cima da amurada, nervoso. Ao vê-lo, Peter gritou, com voz cortante:

— Qual é a carga que você traz aí, Metido a Besta? Diga logo, porque a sua carga agora vai ser minha!

O pirata deu uma risada desdenhosa, desafiadora.— Não digo! Não digo e não digo!Quando Peter avançou para ele, porém, com a adaga na mão, o

covarde sacudiu os dedos tatuados na frente do peito e confessou:— Peles prateadas, é isso! Não me mate, Pan! Peles prateadas!Peles prateadas. Palavras macias, lustrosas. Palavras cheias de

romantismo.Peter balançou a cabeça, sério, solene, e virou o rosto só um

pouquinho na direção de Wendy. Wendy virou o rosto para João, João cochichou atrás da mão para Deleve:

— O que é uma pele prateada?Deleve pensou que poderia ser uma pele de arminho; João

pensou que fosse uma casca fininha de noz-moscada. Wendy pensou na barracuda, o peixe mais prateado do mar. Os Gêmeos acharam que fosse uma palavra usada pelos piratas para designar as moedas de prata; Piuí imaginou que fosse um raio de luar colhido por uma foice. Cabelinho pensou em escravas louras.

— O senhor está rico mesmo — disse Novello, apertando os olhos, cheio de alegria. — Peles prateadas, hein?

Portanto, ninguém confessou que realmente não sabia de que se tratava, porque não queriam passar por burros na frente de um adulto, sobretudo sendo este um mordomo.

— A questão é, meu senhor, como vai partilhar o saque? Tradicionalmente (creio eu), o capitão fica com a metade e divide o resto entre a tripulação.

E foi assim que começou: a Guerra da Pele Prateada, a Peleja da Justa Partilha. Antes da chegada de Novello, eles dividiam tudo igualmente. Era assim que a Liga de Pan funcionava: igual para todos. Agora, porém, Novello dissera-lhes como é que se faziam essas coisas.

De modo que Peter quis a metade.Piuí declarou que, sendo princesa, deveria também ganhar uma

metade.Wendy observou que, se iam começar a fazer comparações, ela

era a mais velha e deveria também receber uma metade.Novello interveio:

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— Claro que há uma outra maneira de dividir a pilhagem, que é de acordo com a hierarquia.

Nesse ponto, o Primeiro Lorde do Almirantado disse que ele deveria então ficar com o dobro do que cabia ao Último Lorde do Almirantado; o Contramestre dos Mastros lançou um sorriso debochado para o Contramestre do Convés e um chutou as canelas do outro. O Cachorrinho mordeu o Melhor-Imediato-Que-Há.

Pirilampo anunciou que iria lá dentro contar as peles prateadas.

João disse que deveriam resolver a questão jogando cara ou coroa: quando a moeda deu cara e ele disse “Cara!”, alegou que tinha ganhado a carga toda.

Piuí disse que os Gêmeos só contavam como um membro da tripulação porque não tinham nomes diferentes. Teriam de dividir entre si a cota deles.

Os Gêmeos mandaram Piuí plantar batatas.Cabelinho argumentou que, rigorosamente falando, Peter não

era o capitão do Galo dos Mares: ele apenas se apossara do título e dos alojamentos do Capitão.

Peter replicou que, se jogassem Cabelinho no mar, sobrariam mais peles prateadas para todos.

Em resumo, disseram coisas que nunca deveriam ter sido ditas — coisas terríveis. Wendy disse a Peter que ele era um bebê mimado e que não salvara o navio coisa nenhuma. Peter disse a Wendy que meninas não contavam como tripulação porque não serviam para nada. Piuí tentou dar um soco no nariz de Peter por causa disso, mas errou o alvo.

Peter então encheu-se de empáfia e comunicou:— Sou eu quem vai decidir como as peles prateadas vão ser

divididas!Deleve disse que Peter era tão burro que nem saberia dividir

uma bolacha de bordo entre dois ratos.Dentro em pouco, ninguém estava mais falando com ninguém.

Sentaram-se, amuados, em diferentes cantos do navio, furiosos, de cara fechada e sentindo-se injustiçados. João, mirando Peter, fez rolar uma bala de canhão pelo convés, mas ela passou por cima da mão de Deleve e machucou-a para valer. Cabelinho recusou-se a voltar para o cesto da gávea como sentinela porque achava que iriam tapeá-lo para não lhe dar a sua justa parte assim que virasse as costas. Peter retorquiu que, nesse caso, Cabelinho seria pendurado no lais da verga como amotinado. Os insultos foram piorando cada vez mais. Pediram a Novello que servisse de árbitro. Mas ele ronronou, com aquele seu jeito macio de gato, que aquela “não era a sua função”, acrescentando, com leve ar zombeteiro, que nada impediria que devolvessem o saque a Metido a Besta.

Pan, engasgado de tanta raiva, puxou a gravata branca que 61

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apertava desconfortavelmente as veias dilatadas de seu pescoço. Chamou Novello de tolo.

Chamou a Liga de “bando de amotinados” e “cambada de salteadores” — “larápios” e “fominhas” e “sanguessugas”; “cracas desprezíveis” e “escória do mar”. Ameaçou abandonar Piuí e Cabelinho na próxima ilha deserta ou jogá-los aos tubarões. Foi tamanha a enxurrada de ofensas que jorrou de sua boca, na realidade, que ele teve de fechar os olhos com receio de que estes estourassem. E quando os abriu novamente, todos estavam pasmos olhando fixo para ele. De onde viera aquela explosão? Quem guardara aquela saraivada de palavras dentro da cabeça dele?

Foi quando Metido a Besta tentou escapulir descendo pela corrente da âncora.

Novello apanhou-o de volta, puxando-o de novo para bordo pela parte de trás da gola da camisa. (As mãos escondidas pelas mangas balouçantes nitidamente possuíam a força do aço.)

— Abra as escotilhas do porão e entregue sua carga! — rugiu Peter na cara de Metido a Besta.

Depois dos anos passados ensinando boas maneiras aos indiozinhos peles-vermelhas, Metido a Besta disse sem pensar:

— Ora, ora, filho. Qual é a palavrinha sem a qual nada se faz?Outra vez aquela pergunta infernal! Peter esquadrinhou sua

cabeça à procura da palavrinha mágica. Mas só encontrou mais e mais estoques de mau humor.

— Não sei!É “chicote”? Ou “prancha”? Ou “afogar”?Metido a Besta estava tão apavorado que abriu o porão de

carga sem ao menos usar ferramentas. De lá saiu Pirilampo (que conseguira entrar com facilidade, mas estava tendo muito mais problemas para sair). O elfo estava tão empanturrado de comida que aterrissou aos pés de Peter com um baque surdo, igual a uma bola de críquete.

— Então, meu espiãozinho de confiança? O que são afinal essas tais peles prateadas?

O elfo arrotou.— Cebolas! — declarou ele. — Cebolinhas-brancas!— Cebolas?!Pirilampo arrotou de novo.— Havia sete mil, duzentas e oitenta e quatro cebolas. Eu

contei — disse ele, orgulhoso — enquanto comia.— Guardem esse elfo no porão! — ordenou Pan. — Ele comeu o

nosso espólio de guerra! — e seus lábios curvaram-se mostrando os dentes alvos em um rosnado tão feroz que até um tubarão ficaria encabulado.

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Capítulo DezO Rochedo MagNeto

O Homem Esfiapado só comia ovos. Devorava-os crus, na própria casca ou, no mais das vezes, engolia-os inteiros. Entre as criaturas que povoavam as ilhas flutuantes, havia lagartos, cobras e tartarugas, que botavam ovos macios, borrachudos, e Novello sempre trazia alguns consigo, escondidos nos forros lanudos de seus bolsos de lã. A presença desses ovos, fosse na roupa ou no hálito dele, dava ao homem seu cheiro característico.

Novello mostrou-se maravilhosamente prestativo no navio, cozinhando as refeições, lendo as previsões do tempo, marcando o rumo na bússola, polindo os metais. Botou os índios para costurar e eles transformaram seus cobertores em casacos quentes para a Liga. Sabia vários jogos de cartas e conhecia a arte de dar nós, além das mais sangrentas histórias de piratas que você já ouviu na sua vida. Tirou o badalo do sino do navio para que não os incomodasse no meio da noite ao bater os quartos de ronda (o que o sino ainda fazia por conta própria). E na hora da sesta, ele balançava as crianças em suas redes até elas dormirem. O próprio Novello parecia nunca dormir, nem de dia nem de noite.

Era mais atencioso ainda com Peter, dando brilho em suas botas, tirando o pó de seu camarote — e até penteando o cabelo do menino, que a cada dia crescia um pouco mais, escurecia um pouco mais. Sem dúvida que era divertido pedir: “Vá buscar isso, Novello! Faça isso para mim, Novello, ande logo!”

O bom Novello ofereceu-se para soltar o 55 Metidão e abandoná-lo à deriva, mas tratava-se da primeira presa de guerra de Peter e ele queria mantê-la. Assim, eles o traziam a reboque puxado por uma corrente de aço, enquanto o Capitão Metido a Besta e sua tripulação continuavam trancados no castelo de proa com os ursos tomando conta deles. As ilhas flutuantes surgiam e desapareciam inesperadamente na bruma do mar, algumas vezes visíveis, outras bastante esquecidas.

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— O que você vai fazer com o Inimigo, Peter? — perguntou Wendy. — Porque, se não for abandoná-los à deriva, vou ter de preparar um lanche para eles.

— Vamos vendê-los como escravos ou assá-los no espeto para o jantar!

Ninguém acreditava, mas Peter soava maravilhosamente resoluto quando falava assim. Ainda por cima, fazia uma figura tão bonita com o chapéu de três pontas e as botas longas que encontrara no fundo do baú de bordo de Gancho que ninguém estranhava ouvi-lo falar como um pirata, além de parecer um pirata.

Mas ele tirou o casaco escarlate em uma ou outra ocasião. Por exemplo, na vez em que mergulhou para lutar duelos com os peixes-espadas, venceu-os e conquistou-lhes as espadas para que sua Companhia nunca mais fosse apanhada sem armas. Também disputou ossos com os peixes-cachorros para poder alimentar o Cachorrinho. Felizmente, seu mau humor parecia dissolver-se quando estava dentro d’água.

Como todas as peles prateadas haviam sido comidas, não havia mais motivo para brigas. As ofensas ditas não podiam ser apagadas, mas deu para dobrá-las bem pequenininhas e guardá-las no fundo dos bolsos.

Peter desenrolou o mapa do tesouro para todos verem, e eles se reuniram em torno para estudar a superfície da Terra do Nunca. No interior, longe da Costa Lalonge e da Charneca Grená, do Labirinto dos Lamentos, do Cemitério dos Elefantes e Deserto da Bocasseca... havia um amplo espaço vazio assinalado com a legenda “TERRITÓRIO DESCONHECIDO”. O Monte do Nunca ficava bem no centro desse espaço, com nuvens iguais às de histórias em quadrinhos pintadas em torno de seu cume, mas todas as trilhas, caminhos e cursos d’água diminuíam gradualmente até sumir dentro do Território Desconhecido. Não havia nenhum ponto de referência marcado, nada.

— Vamos mapeá-lo à medida que avançarmos! — disse Peter.— E vamos descobrir a nascente do Rio Nunca-nunquinha!— E vamos encontrar novos animais!— Vamos recolher amostras de rochas!— O senhor pode inclusive dar nome a lagos e montanhas, meu

senhor — sugeriu Novello, servindo o chá da tarde.Os Exploradores encantaram-se tanto com a idéia que no

mesmo instante a colocaram em prática, mesmo sem ter descoberto ainda os pontos de referência.

— O primeiro sou eu a dar nome à primeira montanha que aparecer!

— Cataratas João Darling!— Estreito Deleve!— Pico Dois Irmãos Gêmeos!

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— Com todo o respeito, senhor — ronronou Novello, segurando o casaco escarlate para Peter enfiar dentro os braços molhados —, mas essa área foi equivocadamente designada como “desconhecida”. Esse Capitão Gavião que os ouvi mencionar...

— Gancho — corrigiu Peter. — Jas Gancho.— Perdão. Esse Capitão Gancho deve ter estado lã para

esconder sua arca do tesouro. Não deveria então se chamar “Território de Gancho”?

— De “Peter Pan”! — exclamou ele, em seu tom autoritário de Filho Único Mimado, fazendo um círculo em torno de toda a Terra do Nunca com sua pena negra de corvo. — É MEU! E o tesouro também! — gritou, respingando tinta vermelha na camisa fina de Deleve.

Fez-se um silêncio constrangido.— Nosso. Acho que o Capitão quis dizer “nosso”— disse Wendy. — Não foi, Peter?Peter repuxou a gravata branca que lhe apertava o pescoço e

tossiu. Suas faces estavam muito coradas.— Sirva-me um golinho de alcaçuz-indiano — ordenou ele. — A

fumaça daquele barco fedorento de Metido a Besta embrulhou meu estômago.

— Qual é a palavrinha sem a qual nada se faz?— disse Piuí sem pensar.Mas Peter lançou-lhe um olhar tão feroz, gritando: “Semolina!

Ruibarbo! Tapioca! Que importa qual é a palavra?!” que ela imediatamente foi preparar o chá.

Que nunca foi servido. Assim que Piuí encheu o bule, o Galo dos Mares balançou de proa a popa, deu uma guinada e desandou a oscilar para a frente e para trás. O pequeno navio a vapor começou a arrastá-lo mar afora, mesmo sem ter ninguém na ponte de comando, sem ter fogo em suas caldeiras nem fumaça em suas chaminés!

Na verdade, o SS Metidão também estava sendo arrastado na água — não por outro navio, mas por alguma força invisível que o puxava pela quilha. Mudou de posição com o Galo dos Mares e seguiu de ré na direção norte, a popa na frente e a proa atrás, carregando consigo o brigue, cujas velas se inflaram ao contrário. As crianças só puderam segurar-se nos artefatos e acessórios do navio, desatinadas, tentando adivinhar:

— São as sereias!— É uma baleia!— É um sortilégio das fadas!O Homem Esfiapado desceu com agilidade as escadas e entrou

sem cerimônia no camarote particular de Peter, dirigindo-se depressa para a mesa do mapa. Os punhos das mangas sujas de lã deixaram manchas circulares no pergaminho enquanto ele o examinava procurando informações. Então, deram um soco em um

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trecho sombreado onde se lia “ÁREA PERIGOSA”.— O Rochedo MagNeto! — disse ele. — Está atraindo o navio!— É mágica? — perguntou Deleve.— Não, é magnetismo — respondeu Novello. Dentro em pouco,

já conseguiam avistá-lo pela luneta de bronze: o Rochedo MagNeto, um pináculo ferroso de rocha vermelha que parecia uma ponta de torre de igreja. O casco de aço do naviozinho a vapor corria cada vez mais depressa para ele como se fosse uma mariposa atraída pelo fogo. A corrente entre os dois navios esticou-se de tal modo que não havia meio de soltá-la.

— Ursaria, rápido!Era outra vez a voz do dono do circo, alta, penetrante, cheia de

autoridade. Os ursos saltaram na água. Os índios saíram todos para o convés, chorando, gritando esganiçados e vestindo apressados os coletes salva-vidas de cortiça. Não havia mais necessidade de usar a luneta. O Rochedo MagNeto agigantava-se diante deles, com o mar espumando e fervendo ao redor. Os cascos dos navios rasparam em rochas tão duras que todas as cracas foram arrancadas. A Liga de Pan agarrou-se à amurada — exceto Cabelinho, que foi projetado para fora do cesto da gávea, para o mar.

— Lançar a linha de hodômetro! — gritou Peter Pan, e todos olharam para ele sem compreender, todos menos Novello, que correu para a popa e lançou na água um cabo cheio de nós para Cabelinho, que ia se afogando na esteira agitada do navio. Cabelinho agarrou-se a ele e foi rebocado, roçando os dedos dos pés nas rochas, cortantes como navalhas.

O SS Metidão encalhou fazendo mais barulho que uma banda de instrumentos de metal caindo de um bonde. O brigue, que vinha sendo arrastado atrás, foi apanhado pelo giro das correntezas ao redor do rochedo e sacolejou com tamanha violência que o cabo de reboque, apesar de ser feito de metal duro, rebentou como se fosse uma guirlanda de papel.

— Agora, vamos flutuar livremente! — garantiu João. — O Galo dos Mares é de madeira! Só o metal é magnético!

De fato, o Galo dos Mares era de madeira: de que modo então o magnetismo do Rochedo MagNeto poderia afetá-lo?

Eles não tardaram a descobrir.Os pregos de ferro que prendiam cada nervura à quilha, cada

tábua a cada nervura, cada verga ao mastro foram puxados pela força do magnetismo. Como ferrões de vespa arrancados da pele, todos os pregos e cunhos soltaram-se do madeirame e o elegante brigue começou a desintegrar-se em torno deles.

— Ele está acabado!— exclamou Novello, caindo de joelhos, tomado de medo ou tristeza.

— Voem! — gritou Peter.João apoderou-se da cartola de Pirilampo, que continha sua

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caspa de poeira de fadas. A Liga de Pan mergulhou as mãos dentro dela. Para que a mágica funcionasse, contudo, eles ainda teriam de pensar pensamentos felizes, o que era um bocado difícil de fazer enquanto os mastros tombavam — um! dois! — e o casco se descascava inteiro tal e qual uma laranja.

— Pensem no tesouro! — gritou Peter. E, sabe-se lá como, todos concentraram suas mentes no Monte do Nunca e, um por um, ergueram-se desajeitadamente no ar.

Peter, é claro, deslocava-se com a facilidade de uma andorinha de verão. Deslizou rente às cristas das ondas até onde Cabelinho se debatia no mar e, esfregando um punhado de poeira das fadas no cabelinho molhado de Cabelinho, içou-o para fora da água pela gola de sua camisa do uniforme de rugby. Cabelinho (e o Cachorrinho aninhado em seu bolso) ficaram tão felizes por não estarem mais se afogando que rapidamente ganharam altura e juntaram-se aos outros no céu, acima do Rochedo MagNeto.

Lá embaixo, o Galo dos Mares foi a pique, deixando apenas um rastro de tábuas boiando na água. A figura alta de Novello, equilibrando-se nos destroços, saltava de um mastro para uma prancha, de um barril para um balaústre. Finalmente, ele se atirou sobre um baú de bordo, que subiu à tona balouçando. Com a agitação das ondas que batiam, brancas, e a espuma que vinha do Rochedo MagNeto, o vulto vestido de lã logo se encharcou todo — parecia uma meada de algas velhas presas à tampa do baú sacudido pelas águas. Sendo um homem adulto (ou um casaco de lã muito comprido), Novello não podia, é claro, voar.

Wendy deixou escapar um soluço repentino ao lembrar-se de alguém mais. Pirilampo, preso por ter devorado gulosamente todas as cebolas, afundara junto com o navio!

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Capítulo OnzeO Recife Ao Remorso e o Labirinto das Bruxas

Pirilampo voltou de chofre à superfície como uma bóia de navio, seu cabelo alaranjado mais brilhante que o Rochedo MagNeto, que era cor de ferro vermelho-escuro. A barriguinha dele ainda estava estufada de tantas cebolas-brancas e o frio endurecera seus dedos pontudos. Você ou eu teríamos ficado com a pele azulada se caíssemos no mar gelado, mas Pirilampo, depois que Peter o apanhou, estava desbotado, igual a uma meia lavada muitas vezes. O mau gênio, porém, continuava tão quente como antes, e sua poeira mágica secou em cima dele formando uma espécie de cobertura de açúcar de confeiteiro. Saiu voando em rompantes, indo e vindo em arrancadas, fazendo ziguezagues, chiando, até Peter repreendê-lo:

— Pare de se exibir, elfo, ou vou me zangar com você!O sol e a lua estavam ambos no céu, com uma porção de

estrelas vespertinas e tendo como acompanhamento uma salada de nuvens. Era imprescindível encontrarem terra firme! Mas para que lado voar? A bússola na Terra do Nunca tem tantas agulhas quanto um porco-espinho assustado.

— Ainda tem o mapa, Capitão? — perguntou João.Peter em resposta brandiu o rolo de pergaminho, mas, quando

tentou abri-lo no ar, o vento quase o arrancou de suas mãos. De modo que eles simplesmente continuaram voando e, à medida que os pensamentos ansiosos tomavam o lugar dos felizes, foram baixando cada vez mais. Salpicos das ondas do mar começaram a molhar seus rostos e remover a poeira de fadas de sua pele.

Quando as coisas iam ficando pretas para a Companhia de Exploradores, eles avistaram terra.

Um promontório comprido e rochoso apontava para o mar como um dedo de bruxa, terminando em um aglomerado de rochedos e em um recife batido pela espuma. Havia relva-do-olimpo, com suas

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flores rosadas, crescendo em todas as fendas, e cormorões levantaram vôo grasnando, espantados, quando os Exploradores pousaram. Fato estranho, na beira do mar, a areia estava coalhada de restos enferrujados de centenas de carrinhos de bebê de todos os tipos. Atracado como um barco a remo, na extremidade oposta da ponta de terra, encontrava-se um antigo baú de bordo com as iniciais J.G. marcadas na tampa. Ah, e cinco ilhotas balouçavam ao sabor das ondas, ancoradas ao largo, mais além.

Uma figura alta estava de pé no recife, a silhueta desenhando-se de encontro ao céu. Rodeava-o um halo de fios coleantes que se contorciam ao vento: poderia bem ser a Górgona, a Medusa, esperando para transformar alguém em pedra com um olhar. Mas não era.

— Bem-vindo ao Recife do Remorso, senhor — disse a figura.Peter estava de novo lutando com o mapa sob o vento

tempestuoso.— Segure este mapa esticado para mim, Novello — disse ele,

com toda, a calma, como se soubesse o tempo todo que seu criado chegaria lá antes dele. E Novello apressou-se em atendê-lo, abrindo o pergaminho de um só golpe da mão.

Foi Novello quem explicou sobre os carrinhos de criança:— Essas carcaças emboloradas e enferrujadas que vêem à sua

frente são tudo o que sobrou de centenas de histórias tristes. Esses são os carrinhos de criança que um dia foram empurrados para cima e para baixo em parques, alamedas e ruas de cidades por babás de meninos. São os carrinhos que elas estacionavam à sombra das árvores enquanto tiravam um cochilo; ou deixavam abandonados enquanto davam um pulinho no Correio para comprar um selo; ou quando iam ao encontro de seus namorados. Esses são os carrinhos de bebê que se soltaram das mãos delas porque o freio não estava puxado e desceram ladeira abaixo. Em resumo, são os carrinhos de onde os bebês caíram e desde então nunca mais foram encontrados. São os carrinhos que transformaram bebês meninos em Meninos Perdidos e os fizeram iniciar sua longa jornada para a Terra do Nunca.

— Como sabe tudo isso? — perguntou Wendy. O mordomo encolheu os ombros fiapentos.

— Sou um homem viajado, senhorita. Os viajantes andam por toda parte. E escutam coisas. Boatos. Histórias. Posso continuar? Esses são os carrinhos que as babás reviraram freneticamente quando se deram conta de que os meninos haviam sumido, e jogaram no chão cobertas, brinquedos, chocalhos, sapatinhos de tricô, arquejaram e exclamaram “oh!”, “ai”, “ah, não!”. Esses carrinhos vazios foram tudo o que restou a essas desgraçadas depois que os pais zangados as despediram e mandaram embora, sem uma

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referência nem uma palavra de perdão. Esses são os carrinhos de criança que as babás reformaram e que se tornaram pequenos barcos, nos quais elas seguiram remando pelo mar, determinadas a procurar no mundo inteiro até encontrarem aqueles bebês. Ao ouvir contar que Meninos Perdidos eram enviados para a Terra do Nunca, elas atravessaram os cinco oceanos em suas embarcações e por fim vieram chorar no Recife do Remorso.

No final do relato, uma única pergunta ficou pairando no ar, não formulada. Cinco Meninos Perdidos sentiram uma dolorosa necessidade de fazer essa pergunta mas nenhum teve coragem. Wendy perguntou por eles:

— E algum Menino Perdido foi encontrado por essas babás, senhor Novello?

— Esperemos que não, senhorita! Tomara que não! Pois imagine a amargura e a raiva que impregnaram o coração dessas mulheres! Despedidas! Colocadas porta afora, sem esperança de outro emprego! Praticamente arruinadas! E tudo por quê? Por causa do pequeno erro de perder uma criança! Não, não! Essas senhoras não vieram com a intenção de reaver os meninos que tinham perdido. O quê? Elas culparam OS bebês por todos os seus infortúnios e sofrimentos.

A água salgada lavou toda a doçura de caráter delas. Ficaram meio loucas de tanto beber água do mar... e estavam... estão... decididas a se vingar.

Os Meninos Perdidos engoliram em seco e empalideceram. Peter fez um gesto despreocupado com as mãos.

— Mas eram gente grande, não eram? Então não podiam entrar na Terra do Nunca, certo?

E todos se sentiram tão aliviados que resolveram não levar em conta todos os piratas, índios e donos de circo adultos que sabiam existir na Terra do Nunca.

Galgando com dificuldade o estreito promontório, escorregando em algas viscosas e afugentando um par de focas, a Companhia de Exploradores seguiu para o interior rumo às charnecas roxas e machucadas que iam inchando aos poucos conforme eles se aproximavam. Bem distante, divisavam o vulto minúsculo do Monte do Nunca, objetivo de sua viagem.

O engenhoso Novello, desde que chegara ao Recife do Remorso montado no baú de bordo, não perdera seu tempo. Enquanto esperava a chegada das crianças, tirara as rodas de dois carrinhos de criança e fixara-as no baú, de modo que agora podia puxá-lo, aos solavancos, atrás de si. Recorria ao baú para conseguir objetos úteis, tais como fósforos, um baralho, chá, tinta de escrever e uma pena, pedaços de barbante. Embora as ilhas flutuantes tivessem ficado muito para trás na baía, junto com os animais do Circo

Novello, ele parecia ter um estoque inesgotável dos ovos 70

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borrachudos que comia de manhã à noite.As crianças comiam, como sempre, a comida que a imaginação

de Peter fazia surgir (se bem que Novello tivesse providenciado um saleiro de prata, manchado e sem brilho, mas cheio de sal para dar sabor às suas refeições). Surpreendentemente, os pensamentos de Peter pareciam estar sempre voltados para peixes e frutos do mar, e assim comiam imaginários rodovalhos e lagostas, enguias em geléia e casquinha de siri. (Piuí chegou a desenvolver uma irritação de pele imaginária porque era alérgica a mariscos.)

O solo macio da suave charneca arroxeada que rangia sob os passos deles tornou-se mais seco conforme eles prosseguiam. Em vez de musgo e urzes, logo nada mais havia a não ser cactos eriçados cravados na poeira seca do chão, onde se entrançavam lianas espinhentas de roseira-brava e sarça, que os faziam tropeçar. Era impossível sentar para descansar, que dirá estender-se ao comprido para dormir: seria o mesmo que deitar em cima de uma almofada de alfinetes ou de uma caixa de pregos. As crianças revezavam-se para irem sentadas na tampa recurvada do baú.

Presos nos espinhos e pendurados em todos os galhos de roseira-brava, viam-se farrapos de tecido — brim azul, algodão listrado, organdi desbotado ou pedaços de renda branca da bainha de alguma anágua.

Logo os Exploradores descobriram a razão. Quando chegaram ao Labirinto.

Uma imensidão de arenito encrespado, colorido com todas as tonalidades de azul e cinzento e de um triste tom de verde-cipreste, fora trabalhada pelo vento ou pela chuva e convertera-se em um labirinto semelhante a um favo de mel, com inúmeros corredores e passagens. A céu aberto, estendia-se em espirais e curvas sinuosas até onde a vista alcançava, cruzando-se e entrecruzando-se, de tal maneira que uma pessoa poderia perambular para qualquer lado e encontrar somente mais um corredor para subir ou mais uma descida em forma de calha por onde deslizar até embaixo. E no meio desses cones, arcadas e canais de pedra listrada como pirulitos de açúcar, uma quantidade incontável de mulheres circulava apressadamente para cima e para baixo, chamando e chamando:

— Henrique! — Jorge!— Inácio! — Jacques!Em suas mãos nervosas, seguravam lenços ou brinquedos

pequenos ou pontas de cobertores. Talvez, quem sabe, não tivessem sido nem o vento nem a chuva que haviam escavado a rocha macia, mas sim os passos aflitos daquelas mulheres calçadas com botinas de abotoar e sapatos confortáveis, ou o roçar de suas saias compridas antiquadas, enquanto percorriam o Labirinto das...

— Bruxas! Cuidado! — sibilou Peter, e as crianças todas recuaram com um pulo.

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— Não parecem ser bruxas — observou Piuí com ar de dúvida. — Onde estão seus chapéus pontudos?

— Gente grande na Terra do Nunca? O que mais podem ser? — replicou Pan.

— Vossa Senhoria está correto, receio dizer — sussurrou Novello. — Aqui é o Labirinto das Bruxas. Em nenhuma circunstância, permitam que elas os vejam, toquem em vocês ou até lancem seus feitiços em voz alta para que entrem por suas orelhas. Essas são as mulheres de quem lhes falei.

— As babás?— Precisamente. Foi a este lugar que chegaram ao término de

suas viagens. O fracasso e o mau humor envenenaram seus espíritos e transformaram-nas em bruxas. Foi com suas mágicas que conseguiram penetrar na Terra do Nunca. Mas agora, quando vêem uma criança, qualquer criança, elas a agarram e logo lhe dão um banho; trocam suas meias e alimentam-nas com mingau de semolina; obrigam-na a decorar a tabuada e ir para a cama quando ainda está dia claro. É provável até que a beijem. — Os meninos fizeram caretas, encolheram os pescoços inclinando as cabeças até os ombros, estremeceram. E, quase como se acabasse de lhe ocorrer, Novello acrescentou. — Depois assam a criança e a devoram.

— Acho que o lugar tinha um nome diferente no mapa — disse Wendy, pensativa. — O Labirinto de... alguma outra coisa.

Mas Peter (ainda sorrindo, radiante por ser chamado de “Vossa Senhoria”) desenrolou o mapa para conferir e assegurou-lhe que, sim, sim, era isso mesmo, ali era o Labirinto das Bruxas. (Lembre-se, porém, que ele não sabia ler.)

— Edgar!— Edmundo!— Paulo! — Jaiminho!As bruxas continuavam seus chamados angustiantes. De vez em

quando, ouvia-se que farejavam o ar — indiscutivelmente, farejavam — como se quisessem achar o rastro de suas presas.

Rastejando, ralando joelhos e pulsos no arenito áspero, os Exploradores avançavam devagar. Em poucos minutos, estavam irremediavelmente perdidos — não sabiam mais de onde tinham vindo nem como sair dali. Algumas das calhas eram becos sem saída. Outras ficavam tão estreitas que nem os ombros mais esguios passariam. Outras faziam tantas voltas e curvas que as crianças perdiam totalmente o senso de direção. João desenhou um J na pedra com a ponta de sua espada de peixe-espada e, em uma hora, eles passaram pela mesma marca quatro vezes seguidas. As rodas dos carrinhos adaptadas ao baú de bordo, enferrujadas e sem lubrificação, rangiam sem parar, enquanto o seu conteúdo se deslocava de um lado para outro e trepidava conforme o baú os

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seguia, sacolejante. Mas as bruxas faziam tanto barulho...— Shinji!— Pierre!— Ivan!— Ali!...que não havia possibilidade de escutarem. De trás e da

frente, de cima e de baixo, da direita e da esquerda, vinham os gritos das babás procurando as crianças:

— Percival!— Richard!— Billy!— Rudyard!As pedras também exalavam um cheiro estranho, que trazia

consigo a sensação dolorosa das lágrimas. Foi Deleve quem começou a chorar primeiro, grandes lágrimas que pingavam nas costas de suas mãos enquanto ele rastejava. O Labirinto estava encharcado de tristeza, e tristeza é tão contagiosa quanto gripe.

— Florizel?Em seu caminho, diretamente à sua frente, uma das bruxas

repetia sua cantilena, a barra da saia esfarrapada, sapatilhas de dança gastas, mas com jóias ainda cintilando em torno do pescoço. Uma pluma de avestruz suja e molhada caía-lhe sobre o rosto e ela a afastava para o lado afim de enxergá-los melhor.

— É você, Florry? É você?Peter tentou rastejar para trás, mas chocou-se com Cabelinho.

A bruxa gritou o nome várias vezes seguidas, tão alto que João tapou os ouvidos com as mãos. Outras bruxas acorreram, atraídas pelo barulho:

— Crianças? Há crianças aí?— Crianças!Dezenas delas empurravam-se, acotovelavam-se para espiar,

perdiam os sapatos no atropelo sem perceber, deixavam cair brinquedos e chocalhos na pressa. Seus lamentos esganiçados de sinistras criaturas sobrenaturais ecoavam de um lado para outro. Estenderam os braços, colocaram as mãos em concha e levantaram os rostos para o céu, dizendo:

— Por favor! Por favor! Que seja ele!Os Exploradores puseram-se de pé num salto e correram,

esquivando-se de uma e de outra, as cabeças abaixadas, escorregando sentados pelas calhas abaixo e pulando de um corredor para outro por cima das saliências que os dividiam. Puxado por Novello, o baú de bordo ia quicando, aos trancos e barrancos, derrubando bruxas, esbarrando e jogando no chão as xícaras e mamadeiras que elas traziam nas mãos. Aquelas mesmas mãos tentavam agarrar o mordomo, puxando e se embaraçando nas roupas de lã dele como se fossem rasgá-lo ao meio:

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— Wilfred?— Matela?— François?— Roald?Cego pelas lágrimas, Deleve deu de cara com outra — uma

mulher de olhos fundos, e tão linda que o sangue dele pareceu virar uma triste canção de blues, e seu coração doeu. Por um momento, ela segurou o rosto dele entre as mãos e os dois se miraram. Havia um Labirinto também nas íris verdes dos olhos dela... Então, Deleve desprendeu-se e correu como se o chão o queimasse.

No bolso do casaco escarlate, a bússola batia de encontro à perna de Peter. Ele a tirou do bolso (mesmo a bússola tendo tantas agulhas quanto um porco-espinho assustado) e calculou para onde deveriam correr. O problema é que havia bruxas demais. Por cima e por baixo, pela direita e pela esquerda, pela frente e por trás, elas fecharam o cerco:

— Klaus! — Johann!— Ai De!— Pedro!Deleve parou de correr. Encostou-se em uma saliência de pedra

rosada, cor de pôr-do-sol, engolindo o ar, engolindo o medo. Aí, quando as bruxas voaram para cima dele, as roupas agitando-se como asas de grandes pássaros, uma multidão dando gritos estridentes, ele sacou sua clarineta e começou a tocar.

As notas musicais soluçaram através do Labirinto. Era uma canção triste, perturbadora, persistente, mas teve o efeito de um tiro de metralha disparado de um canhão à queima-roupa. As bruxas pararam de repente em seus caminhos, as mãos sobre os corações. Deleve tocou e tocou — a mesma canção várias vezes seguidas. No meio das mulheres, ergueu-se uma voz com sotaque escocês, uma única voz, cantando a letra:

Não vais mais querer voltar? Não vais mais querer voltar? Mais amado jamais serás. Não vais mais querer voltar?

Imagino que você não chore nunca ou nunca tenha tentado tocar uma clarineta chorando, por isso eu lhe digo: nessa hora, seus lábios não se mantêm na posição certa e seu nariz fica pingando o tempo todo. Foi um bocado difícil tocar — mais difícil que nunca. Ainda assim, Deleve conseguiu tocar dezesseis versos, enquanto as bruxas meneavam o corpo e a cabeça na frente dele como se fossem salgueiros-chorões e as palavras ecoavam ao redor. Tal e qual Horácio defendendo a ponte, ou como Roland em Roncevalles, Deleve tocou clarineta enquanto seus amigos fugiam para um lugar seguro. Somente quando os olhos de todas as mulheres estavam fechados em um êxtase de sofrimento e seus companheiros Exploradores tinham escapulido é que ele debandou, e correndo!

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A Companhia inteira saiu correndo, o arenito listrado e macio terminou e começou o capim, e ainda assim eles continuaram correndo. Correram até chegarem às árvores, e as árvores levantaram seus galhos em um gesto de rendição: Parem! Correram até seus pulmões ficarem pendurados dentro deles como morcegos mortos no interior de cavernas. Então, arquejantes, arfantes, caindo de joelhos no chão e atordoados pelo barulho ensurdecedor das batidas aceleradas de seus corações, esperaram que Deleve os alcançasse e receberam-no com entusiasmo:

— Você foi maravilhoso!— Tão esperto!— Sensacional!— É difícil aprender a tocar?A Companhia de Exploradores reuniu-se em torno de Deleve,

elogiando-o e cumprimentando-o. (Pirilampo ficou com tanto ciúme que mordeu o Cachorrinho.)

— Foi extraordinário, de fato — concordou Novello, apanhando o que era necessário para o chá da tarde dentro do baú de bordo. — Devo felicitá-lo, jovem senhor, pelo seu talento musical.

Deleve corou intensamente.— Elas pareciam mais tristes que zangadas — disse ele (pois

era sensível às emoções das outras pessoas) —, aquelas senhoras: tem certeza de que queriam mesmo nos devorar?

— Algumas podem ser vegetarianas — disse Novello mais que depressa, e depois o levou para um lado para apertar-lhe a mão. (O que fez a mão de Deleve ficar cheia de fiapos de lã amassada.) — Foi somente graças a Vossa Senhoria que escapamos! Quanta habilidade, quanta arte! É um verdadeiro maestro! Imagino que seja isso o que deseja, não é? Quando crescer? Ser um músico?

As orelhas de Deleve ainda estavam vermelhas de tantos elogios.

— Eu? — disse ele, meio incrédulo, procurando enxergar melhor o rosto de Novello para ver se ele estava brincando. Mas os olhos castanho-claros fixos nos dele tinham uma expressão sincera e intensa, enquanto a manga do casaco se desfiava sem parar. Meadas inteiras de lã enchiam as mãos de Deleve.

E, súbito, ele viu uma cena em sua mente, como reflexos em uma Sala de Espelhos: ele próprio como homem adulto e milhares de canções guardadas dentro de sua cabeça, como pombos dentro da cartola de um mágico; ele próprio, tocando clarineta sem errar uma nota sequer; diante de si, uma porção de rostos sorrindo de prazer enquanto, de lábios franzidos e olhos fechados, ele soprava sua música para o mundo como bolhas de sabão.

— Oh, sim! — exclamou Deleve. — Eu adoraria ser músico quando crescer!

— Então, quem vai poder evitar? — disse o Homem Esfiapado, e 75

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seus olhos cintilaram de prazer antes de se afastar.

Capítulo DozeOutra partilha

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Ele nunca dormia. Wendy (que à noite ajeitava as cobertas de todos os outros e de manhã escutava-os contar o que haviam sonhado) não podia deixar de reparar: o Homem Esfiapado jamais dormia realmente, e passava a noite inteira remendando sua roupa fiapenta. Era tão competente com uma agulha e um fio de lã que o fazia com uma só mão. Enquanto trabalhava, seus olhos esquadrinhavam a escuridão e sua cabeça se inclinava para um lado e para outro à escuta de... de quê? Do perigo? Devia estar de sentinela para protegê-los de algum perigo, mas Wendy preferia não perguntar que perigo seria aquele.

Os Exploradores presenciaram um sem-número de maravilhas nos dias que se seguiram. Viram colinas que subiam e desciam, como se respirassem. Viram rios que fluíam morro acima, flores que abriam suas co-rolas e cantavam, árvores que capturavam pássaros no céu e os comiam, pedregulhos que boiavam como se fossem rolhas de cortiça. João pisou em uma miragem e afundou nela até a cintura, enquanto Piuí conseguiu atravessar um rio usando apenas os peixes como apoio para os pés. Uma vez, chegou até a chover castanhas — e não havia nenhum castanheiro à vista.

— O que aconteceu com o verão? — perguntou Deleve, lembrando-se vagamente de verões mais ensolarados.

Mas Pan limitou-se a dar de ombros como se não tivesse notado.

— Acho que ele deve ter se perdido por aí — respondeu.Para passar o tempo, discutiam o que encontrariam quando,

finalmente, alcançassem o Monte do Nunca e a arca do tesouro escondida lá. Na opinião dos Gêmeos, seriam dobrões de ouro e moedas espanholas de prata. Na Terra do Nunca, porém, os arco-íris fincam os dois pés no chão, de modo que, quando o tempo está bom, não há nada mais fácil do que ir até o fim de algum arco-íris e cavar ali para pegar seu pote de ouro, se é isso o que você quer mesmo. Conseqüentemente, moedas de ouro não são nada de tão maravilhoso assim (a não ser aquelas que têm chocolate dentro).

Piuí achava que haveria coroas e tiaras, colares de diamantes e relógios de bolso feitos de ouro.

— São o tipo de coisa que Gancho deve ter roubado de pobres princesas e sultanas indefesas que caíram em suas mãos implacáveis! — disse ela.

Pirilampo pensou em sorvetes de limão. O Cachorrinho esperava que houvesse costeletas de carneiro. Wendy pensou em peças inteiras de seda indiana, livros com gravuras pintadas à mão e valiosos ovos de Fabergé11 vindos da Rússia.11 Nome que se dá a enfeites em forma de ovo, feitos de vidro ou de algum material precioso. Receberam esse nome porque foram criados para a família real russa por um joalheiro do Czar (imperador russo), chamado Fabergé. Peter

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— Fabergés não botam ovos — disse Peter com um risinho de desdém, embora não revelasse o que ele esperava encontrar dentro da arca. Novello, passando o pente devagar pelo cabelo de Peter, enrolando seus cachos lustrosos em torno de um lápis, não disse nada.

— O que o senhor desejaria encontrar, senhor Novello? — perguntou Wendy.

O pente parou no alto. As sobrancelhas franziram-se de tal forma que uma terrível dor de cabeça parecia estar se desencadeando por trás dos olhos do criado.

— Nada posso desejar, senhorita — respondeu Novello. — Assim como não posso sonhar. Tanto para um quanto para o outro, o homem precisa dormir. E eu não durmo, como sabe.

— ...depende do que Gancho apreciava mais que tudo no mundo — disse Deleve, que nesse meio tempo vinha seguindo uma linha de raciocínio própria.

— Porque um tesouro é isso, não é? A coisa que, no mundo inteiro, você mais quer ter e guardar para si?

Ao que Pirilampo comentou, com sua vozinha esganiçada:— Os olhos arrancados dos seus inimigos! — o que fez todos

jogarem coisas nele. — Que foi? — protestou ele.— Imagino que os piratas comam os olhos dos inimigos em vez

de sorvete de limão! Aliás, o que vamos ter para o jantar?Novello apanhou a toalha de mesa e estendeu-a no chão, com o

saleiro no meio. Todos se sentaram ao redor, de pernas cruzadas, e Peter começou a imaginar algo para comerem.

— O que temos hoje no cardápio, Capitão? — perguntou João, batendo de leve com a mão na toalha amassada de linho branco.

A testa de Peter franziu-se e suas sobrancelhas viraram para cima, iguais a pequeninas asas de anjo.

— Esqueci — disse ele. — Não estou com fome. Podem comer a minha parte se quiserem.

Todos estenderam as mãos para apanhar a comida imaginária. Pairava no ar um cheiro leve de couve-flor e alfena. Cabelinho achou que seus dedos tinham roçado em um repolho ou em uma colher, mas ninguém conseguiu de fato pegar sua porção de comida. Deleve, que estava tendo dificuldades para acomodar suas pernas compridas sob o corpo, fez um movimento desajeitado com a mão e derrubou o saleiro.

— Por Kraken e Krakatoa! — berrou Peter Pan, pondo-se de pé em um salto. — Encham de pedras as botas desse sujeito e joguem-no aos tubarões!

A Liga olhou para ele, atônita. Peter lançou-lhes um olhar fulminante de volta.

Pan pensa que Fabergé é o nome de um animal.78

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— Vocês não viram? O que houve, estão todos cegos? O idiota desastrado derramou o sal! Será que está querendo atrair má sorte para todos nós? Por todas as hastes do meu enfrechate, estou com vontade de marcá-lo a ferro ou abandoná-lo em uma ilha deserta agora mesmo!

Todos os olhos se voltaram para Deleve, que enrubesceu, colocou o saleiro de pé outra vez e pediu desculpas.

— Não sabia que você era supersticioso, Peter — disse Wendy, preocupada com as veias arroxeadas salientes que latejavam no pequeno pescoço branco de Peter.

— Certa vez, vi cinco gatos pretos... — começou Piuí, mas não foi adiante, incapaz de lembrar se gatos pretos traziam boa ou má sorte.

— Um para tristeza, dois para alegria... — recitou um dos Gêmeos.

— Não, isso tem a ver com corvos — corrigiu o irmão. — Ou com bebês.

O silêncio tomou conta da refeição, que terminou logo, porque as refeições não duram muito quando não há o que comer. Quando se puseram a caminho de novo, Deleve foi despachado para o fim da fila. Ninguém queria comentar que não tinham jantado porque o Líder podia perder a paciência outra vez. Novello sacudiu o sal da toalha, dobrou-a e guardou-a de volta no baú de bordo, primeiro expulsando Pirilampo, que adormecera dentro da gaveta de meias. O Cachorrinho perambulava à procura de alimento mais substancial que o nada da refeição imaginária.

Ainda trêmulo, como um gato no qual alguém pisou, Deleve seguia bem atrás do resto. Alegrou-se quando Pirilampo veio pousar em seu ombro. Pirilampo não se importava que Deleve tivesse ficado desengonçado de uma hora para outra; era apegado ao menino que o chamara de “mentiroso de marca maior” e que produzia as notas musicais de Dó a Si.

— Quando você ficar maior vai saber tocar mais notas além dessas? — perguntou Pirilampo.

— Não — respondeu Deleve. — Você vai ter de se contentar só com essas.

Não havia nada de que Pirilampo gostasse mais que ir atrás das notas que saíam da clarineta de Deleve — para comê-las como se fossem pedaços de chocolate, lá em cima, no ar. As melhores eram as breves — gordas e redondas, cremosas por dentro. As fusas eram efervescentes, mas ele precisava de muitas para encher a boca. As sustenidas eram ácidas como limões e as bemóis desciam pela garganta como fatias de pepino cortadas bem fininhas. Deleve ria ao ver o elfo mordê-las e fazê-las estourar na boca: distraía-o do choque de ter ouvido Peter gritar com ele.

— Mais música! Mais música! — pedia Pirilampo.79

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— Qual é a palavrinha? — dizia Deleve, que sabia da importância de se ter boas maneiras.

— Sei lá — respondia Pirilampo, que não sabia mesmo.Quanto mais alta a nota, mais alto Pirilampo tinha de voar para

estourá-la.— O que você está vendo daí de cima? — perguntou Deleve,

quando o elfo subiu atrás de um Sol altíssimo.— Oooh... Longe, longe! O Monte Etna e o Rio Pó! — gritou

Pirilampo. — Mais alto! Mais alto!— Mentiroso! — gritou Deleve, e tocou uma escala mais alta. —

Pirilampo voou mais alto... — E agora, o que está vendo?— Oooh... Além do horizonte! Constantinopla e Timbuktu! Mais

alto! Mais alto!— Mentiroso! — disse Deleve, sorrindo, e, depois de tocar a

nota mais alta na clarineta, deixou-a de lado e começou a assobiar. — E agora, está vendo o quê?

— Oooh... Estou vendo o passado! Os astecas e os viquingues! — gritou Pirilampo, com a boca cheia de semínimas. — Mais alto! Mais alto!

— Mentiroso! — disse Deleve dando uma risada, e assobiou outra vez, em um tom ainda mais agudo.

— Pare com esse assobio, seu lambaz!Súbito, viu Peter Pan postado diante dele, as faces rubras, os

olhos muito abertos.— Está querendo atrair a Sorte Malfazeja?O cabelo da nuca de Deleve arrepiou-se de terror.— Desculpe, Capitão — sussurrou ele.— Não sabe que traz má sorte assobiar a bordo!?— Mas não estamos... — murmurou Deleve, suas palavras

fugindo-lhe perante a ira de Peter.— Oooh! Vejo uns tocaieiros, vejo uns emboscados! — flauteou

Pirilampo muito acima das cabeças deles.— Matantes no matagal! — Mas ninguém deu importância para

ele, claro, porque estava sempre mentindo.— Fadas e elfos morrem quando as pessoas não ligam para

eles!— queixou-se.Peter plantou as duas mãos abertas no peito de Deleve e deu-

lhe um empurrão, fazendo-o cair de costas.— Ande mais atrás ainda, ouviu? Fique longe com a sua má

sorte!Os outros Exploradores entreolharam-se. A boca de Piuí tremia

e seus dedos, sem que ela se desse conta, acariciavam o lábio superior. Novello aparentemente não escutara o tumulto e prosseguia, a cabeça abaixada, entrando em um bosque com o baú a reboque. Os outros seguiram-no em fila de um, porque a trilha era

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estreita. Wendy caminhava atrás de Peter, observando o vaivém das abas do casaco escarlate e como o cabelo comprido e encaracolado dele balançava lindamente em cima da gola.

— Você está meio diferente mesmo, Peter — comentou ela. — Para ser franca, quase não o reconheci ainda há pouco.

— E daí? — disse Peter. — Essa aventura está tão aborrecida! Não tivemos uma única batalha desde que desembarcamos!

Aí ele tossiu e enxugou a testa no lenço emprestado de Wendy, mas nem se virou para olhar para ela, nem uma vez ao menos.

Os verdes bosques frondosos deram lugar a florestas de pinheiros sem vida. Depois do pôr-do-sol, quando se sentaram para jantar, Peter anunciou que não haveria comida para Deleve porque ele tinha assobiado, e assobiar atraía má sorte (o que fez Wendy prontamente resolver que daria todo o seu jantar para Deleve). O resto da expedição esperava com a boca aguando, e uns queriam que houvesse bolo de limão, outros queriam salsichas...

Mas a verdade é que não houve comida para ninguém. Nada apareceu em cima da toalha branca.

Várias vezes seguidas, Peter tentou imaginar a comida. Quando o Apfelstrudel não veio, ele tentou imaginar frutas e legumes simples. Mas apesar de todos os membros da Liga tatearem em torno e além de seus pratos, batendo ansiosos com as mãos na toalha, não sentiram laranjas invisíveis, nem aipo, nem cenouras, nem mesmo couve.

— Os passarinhos devem ter comido tudo dentro de minha cabeça — disse Peter, alarmado. — Ou fadas gulosas. Ou então isso é aquela má sorte que Deleve atraiu para nós derramando o sal e assobiando.

Quem quer que fosse o culpado, o fato é que o dom mágico de Peter desaparecera, assim como um livro roubado de uma biblioteca, e a Liga foi dormir com fome — tanta fome que ninguém conseguia dormir. A lua parecia um queijo holandês redondo e as estrelas eram farelos de pão. O zumbido dos insetos soava igual a uma panela de sopa fervendo, o barulhinho da chuva lembrava o dos cascos do cavalo do leiteiro. Os estômagos deles roncavam. Estavam tão famintos que chegaram a pensar com vontade nos ovos borrachudos de Novello e cogitar se poderiam convencer o criado a partilhá-los com eles...

— Ainda há, é claro, bolachas de navio no baú de bordo — disse sua voz profunda a aveludada de dentro da escuridão.

Em segundos, estavam todos em torno do baú de bordo fazendo grande alarido, procurando os biscoitos à luz dos vaga-lumes e tentando se lembrar como dividir trinta e três bolachas entre oito bocas esfaimadas.

— Quando as encontrarmos, temos de fazer com que durem! — aconselhou Wendy, muito sensata. — Ninguém pode comer sua cota

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toda de uma vez.Reviraram tudo, livros e botas impermeáveis, um chapéu

sudoeste (aquele chapéu com a aba mais comprida atrás, que os marinheiros usam durante temporais e ventanias fortes), um colete salva-vidas, tinteiros e penas, cartas náuticas e bússolas. Entretanto, só encontraram no fundo as embalagens vazias dos três pacotes de bolachas e um pouco de pó de cupim.

— P-I-R-I-L-A-M-P-O!O elfo tinha comido todas as bolachas, até a última.A fome tornou-se uma ameaça tão grande quanto o ataque de

uma matilha de lobos, pois o dom de Peter se fora, assim como todos os suprimentos deles. Quando Pirilampo esgueirou-se para dentro do baú de bordo e serviu-se dos últimos alimentos, causou tanto mal quanto se tivesse envenenado o chá ou queimado as roupas de frio de todos. Olhavam para a paisagem que os rodeava e agora a achavam hostil, a natureza não mais lhes abria os braços convidando-os a partilhar suas maravilhas. Não passava de uma despensa, vasta, ameaçadora e VAZIA.

Sabe qual é o pior defeito das fadas e elfos? Eles nunca dizem “desculpe”. As mesmas boquinhas que engolem tão ligeiro notas musicais, biscoitos, botões, castanhas e cebolas simplesmente não conseguem enfiar os dentes nas palavras “por favor” e “desculpe”. Assim, quando Peter mandou a gulosa criaturinha comparecer à sua presença e perguntou o que Pirilampo tinha a dizer em defesa própria, o pequenino esganado apenas encolheu os ombros e disse:

— Eu estava com fome! — como se isso explicasse tudo.Peter sacou a espada.— Oh, Peter, não!E desenhou uma janela no ar — uma janela completa com

vidraças, peitoril e tranca. Então, ele a abriu e enxotou Pirilampo como um mosquito que tivesse entrado em casa no verão.

— Estou botando você para fora, seu pestinha, por ter se apropriado de mais que lhe cabia em uma partilha justa!

A janela se fechou: todos ouviram o estalido do trinco. Do outro lado, Pirilampo gritou:

— Fadas e elfos morrem quando não se liga para eles, sabiam?Mas todos foram proibidos de responder. A fome roncava

dentro de oito pequenos estômagos. Enrolaram-se em seus casacos feitos de cobertor de índio e dormiram, na esperança de sonhar com comida.

De manhã, ao acordarem, encontraram a toalha de mesa estendida em cima de uma camada de agulhas de pinheiro e Peter sentado de pernas cruzadas ao lado. Tirara seu casaco vermelho para usar como almofada. À sua frente, estavam dispostos oito pratos pelos quais ele dividia bagas silvestres — amoras, framboesas e outras semelhantes — em porções iguais.

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— Uma para você. Uma para ele. Uma para ela. Duas para os Gêmeos. Uma para... — Ao ver que o observavam, ergueu um punhado de frutinhas vermelhas, fazendo-lhes uma saudação. — Partilha de comida! — disse, dando uma risada.

— Onde você...? — Wendy começou a perguntar, perplexa.— Voei por aí ao luar! Segui as corujas e acompanhei de perto

os morcegos. Onde a abelha surripia, também eu surripiei. Ah, a esperteza de Pan!

Ainda havia um pouco de luar em seu rosto; uma palidez prateada, enluarada.

— Creio que se pode dizer que Sua Excelência o Menino Maravilhoso salvou o dia — declarou Novello, curvando-se reverentemente e ajudando Peter a vestir outra vez o casaco escarlate.

Encantados, os Gêmeos começaram a bater palmas e o resto dos Darlings juntou-se a eles.

As frutinhas eram escarlates e duras como pedras. Uma podia ter gosto de cereja e a seguinte, de tomate ou de presunto defumado. Novello salpicou-as generosamente com sal. Para amaciar as sementes, segundo ele. Peter Pan mal se lembrou de comer sua porção, estava ocupado demais saboreando as palavras “Sua Excelência o Menino Maravilhoso”.

Mais tarde, quando passavam por um denso e sombrio bosque de pinheiros, o Menino Maravilhoso apontou para o lugar onde colhera as frutinhas, junto aos galhos mais altos: os Gêmeos correram até lá para pular e tentar colher mais, mas eram pequenos demais para alcançá-los. Wendy não conseguiu, nem Piuí. Nem mesmo Cabelinho, para falar a verdade. Enquanto Peter erguia-se do chão sem o menor esforço a fim de colher mais algumas para a viagem, os outros cerravam os punhos, dobravam os joelhos e tentavam a todo custo evocar pensamentos felizes. Um chuvisco frio e a falta de poeira de fadas dificultaram tudo. Deleve, ansioso para ser útil e sair da lista negra de Peter, veio depressa da retaguarda, ficou nas pontas dos pés, espichou o corpo o máximo possível e colheu três punhados de frutas escarlates.

— Apaguem o nome desse menino e o abandonem à deriva!Pernas afastadas, os pés apoiados em um galho alto, uma das

mãos na espada, Peter Pan apontava um dedo condenatório para Deleve, pronunciando as palavras que todo Menino Perdido teme ouvir.

— Que ele seja banido como traidor e vira-casaca! Expulsem-no para a Terra de Lugar Nenhum! Que ninguém jamais fale com ele outra vez!

— Oh, Peter! — exclamou Wendy, estendendo a mão para o deter, mas não era possível tocar em Pan, empoleirado no galho como uma águia terrível visando sua presa. Ela teve de inclinar a

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cabeça para trás e a chuva caiu em seus olhos. — Oh, Peter! O que foi que ele fez de mal? Só apanhou umas...

Pan desceu voando, rápido como uma ave de rapina, aterrorizante, um verdadeiro gavião. Arrancou a espada de peixe-espada do cinto de Deleve e partiu-a ao meio em cima do próprio joelho.

— Não está vendo! Ele quebrou o juramento! Esse aí, esse inimigo grande e comprido, dissimulado e traiçoeiro!

E voltou a ficar cara a cara com Deleve como antes, só que agora seu nariz chegava apenas à altura do primeiro botão da camisa de Deleve.

Talvez fosse algum feitiço daquela bruxa, que segurara o rosto de Deleve entre suas mãos. Talvez tenha sido por causa do estratagema que ele usou para entrar na Terra do Nunca (mergulhando do pé de sua cama). Talvez a culpa fosse do Tempo, que rondou pela Terra do Nunca transformando o verde das folhagens de verão em vermelho e laranja, e que fazia o sino do navio bater. Ou talvez ele fosse mesmo um traidor. Qualquer que fosse a causa, Deleve

Darling estava crescendo — era inegável. A cabeça e os ombros já ultrapassavam a cabeça de Peter e ele alcançara as frutinhas que ninguém conseguia alcançar do chão.

Peter puxou a espada.— Oh, por favor, Capitão, não!E, com a ponta da lâmina da espada, desenhou no ar uma

enorme porta com grade levadiça, completa com a corda, a roda para suspendê-la e os temíveis ferros pontiagudos na extremidade inferior. Então, Peter levantou a pesada grade de ferro e, apontando a espada para ele, fez Deleve ir recuando e passar pela porta de costas, depois baixou a grade outra vez, isolando-o.

— Vocês todos juraram não crescer — disse Peter, afrontando qualquer um que pretendesse objetar. — Essa é a única Regra aqui. E Deleve a descumpriu.

Quem poderia discutir? Mais uma vez, os Exploradores seguiram um atrás do outro, em fila indiana, e recomeçaram sua longa caminhada rumo ao Monte do Nunca.

Espiando por cima do ombro para onde Deleve ficara, imóvel na chuva, Wendy notou que a camisa dele agora mal lhe chegava aos joelhos e que a clarineta em sua mão parecia menor que antes.

A distância ajudava. Quanto mais se afastavam, menor ele ficava, aquela figura patética no caminho. Quase dava para confundi-lo com um menino pequeno perdido na chuva.

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Capítulo TrezeDe que lado?

Uma canção envolvente, enternecedora, vinha flutuando até eles trazida pela brisa. A primeira coisa que ouviam toda manhã e a última, toda noite, era o som da clarineta de Deleve, que lhes chegava de seu exílio. Ninguém esperara que isso fosse acontecer. Compreendiam que Deleve agira mal por ter crescido e queriam tirá-lo de suas cabeças, como Peter lhes determinara. Mas é difícil esquecer alguém quando essa pessoa ainda pode ser ouvida.

O percurso ia se tornando difícil. As florestas de pinheiros tinham ficado para trás, agora só havia troncos — uma paisagem de galhos nus, tão sem vida e sem folhas quanto os mastros de um navio encalhado em um banco de areia. O autor do mapa chamara esse lugar de Deserto da Bocasseca, e errara redondamente. Pois não era o deserto que tinha a boca seca, mas qualquer um que viajasse por ele. Não havia nenhum lago nem rio onde beber água e, com o sal de seus jantares, a Companhia de Exploradores estava bastante sedenta. Peter saíra na frente para fazer o reconhecimento do terreno em busca de algum regato ou riacho. Outra vez, a música de Deleve veio pelo vento até eles.

— O que vai acontecer com ele? — perguntou Wendy.Ela estava apenas pensando em voz alta, mas Novello, que

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limpava as botas de Pan, levantou a cabeça e respondeu.— Certamente vai se tornar um dos Desengunços, senhorita, e

viver sem regras nem educação, como um rebelde, e comer vingança fria ao jantar.

— Eca! — disse um dos Gêmeos. — Isso é igual a pudim de arroz?

Novello cuspiu no couro, à falta de graxa de sapatos, e pôs-se a dar brilho nas botas usando uma das pontas de seu casaco disforme.

— Não exatamente, senhor Darling. Nunca ouviu o ditado: A vingança é um prato que se come frio?...

Claro que há também a possibilidade de as Bruxas o apanharem primeiro.

— Quem são os Desengunços? — indagou João, receando por um momento que Deleve pudesse se divertir mais com eles do que com os Exploradores.

— Os Desengunços? — Novello parecia surpreso com a ignorância deles. — Achei que Sua Alteza Suprema já lhes contara sobre eles há muito tempo. (Como Peter teria adorado ser chamado de “Sua Alteza Suprema” se estivesse presente.) — Os Desengunços. Os Meninos Compridos. Os Meninos Perdidos Compridos. São os que Peter Pan baniu por terem quebrado a Regra. Por terem crescido. Ele os mandou embora e agora eles vagueiam por lugares agrestes, vivendo de banditismo e de arruaças. Cruéis até a alma.

— Ninguém é inteiramente mau — disse Wendy depressa, sabendo que Deleve nunca seria assim.

Na voz do criado não havia nenhum traço de agressividade. Falava com a suavidade e a mansidão de um carneirinho.

— Por que lhes restaria alguma doçura ainda, senhorita? Pense bem. Menosprezados e abandonados por suas mães, eles são despachados para a Terra do Nunca com o coração partido. Mas — oh, bendito alívio! — são acolhidos no aconchego da casa subterrânea, passam a fazer parte de um mundo onde têm amigos e divertimentos. Não estão mais sozinhos! A vida é perfeita! Então, um dia, seus pulsos se alargam e arrebentam os punhos das roupas; suas calças ficam curtas demais. E, por causa desse pecado, perdem seu lugar no Paraíso. São banidos — expulsos porta afora como uma garrafa de leite vazia — desprezados e rejeitados — e dessa vez por seu melhor amigo.

Os membros da Liga encolheram-se, assustados, prendendo bruscamente a respiração. Dito assim, aquilo tudo parecia tão... desumano.

— Não podem ir para casa porque são adultos, e adultos (como sabem) não podem voar. Portanto, estão presos na Terra do Nunca, mas sem nenhuma das alegrias e benefícios que deveriam ter por estarem aqui. Seus corações apodrecem, como maçãs deixadas tempo demais nas árvores; o Ódio e o Rancor penetram-nos

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profundamente como as lagartas nas frutas. Pense bem. O amor se aprende no colo das nossas mães — disse Novello, com voz ronronante —, e a traição aprende-se quando elas se cansam de nós e suas saias farfalham a distância enquanto se afastam. Se, além disso, os amigos também nos dão as costas, então! Por que não o banditismo? Por que não sair por aí cortando gargantas? Por que não seguir uma vida de crimes? O desespero mata o coração de um menino. — Levantou as botas que estava polindo, um braço dentro de cada pé, para admirar o couro brilhante. — Não. Já domestiquei ursos e já domestiquei leões, senhorita. Utilizando uma combinação de amor e medo, domestiquei toda espécie de animal. Mas não há como domesticar os Desengunços. Nada lhes resta para temer e, sabiamente, aprenderam a nunca mais amar.

Com as botas polidas pousadas no chão no meio deles, parecia que Pan estava ali, só que invisível. O dono do circo inclinou-se profundamente, em uma saudação extravagante às botas vazias.

— Enfim! O senhor Deleve quebrou a Regra de Ouro e o senhor Deleve pagou o preço por isso. Que opção tinha o Menino Maravilhoso? Tal é a Lei de Pan.

O som da clarineta de Deleve adejou por cima de suas cabeças como uma andorinha, e todos menos Novello abaixaram as cabeças, para evitar que se enredasse em seus cabelos.

Daquele mesmo céu, Peter voltou, cada um de seus pés deslizando para dentro de sua bota brilhante como uma faca na bainha. Trazia notícias de uma cachoeira adiante e a Companhia de Exploradores, morta de sede, levantou-se de um pulo só e seguiu às pressas para lá.

A cachoeira se bastava: nenhum rio fluía para ela nem a partir dela — consistia unicamente em uma queda d’água revestindo uma parede de rocha tão alta quanto a Árvore do Nunca e lisa como vidro. As crianças aproximaram-se o mais que se atreveram, com a boca bem aberta, deixando o borrifo gelado descer-lhes pela garganta. Delicioso.

Branca e leve como fumaça, a névoa os envolvia, prateando-lhes os cabelos com suas gotículas. Quando o sol passou através da água e brilhou na névoa em turbilhão, surgiram também os arco-íris. E quando, bem acima de suas cabeças, formou-se uma nuvem palpitante e cintilante de cores, eles deixaram escapar exclamações deslumbradas com a Beleza perfeita da cena.

Não que a Beleza ocupe um lugar de destaque na lista de desejos de uma criança. Ela não gastaria seu dinheirinho para comprá-la. Não rasparia o fundo do prato se ela fosse servida ao jantar. Na realidade, na maior parte do tempo, a Beleza não é mencionada nem sequer lembrada momentaneamente pelas crianças. Mas aquela visão em especial fascinou os Exploradores com um raro encantamento, e eles ficaram contemplando

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embevecidos o caleidoscópio de lilás, azul, malva e roxo formado pelos arco-íris. O que foi mesmo que aquele homem escritor disse? Às vezes, a Beleza transborda, e então os espíritos viajam12.

Um por um, os diferentes salpicos de cores separaram-se e desceram flutuando, como pétalas de rosas no fim do verão. Roçaram os rostos levantados das crianças; pousaram em seus ombros. Mais e mais caíram: uma neve levíssima de flocos de cores. Como a própria neve, ela os hipnotizou — um estonteante redemoinho de boniteza caindo sobre eles. Em vez da névoa da cachoeira, sentiam apenas o toque suave de milhares e milhares de fragmentos aveludados de lindeza. Acumularam-se em seus cabelos, encheram seus bolsos e suas orelhas; puxaram suas roupas. Puxaram?

— Fadas! — gritou Piuí deliciada. — Milhares de fadas!E, de repente, a neve transformou-se em tempestade. O prazer

virou desconforto e, igualmente depressa, o desconforto virou medo. A nevasca de minúsculos corpos não dava mostras de querer cessar. Logo, as crianças viram seus pés, seus joelhos cobertos de montes de fadas, e não conseguiam dar mais um passo. Suas mãos, cobertas com grossas crostas de magia das fadas, pesavam tanto que não podiam levantá-las. As tranças amarelas de Piuí pareciam espigas de milho infestadas de gafanhotos. O peso prendia as crianças no chão, empurrava-as para baixo, comprimia-as. As que ainda se mantinham de pé lutavam para se manter eretas, pois quem perdia o equilíbrio era instantaneamente esmagado — enterrado — sob uma tonelada de fadas. Um a um, porém, todos caíram, e foram aos poucos sufocados por um tapete — um colchão — um monte de feno de fadinhas ardilosas. Imobilizados no solo, só escutavam os estalidos de milhões de diminutas asinhas, o sibilar e zumbir de milhões de vozinhas perversas:

De que lado? De que lado? De que lado você está? Do Azul ou do Vermelho? Diga logo, seu fedelho, Do Azul ou do Vermelho?

— Foi aquele pestinha comedor de cebolas que mandou vocês virem nos atacar? — disse Peter Pan com grunhidos.

Mas dava para notar que não se tratava de nenhuma brincadeira de mau gosto nem de uma travessura maldosa. Os Exploradores tinham ido parar no meio de uma guerra já em andamento. As Fadas começaram a beliscar e chutar todo mundo. Os Gêmeos (lembrando o apetite de Pirilampo) pensaram que estavam sendo devorados e desataram a chorar. E as vozinhas juntas vibravam no meio deles, como um coral de abelhas, repetindo:

Mostre a cor da sua bandeira. Ou é Azul, ou Vermelha, Cor do céu ou cor de telha, Senão, é morte certeira.12 Trecho de Coragem, texto comovente do discurso que J. M. Barrie escreveu e leu ao tomar posse do cargo de reitor da Universidade de Edimburgo, em 1922. (Nota da Edilora.)

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Pelo jeito, o mundo das fadas dividira-se em dois e desencadeara-se uma guerra feroz entre dois grandes exércitos — o Vermelho e o Azul. Wendy espremeu os miolos para tentar descobrir a razão da briga, qual seria o significado das cores. Lembrou-se que as fadas meninas eram tradicionalmente brancas; os meninos — ou elfos — costumavam ser lilases; e aqueles que eram bobocas demais para se decidir eram azuis. Mas aquela não podia ser uma guerra de sexos: havia fadas e elfos no enxame de atacantes. E que situação tão injusta: ter de escolher um lado sem saber o que cada um representava!

Diga se está frio ou quente, Se é contra ou a favor, e, urgente, Se é Azul ou se é Vermelho. Ou verá a Morte no espelho.Seus captores recitavam monotonamente os versos, sem

qualquer animação. Deviam ter repetido a cantilena tantas vezes que nem percebiam mais o que diziam. Mesmo assim, as palavras eram arrepiantes.

— Não estamos de lado nenhum! — resmungou Cabelinho, quase sem conseguir respirar. — Somos iguais aos suíços!

— Suíços? — arquejou João, que era muito patriota. — Nós somos ingleses! Se o pé de Cabelinho estivesse solto, talvez ele tivesse chutado João. De qualquer maneira, as fadas não davam a mínima para a neutralidade.

Diga se é amigo ou inimigo Ou vai ser grande o castigo. Está na hora de escolher A cor. E viver ou morrer.Wendy tentou dizer às fadas:— Nossa bandeira é a do girassol-e-dois-coelhos! — Ela queria

explicar: — Somos Exploradores! Não estamos em guerra com ninguém! — Mas havia fadas em sua boca e um batalhão de fadas fazendo rombos em suas costelas. Além disso, as fadas aparentemente só aceitariam como resposta “Vermelho” ou “Azul”.

E se as crianças tentassem adivinhar e adivinhassem errado, seria a última palavra que pronunciariam na vida.

De que cor, e de que lado? Do Azul ou do Encarnado? Mostre a bandeira, safado! Se não, você está CONDENADO.— Como podemos mostrar a bandeira com vocês em cima de

nós! — enfureceu-se Peter. É possível que o enxame tenha abrandado a pressão sobre ele, ou talvez o Menino-Primeiro-e-Único estivesse tão furiosamente determinado que abriu caminho à força até a superfície. Lá estava ele, afinal, ao pé da cachoeira, muito altivo e aprumado, apesar das fadas agarradas como pragas à sua

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gravata branca.— Nós navegamos sob o emblema da Caveira-e-Ossos-

Cruzados! — declarou ele. — É a nossa bandeira!— Peter, não! Não é verdade! — Wendy ficou tão estarrecida

que também se libertou do mar de fadas.Ela o encarou e, por um instante, parecia que as palavras

tinham surpreendido Peter tanto quanto ela. Por sorte, “caveira-e-ossos-cruzados” nada significavam para as fadas recitadoras: elas não sabiam de que cor era uma bandeira de piratas. Além do mais, a paciência delas estava chegando ao fim.

Digam: Azul ou Vermelho! Ou morrem todos vocês. Vamos contar até três Este é o último conselho! UM...Subitamente, um halo de luz explodiu ao redor da figura frágil

de Peter. Depois, ele desapareceu inteiramente. Peter entrara de costas na queda d’água. Wendy estava ao mesmo tempo empolgada e desolada — empolgada porque o Capitão escapara, desolada porque ele deixara seus amigos à mercê das fadas.

— DOIS!Não havia outro jeito. Teriam de arriscar — dizer Azul e torcer

para não estar nas mãos dos Vermelhos — ou Vermelho e rezar para não estar entre os Azuis. Todos os membros da Liga de Pan pensaram nas cores e tentaram decidir. Não acharam que valesse a pena morrer nem pelo azul nem pelo vermelho.

— ARCO-ÍRIS!De trás da cortina de água, do meio da espuma barulhenta da

cachoeira, surgiu Peter Pan. Em sua mão, ondulava um dos arco-íris feitos de sol e névoa.

— Aqui está nossa bandeira! Agora, que nos julguem por nossa bandeira, seus diabretes, e nos matem ou nos soltem de uma vez!

O exército de fadas desconcertou-se, todo confuso. Olhavam para a bandeira tecida de sol e névoa e viam azul e vermelho em proporções iguais — bem como uma porção de outras cores. A pressão dos corpos minúsculos diminuiu à medida que a gravidade fádica se impôs. (As fadas sempre caem para cima.) Tinham um ar de quem acha que foi meio tapeado, pois Peter estragara sua diversão: os exércitos gostam mais de matar do que de fazer amigos novos. Também olhavam com inveja para a bandeira de arco-íris, quase como se a preferissem à Vermelha ou à Azul. Então, formando um redemoinho de tornado com seus corpos coruscantes, subiram rodopiando em direção ao céu.

Wendy teve vontade de gritar para elas: Parem! Vocês nunca brigavam antes! O que estão pensando? Mas a nuvem lilás e malva e anil, e azul e roxo e branco girou para cima, finalmente se espalhando como arroz lançado em casamentos. Ou como

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fragmentos de uma bomba explodindo.— Essas fadas idiotas com suas bandeiras idiotas! — protestou

João.Os menores, porém, estavam admirando seu Capitão e

saudando sua maravilhosa bandeira de arco-íris. Peter encaixara-a em um mastro. Agora, o tecido de névoa-e-sol ondulava acima de suas cabeças e Peter deu a ordem:

— Em forma, meus marinheiros! Quem quer ir para o Monte do Nunca buscar uma arca cheia de tesouros?

A montanha estava tão próxima que enchia o horizonte inteiro. Viam claramente sua capa branca de neve, seus flancos marcados pelos deslizamentos de rochas. Era inacreditavelmente alta.

Durante uma hora, percorreram o campo de batalha das fadas, o chão coalhado de milhares de asas rasgadas, as teias de aranhas cobertas de poeira mágica. Corvos gordos, negros, saltitavam por ali, luzidios e mal-intencionados.

— Quanto tempo faz que as fadas vêm brigando entre si? — perguntou Wendy, atenta aos lugares onde pisava, segurando a parte de trás do casaco de Peter. Ele agitava a bandeira de um lado para outro só pelo prazer de ver os corvos levantarem vôo. — Peter! Por que essa luta entre os Vermelhos e os Azuis?

Ele deu uma risada e saltou por cima de uma pilha de atiradeiras de fadas feitas com os ossinhos da sorte — aqueles que parecem um Y — de pássaros pequeninos, como as cambaxirras.

— Ora, para escolher sua cor favorita, é claro! Para saber qual é a melhor.

O baú de bordo, engastado nas molas das rodas de carrinhos de bebê, rangia e chacoalhava conforme Novello o puxava pelo esburacado campo de batalha.

— As fadas viajam — observou ele. — Pegam as coisas no ar. Lembranças. Resfriados. Idéias. Acho provável que essa Guerra delas venha de alguma idéia que trouxeram do estrangeiro... como os ratos negros foram os mensageiros da Peste! — Depois, um pensamento fugaz o fez sorrir e ele murmurou, a voz em tons sedosos. — Ou talvez as fadas tenham deixado abertas à noite as janelas da Terra do Nunca. E a Guerra entrou por elas.

O Homem em Fiapos parou de falar e pôs-se à escuta, a cabeça encapuzada inclinando-se para uma direção, depois para outra, como fazia com freqüência. Explicou que apreciava muito o canto dos pássaros e que estava escutando os rouxinóis. No entanto, Wendy não escutou nada — nem rouxinóis, nem a clarineta de Deleve.

Só o crocitar dos corvos roliço

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s.

Capítulo CatorzeAcabou a graça

No sopé do Monte do Nunca, havia charcos e lodaçais escarlates, de aparência tão inocente quanto um tapete de sala de visitas, mas profundos e mortais como túmulos. A Companhia de Exploradores tinha de dar cada passo com a maior atenção, para não

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se desviar do caminho e arriscar-se a afundar na areia movediça, o que deixaria somente borbulhas de gás dos pântanos como único testemunho da Aventura de Pan.

Entre os pântanos, crescia uma vegetação de manguezal e mandrágoras, saca-rolhas-de-cortiça e pata-de-lebre, dente-de-cão e escovinha-de-gato, além de madeiras das quais escorria uma resina cor de âmbar. Comida, não havia nenhuma, a não ser as frutinhas silvestres que tinham colhido antes e trazido consigo. Novello as distribuía igualmente pelos pratos dos Exploradores na hora das refeições, sem guardar nenhuma para si.

A única dificuldade é que as frutinhas provocavam sonhos, e o único problema com relação aos sonhos é que não se pode escolher o que se vai sonhar. Eles chegam como as mudanças do tempo, soprados do norte ou do sul, do passado ou do futuro, de lugares sombrios ou luminosos. Os sonhos flutuam sete oitavos debaixo d’água.

Piuí sonhou que era um homem usando calças de lã macia, um roupão vermelho e enormes bigodões — o que era muito inquietante.

Wendy sonhou com uma menininha chamada Jane dormindo em um quarto que o luar clareava. A menina sonhava Wendy e Wendy sonhava a menina e, quando os olhos adormecidos das duas se encontraram, a criança sentou-se na cama e chorou, chamando: “Mamãe!”. Isso agitou o sangue no coração de Wendy como a borra dentro de uma garrafa de vinho do Porto.

Os Gêmeos sonharam os sonhos um do outro, o que foi ótimo.João sonhou com seu irmão Miguel e acordou chorando.

Cabelinho sonhou com Deleve, que o chamava e dizia para ter cuidado, mas o sonho se resolveu antes que ele pudesse descobrir o porquê.

E Peter, então! Peter teve um sonho maravilhoso com um lugar onde ele nunca estivera, um lugar fervilhante de meninos, todos mais velhos que ele, todos estranhos, jogando jogos que ele nunca jogara, muitos meninos juntos em prédios que ele nunca vira. Ele estava remando um esquife na água iluminada pelo sol, e suas pernas eram curtas e não alcançavam os suportes para os pés. Estava vestido de branco, arremessando uma bola colocada sobre três varetas de madeira presas ao chão, e sabia que algo crucial dependia daquilo13. Teve de cantar uma canção que não conhecia em uma língua que não compreendia.

E estava tão FELIZ e tão AFLITO e tão ESPERANÇOSO porque, logo depois da curva do rio, bem no alto da grande escadaria, logo depois de Agar, ou do Rio Jordan ou do Jardim de Luxmoore ou de Fellows’ Eyot — que lugares seriam aqueles e como ele sabia seus nomes? — ele encontraria o tesouro, todo o maravilhoso...13 A autora refere-se ao críquete, jogo popular na Inglaterra, que se parece com o “taco”, jogado pelas crianças brasileiras. (Nota da Editora.)

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Foram acordados pelo som da clarineta de Deleve. Era a mesma canção que ele tocara para as bruxas, no Labirinto:

Mais amado jamais serás. Não vais mais querer voltar?E as crianças gritaram para ele ir embora, mas Deleve

continuou tocando.Tinham acampado à noite, sem ter noção de como estavam

próximos da montanha. Agora, à luz do amanhecer, ela se erguia acima deles, maior do que o mundo, com a cabeça nas nuvens e os pés enterrados no chão a uma profundidade equivalente à altura de um edifício de catorze andares. O Monte do Nunca estendia-se para cima e para longe: penhascos de granito e precipícios de mármore, plataformas salientes de pedra-pomes e declives de pedrinhas soltas de ardósia. Tinha o formato de um daqueles bolinhos que são assados em fôrmas semelhantes a xícaras, com encostas íngremes terminando num topo arredondado de glacê branco. As geleiras tinham cortado sulcos atabalhoados em volta da montanha. Os raios tinham queimado a superfície, deixando-a nua. Os trovões ribombavam por suas ravinas. E o Monte do Nunca era tão vasto que fazia o vento voltar, assim como a terra seca faz com o mar.

— Oh, Peter! — exclamou Piuí. — Por que você não voa até o alto e traz o tesouro?

— Preguiçosa, mulher à-toa, amotinada! — berrou Peter, assustando Piuí de tal maneira que ela correu para Wendy e pediu um abraço. — O que são vocês:

Exploradores ou uns poltrões, uns ratos de embornal que nasceram com a cauda na boca? Liderar vocês é como arrastar uma âncora! Vocês são uma carga de leite azedo! São um desperdício de rações, é isso o que vocês são!

— Que rações? — perguntou o Primeiro Gêmeo, lembrando-se de sua fome.

Seu irmão tentou fazê-lo se calar, mas era tarde demais. Pan transferiu seus insultos de Piuí para o Primeiro Gêmeo e depois para cada um dos demais, dizendo-lhes que eram vira-casacas e choramingões, amotinados e marinheiros de meia-tigela.

— Eles estão só cansados, Peter — disse Wendy com brandura. — Cansados e famintos. Será que não podemos...

— E você, quem é, a advogada dos marinheiros? Então é você quem os está virando contra mim, não é? Meninas! Para que servem a não ser para crescerem e virarem mães, e todo mundo sabe muito bem o que são as mães!

Wendy, boquiaberta, prendeu a respiração. As faces de Peter estavam esbraseadas, muito rubras, e ele torcia com violência as abas de sua sobrecasaca, suando de raiva, quase em pânico, querendo tirá-la.

— O casaco, Novello! Novello adiantou-se prontamente, mas só para tentar persuadi-lo a vestir de novo o casaco escarlate.

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— O ar está frio, milorde. Rogo-lhe que se mantenha aquecido. — Peter arrancou fora o casaco e jogou-o em cima dele.

Ao redor da base da montanha, araucárias-do-chile, que são árvores colossais, escuras e recurvadas, achatavam-se de encontro a paredões rochosos verticais, como malfeitores encurralados com as costas na parede. Grandes ninhos de vespas balançavam-se na curva de cada galho. Ligeiro, Peter afastou-se da Companhia de Exploradores e começou a subir nas árvores com movimentos ágeis, alternando as mãos, exibindo-se com pulos e saltos mortais para mostrar como era simples, mesmo para aqueles com muito pouca quantidade de poeira das fadas, para voar. Os Darlings hesitavam, intimidados pela montanha monstruosa.

Novello abriu o baú de bordo, dobrou e guardou a sobrecasaca. Pela maneira como a manuseava, via-se logo a terna admiração que sentia por seu dono. Tirou também de lá quatro braças de corda: amarrou uma ponta na alça e outra em seu cinto. E pôs-se a escalar a montanha com obstinação.

— Recomendo que se apressem, esploratori piccoli14 — confidenciou-lhes mansamente, a voz quase inaudível depois da ferocidade do Capitão Pan. — Há Desengunços nos arredores.

Foi o que bastou. Os Exploradores ajustaram bem ao corpo seus casacos de cobertores e subiram desajeitadamente nas árvores, como muitos marinheiros de uma vez indo pelo cordame para o cesto da gávea, cercados de estrelas.

A subida era exaustiva. Galhos finos partiam-se sob seus pés. Agulhas de pinheiros os espetavam. A casca das árvores soltava-se em seus dedos e o cheiro de resina deixava-os tontos. Pior de tudo, a resina escorria pelas árvores e exasperava-os de tão pegajosa que era, grudando entre seus dedos como se fosse uma pele e colando seus joelhos um no outro. As agulhas dos pinheiros — que são as folhas dessas árvores, com formato de pequenas agulhas verdes — grudavam-se em seus braços e pernas e cabelos, e todos ficaram parecendo criaturas peludas arrepiadas. A princípio, só vespas solitárias passavam por eles, curiosas, estabanadas, esbarrando nos rostos das crianças, zumbindo em seus ouvidos. Ao sacudirem uma árvore, entretanto, os meninos deslocaram um vespeiro da fenda onde se encontrava e centenas de vespas precipitaram-se de dentro, reunindo-se em torno deles como uma nuvem, atraídas pelos rostos melados, agarrando-se às palmas das mãos deles.

— Aiaiai! Uma vespa me mordeu!E vieram também meigas — aqueles mosquitos de pernas

enormes que parecem aranhas — e mutucas, e moscas varejeiras e joaninhas. As sombras das crianças agarravam-se e aderiam depressa à resina escorrida, detendo-os bruscamente, ameaçando

14 “Pequenos exploradores”, em italiano. (Nota da Editora.)95

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embaraçar seus pés em sua escuridão.Cabelinho cometeu o erro de olhar para baixo e viu que, com a

distância, a terra encolhera e estava reduzida a um jardim em miniatura. João fez a tolice de olhar para cima e viu que estavam chegando ao topo das árvores, e que depois delas só havia pedra cinzenta e neve.

Arrastaram-se para uma estreita saliência de rocha e deitaram-se ali, com os narizes na beirada, cansados demais para fechar os olhos. Desse jeito, viram o Homem Desfiado fazer sua lenta escalada.

Entre os galhos das árvores, seu enovelado de roupas ficaria agarrado em cada graveto e farpa e ele teria se esfiapado até os ossos. Portanto, ele deixou de lado a araucária e preferiu escalar a rocha lisa — não com agilidade e rapidez mas com uma determinação imperturbável — firmar o pé, equilibrar-se, puxar o corpo. O pesado baú de bordo, pendurado na parte de trás de seu cinto, oscilava como um pêndulo de relógio: tique-taque, tique-taque. Quando alcançou o pouso onde as crianças se encontravam, ele se deitou com cuidado extremo ao longo da estreita prateleira rochosa. Wendy teve o curioso impulso de estender a mão e tocar aquele estranho pêlo de lã que o revestia. Sentiu cheiro de ovos de cobra, gotas para tosse e leão.

— Acha que os Desengunços virão atrás de nós, senhor Novello? — perguntou ela.

— Não, senhorita. Acredito que não.— E será que vai ter comida? — perguntou o Segundo Gêmeo.— Certamente. Ovos de águia. Pepinos das montanhas. E maná.— Maná?— Maná pode ser bom ou ruim. Cuidado com o que comerem. O

maná faz o homem, mas só o bom.— Como o senhor sabe essas coisas, senhor Novello? —

perguntou Cabelinho.Novello pôs-se a içar o baú de bordo, puxando a corda

pausadamente, uma das mãos seguindo-se à outra. Dava para ouvir os dentes cerrados dele rangerem com o esforço.

— Ah. Sou um viajante, pequeño marqués15. Escuto um pouco aqui, um pouco ali.

As vespas que restavam desceram e sumiram, como nadadores que percebem que foram longe demais.

Clipe. Clipe. Pedregulhos começaram a bater nos galhos das árvores e atingir a plataforma rochosa. Logo, alguns atingiam os Exploradores — aai! ui! — e eles se deram conta de que estavam sendo atacados por algo maior do que simples vespas. Enormes pássaros cinzentos com pernas descarnadas e garras parecendo pinças de pegar gelo voavam em círculos acima, lançando pedras

15 “Pequeno marquês”, em espanhol. (Nota da Editora.)96

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para expulsar os invasores. Aquela saliência era o poleiro noturno das aves e elas pretendiam que continuasse sendo só delas. As pedrinhas caíam com um ruído de chuva de granizo. Soprou um vento frio.

Piuí fungou alto e expressou com palavras o que todos estavam sentindo:

— Isso não tem mais graça nenhuma.Às vezes, uma brincadeira domina a pessoa que pensou nela.

Na Terra do Nunca, isso sempre acontece, e a brincadeira deixa de ser uma brincadeira: passa a ser real — o que é maravilhoso, e faz o cérebro da gente girar e ziguezaguear por trás dos nossos olhos, e lança umas ondinhas de calor no nosso estômago e faz a saliva secar dentro da nossa boca; e todos os pássaros se transformam em harpias ferozes, todos os troncos viram canhões possantes, e todas as cortinas viram fantasmas e todos os barulhos vêm dos monstros... É o melhor dos momentos, e a gente sabe que vai se lembrar daquilo para sempre.

Mas que dá medo, ah, isso dá!Peter Pan pôs-se de joelhos, a camisa branca ondulando no

corpo, o comprido cabelo escuro todo em pé por causa do vento. Havia o sorriso mais lindo em seu rosto.

— Meus amigos... meus irmãos... viemos aqui...— E irmãs! — interrompeu Piuí, impaciente.— E irmãs, claro. Viemos aqui para ser Exploradores. Para ser

caçadores de tesouro. Não é? E o que pensamos? Que seria fácil? Que seria seguro? Olhem para lá! Olhem! — E eles olharam para onde ele apontava, para a paisagem que tinham atravessado, viçosa e verde a distância, árida e acidentada nas proximidades; uma região selvagem sem trilhas nem caminhos, difícil e custosa de percorrer. — Será que achamos que os caminhos fossem muito trilhados e marcados? Não. Mas nós chegamos assim mesmo! Será que pensamos que todo mundo costumasse vir aqui com freqüência? Não, aqui só vem gente como nós! Queríamos coisinhas fáceis? Passeios pelo parque?

Olhavam para ele, fascinados. Peter Pan, com os punhos erguidos acima da cabeça, segurando o vento nos dentes alvos, os ossos dos ombros parecendo duas asas sobre seu coração. Na pele dos punhos dele, riscos brancos de cicatrizes, onde farpas minúsculas de metal tinham voado das lâminas de duas espadas durante a sua luta de morte com Jas Gancho. Ele era magnífico.

— Mas não somos todos como você, Peter! — exclamou Cabelinho. — Às vezes ficamos cansados... e sentimos medo.

— E se o tesouro não valer a pena, depois de tudo isso? — argumentou João.

— Então não seria um tesouro — murmurou Novello, com lógica indiscutível.

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— Nem todos podem ser ricos — prosseguiu Peter. — Nem todos podem ser fortes ou inteligentes. Nem todos podem ser bonitos. Mas todos podemos ser corajosos! Se dissermos a nós mesmos que somos capazes; se dissermos ao nosso coração: “Pare de pular!”; se nos comportarmos como heróis... todos podemos ser corajosos! Todos podemos olhar o Perigo de frente e ficar contentes por encontrá-lo, e sacar nossas espadas e dizer: “Prepare-se, Perigo! Você não me assusta!”. A coragem está à disposição de quem quiser, não se necessita de dinheiro para comprá-la. Não é preciso ir à escola para aprender a ter coragem! A coragem é que é importante! Todo o resto se resolve quando se tem coragem!

Pouco antes, naquele mesmo dia, ninguém teria dado mais um passo pelo menino que os chamara de ratos e de amotinados, que ameaçara abandoná-los e cortar suas rações. Agora, se Peter Pan pedisse, qualquer um deles teria andado dali para cima das asas de um avião em pleno vôo ou mergulhado do trampolim mais alto dentro de um copo de leite. Limparam as agulhas de pinheiro do corpo, arrancaram com os dentes os ferrões das vespas cravados na pele e prepararam-se para escalar a encosta rochosa até o alto.

Novello gentilmente apanhou uma faca e cortou fora as sombras pegajosas dos Darlings.

— Agora elas não vão mais ficar presas enquanto vocês sobem — e guardou as sombras dentro do baú de bordo, como precaução. O Cachorrinho deve ter pensado que o corte doía, porque avançou para Novello e enfiou os dentinhos afiados na roupa dele, puxando-a com toda a força. Arrancou novelos inteiros de lã e a roupa desfiou-se mais, expondo um pé de bota estranhamente encalombado, manchado, gasto. O dono do circo, rápido como um raio, agarrou o Cachorrinho pela garganta e segurou-o bem junto do rosto. As crianças temeram por ele — acharam que Novello estivesse prestes a morder seu focinho e arremessá-lo montanha abaixo. Mas o homem apenas olhou dentro dos olhinhos salientes do bicho e sussurrou umas poucas palavras com voz doce. Perguntou:

— Animal, você tem um mínimo de vontade de um dia crescer e ser um Cachorrão?

O Cachorrinho levou a pergunta a sério e parou de mordê-lo. Foi uma cena bastante reveladora dos poderes de Novello como treinador de animais.

Ele também convenceu Peter a vestir de novo a sobrecasaca escarlate.

— É a cor da bravura, meu senhor; vai encorajar os outros.Em seguida, amolou sua faca em uma pedra e preparou-se para

cortar a grudenta e esfarrapada mancha escura em torno dos pés de Peter.

— Quero ficar com a minha sombra! — disse Peter com rispidez, batendo com o pé na faca de Novello.

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O criado recolheu depressa a mão pisada junto ao corpo mas não protestou. Seria preciso ter um bocado de coragem para enfrentar aquele Menino.

Capítulo QuinzeTerra de Lugar Nenhum

Deleve fora banido para a Terra de Lugar Nenhum, onde ninguém lhe dirigiria uma palavra sequer. Claro que Pirilampo fora banido para lá também, portanto não havia nada que o impedisse de fazê-lo.

— Nós detestamos aquela gente, não é? — disse o elfo, que agora cismara de chamá-lo (agora que ele estava mais alto) de senhor “Mais-Deleve-Ainda”.

— Hmm — disse Deleve, meio em dúvida. Nunca fora muito do seu feitio detestar as pessoas e, agora que estava maior, não lhe parecia uma coisa muito digna: detestar alguém menor do que ele. Os dois estavam sentados no sopé do Monte do Nunca, mastigando favos de mel vazios que a mão leve do elfo surripiara das árvores.

— Gostaríamos de cortar eles todos em pedacinhos, como gravetos, e fazer uma fogueira, não é?— provocou Pirilampo.

— Acho que não — respondeu Deleve, que, contudo, teria apreciado uma boa fogueira: estava ficando muito frio. Os favos de mel não tinham chegado nem para disfarçar a sua fome. Pirilampo conseguia sobreviver comendo notas musicais, mas Deleve (se ele não fosse Deleve e mais doce do que um cordeirinho) teria de bom grado matado alguém por um sanduíche de camarão.

— Tenho a impressão de que jamais vamos ver qual é o tesouro que está dentro da arca de Gancho. O que você gostaria que fosse, Pirilampo?

— Os olhos dos inimigos com calda de sorvete de limão! — respondeu Pirilampo, mais que depressa (embora pudesse estar

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mentindo, é claro).Estranhamente, quanto mais alto Deleve ficava, mais

lembranças remotas lhe vinham à cabeça, e assim conseguia recordar outra vez a Praça Cadogan, os Jardins de Kensington — e até, de muito tempo atrás, um professor de piano que prendia penas de escrever sob seus pulsos para mantê-los arqueados. (Foi por isso que ele resolveu aprender clarineta.) Mais-Deleve-Ainda lembrou até a primeira vez que estivera na Terra do Nunca...

— Conte uma história — pediu Pirilampo.— Por quê? Você come histórias também?— Só os ohs e ahs e es e os. Os quês são duros demais e os zês

são muito azedos, e as letras que têm pontinhos, como os is e os jotas, entram nos dentes; os esses às vezes escorrem para a nossa roupa e fazem cócegas. Ah, e também quero que a história tenha um final feliz, senhor Mais-Deleve-Ainda, se não eu fico com dor.

Então, Deleve colocou o agradável calorzinho de Pirilampo no bolso de sua camisa — Ah, e faça o favor de botar uma fada nessa história! — e contou a ele a história que estava passando em sua cabeça naquele momento.

— Certa vez, os piratas encontraram a casa subterrânea de Peter Pan e ficaram de tocaia; e capturaram todos nós, os Meninos Perdidos, um por um, à medida que subíamos pelo nosso tronco oco de árvore para sair; também pegaram Wendy, Miguel e João. Mas não conseguiram pegar Pan porque ele estava dormindo profundamente dentro da casa e não saiu. Aí, o covarde Jas Gancho apanhou um vidro de veneno (ele nunca saía sem levar um) e pingou umas gotas no remédio de Peter para que ele MORRESSE quando o tomasse ao acordar!

— Estou ficando com uma dor— preveniu Pirilampo.— ...Mas a fada Sininho, que era leal, sincera e corajosa, viu o

que aconteceu e logo decidiu o que deveria fazer!— Ela era esperta, então, essa tal de Sininho?— Simplesmente brilhante. Não interrompa.— E bonita?— Daquelas bem clarinhas, com cinturinha fina de vespa. Posso

continuar?— E era fada feminina?— Muito. Quer ou não quer que eu conte essa história?— E era mentirosa?— Uma vez, ela disse que Wendy era um pássaro e que Peter

queria que atirássemos nela para matar.A mentira era tão grande que silenciou Pirilampo.— Peter acordou e já ia bebendo o veneno quando Sininho

correu e bebeu antes dele, e aí...— Ui! Ai! Ui! Por que você foi me contar isso? Ai, estou com

uma dor horrível! Ah, como detesto histórias!100

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— ...e Sininho quase morreu, e só não morreu porque era muito amada, e aí Peter saiu correndo atrás de Gancho e entrou sorrateiramente a bordo do Terror dos Mares e soltou todos nós, que estávamos prisioneiros dele, e lutou com Gancho, e dava estocadas, e aparava golpes, e investia — ráá! ráá! ráá! Tome esta, e mais esta! — e o encurralou contra a amurada do navio, e o fez cair por cima da amurada ...tique, tique, tique... direto dentro da boca do Crocodilo!

...dilof ... dilo!... dilo! Como a cauda do malvado réptil, o final da história rabeou para lá e para cá nas faces rochosas do Monte do Nunca: um eco de maravilhosa ameaça.

— Uaauuu! — Pirilampo estava tão excitado que chamuscou o bolso da camisa de Deleve. — Xô para Gancho e ele que vá parar no fundo do mar!

— Não acho que seja certo tripudiar sobre um homem que você nem conheceu — repreendeu-o Deleve, com ar sisudo.

— Por que não? Gancho não merecia? Não era um vilão e um patife e um estafermo e um tinhoso que não servia para nada?

Deleve teve de admitir que Gancho era aquilo tudo.— E falava alto demais, segundo me lembro — disse ele,

franzindo a testa. — Gritava com seus homens o tempo todo, e os ameaçava e se pavoneava e se vangloriava, e pensava que ele era o supra-sumo, e que não havia quem se comparasse com ele em toda a Terra do Nunca.

Uma vozinha disse:— Quer dizer, igualzinho ao Peter?— Quieto, Pirilampo! Você não sabe o que está falando!O elfo pôs a cabeça para fora, meio nervoso, a boca um

pequeno e redondo O de surpresa.— Mas eu não disse nada, senhor Mais-Deleve-Ainda.E Deleve teve de admitir: a voz não viera do bolso de sua

camisa, mas de dentro de seu próprio coração: uma vozinha traiçoeira e rebelde que ainda lhe dizia, uma porção de vezes seguidas: Peter Pan começara a comportar-se exatamente igual ao Capitão Gancho.

O sol se pôs como um fatiador de presunto, e a noite chegou tão escura quanto um pudim de ameixas-pretas. Ou assim parecia a um menino que ficou sem jantar. Os pensamentos de Mais-Deleve-Ainda eram ainda mais negros enquanto ele tentava dormir, deitado com os olhos bem fechados. Pois ele descobrira algo de fato terrível: uma idéia que não lhe saía da cabeça, como fagulhas queimando-lhe a testa.

— Sabe aquelas outras pessoas que eu avistei lá de cima quando estávamos brincando? — disse Pirilampo no escuro, em um cochicho alto demais.

— Vá dormir, Pirilampo.— Mas eu falei a você sobre elas, lembra?

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— Quais, os astecas e incas?— Não. Os outros. Os tocaieiros, os emboscados. Os Matantes

no matagal. Lembra?— Não — disse Deleve com firmeza. Ele queria ir dormir em um

lugar onde não houvesse correntes frias de ar, sem idéias dolorosas caindo como fagulhas em sua testa.

— Você conta mentiras que é uma beleza, meu caro — disse ele, não querendo ser desagradável —, mas deixe para contá-las amanhã de manhã, por favor.

Infelizmente, Pirilampo não estava mentindo.E as fagulhas que caíam na testa de Deleve eram tão reais

quanto o pé que agora se apoiava em cima de seu quadril, a mão que agora lhe apertava a garganta. Abriu os olhos e deu com uns vinte jovens brutamontes brandindo porretes e tochas acesas feitas de junco.

— Vamos enfiar ele num espeto, assar e comer! — disse um.Deleve estendeu a mão para sua clarineta, do mesmo jeito que

uma mãe procuraria pegar um filho. Mas os garotos a confundiram com uma arma e chutaram-na para uma poça de lama. Chutaram Deleve também.

— Você é da Liga. É um dos dele. A gente viu você com ele.Uma onda de orgulho tomou conta de Deleve antes que se

lembrasse: ele não estava mais na Liga de Pan; era só um menino cujas pernas e braços tinham crescido demais e que fora banido.

— Vocês não deveriam estar falando comigo — disse ele. — Fui mandado para a Terra de Lugar Nenhum. (Deleve, nada sabendo a respeito dos Desengunços, ainda não percebera o perigo que corria.)

— Falar com você? Hum — grunhiu um rapaz enorme com os lóbulos das orelhas rasgados. — A gente só quer matar você.

Uma fada ou um elfo que contasse com os ohs e ahs e es e os dos Desengunços para sobreviver logo morreria de fome, pois, tendo se transformado em rapazes, eles quase não falavam coisa nenhuma. Naquele momento, estavam convencidos de que tinham capturado um membro do grupo de Pan, e um brilho criminoso acendera-se em seus olhos. Viviam esperando pelo dia em que armariam uma emboscada e atacariam o próprio Peter Pan, para se vingar por terem crescido e ele os ter banido. Nesse meio tempo, podiam muito bem se contentar em matar um dos integrantes da sua Liga de Exploradores. Novello falara a verdade ao afirmar que eles eram piores que piratas, menos domáveis que ursos e absolutamente impiedosos.

— Onde está Pan? Diga ou morra! — ordenou o Desengunço mais velho.

No mesmo instante, Pirilampo pulou de dentro do bolso da camisa de Deleve e comeu a cera do ouvido de um dos Desengunços.

— Peter Pan? Peter Pan? Nós o detestamos, não é, senhor Mais-102

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Deleve-Ainda?— Ele subiu a montanha — disse Deleve, não vendo mal

nenhum em contar para eles.— Foi buscar nosso tesouro! — disse Pirilampo com sua voz de

flautinha, achando que a ocasião pedia uma bela mentira. — Nós o mandamos ir.

— Tesouro? (A palavra tem mágica em si, não importa o quanto você tenha crescido.)

— Estamos querendo cortá-los todos em pedacinhos, como gravetos, para fazer uma fogueira — sugeriu Pirilampo, entusiasmado.

E assim, de alguma forma, os Desengunços presumiram que Deleve e Cia. estavam seguindo a pista de Peter Pan e tão empenhados em matá-lo quanto eles próprios. Também tiveram notícia do tesouro e gostaram da informação. Sentaram-se no chão cruzando as pernas compridas e desengonçadas, tomando cuidado para não roçar os braços nus em quem estava ao lado. (Deleve achou que sentiriam menos frio se ficassem bem juntos, mas ele ainda era novo nesse negócio de adolescência.) Uma a uma, suas tochas se extinguiram.

Durante algum tempo, ficaram sentados em silêncio, até que Deleve não agüentou mais e fez a pergunta que o afligia:

— Por que vocês cresceram? Vocês sabem? Eles encolheram os grandes ombros ossudos.

— Pan nos envenenou, claro.— Envenenou todo mundo.— Envenenou tudo.— Ora, não acho que... — começou Deleve.Mas os Meninos Perdidos Compridos foram categóricos.

Durante os anos agrestes e desconfortáveis de seu exílio, todos tinham passado a acreditar nesta versão da história:

Uma vez, no início do fim, quando era sempre verão, Peter Pan pegou um vidro de veneno e entornou-o na Lagoa. Primeiro, morreram os moluscos, depois as sereias. As ondas cor de turquesa cresceram — cresceram muito —, ficaram cinzentas e, em seguida, de cabelos brancos de espuma. Na terra firme, as árvores do verão enrubesceram e soltaram suas folhas. O veneno desbotou a cor do sol, infiltrou-se na seiva das flores e calou o canto dos pássaros. O tempo avançou, num lugar onde jamais deveria avançar. Até os fenômenos do clima tornaram-se maiores: as brisas viraram grandes vendavais, derrubando árvores e os postes dos totens dos índios. No céu, as nuvens chamadas de rabo-de-galo, finas e esgarçadas, transformaram-se em nuvens volumosas, desajeitadas, carregadas de raios e trovões. As fadas, irritadas pela eletricidade do ar, entraram em guerra umas com as outras.

— E ele nos envenenou também, quando não estávamos 103

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olhando, e nos fez crescer, depois nos expulsou porque tínhamos crescido e mandou-nos para a Terra de Lugar Nenhum, como fez com você.

A frase ainda soava mais triste por ser a mais longa que um Desengunço jamais falara.

Deleve engoliu em seco.— Quem contou isso tudo a vocês?Outra vez o encolher de ombros. Outra vez os lábios juntos

fazendo bico, os olhos desviando-se atrás das pálpebras entrefechadas. Os dedos deles escavavam o chão, arrancando pedrinhas que arremessavam na montanha, como se fosse no próprio Peter Pan.

— Uma pessoa.Cada um disse algo semelhante.— Um homem.— Um viajante que encontrei.— Me deu um emprego durante um tempo.— A mim também. Até haver o incêndio.— Um homem viajado.Algo frio beijou o rosto de Deleve. Um floco de neve. Algo mais

frio que a neve enchia seu coração. Quando se pôs de pé, uma das costuras de seu casaco de cobertor, agora pequeno demais, de mangas tão curtas que nem lhe chegavam aos cotovelos, não resistiu à pressão e arrebentou. Sentia-se tonto, fosse por causa dos torvelinhos da neve ao redor de sua cabeça, fosse por causa do medo que lhe apertava o coração.

— Preciso subir a montanha — disse. — Será que alguém pode me mostrar o caminho?

— Para matar Pan? — disse um deles, apoiando-se todo animado nos cotovelos.

— Mmmm — disse Deleve. — Onde devo começar a escalada?Mesmo para os temíveis Desengunços, porém, a montanha

estava além dos limites, um lugar de perigos inimagináveis. Nunca tinham ousado colocar os pés lá.

— É então um lugar assim tão medonho, esse Monte do Nunca? — disse Deleve, tremendo, apesar de sua determinação.

— Você disse que há um tesouro lá em cima — disse um dos rapazes através da barba rala, que parecia uma mancha suja. — Acha que ainda estaria lá se alguém tivesse conseguido subir e sobreviver?

— Monte do Nunca? — disse outro, falando para si mesmo em voz alta. — É assim que ele o chama? Todo mundo o chama por um nome diferente.

Todo mundo o chamava de Ponto Sem Retorno.

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Capítulo DezesseisSombras no baú

É bem verdade que, sem as sombras, os Exploradores sentiam-se de alma leve, felizes, no início: mesmo quando a neve começou a cair e pequenas avalanches de pedrinhas soltas cortaram seus joelhos. Logo estariam no topo da montanha, e o tesouro de Gancho seria deles. Que tesouro seria esse? Seda tramada com fios de ouro ou Delícia Turca? Pistolas de prata ou arreios de cavalo em couro marroquino vermelho? As coroas de dezesseis potentados orientais? As chaves de um palácio de vidro?

— Livros de histórias? — perguntava Wendy a seus botões.— Vocês se lembram — disse Piuí alegremente — como Mamãe

costumava nos chamar de seu mais precioso tesouro?— E Papai dizia que ele deveria nos guardar em seu banco

porque valíamos mais do que todo o dinheiro do mundo!Wendy olhou de soslaio para Peter, sabendo o quanto ele

detestava aquele tipo de conversa sobre mães. Sempre que eram mencionadas, ele baixava os olhos para os dedos de suas mãos e os flexionava. Certa vez, aqueles dedos tinham puxado, puxado, puxado uma fria maçaneta de bronze, batido na vidraça de uma janela, tentado em vão arrombar uma tranca. Apenas uma vez, com saudade de casa, Peter voara da Terra do Nunca até lá e encontrara a janela do quarto de dormir fechada. Nunca perdoara sua mãe por tê-la fechado.

Felizmente, porém, Peter não estava escutando. Estava ocupado demais escalando a montanha, içando o corpo mais para

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cima somente com a força dos braços. De vez em quando, seus pés flutuavam no ar, como um mergulhador que explora um recife, mas não era o que se poderia chamar de vôo — não vôo de verdade —, e as coitadas de suas mãos estavam todas cortadas e sangrando. Por fim, exausto, deu um gemido e foi descansar com o rosto virado para baixo sobre a rocha fria, a mão fazendo gestos pouco firmes por cima do ombro, tentando pegar a bainha de sua própria sombra. Toda a sua força parecia estar se esgotando.

— Você disse que seria mais fácil sem a minha sombra, Novello?

— Muito mais, bellissimo generalissimo. É um fato conhecido: nesta altitude, as sombras dobram de peso.

— Corte-a, então! Livre-me dela! É um aborrecimento, pesa em meus ombros e jamais gostei dela!

Com um movimento ágil, um gesto fácil, com uma lâmina que nem era visível dentro da manga de seu casaco de malha, Novello cortou fora a sombra de Peter. Enquanto a dobrava meticulosamente em quatro e colocava com delicadeza dentro do baú de bordo, ele manifestava em voz baixa e monótona suas próprias opiniões a respeito da questão das mães. (Novello parecia igualmente fazer um mau juízo da raça.)

— Estamos todos muito melhor sem elas. Afinal de contas, para que serve a mãe a não ser para fazer fracassar a vida de um sujeito? Ah, em seu vestido de listras com a saia drapeada atrás e seu pescoço elegante de cisne, ela pode atrair os olhares invejosos dos colegas de um menino. Pode impressionar bastante tomando uma taça de champanhe no gramado da casa do diretor da escola. Mas quando a grama está úmida demais para ela se sentar e assistir ao menino jogar na quadra de fives, ou ser o primeiro rebatedor em campo num jogo de críquete, ou jogar como “homem-voador”; ou a margem do rio ao lado do Raft é lamacenta demais para as botinas dela, e por isso não pode assistir ao menino passar empertigado e orgulhoso no Dreadnought durante o desfile de barcos, a importante Procession anual; e quando no Wall Day, um jogo de futebol tão especial, ela está ocupada demais com suas costureiras — ou ri, achando muita graça ao saber que o menino se saiu mal no jogo e acabou na loja de doces Rowlands em vez de seguir para o Schoolyard, o antigo pátio central; e quando ela não o estimula desejando boa sorte na competição de florete... bem, desse jeito, um sujeito se desmancha, não é verdade? Ou quando, nos Discursos de Junho, um rapaz em cima da tribuna procura a mãe na platéia, já com as palavras de Ovídio na boca, decoradas com o maior sacrifício, prestes a recitá-las perante todos os alunos mais velhos, e não a encontra... e até isso talvez seja melhor, porém, que a ocasião em que, numa rara visita, ela louva a Matemática e desdenha as coisas em que seu filho se sobressai, tais como lutar boxe e caçar

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com cães beagles, e só pergunta sobre declinações, Gramática e Francês, e o que ele aprendeu sobre os etruscos. Não, posso garantir, as mães preferem ter um filho que não reme nem jogue críquete, mas seja bom em análises e conjugações a um filho rebatedor, que acerta quatro de seis arremessos válidos no clube de críquete para menores de catorze anos, o Three-penny, ou boléia um maiden no campo Sixpenny! E quando, finalmente, apesar da falta de incentivo, as metas estão prestes a ser atingidas e o destino coloca um bastão de bedel da cobiçada sociedade Pop na mão dele, e as nuvens vão se abrir e derramar suas glórias na cabeça de um menino, e mostrar-lhe o que há de melhor, e premiá-lo com uma prova concreta, prateada e brilhante de sua superioridade... como é possível suportar que ela o tire desse lugar para economizar a despesa com mosquetes e equipamento de remo e mensalidades escolares? E faça uma cena e se irrite e bata o pé, impaciente, e ponha de lado as fitas e condecorações dele enquanto o pobre desgraçado faz suas malas, atormentado pelo som que entra pela janela aberta do bastão de críquete batendo na bola, o abençoado som do “salgueiro no couro”, dos vivas aos participantes das corridas, do entrechoque das lâminas dos floretes, do sibilar dos dardos sendo lançados, e sabe-se lá do que mais...? Arre! Mundos perderam-se por causa da insensibilidade das mães, mundos inteiros, creiam! Mundos inteiros!

O murmúrio monótono transformara-se num rugido. Quando afinal o silêncio deles chamou a atenção de Novello, ele levantou a cabeça e deu com todos os Exploradores olhando fixo para ele.

— Que língua ele está falando? — perguntou João. — Será algum dialeto esquimó?

Mas Wendy aproximou-se de Novello, agachado ao lado do baú de bordo, arrumando e rearrumando seu conteúdo até pôr tudo em perfeita ordem. Ela pousou a mão no ombro dele, que arfava, e sentiu um tremor sob a aspereza sebenta da lã embolada.

— Acaso é um dos Meninos Perdidos, caro senhor?— Certamente que não! — Novello pôs-se de pé num salto com

graciosidade surpreendente. — De jeito nenhum, senhorita! Não! Não, não. Não sou. Com certeza que não!

— Alguém viu o Cachorrinho? — perguntou Cabelinho.

Assim que acordaram na manhã seguinte, as crianças olharam de soslaio para seus punhos e pernas, nervosos, para ver se não tinham crescido como brotos de feijão durante a noite. Como Deleve. Por mais dura que fosse sua viagem, qualquer dureza era preferível a ser jogado pelo Monte do Nunca abaixo, expulso por ter crescido. Como Deleve. Por que acontecera aquilo com Deleve e não com eles? A pior parte, a mais preocupante, era Não Saber. Eles concluíram que devia ser, era quase certo que fosse, porque Deleve

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estava vestido com roupa de adulto quando chegou à Terra do Nunca.

As roupas são grande parte do que uma pessoa é, afinal de contas.

Em seu percurso até o topo da montanha, precisavam subir por chaminés de rocha e atravessar arestas cobertas de neve. Escalavam declives de mármore escorregadio só para deslizar de volta para baixo, empurrando os outros e formando uma pilha de gente dolorida e sem fôlego, e ter de recomeçar a escalada. Feixes de ferro, carvão e fósseis uniam os rochedos. Ravinas separavam-nos novamente, de modo que os Exploradores volta e meia iam dar na beira de um precipício, olhando para um vazio insondável.

— Será que alguém viu para onde foi o Cachorrinho? — perguntou Cabelinho outra vez, e outra vez eles o procuraram e procuraram sem encontrar. E outra vez chamaram:

— Cachorrinho! Venha, Cachorrinho!Mas os pingentes de gelo que se avolumavam acima de suas

cabeças estalavam e rangiam e balançavam como se fossem cair com qualquer vibração.

— Ele vai estar esperando por nós lá embaixo, quando descermos de volta — dizia Wendy com voz animada para que os menores não chorassem, mas mordia o lábio, apreensiva, quando lembrava das fendas e dos deslizamentos de pedras, as vespas e as árvores cheias de resina pegajosa. O Monte do Nunca não era lugar para um filhotinho de cachorro tão pequenino.

As mudanças que haviam alterado as florestas e as colinas da Terra do Nunca tinham afetado também o Monte do Nunca. Antes, fontes de água doce lançavam do alto véus resplandecentes de névoa branca, que palpitavam sobre tapeçarias de flores silvestres e ninhos de passarinhos. Agora, o gelo se acumulava desde o coração da montanha, partindo-a e derramando as geleiras pelas vertentes abaixo, igual a uma lava cinzenta e suja. Como se fossem tratores, as geleiras empurravam pedras enormes e arredondadas que iam formar torres rochosas oscilantes. Ao se aproximarem de uma dessas geleiras, os Exploradores sentiram um grande frio repentino: era uma parede de gelo, tão sólida que poderiam ter desenhado nela se tivessem lápis à mão.

— Como será que algum dia vamos nos aquecer outra vez? — perguntou o Primeiro Gêmeo, batendo os dentes de frio.

— Com chá quente e bolinhos — respondeu o Segundo Gêmeo —, quando descermos.

— Como será que vamos descer? — perguntou Piuí.— Devagar e com firmeza — disse Peter com uma risada

descuidada —, ou bem depressa, se você escorregar!Aqui e ali, uma camada de neve branca como açúcar polvilhado

cobria o gelo cinzento e sujo, escondendo enormes rachaduras que 109

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ameaçavam engolir viajantes imprudentes. Serpenteava como uma auto-estrada na direção do pico da montanha, e Peter enveredou por ela sem ao menos olhar para trás, e os outros sentiram-se obrigados a segui-lo. Mas a friagem entrou por seus sapatos e gelou suas pernas, os ossos das coxas, os quadris, as espinhas, os ossos dos ombros. Novello amarrou-os uns aos outros com a corda, como montanhistas de verdade, mas Peter não quis, recusou-se a ser amarrado.

— Pensem apenas no tesouro que está no topo!— dizia, e ao respirar ele parecia um dragão, soltando fumaça

pela boca.— Pensem apenas no meu tesouro!— A voz alta provocou um deslizamento de neve, que veio

sussurrante da encosta da montanha e varreu os pés deles, apagando suas pegadas.

De repente, todos estacaram. Por cima de um desfiladeiro, a geleira reduzia-se a uma tira estreita de gelo, como uma ponte de vidro barato, cheio de rachaduras. Era tão escorregadia que os Darlings puseram-se de quatro para atravessá-la. Era tão fina que dava para ver através dela a Morte Certa lá embaixo.

— Isso é mesmo uma aventura? — perguntou Piuí. — Alguém pode até morrer!

Peter deu um largo sorriso selvagem, equilibrou-se nas pernas... e passou andando pela estreita ponte de gelo, gritando:

— Se é mesmo uma aventura, Piuí? Claro! Com a minha assinatura! Ser ou não ser uma aventura, eis a questão. — Os outros pararam, boquiabertos. — Venham, andem, vocês todos! A coragem ê que importa. Tudo o mais se resolve se hã coragem!

Faltavam poucos passos para ele alcançar o outro lado quando olhou para baixo e ali, no gelo reluzente, enxergou algo que interrompeu sua caminhada e abalou sua coragem. Peter deu um grito tão terrível que todas as aves de rapina que habitavam a montanha abandonaram-na para sempre, nunca mais voltaram. Durante o espaço de tempo de algumas batidas de seu coração, desencadeou-se um pandemônio dentro dele. Então, insensato, tentou correr. As solas de suas botas derraparam, seus braços subiram e ele caiu de cabeça... da beirada da ponte de gelo.

Novello também gritou, largou a corda que segurava e veio, como um atleta dando um salto triplo — saltar — um — pisar — dois — pular — três — Estou indo, meu senhor! — até onde Peter estava pendurado, os dedos agarrados nos pingentes de gelo debaixo da ponte. O peso de Novello abriu um buraco na ponte, através do qual ele caiu de pé, salvando-se apenas de mergulhar para a morte pelos braços abertos em toda a sua extensão e pela largura de seus grandes ombros lanudos.

— Agarre as minhas pernas, menino! — ele disse a Peter. — Agarre firme!

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— Eu o vi! — a voz de Peter veio de debaixo da ponte. — Vi Gancho!

O corpo de Novello, seguro pelo gelo, contorcia-se de frio.— A lembrança dele, talvez. Sua imagem, impressa no ar.— Não, não! — A vozinha estava cheia de pânico e

perplexidade. — Vi meu reflexo no gelo e era...Os pingentes de gelo na palma da mão de Peter derretiam-se,

logo se quebrariam. Faltava pouco para que ele caísse no despenhadeiro. Mas a lembrança daquele reflexo perturbava-o quase com a mesma intensidade. Porque o gelo é um verdadeiro espelho. Nele, Peter vira os longos cachos que Novello enrolara em seu cabelo, vira sua pele mais escura, queimada pelo sol, vira o casaco vermelho e as botas compridas até a coxa.

— Segure as minhas pernas, senhor! Vou puxá-lo para cima.— Não consigo voar. Por quê, Novello? Por que não consigo

voar?O dono do circo começou a escorregar e procurou ancorar-se

em algum ponto — o que fez como uma lâmina que rangeu ao ser enterrada no gelo — e manteve-se firme. Peter Pan transferiu seu peso dos pingentes de gelo para as pernas de Novello.

— Segure bem, senhor, ou pode arrancar minhas botas e cair do mesmo jeito!

Pan pesava menos que um travesseiro de plumas, mas ainda assim Novello precisou fazer um esforço titânico para puxar o próprio corpo, as pernas, as botas e Peter através do buraco e para dentro do círculo de seus braços, em segurança, afinal.

— Por que não consigo voar, Novello? Por quê?— Tudo a seu tempo, senhor — ronronou Novello,

tranqüilizando-o.Os dedos de Peter afundaram profundamente na camada de lã

que o revestia quando tentava se afastar de seu criado.— Não me toque! Não posso ser tocado! Volte e pegue aquele

baú de bordo, criado! — mas seus dedos tinham ficado presos nos fios.

Com cuidado, com muito cuidado, Novello desvencilhou os dedos gelados de Peter de seu emaranhado de lã e friccionou-os para reaquecê-los. Sua voz não passava de um sussurro, mas impregnado de persuasão.

— E de que se trata exatamente esse Tesouro que buscamos com tanto empenho, senhor?

Pan olhou para o topo da montanha. Tinham pela frente mais umas poucas horas de subida, mas Peter já sabia o que continha a arca do tesouro guardada lá. Desconhecia como essa informação fora parar dentro de sua cabeça, entretanto lá estava ela, com recordações de um lugar onde ele nunca estivera e um contentamento que ele não conseguia refrear.

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— Não sei como se chamam, mas são coisas tão brilhantes e belas, e há TANTO tempo que desejo tê-las!

Novello deixou escapar um suspiro enlevado. Com quatro braças de corda e infinita cautela, convenceu os outros Exploradores a cruzarem a ponte de gelo e depois puxou também o baú de bordo, em suas trepidantes rodas de carrinho de criança. Assim que essas rodas chegaram ao local onde Peter caíra e fora puxado para cima, ouviu-se um Crac! alto e a ponte de gelo inteira desintegrou-se, caindo no abismo. O baú de bordo caiu também e quase leva Novello junto, mas, com um rugido gutural, entrecortado, ele agüentou o tranco e manteve a corda firme na mão, salvando tanto o baú quanto a si mesmo da destruição na queda.

Os Darlings todos correram para ajudá-lo, e juntos içaram o peso morto do baú, que balançava e se enroscava em sua corda como um homem enforcado. Encontraram Novello rindo sozinho — sem parar —, uma risada esquisita, como se caçoasse de si mesmo, que soava como água entrando borbulhante no fundo de um barco.

Capítulo DezesseteNão sou eu

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Na Terra do Nunca, uma arca de tesouro contém sempre o maior desejo daquele que a procura, a coisa que essa pessoa quer mais que tudo no mundo. Os que haviam desejado dobrões de ouro e moedas espanholas de prata, os que haviam pensado em tiaras, colares e relógios de bolso; os que esperavam que houvesse dentro da arca livros de histórias e ovos de Fabergé, agora não queriam mais nada disso. Tudo o que queriam era uma lareira acesa e uma refeição quente, um edredom de plumas e uma caneca fumegante de Bovril. É verdade que Cabelinho desejava demais não ter perdido o Cachorrinho, mas bem depressa “despensou” aquele desejo; um Cachorrinho trancado numa arca de tesouro não era um pensamento muito agradável.

Mas não fazia diferença o que eles desejassem. Todos sabiam que Peter desejaria melhor do que qualquer um e que era ele quem decidiria o que encontrariam quando finalmente levantassem a tampa da arca do tesouro de Gancho.

Seguiram cantando para se estimularem a percorrer o pequeno trecho de caminho que restava, e a bandeira de arco-íris flutuava bravamente acima de suas cabeças.

Para o alto vamos nós, para o topo sem parar, Vamos direto pra cima, e a montanha conquistar! Desde a primeira letrinha até o ponto final, Desde a saída animada à chegada triunfal, O tempo todo sonhamos nosso tesouro encontrar!Vamos em frente, valentes, atrás de nosso ideal, Nada pode nos deter, seja incêndio ou vendaval, Piratas, bruxas malvadas ou rochedo de metal, Vasto deserto escaldante ou o frio glacial, Nós seguimos adiante, nosso sonho é sem igual!Para o alto vamos nós, para o topo sem parar, Vamos direto pra cima, e a montanha conquistar! Já lutamos com dragões e com ursos colossais, Com índios, fadas perversas e ondas descomunais, Mas somos Exploradores e heróis sensacionais, E cá estamos, vivinhos, como podem constatar.— Só que não lutamos com dragões nem com ursos... não de

verdade — disse o Primeiro Gêmeo.— Mas poderíamos! — argumentou o Segundo.E nós vamos lá pra cima, a montanha conquistar! Sempre avante, bem contentes, nessa aventura genial, Nada pode nos deter, medo, neve ou temporal, Nós seguimos adiante, nosso sonho é sem igual!E lá estavam, antes que se dessem conta, sem ter mais para

onde subir. Os lados da montanha desciam ao redor deles como as 113

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dobras do manto de um rei, e suas cabeças estavam coroadas de nuvens.

Do alto do Monte do Nunca, pode-se enxergar Além da Imaginação: acima de todos os obstáculos, acima das cabeças de todos os mais velhos e mais altos; olhando para trás, pode-se lembrar o que se quiser e até onde se quiser; e, para a frente, pode-se ver longe, até onde se pretender ir em seguida. Dá para reconhecer em que trecho do percurso se tomou o caminho errado e o quanto de estrada já se percorreu. Pode-se olhar os inimigos de cima e superar os medos. O mundo inteiro levanta os olhos com admiração para uma criança que está no topo do Monte do Nunca! No píncaro da montanha nevada, os Exploradores contemplavam a ilha inteira, indicando um para o outro os pontos de referência. Avistavam a distante Floresta do Nunca, carbonizada e ainda fumacenta. Viam a Lagoa amarelada e o estreito que desembocava no oceano bravio. O trajeto que haviam percorrido a bordo do Galo dos Mares estava ainda escrito no oceano: uma esteira branca de espuma que dava uma porção de voltas e terminava nos destroços de um naufrágio junto ao Rochedo MagNeto. Divisavam o Recife do Remorso e o aglomerado de rochas listradas que escondia o Labirinto das Bruxas.

— Oh, olhe, Peter! Olhe! — exclamou Wendy. — Lá estão as árvores onde você encontrou as frutinhas vermelhas para comermos naquela manhã!

Mas Peter não estava interessado na vista. Esquadrinhava o topo da montanha com os olhos à procura do Tesouro, chutando nuvens de neve, resmungando de cansaço, frio e frustração. O mapa do tesouro, agitado pelo vento, despedaçava-se em suas mãos.

— Onde está? Onde está? — murmurava ele repetidamente.Desde a lenta transição de verão para inverno pela qual a Terra

do Nunca passara, a neve se acumulara no Monte do Nunca em pontos onde antes nunca existira. Camadas altas e macias de neve haviam arredondado o topo rochoso, que se transformara numa cúpula branca sob a qual se escondia o Tesouro prometido no mapa.

— Posso ajudá-lo a olhar, meu senhor? — ofereceu-se Novello, sempre mais lento do que as crianças, e que só agora se aproximava do topo.

— NÃO! Você não pode subir aqui! — gritou Peter em resposta. — Este lugar é MEU! Você não pode vir aqui!

— Não — disse o dono do circo, como se isso fosse uma verdade indiscutível. — Não, eu sei. — E contentou-se em observar a paisagem que se estendia embaixo, concentrado, olhando, olhando, mas também virando a cabeça de lado para ouvir.

Pan cavou a neve com sua espada de peixe-espada até a serrilha se gastar e a lâmina ficar lisa.

— Frio! — disse Novello, o que era nada mais que a pura 114

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verdade.Peter usou em seguida um pedaço de ardósia para cavar como

se fosse uma pá, e atirou tanta neve para cima que ficou de cabelos brancos.

— Morno — disse Novello... o que era um absurdo naquelas circunstâncias.

Peter cavou com as mãos nuas porque elas já estavam frias demais para sentir a dor causada pelo frio.

— Mais quente — disse Novello, de seu pouso mais abaixo.Então, ouviu-se um ruído oco e Peter sentiu uma superfície

dura e lisa que não arranhava os nós de seus dedos, então viu um risco vermelho sob a neve. Tinha encontrado o Tesouro!

Havia um enorme cadeado, mas Wendy veio ajudar, os dois juntos seguraram no punho da espada — ah, e como as mãos de Peter estavam geladas! — e forçaram a alça do cadeado até abri-la. E Peter ficou de pé em cima da tampa abaulada, ergueu os dois punhos no ar, lançou para trás a cabeça de cachos escuros e brilhantes e deu um cocoricó:

“Aaaalto!!”O som que se ouviu foi uma espécie de mistura de piado de

cotovia com pio de gavião. Um berro de triunfo e um grito de guerra e de vingança. Meio voz de coroinha de igreja e meio de delinqüente. O que quer que fosse, não era um cocoricó, e terminou em uma tosse rouca.

— Quente! — sussurrou Novello, e fechou os olhos em um êxtase de felicidade.

A tampa se abriu e ao mesmo tempo se desencadeou o vento, e uma coluna espiralada de neve subiu e redemoinhou, espalhando-se por toda parte. Mesmo os que achavam estar cansados demais e com frio demais para se importar com o que a arca pudesse conter deram por si desejando, e desejando, e desejando que dentro dela encontrassem o que seu coração sonhava.

— O QUÊ?! — Peter soltou um grito angustiado e mergulhou as mãos dentro da arca do tesouro, atirando fora gravetos, capim seco e turfa.

O Primeiro Gêmeo desejara calor, portanto, ali estava o combustível para fazer uma fogueira.

Peter pôs as mãos na cabeça, desesperado, e suas mãos apareceram cobertas de um pó brilhante que não era neve. Wendy desejara poeira de fadas para que pudessem voar de volta para casa, portanto lá estava a poeira de fadas.

Havia folhas desidratadas de chá e massa de pão, espaguete frio e pudim de sagu — tudo solto misturado ao resto —, pois fora o que os Gêmeos tinham desejado comer quando estavam com fome.

Havia as coisas que se costumam encontrar em arcas de

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tesouro — dobrões de ouro e sacos de diamantes, porque João Darling não conseguia imaginar uma arca de tesouro que contivesse algo diferente. E a tiara de Piuí estava lá, afinal, além de alguns metros de seda indiana.

— Cachorrinho, Cachorrinho, Cachorrinho! — pensou Cabelinho, mas era tarde para desejar que o animal estivesse dentro da arca do tesouro de Gancho. Cabelinho sentia-se culpado. Naquele momento, em algum lugar, um Cachorrinho pequenininho estava perambulando pelas tristes geleiras, e por caminhos perigosos, acidentados, cobertos de seixos soltos e cascalho, perdido, só porque ele não tinha desejado com mais antecedência.

Até o Cachorrinho (onde quer que ele estivesse) devia saber desejar melhor que Cabelinho, porque havia um suculento osso com tutano preso na dobradiça da arca. Só não havia nenhum Cachorrinho para comê-lo.

Mas, ainda que todos esperassem encontrar algo de maravilhoso dentro da arca, ninguém conseguiu compreender por que SININHO estava lá!

Em um canto da tampa, enrolada em um casulo de fios diáfanos de teia de aranha, emergindo como uma borboleta em sua crisálida, uma linda e lânguida fada, pouco maior que a mão de uma criança, espreguiçou-se para despertar, reclamando sonolenta que alguém deixara uma janela aberta.

— Como pode uma pessoa dormir com uma corrente de ar dessas? — Piscou uma vez, depois outra. — Peter? É você, Peter Pan?

Os Darlings estavam encantados. Revezaram-se para segurar a fada na palma da mão.

— Pensamos que você, com essa idade, já estivesse morta! — disse Piuí (o que Wendy achou que era uma certa falta de tato).

— E eu estava mesmo — disse Sininho —, ou hibernando, é difícil saber a diferença entre uma coisa e outra. — Depois, reclamou que as mãos deles estavam frias demais para se sentar, e que Peter não estava ligando para ela. — As fadas morrem quando não se dã bola para elas, como você sabe!

— Peter, olhe! — exclamou Wendy. — É Sininho! Foi você quem desejou que ela estivesse aqui? É ela o seu tesouro?

Wendy teve uma sensação muito estranha ao pensar naquilo. Mas, afinal de contas, era muito nobre da parte de Peter dar mais valor a uma amiga que ao ouro, à prata e aos sanduíches de mel.

Peter, no entanto, continuava a escarafunchar a arca do tesouro, pondo de lado um livro de histórias, quebrando um ovo pintado.

Sininho olhou outra vez para ele.— Aah... — disse ela, sonolenta. — Pensei que fosse Peter Pan,

mas não é ele. É o Outro. — E voltou a dormir.116

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E ali, enfim, enchendo a metade da arca, encontrava-se O Verdadeiro Tesouro — aquele pelo qual haviam arriscado tudo, o que os tinha levado até lá, até o Ponto Sem Retorno. Peter retirou as peças com delicadeza: uma taça, um troféu, um bastão, uma estatueta, uma cartola, uma placa com o formato de um escudo de cavaleiro, um boné contornado com listras horizontais em vermelho e branco, um remo pintado de azul e verde na extremidade achatada, que ele levou amorosamente ao peito.

Wendy apanhou um troféu em cuja base estavam gravados cinqüenta nomes e as palavras TAÇA SPENCER PARA RIFLE, 1894.

— É tudo muito bonito, Peter, mas por quê? Peter não respondeu, apanhou outro e examinou-o, um cálice de prata brilhante.

Cabelinho estava reunindo os gravetos para fazer fogo. A cada momento, a vista da montanha ia-se dissolvendo para o norte, sul, leste e oeste, lambida por línguas de neve voadora. Aproximava-se uma tempestade de neve. João chamou Novello, pedindo-lhe para trazer fósforos para acender o fogo.

E Peter tinha os olhos presos na taça em suas mãos, o corpo sacudido dos pés à cabeça por arrepios. Sua expressão embevecida transformara-se em máscara de horror ao ver, encarando-o, seu próprio reflexo. A mesma imagem que vira na ponte de gelo. Estendendo a mão para o lado, Peter segurou a mão de Wendy.

— Não sou eu — sussurrou ele. — Wendy... Não sou eu.Nesse momento, a figura do criado de Peter apareceu no pico

da montanha. Com o tempo ruim que fazia, parecia uma ocasião esquisita para ele empurrar o capuz para trás. Só as rajadas de vento e neve escondiam agora seus traços.

— Ah! Venha aqui, Novello! — chamou João. — Traga um fósforo, por favor!

Novello aparentemente não o ouviu, embora tivesse ouvido Peter muito bem.

— Não é você, foi o que disse? É verdade! Ora, se é! Você deixou de ser você nas últimas dez léguas. — De novo, deu aquela risada, como o som da maré subindo e inundando a praia. — Não é você, não. Porque você se tornou Gancho. Capitão Gancho. Capitão Jas Gancho, o flagelo da Terra do Nunca!

Só de ouvir o nome, foi como se um gancho de aço se cravasse no peito deles. Novello encaminhou-se para a arca do tesouro, pegou com delicadeza uma das taças, encostou-a na face e beijou-a, devagar e com carinho. Aproveitou a oportunidade para empurrar Peter com a sola de sua bota.

— Aqui está a prova — disse ele, abraçando o troféu. — Contemplem o tesouro: o mesmo tesouro que o Capitão Gancho deixou aqui tantos anos atrás! Há algum brinquedo de menino aqui? Não. Têm algo a ver com o Cocoricó? Não! Somente Gancho, com

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sua vontade de ferro, sua alma dura como pedra, sua determinação fria como aço poderia encontrar o tesouro que escondeu aqui mesmo! Veja só como arrumei você, como o vesti e penteei para o papel, garoto! Veja como o preparei para este momento! Como o induzi a desejar os desejos certos para poder encontrar o tesouro certo! Mas, ah, como você me facilitou essa tarefa! Como a tornou ridiculamente fácil! Que grande serviço você me prestou, Pan, e de livre e espontânea vontade! Quanta consideração você me demonstrou no dia em que vestiu o meu segundo melhor casaco!

Capítulo DezoitoMorto!

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— GANCHO!O dono do circo hesitou e estremeceu do focinho à cauda, como

um cachorro que molhou as orelhas.— Fui, outrora, não sou mais — disse. — Sou o homem que um

dia foi Gancho. Olhem para lá, se quiserem ver Gancho! — E apontou para Peter Pan com o gancho de ferro que tinha no lugar da mão direita. — Vejam como está bem vestido com o casaco vermelho! Vejam como o cabelo lhe cai em cachos sobre os ombros! Vocês, mais que qualquer um, deveriam saber: quando se veste a roupa de alguém, você se torna aquela pessoa!

Os dedos gelados de Peter tatearam nos botões da sobrecasaca vermelha (o segundo melhor casaco de Gancho) e ele tirou os braços de dentro das mangas. Apesar da gélida ventania que envolvia a montanha em espirais de frio, cortantes como arame farpado, o casaco caiu no chão atrás dele e o vento agitou a túnica fina em torno de seu corpo.

Novello riu.— Você pode tirar o casaco, mas não o que o casaco fez com

você, o homem que se tornou! Ninguém a não ser um aluno de Eton16 pode desatar a velha gravata da escola! — E era verdade que, por mais que Peter puxasse a gravata branca que trazia ao pescoço, não conseguia fazer o nó deslizar. — Com que boa vontade você me deixou pentear a imaginação para fora de sua cabeça! Com que presteza deixou-me ajudá-lo a vestir de novo o casaco cada vez que se gastava sua mágica escarlate... mas vejo que seus amigos duvidam de mim, Pan! Conte a eles, então! Conte! Conte a eles como você sonhou os sonhos de Gancho, como lembrou as lembranças de Gancho. Como sentiu suas decepções de menino, como cedeu aos seus humores! — E pôs-se a guardar taças e troféus, bonés e fitas dentro dos bolsos imensos de sua roupa estranha. — Você se transformou em Jaime Gancho, e a prova está aqui! Estas são as coisas que ele mais ama, e só VOCÊ podia desejar que estivessem aqui! Por isso é que eu precisava de você.

— Não! Não! Sou Pan! — protestou Peter, arrancando as lustrosas botas de couro. — Sempre serei criança e não há ninguém como eu! Sou a Única-e-Exclusiva-Criança!

O Homem Esfiapado bufou, desdenhoso.— Chame a si mesmo do que quiser, mosquito. Seu verão

acabou e o inverno está aí.Os pequenos, com frio demais e sem entender bem o que estava

16 Eton College: nome de uma escola tradicional inglesa, apenas para meninos, fundada em 1440 pelo Rei Henrique VI. Destinava-se a atender originalmente apenas nobres ou os filhos da elite da cidade, os “oppidan”, que pudessem pagar a alta mensalidade. O personagem Gancho teria estudado em Eton. (Nota da Editora.)

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acontecendo, abraçavam-se para se aquecerem.— Podemos voar para casa agora, Wendy? Para algum lugar

quente?Wendy sacudiu a cabeça com ar enérgico e foi de um para

outro esfregando punhados de poeira de fadas nos cabelos deles.Novello ficou olhando. Quando ela terminou, ele perguntou em

um tom de voz muito doce:— Como? Sem as suas sombras? Impossível, sinto muito,

stupidi bambini17. Vocês podem ter poeira de fadas à vontade. Podem ter pensamentos alegres (o que duvido muito). Mas sem sombra ninguém pode voar. Por que acham que eu as tirei?

Enfiou a mão dentro do baú de bordo e levantou as sombras, todas muito bem enroladinhas como se fossem cortinas de rolo, frágeis e endurecidas pelo frio. Os Gêmeos aproximaram-se com as mãos estendidas, mas ele, provocando-os, ergueu os rolinhos acima de suas cabeças.

— Quer dizer que vai manter nossas próprias sombras como reféns? — perguntou Peter.

— Céus, não, mosquinha. Não mantenho cativos. Tenho horror de prisões. Pergunte a qualquer um dos meus animais. Vou libertar suas sombras para que sigam seu caminho!

Gancho então abriu sua única mão e largou as sombras — nos dentes aguçados do vento. As silhuetas de seis crianças saíram dançando acima do abismo, revirando-se, batendo, enrolando-se em uma só bola encardida. Cada um dos Exploradores sentiu uma dor aguda quando sua sombra rasgou-se em farrapos com a força da ventania.

— Gancho, você é um canalha, um patife. Só o diabo é capaz de roubar a sombra de uma pessoa!

Novello fez um gesto de pouco caso com uma das mangas.— Caso vocês vivam muito, o que é bastante improvável, elas

crescerão de novo. Cada vez que um homem sofre, sua sombra aumenta. Não notaram como arrasto atrás de mim uma sombra que parece um vazamento da fábrica Quink de tintas de escrever?... Mas, é claro, vocês ainda não escutaram a minha triste história, não é? Ah, deveriam, deveriam! Sei que crianças adoram ouvir histórias! Então, deixem-me contá-la. A história do Capitão Jaime Gancho, está bem? Um homem que antigamente eu apreciava com entusiasmo, devo confessar. Um homem com força e vitalidade para galgar qualquer montanha, caçar qualquer tesouro... Prestem muita atenção.

E começou a contar a história de sua vida.— Era uma vez um menino, Jas Gancho. (Por que as crianças

acham tão difícil acreditar que os adultos um dia foram pequenos?)

17 “Meninos tolos”, em italiano. (Nota da Editora.)120

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Ele era uma criança exatamente como vocês... só que melhor! Ele se destacava! Citem qualquer esporte, e Jaime Gancho o dominava. Nas quadras de esportes do Colégio Eton, ele poderia ter deixado escrito seu nome em letras tão grandes que seriam vistas das constelações do Espaço Cósmico! O latim que se danasse. A matemática que fosse para o inferno. As línguas estrangeiras que continuassem sendo um mistério. Gancho era um esportista! Vencer era tudo para ele. Bastaria ver seu nome nas taças de esportes da sala de troféus de Eton e seu coração se encheria de felicidade para sempre! Assim como você, Pan, desistiu de tudo para não crescer nunca, eu... arre!... ele, Gancho... desistiu de tudo para ser o melhor, o mais rápido,

O mais forte, o mais alto, o que estava em melhor forma física... Por Júpiter, como eu me mantinha nos trinques!

O vento norte uivava ao redor do Monte do Nunca. Sempre que Novello fazia uma pausa, o vento o substituía, intimidando as crianças.

— Mas mães são sempre mães. E as mães precisam pagar as contas de suas costureiras antes de pagar outras bobagens tais como mensalidades escolares. Assim, os sonhos de Jaime Gancho terminaram com o fútil farfalhar de uma saia de tafetá. Minha... a mãe dele chegou no Dia dos Esportes para tirá-lo da escola. Os outros meninos estavam competindo por prêmios que, mais um dia, seriam dele; por honrarias e louros que seriam... — Ele se calou, imaginando a mão do Diretor estendida para ele, escutando os vivas dos meninos da School House, os internos que moram na casa do Diretor... Levantou a cabeça; aprumou os ombros. Mas a Decepção golpeou-o de novo, igual a uma cólica de estômago.

— Como Gancho não podia vencê-los de forma justa e honesta, esvaziou a sala de troféus e levou consigo todos os prêmios esportivos. Seu Tesouro. Seus objetos do desejo.

Os Exploradores perderam o fôlego, boquiabertos:— Você roubou as taças da sua escola? Novello apanhou um

lenço cheio de furos e manchas de ácido e assoou o nariz.— Não foi uma atitude de bom-tom, tenho de admitir, mas se

mães são sempre mães, então meninos também são sempre meninos. Ou piratas, no meu caso. Assim começou a vida de crimes de Jaime Gancho. Na viagem de volta para casa, ele decidiu: cortaria seus laços com o país e a família e iria para a Terra do Nunca — este único lugar do mundo onde um menino pode dar a forma que quiser a seu destino! Veio de avião. Aqui, neste lugar, o avião caiu. Neste lugar, ele deixou seu Tesouro e arrastou sua carcaça para baixo, para a Lagoa, para uma vida de cobiça e pilhagem. Mas seu coração permaneceu aqui em cima, e sempre planejou voltar um dia para reencontrá-lo. E era o que eu teria feito! Teria... Se não fosse o Pan a atrapalhar tudo!

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— Esse verme na carne. Essa espinha de peixe na goela. Essa malária no sangue! Primeiro, ele tirou a minha mão direita... quer dizer, a mão de Gancho, a mão de jogar boliche, a mão de girar a roda do leme do barco, a mão de remar e esgrimir e... Mas deixemos isso para lá. Depois, ele confinou Gancho à barriga de um crocodilo! Rá! Acham que esta montanha é um lugar horrível para morrer? Deviam experimentar viver dentro de um crocodilo de água salgada! Um túmulo sem luz, sem ar, inundado de fluidos digestivos; com um relógio desmantelado e sem corda entalado nas costas e quase sem espaço para se virar. Que sepultura pode ser pior? Ele sobrevivia dos ovos do Crocodilo, que era fêmea. (Sabiam que era uma fêmea?) Oh, como Gancho se familiarizou com a anatomia interna de um crocodilo-fêmea de água salgada! Todos os dias, o ácido estomacal o queimava e o mau cheiro o sufocava... Mas eu me recusei... Gancho recusou-se a cair morto e sair do jogo. Seus dias de grandes caçadas, de muitas presas abatidas, tinham ficado para trás; deitado ali, passando por sua metamorfose, Gancho pensava apenas em vingança!

— Que começou ali mesmo, espontânea, sem que fosse necessário levantar um dedo. Pois o frasco de veneno que ele conservava sempre no bolso da camisa, rachou e vazou e soltou seu veneno no Crocodilo, na Lagoa, na... — O amplo gesto do gancho na ponta de seu braço estendido abrangeu toda a paisagem de inverno que rodeava o Monte do Nunca. — Enfim, quando o animal morreu envenenado, ele abriu caminho com seu gancho para sair de dentro da barriga da criatura. E fez para si um par de botas com o que restou da pele. Eu não aceitaria — droga! — ele não aceitaria que a morte o derrotasse, como vêem!

— Mas o homem que se esgueirou para a claridade do dia não era Gancho. Era o que restava dele, um homem digerido. Fora-se o casaco escarlate, as calças compridas, o cabelo brilhante. O orgulho. Tudo se desintegrara — carne, cabelo, casaco, cor e alma, na bílis do Crocodilo. E o sono — ah, que agonia! — a dádiva do sono também se fora! Tudo o que emergiu foi isso... essa MOLEZA de homem! Uma coisa parecida com uma esponja. Uma coisa que parece uma coisa morta. De minha exuberante desenvoltura até a minha roupa de baixo, tudo se frisara e encrespara em um amontoado de lã! A Ganchonice de Gancho fora corroída e só restava Novello, o Homem Esfiapado! Até meu velho e querido navio apresentou-se a você, Pan, em vez de vir a mim! Por mais que tentasse, não fui capaz de fazê-lo sair da Lagoa — não consegui atraí-lo para mim, pois eu não tinha mais nenhum magnetismo! O ferro de minha alma enferrujara-se todo, sabem, durante a minha permanência na salmoura de águas sujas da barriga do Crocodilo!

— Senti um certo consolo quando verifiquei que o mundo também mudara durante o meu aprisionamento: como o meu

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vidrinho de veneno agira da pior maneira possível na Terra do Nunca, infiltrando-se pela Floresta do Nunca e pelos pântanos; comprimindo os meses de verão como uma câimbra até o próprio ano se dobrar de dor!

— Não restara muita coisa de Gancho, como disse, neste miserável animal peludo, nesta chinchila que estão vendo. Somente uma triste obsessão, a do anseio. Só o antigo e profundo anseio de recuperar seu Tesouro, de ir buscá-lo no lugar remoto em que o deixara. E havia a considerar a maior ironia de todas nesta infernal Divina Comédia: Eu não possuía mais a capacidade de desejar!

— Assim como não conseguia dormir, também não conseguia desejar. Só a vontade de ferro de Jaime Gancho seria capaz de abrir aquela Arca do Tesouro e encontrar o meu... dele... nosso... ora, com seiscentos milhões de agulhas, novelos e carretéis! — o Tesouro enterrado aqui.

— E aí, vejam só como encontrei um suplente para mim. Um representante. Um substituto. O único na Terra do Nunca cuja força de vontade se igualava à de Jaime Gancho. E você não me agradece? Ah, o que eu não daria para me parecer de novo com Gancho, para me pavonear como Gancho, para fazer alarido e aterrorizar como Gancho! Você devia estar agradecido, Pan! Pense como o fiz avançar, com avidez e lisonja — como esgotei o Pan de dentro de você e troquei-o por cólera e tirania. Veja como, apenas com um casaco, uma gravata e botas, transformei você, um garoto mirrado, de uma simples criança no maior pirata de todos, no Capitão Jaime Gancho!

— NÃO! Não, não, eu sou Pan! — disse Peter. — Vou ser sempre criança e ninguém no mundo inteiro jamais será igual a mim! E você, Gancho, será sempre meu inimigo declarado e não vou descansar enquanto...

— Tolice. Você é só fogo e fúria, rapaz. — Novello abanou a mão com indiferença, como se espantasse uma mosca. — Agora que perdeu, deveria cultivar a paciência. Como eu. Uma temporada dentro de um anfíbio de água salgada acalmaria você, permita que lhe recomende... Mas chega de rancores. Dê-me sua mão. Você se prestou bem ao seu objetivo, pequeno Capitão. Já tenho o que vim buscar aqui. Apertemos as mãos e vamos fazer as pazes.

E ele de fato estendeu sua única mão, dentro da manga excessivamente comprida, para ajudar Peter a se pôr de pé. Peter atacou-o violentamente com a espada, mas a lâmina denteada apenas se emaranhou na lã da manga e a mão dentro dessa manga agarrou a mão dele com uma força extraordinária.

— Como é feroz! O que você teria sido, fico imaginando, se tivesse chegado à idade adulta, se não tivesse optado pela eterna infância. Teria sido um pirata como eu?

— Nunca!123

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— Não? Um piloto, então. Ou um ator, indo dez vezes à frente do palco depois das peças para receber o aplauso de seus fãs devotados! Um homem de posição, não duvido! Um herói... Ah, espere aí, já sei! Claro! Um explorador! Que descobriria novas terras, e seu nome seria escrito em letras de ouro nos mapas dos treze continentes!

Na mão de Peter, os fiapos oleosos de lã começaram a desprender-se, desemaranhar-se, desenredar-se. O entorpecimento do frio, as rajadas vertiginosas de vento e neve, as palavras que Novello salpicava em cima dele como pitadas de sal, tudo isso fazia Peter pensar mais lentamente. As palavras vinham junto com imagens, presas nelas como etiquetas de presentes balançando, e ele realmente quase conseguia enxergar como seria sua vida se fosse...

— O que, então, o quê? — Gancho o pressionava, sorrindo um sorriso largo, sorrindo o tempo todo. — Não, não seria um explorador. Seria alguma coisa mais fácil? Algo que não o sobrecarregasse tanto?

Peter empertigou-se todo. Novello pensava que ele não estava à altura de ser um explorador? Que absurdo! Ora, Peter quase podia imaginar...

— Não responda a ele!Uma figura subiu aos tropeções para o pico — um rapaz que

ninguém reconheceu — até verem as pontas de sua camisa de traje a rigor flutuando por baixo de seu casaquinho apertado.

— Deleve!— Não responda a ele, Peter! — gritou Deleve, apontando sua

clarineta para o Homem Esfiapado.Wendy correu para perto de Deleve. Sentiu-se um tanto

embaraçada com o tamanho dele, mas não se conteve e abraçou-o.— Ah, você acabou não virando um Desengunço afinal! Você

nos seguiu! Como deve estar sentindo frio nas pernas, coitado! Se soubesse, teria feito um casaco maior para você!

— Não responda a ele, Peter! — repetiu Deleve, sem tirar os olhos de Novello nem por um instante.

— Ele me fez a mesma pergunta: — O que você quer ser quando crescer? — e a lã se desfez em minha mão, e naquele momento... naquele exato momento, comecei a crescer. Eu descobri tudo, ouviu, Homem Fiapento?

Novello deu sua risada estranha, submersa, embora estivesse visivelmente irritado.

— Deleve-levemente-mais-esperto agora, pelo que vejo.Peter Pan levantou os olhos para Gancho, incrédulo.— Você iria me fazer crescer? Fingindo me dar um aperto de

mão?Gancho rebateu a acusação encolhendo os ombros com garbo.

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— Eu, não. Você mesmo. No momento em que uma criança responde à pergunta: “O que você quer ser quando crescer?” já está a meio caminho de ser um adulto. Traiu a infância e Olhou à Frente. Juntou-se à categoria daqueles empregados de escritório, ajudantes de cozinha e empacotadores de lojas que examinam as colunas de empregos nos jornais.

— Apertou mais ainda a mão de Peter e levantou o menino inteiro até bem perto de seu rosto. Era um rosto terrível, marcado pelo sofrimento, pelo pesar, por suco gástrico de crocodilo e por ódio. — Diga-me que você pensou mesmo à frente quando perguntei! Diga que se imaginou crescido, remando sua canoa pelo rio Amazonas acima, ou puxando o seu trenó pelos bancos de gelo rumo ao Sul de Verdade! Maldição, Deleve! Mais um pouco e eu teria feito o que nenhum pai ou mãe poderia fazer: teria roubado a infância do menino Pan!

Deleve ainda estava apontando um dedo acusador para Gancho. E ainda vociferava:

— Esse homem disse aos Desengunços que você os envenenou, Peter, e os fez crescer, mas eu digo que foi ele! Foi ele que os envenenou!

— Ele envenenou toda a Terra do Nunca! — rosnou Peter. Seu rosto e o do pirata estavam tão próximos que os narizes se tocavam. — Eu devia retalhá-lo até os ossos, vilão!

— E não encontraria nada lá a não ser meu ódio por você, Peter Pan — replicou Novello, e atirou-o no chão.

Durante esse tempo todo, os Gêmeos tinham corrido para lá e para cá tirando gravetos da Arca do Tesouro para fazer uma fogueira. Assim que empilhavam duas braçadas de lenha, a ventania as espalhava. (A tempestade de neve piorava a cada minuto, açoitando o cume da montanha com golpes de neve.) Deleve foi socorrê-los, prendendo a madeira do lugar com os sacos de ouro e rolos de seda que também estavam dentro da Arca do Tesouro.

— Estou tão contente por você não ter virado bandido, Deleve! — disse o Primeiro Gêmeo com uma fungadela.

— E nem ter se esquecido de nós, Deleve! — disse o Segundo.O que mais Deleve poderia ter feito, porém, sabendo do perigo

que corriam? Que alternativa a não ser seguir suas pegadas todo o caminho desde o Ponto sem Retorno? Deleve agora era adulto, e embora crescer seja uma praga e uma chateação, os adultos têm um grande mérito: eles não conseguem deixar de zelar e continuar zelando pelas crianças.

Portanto, Deleve ajudou os Gêmeos a preparar a fogueira que poderia salvar seus amigos da morte por congelamento no alto do Monte do Nunca. João correu para o baú de bordo para pegar fósforos, mas Novello bateu com a ponta da bota na tampa, fechando-a com um estrondo, e deu-lhe um empurrão com o pé, o

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que a fez rolar até a beirada do precipício.— Dê-me um fósforo, pirata — exigiu João.— Não fale com ele! — ordenou Peter, com voz áspera. — Eu o

bani para a Terra de Lugar Nenhum e ninguém pode mais falar com ele. Vou acender o fogo como sempre fiz na lareira da Cabana da Wendy! Com a Imaginação!

Entretanto, apesar de se esforçar, de fazer de tudo, apesar de bater com a cabeça no chão e puxar desesperadamente com os dedos os cabelos brilhosos, Peter não conseguiu imaginar fogo, assim como não conseguira imaginar as refeições deles. Novello tinha tirado com o pente a Imaginação para fora das pontas do cabelo dele, vejam só.

Os Gêmeos tinham certeza de que seriam capazes de fazer fogo. Afinal de contas, não tinham incendiado a Floresta do Nunca para matar o dragão de madeira? Mas Novello deu sua risada sem alegria.

— Rá! Acham mesmo que foram vocês, Doppel-kinder18? Fui eu quem incendiou a Floresta do Nunca! Soltei meus bichos. Despedi meus empregados do circo (Desengunços, todos eles). Botei fogo em minha linda tenda... queimei minhas pontes. Pois assim que vi a menina Wendy, soube que minha espera terminara. Chegara a hora da vingança. O que é um circo em comparação com a doce vingança?

O ar enchera-se de flocos de neve — como se um travesseiro de plumas tivesse arrebentado. Sem o casaco vermelho, Peter tiritava de frio e lutava para tirar a gravata branca de seu pescoço.

— Um fósforo, Novello. Vamos acender essa fogueira e conversar depois! — pediu Cabelinho.

— Um fósforo, Novello. Depressa! — insistiu Piuí.— Não está sentindo frio também?— Qual é a palavrinha sem a qual nada se faz?— disse o Homem Desfiado, a voz alta e zombeteira.Os Exploradores sentiram vontade de mandá-lo para a Terra de

Lugar Nenhum e nunca mais terem de falar com ele.— Por favor — disse Wendy, friamente.— Por favor — disse Cabelinho.— Por favor — disse João.Novello deu um puxão na corda e trouxe o baú de bordo sobre

rodas de volta a seus pés como um animal de estimação disciplinado. Abriu a tampa e tirou de dentro do baú uma caixa de fósforos, sacudindo-a devagar: um som igual ao de um chocalho de bebê. Só restava um fósforo.

— Digam-me outra vez. Qual é a palavrinha?— Por favor — disse Piuí.

18 “Meninos duplicados”, em alemão. (Nota da Editora.)126

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— Por favor — disseram os Gêmeos em coro. (Ah! Agora entendi! — disse Peter para si mesmo, tendo resolvido o enigma.)

— POR FAVOR! — pediram todos, menos Peter.— ERRADO — disse Novello, riscando o fósforo no queixo

áspero, sem barbear. O clarão iluminou seu rosto. Era um rosto lamentável, marcado pelo tempo passado dentro do Crocodilo, marcado pelo tempo passado onde o tempo não deveria passar. Só a aristocrática inclinação da cabeça e o ardor dos olhos castanhos desbotados provavam que o inimigo mortal de Peter Pan, o Capitão Jaime Gancho, ainda vivia dentro dele.

— Deixem-me pensar agora. Qual é mesmo a tal palavrinha? Ah, sim. Agora me lembro...

Então, ele soprou o fósforo e disse:— MORRAM!

Capítulo DezenoveQueimado

O vento golpeava a montanha com violência. A tampa da arca escarlate do Tesouro, ainda meio enterrada na neve, batia impelida pelas rajadas, abrindo e fechando, abrindo e fechando. Mas o velho e surrado baú de bordo que Novello empurrara por toda aquela

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distância em cima das rodas com molas, esse o vento sacudiu, e balançou, e empurrou como se fosse um carrinho de criança desgovernado. O baú rolou pela borda do precipício, descreveu uma curva no espaço e caiu, caiu espalhando saleiro, louça, mapas, ferramentas e barbantes. Nem o ouviram bater no chão lá embaixo; a tempestade de neve caía com força sobre eles, cobrindo-os de pedaços de gelo, enchendo de neve suas orelhas e olhos e mãos.

— Agora você também vai morrer, Gancho! — exclamou Peter Pan.

O pirata do circo deu de ombros.— Pode ser. Não tem importância. Fiz o que pretendia fazer.

Tenho o meu Tesouro. O que mais me resta?— E está feliz com seu “Tesouro”? — perguntou Wendy,

enérgica (porque as mães sempre fazem questão de mostrar que a maldade não traz alegria, que o crime não compensa, que os ladrões não prosperam).

Uma dolorosa confusão perturbou o rosto marcado de Novello.— Como posso saber? — perguntou, pegando a Taça da

Maratona e acariciando suavemente seu nome, agora magicamente gravado na base. — A felicidade é um prato de que nunca provei antes. Mas há realmente dentro de mim uma sensação curiosa que me lembra bolo de chocolate. E fogos de artifício. E a música do senhor Elgar.

Wendy desconfiava seriamente que aquilo tudo era mesmo Felicidade, mas não disse nada para não incentivar o mau caráter de Gancho.

João ocupou-se em esfregar dois gravetos para tentar obter uma fagulha. Mas até os gravetos estavam tiritando de frio. Cabelinho tentou construir um iglu com a neve, onde pudessem se abrigar até a nevasca passar. Mas os iglus não são feitos de neve solta. Piuí sugeriu que cantassem para não perder o ânimo, porque é isso que os heróis fazem quando as coisas ficam pretas.

Aí, Novello deu a risada mais esquisita e ele próprio começou a cantar:

Tempo alegre pra remar, Brisa da ceifa do feno a soprar, A pá do remo virando, À sombra das árvores...

Era uma canção de Eton. Peter — apesar de não querer ser um menino de Eton, não querer saber a letra da canção, não pôde resistir. E cantou como se estivesse dando tiros de canhão no pirata, e que cada palavra pudesse abrir um furo nele.

Em Rugby, podem ser mais inteligentes; Em Harrow, podem remar mais vezes. Mas nós remaremos pra sempre Firmes do voga à proa...

A nevasca arrancava fios de cabelo de suas cabeças. Rasgava as costuras de seus casacos de cobertor. Arremessava neve em seus rostos e lançava avalanches montanha abaixo, que se precipitavam

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com estrondo ensurdecedor. A saliva congelava em suas bocas.As palavras da canção chacoalhavam dentro delas como cubos

de gelo. Se não estivessem de braços dados e apertados uns contra os outros, o vento os teria empurrado do alto do Monte do Nunca para o vazio do céu.

E nada na vida vai romperA corrente que agora nos rodeia.E nada na vida vai romperA corrente que agora nos rodeia.Se vocês acham que Sininho foi socorrê-los, devo informar-lhes

que se enganaram. O desejo trouxera Sininho de volta de um lugar para lá de Estranho, e as asas dela ainda estavam pesadas, cheias do visgo da Improbabilidade. Sininho aconchegara-se para voltar a dormir dentro da arca escarlate do Tesouro.

— Que frio... — disse ela, cochilando. — Que barulheira......E a juventude ainda estará em nossos rostos Quando dermos vivas para uma equipe de Eton. ...E a juventude ainda estará em nossos rostos Quando...As palavras perderam-se no espaço, como se fugissem para o

grande silêncio que os aguardava. O Monte do Nunca caíra nas garras do inverno, e essas garras iriam sacudi-los até a morte.

Súbito, como uma vespa voando para uma mesa de piquenique, algo passou correndo pelos Exploradores, e não era um floco de neve. Fulgurante como um carvão em brasa, pousou na argola do cadeado da arca do Tesouro.

— PIRILAMPO!Na Terra do Nunca, uma arca de Tesouro contém o maior

desejo daquele que procura o dito Tesouro e, sem que ninguém soubesse, havia sido Pirilampo quem desejara Sininho.

Desde aquela primeira referência que despertou seu interesse — Você conhece a Sininho? —, a imagem que fazia dela não saía da cabeça de Pirilampo, reluzindo na pequena e escura cápsula de sementes que era o seu craniozinho de elfo. Tudo o que escutava sobre a fadazinha dava-lhe vontade de conhecê-la mais. Importunava Deleve com perguntas incessantes e chegara à conclusão de que Sininho — que se dispusera a tomar veneno e contava mentiras maiores do que albatrozes —, era maravilhosa demais para estar morta. Agora, ao ver Sininho, sua cobertura açucarada de poeira de fadas brilhou com o calor do Amor-à-Primeira-Vista. E foi tanto que chegou a derreter o verniz da arca.

Sininho abriu os olhos, mas pelo jeito achou que Pirilampo fosse parte de um sonho, porque se limitou a dar um sorrisinho de quem se desculpa e disse:

— Tanto frio... Frio demais. Tenho de ir agora.E então uma onda de neve turbulenta levantou-se entre ambos

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como um exército de fadas com ciúmes.— As fadas morrem quando as outras fadas não ligam para elas

— reclamou Pirilampo, mas ela não lhe deu atenção. Depois de mais uns instantes, Pirilampo anunciou, solene:

— Eu é que não vou acender porcaria de fogueira nenhuma. NÃO VOU. EU ME RECUSO. NÃO VOU MESMO!

(Bom, vocês têm de lembrar: o que ele sabia fazer melhor era mentir.) E mergulhou como uma gota de ouro derretido na lenha empilhada.

— Oh, Pirilampo, não! — gritou Wendy.— Você vai se queimar todo! — gritou Piuí.— Ah, meu querido idiota! — gritou Deleve.Sob o peso da neve, a pilha de lenha da fogueira cedera e se

espalhara. A essa altura, parecia impossível que qualquer coisa pudesse acendê-la. Mas Pirilampo conseguiu. Gradualmente, os gravetos passaram de brancos a marrons, depois de marrons a alaranjados e então, com um estalar cacarejante, as chamas ergueram-se, vivas, fortes, atiçadas pelo vento uivante em um resplandescente fogaréu. O calor do corpo de Pirilampo acendera a fogueira, e o Monte do Nunca ostentava em seu topo uma chama triunfal, visível de todos os pontos da ilha.

Algumas labaredas queimavam com a mesma cor de Pirilampo. As cinzas que voavam para o alto pareciam pequenas asas carbonizadas. A Companhia desviou os olhos e cobriu o rosto com as mãos, preferindo não ver o que acontecera com o pequenino elfo corajoso... todos, menos Peter. Chegou tão perto do fogo que as chamas o rodearam como um halo e suas sobrancelhas foram chamuscadas; e ele se inclinou para enxergar melhor, e espiou, e chamou, e remexeu o fogo com sua espada de peixe-espada, tentando salvar Pirilampo de seu flamejante fim. A espada desfez-se em pedaços com o calor.

— Cuidado, Peter! — alertou-o Wendy ao ver as brasas espalharem-se por cima dos pés dele.

— Jurei que permaneceria fiel a vocês o tempo todo, que não os abandonaria! — respondeu ele. — Mas, ah, que elfo, esse!

— Que mentiroso de marca maior! — concordou João, admirado.

— Igual a Sininho nos velhos tempos! — disse Cabelinho.Então, Sininho acordou de vez e de verdade. Algo emocionante

estava acontecendo. Vidas estavam em jogo. Havia gente se lembrando dela com afeto... além disso, outra fada estava recebendo toda a atenção das pessoas. Era o bastante.

— Espere aí, rapaz!Sininho disparou para o fogo na intenção de seguir Pirilampo,

mas a sonolência tornara seus movimentos menos ligeiros e a mão de Peter foi mais rápida, apanhando-a no ar, segurando-a com

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firmeza.— Já tivemos perdas demais para um dia — disse ele, com voz

rouca.Enquanto isso, algo extraordinário acontecia. Pois, para começo

de conversa, não havia muitos gravetos, nem turfa, nem tanto capim seco assim dentro da arca. Além do Tesouro de Gancho, dos ossos para cachorro, da seda, do sagu e do ouro, restara muito pouco para os Gêmeos usarem como combustível. A fogueira que montaram era muito pequena. E, no entanto, o fogo subia mais alto e brilhante que o de qualquer fogueira acesa na noite da Armada Espanhola19. Sinal de que combustível mágico devia ser mais potente.

As crianças conseguiram assar a massa de pão e cozinhar o espaguete, derreteram neve e prepararam um galão de chá. Enviaram sinais de fumaça pedindo socorro (embora a nevasca fizesse de tudo para desmanchá-los). Por fim, a fumaça envolveu os flocos de neve em seu cachecol e levou-os embora. Ao sentir o calor em seu topo, a montanha teve recordações da infância. (Havia sido um vulcão antigamente, não se esqueçam.) Ao contrário de Peter ou Gancho, talvez a montanha só tivesse boas recordações de seus tempos passados, porque lembrar deles a fez sorrir.

Ah, sei que não é comum — pode ser que nunca tenha acontecido antes ou desde então — mas a montanha sorriu; não há outra palavra para descrever o que houve. Todas as suas quebradas se emendaram. Ela flexionou os músculos de suas quatro faces — norte, sul, leste e oeste — e as geleiras se racharam e as pontes de gelo se partiram e a neve não conseguiu mantê-la sob seu domínio. As árvores apareceram, espantadas, e sacudiram a neve que cobria seus cabelos. A relva cresceu, primeiro curtinha como a barba rala de um adolescente, depois farta como as barbas de um vovô. As cachoeiras descongelaram-se, jorrando água aos borbotões e surpreendendo as flores, que então se abriram.

No topo do Monte do Nunca, caça e caçador, vilão e herói, criança, adulto e fada estavam postados em círculo, mão, joelho ou asa encostados, encarando-se como animais dentro de um poço. Viram a tempestade de neve ser soprada para longe e sumir a distância na direção do mar, até ficar do tamanho do avental de Wendy que voara do varal. As labaredas da fogueira enfim se extinguiram.

— Tenho de ir procurar aquele bobão, acho eu — disse Sininho com um suspiro de cansaço extremo (apesar de suas asas estarem palpitantes, com uma dezena de cores muito vivas, revelando a sua excitação). Tanto se contorceu que se soltou da mão de Peter e voou

19 A autora se refere a um episódio da história da Inglaterra, em 1588, quando a Marinha inglesa venceu a chamada “Invencível Armada” espanhola enviando navios-fogo (navios não tripulados, que carregam combustível) que fizeram explodir a maior parte dos navios inimigos. (Nota da Editora.)

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direto para as cinzas fumegantes da fogueira, desaparecendo no mesmo instante com um chiado e um estalido. Duas fadas pequeninas não produzem muita claridade, mas o lugar pareceu mais escuro sem elas.

— Temos de lutar, você e eu — disse Peter para o Homem dos Fiapos.

— Com quê? — caçoou Novello dando-lhe as costas. — Escolha as suas armas-não-existentes. Além do mais, somos ambos oppidans, alunos de Eton. Não é de bom-tom fazermos um rififi, muito menos na frente das damas. — E saudou Wendy e Piuí, a ponta dos dedos tocando a linha do cabelo frisado, depois se afastou dando um pulinho satisfeito, com suas botas de pele de crocodilo.

Peter precipitou-se atrás dele:— Vamos acabar com isso aqui e agora, seu covarde!E sentiu o gancho de ferro roçar em seu rosto quando Novello

virou-se e o manteve afastado.— Acha mesmo que é você quem decide, formiga? — sibilou

Novello. — Nunca jogou um jogo chamado “Conseqüências”?Arrebatando de Peter o mapa esfarrapado do Tesouro, ele

fingiu escrever, com o gancho em vez de uma pena.Era uma vez: Um menino chamado Pan.Em um lugar chamado: Terra do NuncaQue encontrou um: pirata chamado Jas GanchoE eles lutaram até a morteE em Conseqüência disso...— Jaime Gancho virou comida de crocodilo! — completou Peter,

triunfante.— Ah, sim! — rebateu Gancho. — Mas toda conseqüência

acarreta outras conseqüências, meu caro! Tudo o que se faz acaba voltando para nos assombrar, nos obcecar: cada inimigo que você lança aos crocodilos, cada menino que você manda embora. Será que pensa mesmo que vai algum dia rever a Floresta do Nunca, agora que arranquei suas asinhas? Você já me colocou dentro de um caixão uma vez: no meu caixão-crocodilo. Acha mesmo que pode matar um homem que voltou da morte? Leia seus livros de histórias... Ah! Já ia esquecendo: você não sabe ler, não é, ignoramus minimus20? Tenho de ensinar-lhe, então: não constitui grande proeza um explorador alcançar seu objetivo. A viagem de volta para casa é que acaba com ele. O relógio quebrado está tiquetaqueando. Prepare-se para enfrentar as Conseqüências de seus atos passados! Não preciso matar você, cocoricó: vou deixar essa tarefa para a Terra do Nunca!”

20 “Ignorante sem importância”, em latim. (Nota da Editora.)132

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Capítulo VinteMá sorte

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A fogueira transformara-se em um negro amontoado de carvão. Os Gêmeos tiraram dois pedaços de lá, desenharam um retrato de Novello na rocha e jogaram pedras nele. Wendy, que vinha observando o rosto de Peter desde que o pirata se fora, apanhou outro pedaço e escreveu em letras grandes no ponto mais alto e saliente do rochedo:

Monte de Pan— E então? Gostou? — perguntou ela, orgulhosa, recuando e

limpando as mãos em seu vestido feito de bandeira de pirata.— De quê? — disse ele, sem compreender, pois não sabia ler.Wendy então desenhou um galo com o bico aberto, gritando:

“CÓ-CORI-CÓÓÓ!”E Peter compreendeu e sorriu. Um sorriso fraco, esgotado.

Seus dedos ainda estavam enganchados na gravata branca de Eton, que lhe rodeava o pescoço como um nó de forca.

João, que também queria desenhar na rocha, puxou dos restos da fogueira mais um graveto enegrecido... e encontrou um elfo sentadinho na ponta, sujo de preto da cabeça aos pés. Igual a um pingo de tinta.

— Pirilampo! Você está vivo!— Naturalmente — disse o pingo de tinta.Todos o rodearam, muito animados, e Piuí preparou uma

pequenina banheira com uma xícara de chá frio.Assim que o elfo afundou e desapareceu, fazendo o chá ficar

preto de fuligem, outra voz atrás deles disse:— Não acreditem em uma só palavra do que ele fala. Ele é TÃO

mentiroso, esse menino!E uma Sininho igualmente suja saiu com uma certa dificuldade

dos restos da fogueira, tirando Pirilampo com maus modos de dentro da xícara.

— Primeiro as damas — disse ela, e mergulhou no chá.Todos tiveram de fechar os olhos enquanto ela se lavava.— Quer dizer que as fadas são realmente à prova de fogo —

observou João, que possuía uma curiosidade científica a respeito dessas coisas.

— Só às quartas-feiras — afirmou Pirilampo, categórico.— Acho que hoje é sexta-feira — disse Cabelinho.— Oh, céus. Então devo estar morto — concluiu Pirilampo.A partir daí, Sininho e Pirilampo só falavam um com o outro,

porque estavam muito apaixonados. Pareciam não ouvir nada do que se dizia a eles: não se interessaram quando os outros juntaram os objetos espalhados e o tesouro, nem quando levantaram o estandarte do arco-íris, nem quando esquadrinharam a ilha pela luneta de bronze de Gancho.

— Venham, então, se é que vêm mesmo! — chamou Peter. Mas

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os dois pequeninos seres mágicos não lhe deram ouvidos.— As pessoas morrem quando as fadas não ligam para elas! —

provocou-os Deleve.Os dois namorados apenas pularam para dentro da arca do

tesouro e fecharam a tampa batendo-a com toda a força. Quando Cabelinho a abriu, não havia ninguém nem nada mais no interior. Nem ao menos pudim de sagu frio.

Descer deveria ter sido fácil. O frio não estava mais tão intenso. A montanha não estava mais tão escorregadia. Mais abaixo, o ar não estava tão rarefeito. Aqui e ali, encontravam destroços do baú de bordo: uma roda de carrinho, uma pinça para pegar açúcar em pedra, uma caixa de fósforos vazia. Entretanto, a cada declive e cada paredão de rocha e perigo que ultrapassavam, Peter ia ficando mais pálido, lento e esgotado. Deu tantos puxões na gravata de Eton que seu pescoço ficou marcado de vermelho vivo. Tropeçava, dava passos em falso e caía, e cada vez demorava mais para se levantar.

— Vamos acampar aqui, Capitão — sugeriu Deleve quando alcançaram uma saliência rochosa coberta de relva.

Mas Peter não falou com ele, o que o fez deduzir que ainda se encontrava banido na Terra de Lugar Nenhum. Os outros sentaram-se ali mesmo, exaustos, mas Peter seguiu adiante, com a cabeça baixa, os ombros curvados, as mãos apertando as costelas.

— Não ando por aí com gente grande — murmurou. — Gente grande não é confiável.

A voz, porém, tinha um tom mais de derrota que de desafio. E ele se apoiou no penhasco e tossiu, tossiu, tossiu, até suas pernas se dobrarem; tossiu, tossiu, tossiu, até se ajoelhar; tossiu, tossiu, tossiu, até a testa encostar na relva; tossiu, tossiu, tossiu, até cair de lado no chão... e desaparecer inteiramente da margem da saliência rochosa.

Mais abaixo, na descida da montanha, o Capitão Jas Gancho — ou Novello, se preferirem — sentara-se com suas pernas compridas em torno de um ninho de pássaros de onde tirava um ovo de cada vez, furava-o com seu gancho e bebia o conteúdo. Pela primeira vez na vida, estava achando difícil não assobiar de puro contentamento (apesar de todo mundo saber que assobiar provoca um azar danado).

Arrancou uma folha de capim e, prendendo-a entre dois dedos de sua única mão, soprou, produzindo uma nota semelhante a um grasnido de pato. O mato na planície lá embaixo agitou-se em redemoinhos. Novello sorriu ao ver o que acontecia.

Foi quando, sem aviso, um menino desceu deslizando pela escarpa atrás dele e empurrou-o de seu pouso. Pensando que estivesse sendo atacado, ele se pôs de pé num salto, um ovo de pássaro ainda empalado no gancho. Mas o menino só se encaixou em seus tornozelos, dobrado ao meio como um canivete, e lá

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permaneceu como se estivesse morto, as pálpebras entreabertas.Antes que Gancho tivesse tempo de reconhecer Peter e levantar

o gancho para empalá-lo também como uma casca de ovo, mais crianças desceram escorregando pelo penhasco, jogando nele uma chuva de terra e de pedregulhos, todos gritando ao mesmo tempo como fanáticos:

— Deixe ele!— Largue ele!— Não ponha a mão nele!— Ninguém pode tocar nele!— Vou tratar de você, Peter! — gritou Piuí, e correu para junto

de Peter. — Eu cuido de você!João correu também, mas para atacar Gancho, a espada

desembainhada.— Isso é coisa sua, seu bandido!— Eu... — começou o pirata, surpreso demais para revidar ou

se alegrar com a situação.Os Exploradores caíram de joelhos ao redor de seu Líder.— Talvez ele esteja com pneu-mania — disse Piuí —, por ter

ficado só de camisa durante a tempestade de neve.Piuí tentou cobrir Peter com a sobrecasaca escarlate, mas

Wendy deu um grito de horror, acorreu e tirou-a de cima dele, jogando-a para Gancho.

— Você o matou, foi você! — berrou ela.— Eu? — disse Gancho.Piuí colocou a mão na testa de Peter para ver se ele estava com

febre, tomou-lhe o pulso, acariciou-lhe o cabelo e encostou a cabeça em seu peito para escutar se o coração ainda batia. Depois, sentou-se e declarou, soluçante...

— Peter morreu!Um tremor que percorreu então a Terra do Nunca fez o

horizonte empenar e os reflexos saírem de dentro de todos os lagos, laguinhos e lagoas.

A Liga de Pan cobriu-o com a bandeira de arco-íris. No meio do terrível silêncio que se seguiu, as acusações vieram à baila outra vez.

— Ele morreu de tanto sentir frio — disse o Segundo Gêmeo.— Melhor assim do que ser igual a você! — exclamou João,

dando uma espetadela com a ponta da espada de peixe-espada no rosto de Gancho.

— Não! Foi aquela gravata no pescoço dele. Sufocou-o, tirou-lhe o ar e a vida! — replicou Wendy.

— A sua gravata! — rosnou João, e deu outra espetadela em Gancho com a ponta da espada, dessa vez na garganta coberta de lã.

— Ou então foi porque você o fez pensar no que seria quando crescesse e isso partiu o coração dele! — deduziu Deleve.

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— Tudo culpa sua! — acusou João, espetando Gancho no peito.— Ou pode ser que ele detestasse tanto ser Gancho que

resolveu morrer de propósito! — sugeriu o Primeiro Gêmeo.— Está contente, agora? — disse João, espetando a fivela do

cinto de Gancho.— Ou quem sabe Gancho o tenha envenenado com o sal — disse

Cabelinho —, ou com o pente, ou a graxa de sapatos, ou o chá, ou as frutinhas vermelhas, ou... ou...

— ...como ele envenenou a Terra do Nunca inteira! — esbravejou João.

Gancho espertamente se desviou para o lado a fim de evitar o golpe seguinte da espada de João.

— Ele ainda não está morto, seus patetas — disse ele, entre os dentes semicerrados, irritado, e apontou para o pequeno corpo no chão.

A ondulação não era maior que a da superfície de um rio quando um lúcio, aquele grande peixe, passa nadando no fundo, mas a bandeira de arco-íris de fato ondulava por causa de algum movimento debaixo dela.

— Não graças a você! — exclamou João, e espetou-o novamente.

Gancho arfou, exasperado, chutou com a bota de crocodilo a lâmina da espada e quebrou-a em uma porção de pedaços.

— Não o envenenei nem estrangulei nem enganei para levá-lo à morte! — protestou Gancho, contorcendo-se de irritação. — Não viram como o protegi dos perigos e dificuldades? Não fui eu quem o arrancou da morte certa na ponte de gelo? Admito que não tenha sido por um afeto dos mais profundos, mas eu o fiz. Não compreendem? Eu precisava do fedelho! Para o meu plano grandioso! Com que propósito iria fazê-lo adoecer? Pois se contava com ele para recuperar meu Tesouro! Ele era mais Gancho do que eu: acham que eu teria envenenado a minha própria imagem? Não estavam lá quando os abandonei aos caprichos da Ilha? Quando a deixei para que a terra e o tempo matassem vocês todos? Se algum dia eu levantar a mão para acabar com Peter Pan, será esta aqui! — e brandiu o gancho, primeiro junto ao rosto de João, depois por cima do menino Pan. Quando se preparou para golpear a garganta de Peter, as crianças gritaram todas juntas, pensando que iriam presenciar um crime a sangue frio, e Deleve chamou Gancho de “covarde e assassino”. Mas o gancho atingiu apenas o tecido da gravata branca no pescoço de Peter e ergueu o menino até o alcance da mão boa de Gancho.

No tempo do estalar de dois dedos, o laço branco foi desatado e Peter caiu de costas, batendo com a cabeça no chão, mas sem ter sido assassinado.

— Está satisfeita agora, madame? — disse Gancho a Wendy, e 137

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sentou-se de novo, curvado, de costas para o grupo.Piuí ajoelhou-se e cochichou ao ouvido de Peter:— Estamos brincando de médicos e enfermeiras, Peter? Ah, por

favor, diga que sim! Sou sua enfermeira e você é o paciente, e agora você precisa melhorar e ficar agradecido a mim para todo o sempre!

Mas o menino caído no chão nem se mexeu. Quando ela lhe deu um remédio de faz-de-conta, ele não o engoliu e o remédio escorreu-lhe pelo canto da boca. A pele dele estava pegajosa e a respiração arquejante. Piuí sussurrou:

— Você não está brincando direito, Peter. Não está mesmo.O Primeiro Gêmeo fez uma trouxa com o casaco vermelho

abandonado e abraçou-o, como se fosse o próprio Peter.Assim, o bando de Exploradores mais uma vez formou um

círculo na encosta do Monte do Nunca, agora não mais assolado pela neve, mas pela dramática possibilidade de que o menino caído no chão estivesse morrendo ou pudesse morrer, e eles não tinham a menor idéia da causa nem de como evitar que isso acontecesse.

Havia duas luas naquela noite. Ao lado da lua da meia-noite, cheia de olheiras de preocupação, surgiu seu oscilante reflexo, que se erguera do mar em busca de companhia e de consolo. Seus dois rostos brancos ansiosos dirigiam os olhares para as encostas do Monte do Nunca, oferecendo bandagens de raios de luar.

Capítulo Vinte e Um

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Maioridade

Relembrando as palavras de Peter, eles mandaram Gancho para a Terra de Lugar Nenhum, recusando-se a falar uma só palavra com ele e fingindo que ele não existia mais. Mas ele permaneceu no mesmo lugar, curvado sobre si mesmo, os olhos tremeluzindo na escuridão, sem dormir, como de costume. Seria para presenciar a morte de seu inimigo declarado, ou porque estava escuro demais para descer a montanha, ou simplesmente porque ele gostava de ser do contra?

— Vá embora — disse João. — Você foi banido. Faz parte das regras. Você tem de ir embora.

— Regras de quem? — retrucou Gancho. — Vão vocês. Cheguei aqui primeiro.

— O que é, está esperando que Peter morra? — disse Wendy.— Pode ser.— Só os maus esportistas não cumprem as regras. — João

ruminava, muito emburrado, e jurara nunca mais falar com o homem — até que uma pergunta entrou em sua cabeça exigindo resposta. — Aliás, não acredito em nada do que você contou. Pensei que fosse um pirata antes de vir para cá, não um colegial. Que tivesse sido contramestre de Barba Negra: o pirata mais sanguinário que já percorreu os Sete Mares. Foi o que ouvi dizer.

— Hum! Mentiras. Calúnias espalhadas por meus inimigos. Nunca estive sob as ordens de ninguém). Por que cargas d’água eu, Gancho, seria subordinado a um rato de navio sem classe nenhuma, que não sabia nem contar até cinco? Duvido que Barba Negra sequer fosse capaz de soletrar a palavra Eton, que dirá usar a velha gravata da escola. Eu não agüentaria alguém como ele a bordo de um navio meu nem para raspar a tinta do madeirame.

— E por onde andam agora os seus desprezíveis companheiros de pirataria? — perguntou João, tentando parecer altivo e desdenhoso, embora secretamente ele apenas desejasse saber. (João gostaria muito de ser pirata, mas só se não tivesse que roubar nem matar ninguém.)

— Mandei-os fazer a parte deles na Guerra — disse Gancho. — Como é o dever de todo homem. No início, mandavam-me cartões-postais. Da Bélgica e da França. Depois, acho que me esqueceram. Os postais pararam de chegar. Imagino que estivessem se divertindo demais, que estivessem ocupados demais, esbanjando pilhagens e despojos de guerra. Gastando o produto dos saques em bolos e bonitas mulheres francesas. Sem nenhuma disposição para voltar para a labuta enfadonha e cansativa a bordo do Terror dos Mares.

Wendy balançou a cabeça.

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— Também gosto de imaginar o mesmo — disse ela — todas as vezes que penso em meu irmão Miguel. — Os olhos deles se encontraram por uma fração de segundo, durante a qual um compreendeu o outro perfeitamente.

— Vejo que você, no entanto, não foi para a Guerra — disse João com sarcasmo.

O pirata fulminou-o com um olhar homicida e disse, a voz num sussurro enrouquecido, tão baixo e frio como um rio subterrâneo:

— Graças àquele ali, fui considerado INCAPACITADO PARA O DEVER!

— Silêncio! — pediu a Enfermeira Piuí, agitada, amedrontada. — Deveríamos deixar Peter dormir. O sono faz bem às pessoas. O sono faz maravilhas.

Gancho, que havia vinte anos não dormia, deu uma risada curta e amarga e virou-lhes as costas, amontoando sua lã em torno de si.

Súbito, Cabelinho levantou-se bruscamente.— Peter precisa é de um médico! — afirmou ele, desesperado.

— Um médico de verdade!Todos olharam de seu pouso no alto da montanha para a

imensa selva e a selvagem imensidão da Terra do Nunca e perguntaram-se: como arranjar um médico naquele caos desgrenhado? Médicos são gerados em lagos de anti-séptico e em planícies de linóleo limpo ou de lençóis engomados. A Terra do Nunca não é seu habitat natural. E no entanto Cabelinho já sabia onde encontrar um; via-se logo por causa dos seus maxilares apertados. Ele respirou fundo e dirigiu-se para onde o pirata estava sentado, curvado sob sua pelagem.

— Pergunte — disse ele, mergulhando os dedos de ambas as mãos na manga de Novello. — Faça-me a pergunta agora.

Deleve deu um pulo.— Não, Cabelinho, isso não!— Faça-me a pergunta, Novello.Seguiu-se um murmúrio confuso de apreensão e de perguntas

dos outros, que não compreendiam o que se passava.Gancho fez cara feia para Cabelinho e tentou soltar-se, mas

Cabelinho não o largava, obstinado como um cachorro terrier.— Pergunte-me, Gancho. Pergunte-me o que quero ser quando

crescer.— Mas, Cabelinho...! — protestou Deleve, tentando afastá-lo de

lá. — Pense no que está fazendo! Quer ser como eu, adulto como eu? Que nunca mais vou poder voltar para casa? Só me resta ser um Desengunço. Você quer ser um Desengunço também, Cabelinho?

Cabelinho engoliu em seco e começou a puxar o emaranhado da lã engordurada que era ao mesmo tempo a manga e o braço do pirata. O rosto de Novello contorceu-se de dor, e ele disse:

— Escute o seu amigo, menino Cabelinho. Se o cocoricó 140

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sobreviver, acha que ele vai-lhe demonstrar sua gratidão? Vai mandá-lo embora, como fez com todos os outros. Não vai tolerar a presença de adultos em sua Companhia. — Os olhos do homem estavam líquidos com o negrume da meia-noite, e em vez de ter estrelas refletidas neles, havia centelhas e cacos de casca de ovo.

— O pirralho está morrendo, senhor Cabelinho. Nada pode salvar Pan agora... Ah, mas quem sou eu para dissuadi-lo de seguir o destino que escolheu? Então me diga, menino Cabelinho: o que você quer ser quando...

— Médico! — interrompeu Cabelinho, afundando os dedos nos fios de lã quase até o osso do braço de Gancho.

O tecido estava tão embebido de veneno que neutralizou a mágica da juventude existente na Terra do Nunca e deixou o Tempo infiltrar-se pelos poros da pele macia de Cabelinho. Conforme suas mãos fechadas iam-se enchendo de lã esfiapada, ele sentia os cintilantes busca-pés e estrelinhas extinguirem-se dentro de sua cabeça e serem substituídos pelo brilho fosco da sensatez e da sabedoria. Seu nariz percebia o cheiro de clorofórmio e de linimento. Jalecos brancos desfilavam por sua imaginação como fantasmas engomados. Em seus bolsos, sacolejavam seringas hipodérmicas, termômetros e espátulas. Cabelinho queria tanto ser médico que cresceu e ficou alto na mesma hora, desfazendo-se de seu casaco de cobertor e até de sua farta cabeleira crespa. As dores do crescimento eram alarmantes, mas ele manteve a mão firme em Novello.

E, quanto mais crescia, mais se lembrava de ter sido um médico — afinal, ele havia sido médico antes — em Fotheringdene, antes da aventura que os trouxera ao Monte do Nunca. Lembrou o tempo de estudos na escola de Medicina, de sua temporada no Hospital Municipal de Fotheringdene. E, durante esse tempo todo, suas mãos enchiam-se da lã que era simultaneamente o braço e a roupa de Novello. Deixou à vista o gancho de ferro e as cicatrizes das feridas causadas pelo crocodilo. Novello pôs-se de pé com um berro medonho, mas viu que não era mais alto que o doutor Cabelinho Darling DM MCRC.

— Sinto muito se o machuquei, senhor — disse Cabelinho — agora que ele era médico, lamentava causar dor em quem quer que fosse —, e esvaziou as mãos da lã amarfanhada, que se espalhou pelo chão em torno das botas de pele de crocodilo do pirata.

Instintivamente, as crianças afastaram-se de Cabelinho. (Médicos são quase tão apavorantes quanto piratas, com suas mãos frias e sua caligrafia perigosa. E só vão visitar as pessoas quando elas estão se sentindo mal demais para ficarem amigas deles.)

Tirando um estetoscópio do bolso, doutor Cabelinho ajoelhou-se ao lado de Peter e escutou as batidas incertas e alvoroçadas de seu coração. Era o som da guerra interna na Terra das Fadas. Era o som

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da Eterna Juventude morrendo, morrendo, morrendo.Mas ele também ouviu claramente algo mais. Partiu a ponta de

sua própria espada de peixe-espada (como lhe parecia pequenina agora, em suas mão grandes e frias), abriu com ela um buraco logo acima do coração de Peter e, usando a pinça de pegar cubos de açúcar, puxou para fora um pedaço de algo cinzento, fino, esfarrapado e sujo de fuligem.

— Acredito que seja esta a origem do problema — declarou ele.Quando ainda estava em casa, na Praça Cadogan, ao espirrar o

último espirro de seu resfriado, Wendy apanhara um lenço e o enfiara dentro da manga — um lenço de uma mulher adulta enfiado na manga de um vestido decotado de uma menina. E, dentro do lenço, sem que ela soubesse, havia um pedacinho do nevoeiro de Londres!

Na Floresta do Nunca, quando Peter enxugou o sangue de seu rosto com o lenço dela, inalou aquele farrapo de nevoeiro, que se foi enrolando no coração dele, comprimindo-o mais a cada dia.

Nem o incêndio da Floresta do Nunca, nem o toque das Bruxas, nem o peso esmagador das fadas hostis haviam dado cabo de Peter Pan; muito menos a fome e o frio; não fora o sal de Novello nem suas palavras tentadoras o que estava matando Peter; nem mesmo seu vidrinho de veneno — que afetara toda a Terra do Nunca — conseguira levar Peter Pan à beira da morte. Só um farrapo do nevoeiro de Londres conseguira.

Doutor Cabelinho custou a se levantar, como só acontece com os adultos.

— Venha, Deleve. Está na hora de irmos — disse. Com seu bisturi de cirurgião, cortou no ar sua própria porta e passou por ela, banido.

— Aonde vocês vão? — perguntou Gancho, ainda segurando um dos braços, esfiapado até o osso.

— Quebrei a Regra e cresci — explicou Cabelinho serenamente. — E, ao contrário de certas pessoas, sei como me comportar de acordo com as regras...

Receito-lhe sono para esse braço, Novello. Como diz a Enfermeira Piuí, o Sono cura tudo. O Sono e o Tempo.

Dito isso, ele se foi, levando Deleve consigo, e desceram escorregando, desajeitados e barulhentos, a encosta da montanha iluminada pela luz das duas luas.

Peter Pan suspirou fundo, depois respirou mais fundo ainda e em seguida sentou-se. Pousou a pequenina mão no peito, sentiu a vida pulsando em suas veias, jogou a cabeça para trás e deu um cocoricó:

“Có-cori-cóóó!”

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Peter Pan saudável outra vez era uma coisa maravilhosa de se ver. Dava saltos mortais, andava com as mãos no chão e saltava de uma rocha para outra com a agilidade e a segurança de um cabrito montes. Na verdade (não sendo mais um pirata nem supersticioso a respeito de assobios), ele assobiou para chamar todas as camurças — que são animais semelhantes às cabras e cabritos — do local e fez seus amigos montarem nelas, para que descessem em um galope macio e agradável os declives e precipícios do Monte do Nunca rumo à desoladora planície lá embaixo. Nem Humpty Dumpty21, ao pular de seu muro, divertiu-se tanto quanto eles. Novello ficou para trás, mutilado, esquecido e lento como uma preguiça em comparação à Liga de Pan.

Ninguém mais teria confundido Peter com um vaidoso capitão-pirata. Os cachos lustrosos que Novello penteara e arranjara com esmero logo se desfizeram, descabelados, formando uma desordem exuberante que se iluminava ao sol. As borboletas faziam enorme algazarra em torno das cores vivas de sua túnica e traziam pólen nas asas, o que o fazia espirrar.

— Toda vez que espirro — gabava-se —, os astrólogos na China avistam um novo planeta, colorido como uma bolha de sabão! — Ia assoar o nariz e, quando Wendy tirou-lhe o lenço da mão, limitou-se a dar uma risada e limpar o nariz na manga da roupa. Depois, inventou uma canção grosseira sobre babuínos, que todos cantaram a plenos pulmões durante todo o percurso de descida até as araucárias-do-chile que rodeavam a base da montanha.

Menos Wendy, porém. Apertou o lenço nas duas mãos e irrompeu a chorar, inconsolável. Os outros pararam de cantar — bumti-bu-ba-buu-uu-buuínoos! — para olhar para ela.

— Foi tudo culpa minha! — gemia Wendy. — Poderia ter matado Peter, e tudo por causa de um espirro bobo!

Mas Peter não se aborrecia com o que “poderia” nem com o “e se”. Não o incomodava sequer não ter Tesouro nenhum para mostrar depois da aventura no Monte do Nunca; a caça ao tesouro é sempre mais divertida do que propriamente encontrar o tesouro.

Afinal, o que ele poderia querer mais além do que já possuía: amigos, liberdade, aventura e juventude? Wendy, mesmo assim, lavou o lenço (temendo que tivesse restado nele algum resquício do nevoeiro londrino) em um pequeno riacho de água gelada que descia da geleira derretida, depois prendeu-o em seu casaco para secar.

E porque o lenço pertencera antes a uma Wendy Darling

21 Personagem das Nursery rhymes (versos infantis) inglesas, cujo corpo tem a forma de um ovo. Nos versos do folclore infantil, ele aparece em cima de um muro. Humpty Dumpty está presente também em Alice no País das Maravilhas. (Nota da Editora.)

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adulta, ela começou a lembrar coisas. Lembrou-se da Praça Cadogan, de uma menininha chamada Jane, lembrou-se de contas do armazém e dos dias de lavar roupa, de um trabalho no comitê e de um marido, de hora marcada no dentista, de botar as latas de lixo para fora nas terças-feiras. E da mesma forma que os sonhos sobre a Terra do Nunca tinham perturbado sua paz de espírito quando estava em Londres, sonhos sobre estar em casa começaram a pairar em torno dela, assim como as borboletas pairavam em torno de Peter.

Borboletas e vespas!A descida pelas araucárias foi tão desagradável quanto fora a

subida. Os insetos os picavam, a resina grudava seus dedos e joelhos uns nos outros, as pinhas espetavam-nos e os galhos finos quebravam sob seu peso.

Inesperadamente, com um som que parecia o de uma banshee — uma bruxa horrível, mensageira da morte — ululando e pipilando, guinchando e gritando, as árvores desandaram a sacudir, a se curvar, a se debater, fazendo cair os ninhos de vespas e as pinhas aos trambolhões. As crianças agarraram-se aos galhos o mais que puderam, até que Peter precipitou-se ousadamente no espaço e os outros todos acabaram soltando as mãos e caindo no meio das árvores.

Os galhos mais baixos não demonstraram nenhum interesse em apanhá-los — somente as redes esticadas pelos Desengunços, que estavam à espreita havia dias.

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Capítulo Vinte e DoisConseqüências

Afinal, eles o pegaram, aqueles meninos que tinham descumprido a Regra e crescido; aqueles meninos que Peter banira para a Terra de Lugar Nenhum e que o detestavam por causa disso com um rancor mortal.

Os Desengunços amarraram seus prisioneiros nos troncos das araucárias e passaram a manhã atirando pinhas neles para se divertir. Enquanto isso, discutiam o que fariam com Peter Pan; de que forma o matariam.

— Enforca ele!— Num tem corda.— Dá um tiro nele!— Num tem revólver.— Corta a cabeça dele, então!— Ou enterra ele vivo.— Bate nele com uma pedra.— Ou larga ele no escuro.— Façam qualquer coisa, menos me jogar num canteiro de

roseira-brava! — disse Peter, com um lampejo de sorriso. Wendy contara-lhe certa vez a história de Mano Coelho e como ele se saíra de uma enrascada exatamente igual àquela.

Mas os Desengunços não caíram no ardil. Também conheciam a história de Mano Coelho, que o próprio Peter lhes contara quando, sentados a seus pés, eram todos pequenos e felizes Meninos Perdidos.

— Façam ele andar pela prancha! — sugeriram os Gêmeos, achando que os Desengunços podiam esquecer que estavam em terra firme e não a bordo de nenhum navio, e depois achariam que ele se afogara.

Mas os Desengunços também não caíram nessa armadilha.— Matem ele de medo de alguma coisa! — arriscou João,

sabendo que Peter era corajoso demais e que isso também não daria certo.

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Mas os Desengunços não se deixaram enganar.— Soltem-nos e prometo ser mãe de todos vocês — disse

Wendy. E dessa vez não era uma cilada, mas sim uma proposta sincera e franca inspirada pela bondade do coração dela. Surpreendentemente, porém, os Desengunços não queriam ter mãe. Cheios de raiva e decepção, achavam que as mães eram quase tão ruins quanto Peter Pan.

— O pântano vai resolver isso — disse o mais velho, e os demais concordaram.

— Num sobra nada depois.— Joga o bando todo no pântano.Nenhuma palavra no mundo abrandaria essa sentença de

morte: os Desengunços iam jogar Peter e seus amigos na areia movediça.

— Exigimos um julgamento! — disse Piuí (que um dia fora um juiz da Suprema Corte, não se esqueçam).

Naquele lugar, porém, não existia justiça nem eqüidade. Os Desengunços tinham-se armado com galhos arrancados das árvores de saca-rolhas-de-cortiça e pata-de-lebre; e agora iam levando as crianças para o local de execução.

Que não ficava longe. De cada lado da trilha de solo mole como esponja, o pântano suspirava e borbulhava, sugava e suspirava suavemente: um tapete de musgo carmesim desenrolava-se para receber os incautos e os condenados. As elevações do Monte do Nunca ainda se agigantavam diante deles, escondendo o céu do leste. Os Desengunços se apossaram de tudo o que estava nos bolsos das crianças, amassaram a bandeira de arco-íris com as mãos encardidas e depois levaram as vítimas aos empurrões para o pântano vermelho.

— Dêem-me uma espada e lutarei sozinho contra todos vocês! — desafiou-os Peter. — Ou são covardes demais para isso?

Mas não adiantava apelar para o valor ou o orgulho dos Desengunços. Todas as noções de nobreza de caráter tinham morrido dentro deles no dia em que haviam sido banidos. O encanto da meninice os abandonara, não por culpa deles, e deixara-os corpulentos, empavonados, ossudos; por que deveriam ligar para honra e jogo limpo? No caminho, iam cutucando as costas de seus prisioneiros, forçando-os a seguir para o atoleiro.

— Quem vai primeiro? — perguntou o mais magricelo quando chegaram à margem.

— Eu — respondeu Peter. — Sempre. — E empinou o peito, inclinou a cabeça para trás e deu uma passada comprida para cima da areia movediça. Depois de sua doença, estava tão leve que seu peso quase nem marcou a superfície. — Vocês têm de me conceder um último desejo — disse, virando-se para seus assassinos. — Peço que soltem meus amigos. Eles nunca lhes fizeram mal.

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Os Desengunços encolheram os ombros angulosos até as orelhonas desproporcionais.

— Quem for amigo seu... — disse o mais articulado, sem se incomodar em terminar a frase. — E aqui não concedemos desejos. Isso é coisa de fadas.

O solo gelatinoso sugou com atenção os pequeninos pés descalços de Peter, resolveu que o gosto deles era bom e fechou-se sobre seus dedos e calcanhares.

— Conseqüências! Não lhe disse? — ouviu-se uma voz vinda do alto. E lá, na saliência de rocha, acima das araucárias, a figura disforme de Novello apontava para Peter o gancho de ferro que lhe servia de mão. — O que foi que lhe disse, cocoricó? Toda ação tem suas conseqüências!

A lama vermelha engoliu Peter até os tornozelos. Ele estendeu bem os braços para manter o equilíbrio. Um dos Desengunços empurrou João também para o tapete vermelho de lama e Wendy depois dele, às cotoveladas.

Não havia medo no rosto de Peter, somente uma triste perplexidade, por constatar como os Desengunços sentiam-se injustiçados.

— Vocês todos juraram obedecer à Regra e não crescer. Por que então cresceram, se não queriam ser banidos?

— A gente fomos envenenado, né? — disse o mais grosseirão. — Envenenados por um chefe muito sujo, danado de falso.

E tentou dar um golpe na cabeça de Pan com seu galho, mas errou. A expressão no rosto de Peter, de mágoa e reprovação, teria amolecido o coração mais duro... se os Desengunços tivessem algum coração para amolecer.

— Peter não traiu vocês! — exclamou Wendy. — Lá está o homem que traiu vocês! — E apontou para Gancho no alto. — Foi ele que fez vocês crescerem! Se não fosse Gancho, vocês teriam continuado crianças para sempre, como Peter! E poderiam voar, e ir e vir à vontade, e visitar suas mães, e cumprir suas promessas, e sair à procura de tesouros seis vezes por semana! — Ela deixou escapar um gritinho involuntário de repulsa quando a papa vermelha alcançou a bainha de seu vestido. Peter já afundara até a cintura e mantinha os braços levantados para não sujar as mãos de lama.

— Gancho? — O nome confundiu os Desengunços. — Capitão Gancho? — Lembrava-lhes o tempo passado na Cabana da Wendy e as histórias que escutavam sobre o pirata malvado, que fora comido por um crocodilo muito antes do seu nascimento. — Aquele não é o Gancho, não. É o homem do circo!

— ...o viajante.— ...muito viajado.— ...o esfiapado.Todos conheciam o homem da montanha, não como Jas Gancho,

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mas como alguém que tinham encontrado em suas idas e vindas.— Wendy tem razão. Foi ele quem envenenou a Terra do

Nunca! — berrou Peter, já com o peito dentro da lama. — Conte a eles, Gancho! Conte como o vidro que você trazia no bolso da camisa deixou o veneno vazar e matou o Crocodilo! E envenenou a Lagoa! E Deixou o Tempo entrar, e transformou meus Meninos Perdidos em Desengunços!

Gancho deu uma risada e fez uma última mesura para Peter — não mais o cumprimento servil de um criado, mas o floreio arrogante de um vitorioso que agradece aos vivas.

Cada um dos Desengunços lembrava-se bem de ter encontrado o Homem em Fiapos. Alguns se lembravam da sensação da lã engordurada em suas mãos, e de ter respondido à pergunta: “O que você quer ser quando crescer, menino?”. Até aquele momento, nenhum deles sabia que encontrara o famigerado Capitão Jaime Gancho.

O Capitão Jaime Gancho viu os Desengunços largarem seus galhos e, como uma mudança de maré, partirem em sua direção. Corriam emitindo um rugido surdo, naquele rompante crescente de ódio que os caracterizava.

— Gancho! Gancho! Gancho! Gancho! — repetiam ritmadamente.

Alcançaram a base do penhasco. Começaram a subir nas árvores. Em minutos, chegariam à saliência de rocha em que ele se encontrava. Gancho levou os dedos da mão esquerda à boca... e soprou.

Produziu um ruído esquisito, como um grasnido, que fez os Desengunços interromperem por um momento sua subida, a areia movediça interromper por um segundo sua ávida sucção. As samambaias e as urzes da planície agitaram-se em torvelinhos farfalhantes e, ao olhar para baixo, os Desengunços estacaram, embasbacados. Pois doze leões e uma família de ursos, três tigres e um cotillo, pôneis, um puma e um palmerion aproximavam-se, atendendo ao chamado de seu dono. O instinto guiava os animais pelos percursos mais seguros através dos charcos; a lealdade incitava-os a cumprir o seu dever: salvar O Grande Novello do perigo e destroçar seus inimigos.

Os Desengunços dispersaram-se — cada um por si — deixando cair o produto de sua pilhagem, jogando longe o estandarte de arco-íris. Como uma explosão de fogos de artifício, cinco minutos depois estavam invisíveis. Alguns dos animais os perseguiram, outros pararam, farejando o ar; outros ainda se puseram a andar a esmo, procurando uma forma de chegar ao seu dono, ao que os chamara. Os ursos desviaram-se de seu objetivo ao dar com as colméias nas árvores.

Nesse meio tempo, João afundara até os joelhos na lama, 148

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Wendy até a cintura, mas o queixo de Peter já estava mergulhado na lama que o sugava. Os Gêmeos pegaram depressa um dos galhos que os Desengunços tinham deixado cair e estenderam-no para ele o máximo que puderam. Mas na mesma hora, diante de seus olhos, Peter inalou o ar pela última vez e afundou; nada mais restou a não ser duas mãos muito claras despontando como funcho que tivesse crescido no musgo vermelho e acetinado. E o galho não as alcançava!

— PETER!— Passem para mim aquele outro galho ali — disse João — e

afastem-se da margem!Mas o galho de João também não chegava até onde Peter

estava.— Dêem um para mim também! — pediu Wendy — E fique

parado, João, para não afundar mais depressa ainda!Os Gêmeos jogaram um galho para João, que o passou para

Wendy, e ela espichou os braços segurando-o até onde conseguiu.Ao tocar a madeira áspera, as mãos brancas fecharam-se nela.

Então Wendy puxou Peter, e João puxou Wendy, e os Gêmeos puxaram João e, lentamente, lentamente, penas vermelhas de gaio, folhas cor de cobre, lama marrom e vivos olhos azuis surgiram à luz do dia.

Como a primavera depois do inverno.Tal e qual a história do Nabo Gigante, eles arrastaram Peter (e

um ao outro) para o chão firme. O grupo de amigos salvara-se em conjunto do abraço fatal da areia movediça.

Arquejando, tossindo, cuspindo e reclamando da lama dentro de suas calças, lá estavam eles deitados em terreno sólido, com uma aparência muito semelhante à dos galhos caídos a seu lado, rindo para o céu. E que beleza de céu! Com pedaços esgarçados de nuvens e pinceladas de arco-íris.

Então, em seu campo de visão, contra aquele lindo céu, intrometeu-se um botão de couro, não, um nariz de urso. E seus ouvidos cheios de lama ouviram o grunhido gutural de leões discutindo sobre sua próxima refeição. E seus rostos sentiram o bafo quente de um sortimento variado de vinte feras fechando o cerco para a matança.

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Capítulo Vinte e TrêsO casaco vermelho

Se o Tempo parasse de verdade na Terra do Nunca, nada daquilo teria acontecido. A boca aberta de um leão jamais se fecharia para a mordida. Um urso faminto ficaria imóvel, como um bicho empalhado de museu.

Mas o Tempo nunca ficava tão parado assim na Terra do Nunca, nem Antes. Coisas acontecem o tempo todo na Terra do Nunca, algumas são maravilhosas e outras são absolutamente fatais.

Dois segundos mais e eles virariam comida de gato. Dois minutos mais e eles seriam só ossos. Estavam em desvantagem numérica. Bastaria um dos ursos sozinho para colocá-los todos juntos em desvantagem numérica, mas havia cinco deles, saltitando em ritmo de dança, 1-2-3. 1-2-3, como faziam antigamente no picadeiro. O hálito quente dos leões cheirava a coelho morto, e havia ossos de pássaros presos entre os dentes dos palmerions, aguçados como alfinetes. Os pôneis do circo, com tocos carbonizados de plumas ainda presos nas faixas de suas cabeças, trotavam em círculo ao redor das crianças: não havia como fugir.

Wendy fingiu que eram pesadelos e que iriam embora a qualquer momento.

Os Gêmeos pensaram em mães e como uma delas podia muito bem aparecer naquele exato momento e encerrar a brincadeira.

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João pensou em uma pistola que encontrara certa vez debaixo de seu travesseiro — certa vez, muito tempo atrás, quando ele era adulto — e o que faria se ao menos tivesse trazido aquela pistola...

Mas o Primeiro Gêmeo pensou no casaco vermelho. Ele o trouxera ao descer a montanha, as mangas amarradas em sua cintura. Livrou-se dele, arremessou-o para o ar, e o casaco rasgou-se com o golpe das patas de um urso, nas quais ficou preso e onde foi carregado no alto enquanto a fera o sacudia para tentar soltá-lo. Os leões, excitados pelo movimento, saltaram para a nova presa, a saliva espalhando-se como chuva. A cor vermelha nada significava para eles, já que todos esses animais são incapazes de distinguir cores, mas o casaco sacudido freneticamente e o reflexo do sol nos botões de metal os instigaram e agitaram. As patas pisoteavam as crianças deitadas no chão enquanto as feras do circo disputavam o casaco vermelho.

Para Peter, todavia, a cor vermelha significava muito. Peter estivera olhando para o céu, e agora o Vermelho significava tanto que ele gritou a plenos pulmões: VERMELHO! VERMELHO! VERMELHO! VERMELHO! ESTÃO VENDO? VERMELHO!

Do céu, caíram certos flocos coloridos que todos já tinham visto uma vez. Confete de fadas. Aos montinhos, aos montes, aos montões, às montanhas, às cordilheiras.

Enquanto os animais olhavam para cima, surpresos, e batiam com as patas na estranha chuvarada de boniteza, as crianças escapuliram para se esconder no meio dos caniços e juncos do pântano. Assim, quando o exército Azul das fadas se lançou para valer sobre o casaco vermelho, atingiu apenas os animais. Garras e dentes de nada lhes valeram contra tamanha investida. As bocarras escancaradas logo se entupiram de fadinhas que espetavam; as patas logo ficaram presas ao chão. Leões e ursos, cotillos, tigres e os outros bichos foram enterrados sob uma camada tão alta de fadas brigonas que não se via nem um bigode, cauda ou orelha à mostra.

— Saiam! Soltem todos eles!Aos trancos e barrancos, pulando, cambaleando, escorregando

e afinal caindo o resto do caminho, Novello desceu do íngreme rochedo na base do Monte do Nunca. Em questão de instantes, alcançou o chão (embora as araucárias tivessem cobrado o seu tributo) e correu para o local da batalha.

— Soltem-nos! Tire-os daí, Pan! Ajude meus bichos! Tal e qual um enxame de gafanhotos, as fadas formavam uma espécie de rede em cima dos animais, uma rede que tremeluzia, se mexia e crepitava. Aquelas eram fadas da facção Azul, que acreditavam ter obtido uma grande vitória sobre as forças da Vermelha. Pensavam como uma só mente — as formigas de um formigueiro pensam como se tivessem um único cérebro. E sua mente única dizia-lhes para não saírem do lugar enquanto não se extinguisse a vida da oposição

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Vermelha.Novello correu todo o caminho, brandindo o remo que fazia

parte de seu Tesouro. As árvores, as de saca-rolhas-de-cortiça em especial, procuravam agarrá-lo quando ele passava, como se dissessem: Tarde demais, tarde demais.

— Saiam de cima deles, suas pragas! Assim eles não podem respirar!

E pôs-se a cavar fadas usando o remo azul e verde como se fosse uma pá, jogando para cima seus corpos minúsculos. Um pai que tivesse filhos soterrados debaixo de escombros não teria cavado com mais desvario. Mas de nada adiantava o esforço: assim que as fadas subiam no ar, mergulhavam de volta para a massa no chão.

— Ajude-me, Pan! Não fique aí parado! Não está ouvindo eles chorarem? Estão com medo! Estão sufocados! Não podem se mexer!

E a respiração saía-lhe com dificuldade da garganta, arquejante, como se estivesse outra vez dentro do Crocodilo e ele próprio sufocando.

— Ajude-me a soltá-los, Pan! Dê uma mão aqui, seu moleque preguiçoso!

— Para eles nos devorarem? Ficou maluco? Peter assumiu a sua pose favorita, com os pés afastados, as mãos nos quadris, cheio de desafiadora juventude.

— São animais! Não os aticei contra vocês! Eles seguem seus instintos! Não há maldade neles! Não são como esses... esses... insetos! Calma, ursarada, estou indo! Sosseguem, bichanos, Novello está aqui... O que está esperando, Pan?

Peter inclinou a cabeça para um lado e deu um sorriso cintilante.

— Qual é a palavrinha sem a qual nada se faz? — indagou, com um prazer maldoso.

Novello enrijeceu-se. Aprumou o corpo e disse:— E pensar que permiti que você usasse a gravata da minha

escola nesse seu pescoço indigno. Quando era seu criado, devia tê-la apertado bem mais... muito mais!

Peter levantou uma das mãos, e os dedos acenavam para que Gancho lhe desse a resposta certa.

— Qual é a palavrinha? Novello olhou fixo para ele.— Estou vendo agora por que o pântano cuspiu você fora —

disse.Mas Peter repetiu a cantilena, decidido a fazer Gancho dizer

“por favor” pela primeira vez em sua vida execrável.— Qual a palavrinha...— PENA! — rugiu Novello, e os horizontes da Terra do Nunca

zuniram como a corda tensa de um arco, e o Norte e o Sul trocaram de lado.

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Então Wendy correu e pegou a bandeira de arco-íris amarrotada que os Desengunços tinham deixado cair. Fez sumirem as dobras e amassados com uma sacudidela vigorosa e barulhenta que fez os meninos pularem de susto, depois foi estendê-la em cima do monte de fadas como se fosse uma toalha de mesa.

— Pronto! Eis aí uma nova bandeira para vocês, fadas! A mais linda da Terra do Nunca! Agora, vão embora, aborrecer alguém que seja do tamanho de vocês!

Deslumbradas e distraídas por algo tão brilhante, as fadas caíram todas para o céu, levando a bandeira consigo, dividindo entre elas as cores do arco-íris

— “Vou ficar com esta. — Eu quero aquela ali!” — enquanto se afastavam para ir guerrear com alguém de seu tamanho, em vez de cinqüenta vezes maior.

— Peter... como você sabia que aquele era o Exército Azul? — cochichou João.

— Sorte! Adivinhei certo! — Peter estava radiante. Os animais do circo de Novello pareciam mais achatados que aquelas figuras de papel para recortar. Estavam prostrados no chão, de olhos vidrados, corpos embolados, as pernas retorcidas nas mais estranhas posições, caudas enroscadas, bigodes mordiscados pelas fadas cruéis. Novello pôs-se de joelhos afagando flancos, endireitando patas frágeis, murmurando palavras de estímulo para seus animais. Deteve-se apenas para fulminar Peter com olhos ardentes, da cor da turfa em brasa.

— Agora eu vou lutar com você, Pan — disse ele.— Agora eu vou lutar com você.— Estou preparado, Gancho.Um a um, os animais levantaram-se nas pernas bambas,

gemendo e ganindo, alguns tocando o punho de Novello com uma pata, lembrando-se de algum truque do circo que no passado os fizera ganhar alguma gulodice. E partiram cambaleantes para lamber as próprias feridas, fundindo-se com o amarelo dos vespeiros caídos das araucárias, com o castanho da terra árida e sem relva. As samambaias e urzes da grande planície farfalharam, agitaram-se em torvelinhos e eles desapareceram.

Não restou nenhum animal à sombra do Monte do Nunca.E Novello avançou para Peter, desenredando o gancho da

fiaparia de sua manga direita. Parecia não ver as outras crianças, e aproximou-se de Peter devagar, ameaçador, como um corsário que vai tomar um navio carregado com um tesouro.

— Prepare-se, garoto!Ele era um perfeito Desengunço.— Não tenho espada, pirata.— Então, desta vez, a vantagem é minha. Da última vez em que

lutamos, você tinha o poder de voar. O que sempre achei que não 153

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estava muito de acordo com as regras, aliás... Prepare-se, repito!Se vocês acham que ele escorregou e foi engolido pelo pântano,

estão muito enganados.Se acham que as fadas voltaram, ou que João descobriu que

tinha afinal trazido mesmo aquela pistola, ou que Deleve e Cabelinho apareceram, ou que Piuí chamou a polícia, então é porque ainda não compreenderam como a Terra do Nunca pode ser um lugar terrível.

— Conseqüências! — disse Gancho, com um golpe rápido para acertar a cabeça de Peter. — Todos os atos têm Conseqüências, sabia?

Peter abaixou-se depressa e avançou desviando-se, saltou e protegeu-se atrás das árvores de cortiça; mas Novello veio atrás dele brandindo uma adaga na mão esquerda e dando golpes com a direita. Voaram penas de gaio como gotas de sangue quando o gancho rasgou a túnica de Peter. Os pés descalços de Peter machucavam-se nas asperezas das pedras do chão: apanhou pedras e jogou-as em Novello, mas elas só levantavam poeira da pelagem desgrenhada, e uma produziu um ruído de ovo quebrado. Peter deu estalidos com a língua para imitar o tique-taque de relógio, mas os crocodilos não mais assustavam Gancho — só o irritavam. A roupa de Peter ficou presa em um galho torto que o segurou, como um fruto pronto para ser colhido. Gancho parou um momento para saborear a visão de seu inimigo debatendo-se em vão, sem ter mais como se salvar. Depois, ponderou em que parte macia do corpo de Peter ele iria desferir o golpe mortal.

Oh.Eu disse a vocês que não havia restado nenhum animal à

sombra do Monte do Nunca? Nenhum animal do circo, eu disse. Havia um que veio levantar a pata junto a uma das árvores. Como tudo o mais na Terra do Nunca, esse animal estava um pouco... mudado. Em conseqüência de se ter emaranhado na fiapagem de Novello, o Cachorrinho pequenininho crescera desde que caíra da montanha. E quando um filhote da raça terra-nova cresce, a alteração é considerável. E lá veio ele: um cão da metade da altura de um cavalo, impetuoso como sempre, só que trinta vezes maior. O Cachorrinho agora estava tão grande quanto sua bisavó, Naná, a Babá-Cachorra, e sua dedicação era em tudo igualmente enorme. Lançou-se em defesa de Peter com dentes e garras, latidos e rosnados, e não soltou sua presa — emaranhou-se e não podia soltar —, e puxou, e lutou, e arranhou e mordeu até deixar Gancho igual a uma mecha de cabelos de sereia morta na margem de uma Lagoa envenenada.

João juntou o Tesouro espalhado entre o pântano vermelho e as árvores: taças, troféus, bonés. Olhou em volta procurando algo onde carregar aquilo tudo e deu com o casaco vermelho jogado no chão, todo rasgado.

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— Deixe isso aí — disse Pan, generoso na vitória. — Não é o tipo de Tesouro de que gosto. Não preciso de nada disso. E era verdade, porque o menino com a túnica de folhas e os pés descalços sujos de lama não se parecia nem um pouco com o Capitão Jaime Gancho. — Deixe tudo aí.

A Enfermeira Piuí teria gostado de praticar, enfaixando o ferido ou improvisando uma tipóia, mas não teve coragem de chegar perto do homem desmanchado no chão. De modo que foi Wendy quem afinal se aproximou e se agachou ao lado de Novello. Ela já costurara pegadores de panelas. Já costurara panos de bandeja e aventais. Certa vez, até costurara a sombra de um menino, que se desprendera dele. Mas suas habilidades com linha e agulha não a capacitavam para aquele tipo de remendo em especial.

— O senhor está morrendo, senhor Novello? — perguntou ela.— Receio, senhora, que eu esteja... desfeito, sim. Agradeço-lhe

por salvar meus animais.— Foi um pouco por culpa nossa que eles foram esmagados.Ela enfiou o remo azul e verde debaixo do braço dele, como se

fosse uma bolsa de água quente, e empilhou os troféus e taças, formando uma brilhante pirâmide prateada onde ele pudesse vê-los ao morrer.

— Alguns estão bastante amassados, sinto muito.— O valor deles não tem a ver com o estado em que se

encontram, madame — seus olhos pousaram nos objetos com uma alegria inefável. — Sabe, pode ser que eu os devolva se me convidarem a falar outra vez para A Escola no Dia dos Discursos.

— Seria um Dia dos Discursos muito interessante, senhor Novello.

— Gancho! Meu nome é Gancho, madame. Capitão Jaime Gancho.

Wendy lembrou-lhe o conselho do doutor Cabe-linho:— O sono é um grande remédio, sabia? O senhor devia dormir.Por um segundo, um lampejo de amargo ressentimento passou

pelos olhos de Gancho.— Madame, faz vinte anos que não durmo. Desde o Crocodilo!— Imagino que deva ser porque não teve ninguém para lhe dar

um beijo de boa-noite. Desde o Crocodilo, em todo caso.O grande emaranhado disperso que era Jaime Gancho

contorceu-se como uma velha rede de pesca apanhada pela maré-cheia. A voz soava fraca, mas não havia como negar a força dos sentimentos que o inspirava.

— Senhora, nunca tive ninguém para me dar um beijo de boa-noite! Minha mãe não era esse tipo de mãe... De qualquer maneira, seria vulgar, piegas, sentimental e... não muito viril.

Wendy balançou a cabeça, concordando, e deu-lhe uma palmadinha na mão.

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— Mas vale a pena tentar?— Vale a pena tentar — admitiu o Capitão Gancho. Assim,

apesar de ser ele o pirata mais sanguinário de todos os Sete Mares e detestar seu amigo Peter Pan mais que a própria Morte, Wendy inclinou-se e beijou a face de Gancho, depois o cobriu com os frangalhos da sobrecasaca vermelha.

— Boa noite, Jaime — disse ela, com sua voz mais maternal. — Bons sonhos.

E deixou-o sozinho, sabendo que a Morte logo chegaria para acalentá-lo em seus braços bondosos e indulgentes.

Peter assistiu a tudo e ficou furioso — de fato furioso, o que causava espanto, considerando-se que não estava mais usando a sobrecasaca vermelha. Suas faces inflamaram-se e ele chamou Wendy de traidora.

— Gancho é o Inimigo! Se você é gentil com meus inimigos, deve ser minha inimiga também!

E fez o gesto de pegar sua espada. Ele não tinha espada, é claro; olhou para os outros, mas eles também não tinham mais espadas, porque os Desengunços tinham tirado todas. Além disso, ninguém iria emprestar uma espada a Peter para ele matar Wendy. Infelizmente, isso não o deteve. A cada hora que passava, voltava-lhe mais um pouco do poder da Imaginação. Portanto, ele simplesmente desembainhou uma espada imaginária e usou-a

— Oh, Peter, não! — para cortar uma porta no ar.— Janelas francesas para mim, por favor! — disse Wendy, com

ar desafiador, e Peter, desconcertado, transformou a porta num par de janelas francesas.

— Wendy Darling, você está sendo banida para a Terra de Lugar Nenhum por prestar socorro ao inimigo! Vá agora!

— Os batentes das portas não estão retos — disse Wendy, e cruzou os braços.

João adiantou-se, pressuroso, e abriu as portas, não porque quisesse ver sua irmã banida, mas porque fora bem educado e sabia que se deve abrir uma porta para uma dama. Os rostos dos Gêmeos revelavam seu intenso sofrimento. Wendy agradeceu polidamente ao irmão e passou pelas janelas francesas de cabeça erguida.

Peter Pan contava que ela fosse pedir perdão e dizer a palavrinha-sem-a-qual-nada-se-faz. Mas agora ela estava do lado de fora, na Terra de Lugar Nenhum, e nem dissera “Desculpe!”. Tentou guardar desajeitadamente na bainha sua espada imaginária e deixou-a cair em cima do pé. E, como não conseguiu pensar em mais nada para fazer naquele momento, fechou as janelas e puxou os trincos, o de cima e o de baixo. Piuí explodiu numa grande choradeira.

Wendy não aparentava estar sendo muito castigada. Nem muito banida, parada de braços cruzados do outro lado das portas.

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— Afastem-se, por favor — disse ela, incisiva, e os meninos recuaram prontamente — até Peter Pan. Então, Wendy abaixou-se, pegou uma grande pedra imaginária e arremessou-a nas imaginárias janelas francesas. Ouviu-se uma tremenda barulheira de vidro quebrado. — Asneira e baboseira! — disse ela, passando por cima dos destroços das vidraças, trincos e fechaduras, tomando cuidado para não rasgar seu vestido feito de bandeira pirata nas pontas quebradas. — Peter, você às vezes é tão boboca!

João nunca ouvira sua irmã dizer nem “asneira” nem “baboseira”, muito menos as duas palavras ao mesmo tempo. Pasmo, boquiaberto, ele limpou um pedacinho de vidro imaginário do cabelo dela.

Wendy saiu na frente, enérgica, pela trilha estreita que deixava para trás a sombra do Monte do Nunca, e os outros a seguiram andando no mesmo ritmo.

— Será que você fez bem, mana? — cochichou o Primeiro Gêmeo, que precisava trotar para acompanhá-la.

— Sem problemas — disse Wendy. — Dobrei os joelhos e mantive as costas retas. Costumo tomar muito cuidado quando levanto pedras grandes.

E não se falou mais nisso.No dia seguinte, Peter Pan já se esquecera completamente da

briga. Ele sempre esquecia direitinho as coisas que não queria lembrar.

Capítulo Vinte e QuatroJuntos outra vez

Como não tinha o poder de voar nem dispunha de um navio

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para navegar, a Companhia de Pan sabia que precisaria atravessar a ilha a pé para alcançar de novo a Floresta do Nunca.

Sem o vôo, sem a poeira de fadas e a companhia de metade da Companhia, parecia mesmo que teriam um longo caminho a percorrer. À espreita, havia Desengunços e ferozes animais feridos, fadas hostis e harpias vorazes, desertos sedentos e piratas de segundo escalão, bruxas, dragões, pântanos e lamaçais imprevisíveis.

Subiam com dificuldade uma colina das mais cansativas, esperando encontrar embaixo a vastidão árida do Deserto da Bocasseca, quando o céu adiante ficou amarelo-ocre com a poeira voando. Uma tempestade de areia, pensaram. Então, chegaram ao alto da colina e, diante de seus olhos, descortinou-se uma visão que nenhum deles jamais esqueceria. Lá embaixo, fluindo em grande número pela chapa quente das areias visionárias do deserto, vinham todos os bisões e cavalos selvagens e travois arrastando a carga e índias e cães bravos e pássaros-do-trovão e tambores e crianças índias e cocares de guerra e cachimbos da paz e tranças de cabelos e bastões de guerra enfeitados e mocassins e arcos e flechas que compunham as Tribos das Oito Nações.

Os sinais de fumaça enviados por Peter do alto do Monte do Nunca não se tinham desmanchado completamente. Agora, tribos vindas do norte, sul, leste, oeste e do outro lugar aproximavam-se com um estrugir de trovoada pelo Deserto da Bocasseca o mais rápido que seus cavalos selvagens e bisões podiam levá-los. Ao avistarem Peter Pan e seus companheiros Exploradores, começaram a bater em seus escudos e em seus tambores e em seus filhos e assim por diante, produzindo um coro triunfal de saudação.

As Tribos ofereceram uma potlatch para a Liga: uma festança que consistia em comer, beber e dar de presente aos homenageados a maior parte de seus pertences. Deram muitas coisas para Peter, Wendy, Piuí, os Gêmeos e João (que ficou numa empolgação além da conta). Infelizmente, porém, por não terem nada com que retribuir, as crianças tiveram de dar de volta aos índios os presentes que tinham acabado de receber.

No banquete que se seguiu, uma linda Princesa veio pintar os rostos deles com as tintas da guerra, comunicando-lhes que daí em diante seriam membros honorários das Oito Nações.

— Olá, Lírio Selvagem — disse Peter. Mas a Princesa olhou para ele com uma cara estranha e disse que se chamava Princesa Agapanto.

— Ah, nunca me lembro dos nomes das pessoas — justificou-se Peter. — Nem dos rostos.

— O que houve com vocês, Gêmeos? — perguntou Piuí. — Só porque tiveram de devolver aquelas facas Bowie...

Mas os Gêmeos não estavam chorando por causa das facas 158

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Bowie. É que acabavam de se lembrar que um dia tinham tomado um ônibus em Putney, adormecido e acordado ambos usando pintura de guerra.

— Será que vamos ver Putney de novo, Wendy? — perguntaram.

Wendy respondeu com o ar mais prático e eficiente que conseguiu:

— Vamos ter de esperar as fadas acabarem de brigar e nossas sombras crescerem outra vez. Vejam só: as suas já estão começando a aparecer.

Os Gêmeos se animaram — e aí, é claro, suas sombras pararam de crescer, o que de certa forma anulou os esforços de Wendy para animá-los.

Viajaram no meio de uma nuvem de pó, com uma escolta de oito Nações (sem falar nos bisões), e atravessaram o Cemitério dos Elefantes, cruzaram o Passo de Tango, as ruínas primitivas da Cidade do Nunca e os Bosques Acadêmicos. Se havia Desengunços ou leões de tocaia, os bisões e travois os achataram na passagem, porque de repente o horizonte surgiu viçoso e verdejante com as árvores da Floresta do Nunca, e as Tribos logo disseram adeus e deslocaram-se em oito direções diferentes — para suas tendas cônicas, cabanas navajos, kivas ou casas compridas comunais iroquesas, casas redondas cerimoniais, bivaques ou paliçadas; e alguns para dormir ao ar livre sob o céu estrelado.

— Onde vamos dormir esta noite? — perguntou Piuí.A Árvore do Nunca ainda se encontrava onde caíra, derrubada

pela tempestade, como se alguém tivesse riscado um traço gigantesco anulando alguma coisa. Todas as suas folhas tinham sido queimadas pelo incêndio. O caminho percorrido para chegarem em casa fora longo, e eles quase esqueceram que a casa não estava no lugar de onde tinham partido.

— Amanhã, podemos todos começar a construir o Forte Pan — anunciou Peter, sem, contudo, responder direito onde iriam dormir.

No final, foi mesmo o Cachorrinho que serviu de cama. Deitou-se de lado e os Exploradores aninharam-se entre as suas patas da frente e de trás, no meio do pêlo comprido. O Cachorrinho não era grande coisa como babá — lambeu-os um pouco antes de dormir, mas esqueceu a escovação dos dentes e as orações da noite.

Secretamente, sentia falta de Deleve, de Cabelinho e daquele interessante homem mastigável que cheirava a ovo, gotas para a tosse e medo. Enquanto a Companhia de Pan contemplava as estrelas, Wendy contou-lhes uma história de fadas sobre um passarinho branco nos Jardins de Kensington. Uma brisa morna soprou pela Floresta do Nunca.

Repentinamente, sem aviso e com um rebuliço que fez todo mundo rolar para cima de todo mundo, o Cachorrinho se levantou.

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Dirigiu-se com seu andar pachorrento para o meio das árvores e só parou quando encontrou a antiga casa subterrânea de Peter. Aí, começou a cavar.

Ora, o Cachorrinho, quando não passava de um cachorro pequeno, caiu certa vez dentro da casa subterrânea e, naquela ocasião, só pensou em sair dali o mais rápido possível. Agora, porém, que media um metro e vinte de altura, tornara-se mais ambicioso. Ouvia e sentia o cheiro do Algo lá embaixo e estava determinado a entrar no velho abrigo. No momento em que os Exploradores chegaram no lugar, o Cachorrinho já havia cavado um buraco tão grande que daria para enterrar a arca do Tesouro nele. João alertou:

— Cuidado, Cachorrinho, você vai cair pelo te...— R

o u

ff! — disse o Cachorrinho (ou alguma coisa parecida) e caiu abruptamente na casa subterrânea onde Peter havia morado antigamente com seus Meninos Perdidos. Agora, o Algo teria de aparecer, fosse ele um texugo, o Slaggoth ou uma trufa gigante, e os viajantes exaustos, petrificados, aguardavam uma visão terrível.

Diversas coisas, na verdade, surgiram do buraco no teto da casa subterrânea, umas mais depressa que outras:

- luz de vela,- latidos,- música (logo interrompida),- ganidos assustados,- barulho de móveis sendo quebrados,- Cachorrinho resfolegando,- ausência de luz de vela,- aquele ruído característico que as pessoas fazem quando o

pescoço delas é lambido no escuro;- em seguida, uma bandeira branca de rendição (que na

realidade era cor-de-rosa e estava amarrada em uma bengala, mas era o único lenço disponível e é difícil distinguir o rosa do branco no escuro).

- então, Mais-Deleve-Ainda- e doutor Cabelinho, DM MCRC,- e Barrica, Primeiro Imediato de Gancho, o mais sanguinário

pirata que já navegou pelos Sete Mares.— Muito bem, Cabelinho! Muito bem, Deleve! Ele é seu

prisioneiro? Vocês o prenderam, é? Lutaram com ele sem arma nenhuma, de mãos vazias? — perguntou João, partindo a bandeira cor-de-rosa de Barrica em cima do joelho.

— Claro que não — disse Deleve, pondo a mesa de volta no lugar. — Ele preparou um chá excelente para nós. Pelo jeito, há anos

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o senhor Barrica está morando aqui. Arrumou tudo e a casa ficou muito aconchegante.

— Então, quer dizer que agora é um esconderijo de bandidos? — perguntou João, esfregando o joelho.

— Acho que é mais uma casa de aposentado — opinou o doutor Cabelinho.

Ninguém pensou duas vezes sobre falar ou não com Deleve ou Cabelinho, apesar de eles serem grandes. (Isso talvez tivesse algo a ver com as janelas francesas quebradas.) Quanto a Barrica, ia de um lado para outro, ocupado e diligente, reacendendo velas e juntando as cadeiras para todos se sentarem.

— Pensei que Gancho tivesse mandado você servir na Grande Guerra — disse Piuí a ele.

— Eu e mais os outros todos, mandou, sim. Os outros... se perderam. E fiquei só eu. Aí, viajei por lá dando palestras sobre a vida a bordo do Terror dos Mares e como Barrica era o único homem que Jaime Gancho temia.

— Acho que cheguei a ver um cartaz a respeito — disse Cabelinho.

— É verdade, senhor Barrica? Que Jaime Gancho tinha medo do senhor?

— Céus, claro que não, garoto! O que a verdade tem a ver com o show business? Mas a gente tem de se arranjar pra viver. No fim, também fui ficando com medo... Que Gancho ouvisse falar e saísse atrás de mim e cortasse a minha língua mentirosa, ou algo assim. Fui um moleirão, admito, mas costumava sonhar com ele se esgueirando para fora daquele Crocodilo e vindo me perseguir, o gancho reluzindo e ele dizendo meu nome com a boca bem torcida: Barricaaa! (Os Exploradores se entreolharam, mas ninguém deu a má notícia a Barrica: que seus sonhos não estavam muito longe da verdade.)

— Me deu um chilique, mandei às favas o circuito de palestras e fui vender produtos de limpeza doméstica de porta em porta. Esfregões. Esponjas Panos de chão, coisas assim. (A casa subterrânea de fato parecia muito limpa e arrumada, além de bem abastecida de esponjas, panos de chão, esfregões e coisas assim.) ...Mas sentia falta deste lugar. Isto é, da Terra do Nunca. — Olhou em torno como se a Terra do Nunca inteira estivesse contida dentro da pequenina toca de paredes de terra onde ele morava. — Por isso, surripiei um carrinho de criança e voltei para cá navegando nele.

— Como, se não é uma criança! — exclamou João, impressionado.

— Não, mas havia uma escassez de piratas aqui, graças a vocês, de modo que consegui uma permissão... Seria capaz de matar por moedas de chocolate: calculo que isso faça de mim quase um

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Menino Perdido.— Mas você não trabalha mais como pirata?— Não... Até que tentei, mas não tinha mais cabeça para isso,

sei lá. Não sem um Capitão, sem um navio. Metido a Besta aparece aqui de vez em quando para tomar rum com bolinhos. Contamos umas lorotas um para o outro. De modo geral, não sinto falta de tanta coisa... apesar de gostar um bocado de talco, e isso não se encontra para comprar aqui na Terra do Nunca. Não com dinheiro de verdade. Bem, nem com dinheiro de chocolate, o que é de espantar!

— Havia um pouco a bordo do Terror dos Mares — disse Wendy.

— Aquilo era pólvora, mocinha. Não é a mesma coisa... Pensando bem, tenho levado uma vidinha calma, desde que cheguei aqui. Isto é, até esta noite. O que esse cachorro horrível de vocês está fazendo agora? Não faço meus paninhos de crochê para um cachorro vir destruí-los! — As crianças tiraram o pano de crochê da boca do Cachorrinho, que o desmanchava com os dentes, lembrando-se do homem mastigável que cheirava a medo. — O senhor Cabelinho e o senhor Deleve estavam me contando alguns momentos emocionantes por que passaram na vinda para cá. Continuem, cavalheiros, por favor!

E assim, apesar da interrupção causada pela queda do teto e da chegada inesperada de Peter Pan & Cia., Cabelinho e Deleve retomaram a sua história.

— Voltávamos do Monte do Nunca, seguindo na direção do recife e pensando em construir uma balsa ou fazer algum sinal para um navio de passagem, não sei ao certo. Ouvimos um barulho de gente correndo e gritando atrás de nós. De início, pensei que estivéssemos sendo perseguidos, mas eles passaram por nós em disparada, como uns possessos — eram Desengunços! — e berrando que leões iam pegá-los, e os ursos! Naturalmente, saímos correndo também, mas esses garotos devem ter mais prática que nós em serem perseguidos, porque logo ficamos na retaguarda. Eles corriam a toda, feito loucos, sem ligar para onde iam, não é, Deleve?

— Gritamos para avisar quando vimos onde eles iriam parar. Mas estavam concentrados demais em correr... direto para o Labirinto das Bruxas!

— Nem vimos os leões, não foi, Deleve?— Não, mas vimos as Bruxas!— Elas caíram em cima dos Desengunços em um piscar de

olhos. Foi horrível!— As mulheres levantavam aqueles rapazes crescidos do chão...

e os apertavam tanto que eles paravam de se debater no mesmo instante! E nós nos escondemos, não foi, Deleve?

— Deveríamos ter tentado salvá-los. Mas nos escondemos. Eu 162

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poderia ter tocado minha clarineta, mas nem tive fôlego para isso.— E aí nos escondemos.— Pois é.Piuí não agüentou esperar:— E as Bruxas COMERAM mesmo os Desengunços? Os dois

demoraram a responder. Estavam revendo na memória a cena horripilante que se desenrolara no Labirinto das Bruxas, em que um por um dos Desengunços fora capturado. Não podiam esquecer os estridentes gritos de triunfo das mulheres, que mergulhavam os rostos nos pescoços, narizes ou orelhas (difícil saber à distância) e a maneira como cada prisioneiro gradualmente parava de lutar e se entregava sem resistência, o corpo mole, nas mãos de suas captoras. Deleve e Cabelinho cobriram os rostos com as mãos e balançaram o corpo, angustiados, arrependidos por não terem feito mais para ajudar.

Barrica, enquanto isso, comia um muffín, um daqueles bolinhos ingleses.

— Pobres coitados — comentou ele, a boca alegremente cheia. — Agora, imagino que vão ter de se submeter a tudo: banhos, cortes de cabelo, beijos; musiquinhas para dormir cantadas por gente mais desafinada que um piano velho. Todas aquelas mochilas escolares, e fricções no peito para curar resfriados e calções de banho feitos de lã, e tias velhas. E tapioca!... mas não entendo por que vocês as chamam de “Bruxas”. Aquelas mulheres não são Bruxas. — Ele remexeu numa caixa de lápis procurando um tubinho de alcaçuz, que limpou com um limpador de cachimbo antes de sugá-lo como se fosse mesmo um cachimbo. Só então notou que os outros o olhavam fixo. — O que foi?

— Mas o lugar se chama Labirinto das Bruxas. É claro que são Bruxas! — disse Piuí.

Barrica deu um risinho de desdém.— Quem contou isso a vocês?— O Capitão G...— O senhor Novello, dono do circo, foi quem nos contou! —

disse João, interrompendo Piuí. E repetiu a triste história das babás despedidas, postas para fora das casas, loucas de ódio e querendo vingar-se das crianças na Terra do Nunca. — Labirinto das Bruxas, era como o chamava. Talvez o senhor se refira a outro lugar.

Barrica mordeu a ponta de seu cachimbo de alcaçuz e mastigou-o até sua saliva ficar preta.

— Lá existem rochas listradas todas escavadas pela água? Fica perto do Recife do Remorso? O seu amigo senhor Novello não entende nada de Bruxas. Não sabe a diferença entre pança e pinça. Aquele é o Labirinto dos Lamentos! Que história é essa de babás? Conversa fiada! Nenhuma criada iria enfrentar a fúria do mar em um carrinho de criança aberto, nem por ódio nem por outra coisa

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qualquer! Ora, ora! Aquelas senhoras são as Inconsoláveis! Ninguém mais se arriscaria numa viagem assim. Elas fazem o que têm de fazer. É o instinto, não conseguem se controlar. Fariam qualquer coisa. Mães são assim mesmo.

Capítulo Vinte e CincoAs Inconsoláveis

Encontravam-se novamente em terreno elevado, o mar uma cintilação distante, a relva rala transformando-se em rocha nua sob seus pés. O Labirinto dos Lamentos e suas rochas em camadas listradas, com cristas em ângulos agudos como se fossem cotovelos, estendia-se diretamente à frente, e de lá vinham sons tristes e uma estranha mistura de velhos perfumes.

— Isso é perigoso — disse Peter Pan.Wendy pousou a mão em sua manga, mas ele se desprendeu,

dizendo:— Ninguém pode tocar em mim.— Mas Deleve e Cabelinho têm de ir para casa — disse Wendy

pela qüinquagésima vez. — São grandes demais para morar em Forte Pan, e não têm o menor jeito para serem Desengunços. Nem piratas. Nem índios peles-vermelhas.

Aquela era a sua única Saída, sua Saída de Emergência da Terra do Nunca: o Labirinto. Naquele lugar, as mães dos Meninos Perdidos passavam anos procurando os bebês que tinham perdido um dia. Nem todos os casos podiam ser atribuídos à negligência das babás. (Muitos pais não dispõem de recursos para pagar uma babá.)

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Mesmo quando são os pais que cuidam deles, muitos bebês se perdem — caem dos carrinhos, são jogados fora junto com a água do banho ou são postos para fora de casa em vez do gato. Enganos acontecem até nas casas mais bem organizadas.

E, quando acontecem, o resultado é sempre o mesmo. Em algum lugar, a mãe faz a mala, empurra o carrinho vazio até o cais do porto local — seja Grimsby, Marselha ou Valparaíso — e faz-se ao mar. Mantendo uma bóia vermelha na proa e uma verde na popa, ela sai à procura de seu menino em um lugar desgastado por milhões de lágrimas. Sem a mágica para entrar pela Terra do Nunca, ela termina aqui, no Labirinto dos Lamentos, e vive dia após dia alimentando-se de sanduíches de ovo com agrião e da esperança de que seu menininho um dia vá aparecer assobiando na próxima curva do Labirinto.

Os Desengunços, quando desembocaram sem querer dentro do Labirinto, foram disputados como pechinchas em uma liquidação. Mulheres descabeladas com olhares desvairados agarraram-nos e examinaram seus rostos procurando traços de família, e seus corpos em busca de marcas de nascença. Jovens que sempre se esforçavam para sequer se encostarem uns nos outros foram afagados, beijados, abraçados — banhados de lágrimas e limpos com lenços rendados. O que Deleve e Cabelinho presenciaram não foi um massacre. Foi um reencontro!

Entre os Desengunços, umas dez mulheres tinham encontrado o que procuravam, e deixaram a Terra do Nunca com seus filhos troncudos e trombudos. Já ao entrar em seus carrinhos de longo curso — todos preparados para navegar em alto-mar — no Recife do Remorso, as mães começavam a dar polimento nos filhos, das boas maneiras às roupas escovadas.

E, fiquem sabendo, toda mãe que procura seu Menino Perdido até o encontrar é capaz de voltar para casa sem se perder. A viagem pode ser longa e perigosa, petroleiros e luxuosos navios de turismo às vezes as atropelam nas rotas marítimas, mas seu instinto de regresso para o lar é tão forte quanto o dos gansos canadenses ou o dos pombos-correio. A casa envia-lhes sinais tal e qual um farol aceso do alto de um penhasco distante. São quase compelidas a chegar lá. Agora era a vez de Deleve e Cabelinho entrarem no Labirinto, e nenhum dos terrores que tinham enfrentado em sua aventura ao Monte do Nunca se comparava com o medo e a tremedeira que sentiam naquele momento. Sendo adultos — Deleve um rapaz de dezoito anos, Cabelinho um médico formado —, não podiam demonstrar seu medo, é claro, e alisavam o cabelo, ajeitavam as golas e davam brilho nos bicos dos sapatos esfregando-os na parte de trás das pernas das calças. (O que era difícil para Deleve, que estava descalço e sem calças. Mas pelo menos sua camisa servia; ao contrário do suéter que Barrica tinha tricotado

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para Cabelinho durante a viagem da Floresta do Nunca para lá.)— Mas nós já temos mãe! — protestou Deleve mais uma vez. —

A senhora Darling nos adotou!— Sim, meu querido, mas antes que Mamãe os adotasse, você e

todos os Meninos Perdidos tinham suas próprias mães... em algum lugar.

— A minha não vai estar aqui — disse Cabelinho, melancólico. — Ela não iria sair à minha procura. Não viria tão longe.

— Viria, sim — disse Wendy, pondo-se nas pontas dos pés para dar um beijo no queixo dele.

— Mesmo que ela não tenha vindo — argumentou Piuí sem pensar —, uma dessas mulheres provavelmente vai pensar que você é filho dela e levá-lo para casa.

— Está bem, então — conformou-se Cabelinho.— É isso, então — concordou Deleve.— Até Londres — despediu-se João.— Até Londres — disse Cabelinho.— Boa viagem — desejou Wendy. — Dê lembranças nossas a

Bicudo.— Não se afoguem — disse Piuí, derramando uma ou duas

lágrimas.Peter deu-lhes as costas e recusou-se a apertar as mãos deles.

Não compreendia como alguém podia querer ir embora da Terra do Nunca. Oferecera-se para tentar fingir que Deleve e Cabelinho tinham voltado a um tamanho tolerável, mas eles haviam preferido ir para aquele lugar. Peter mal podia esperar para voltar à Floresta do Nunca. Havia brincadeiras à sua espera. Pilhas de aventuras. Um forte a ser construído.

— Vão logo — disse ele. — Se têm de ir, vão de uma vez.Cabelinho e Mais-Deleve-Ainda bem que gostariam de ajudar a

construir o Forte Pan. Mas a lembrança das esposas, do trabalho, de Bicudo e dos ônibus de Londres estava efetuando sua mágica nos dois rapazes. Endireitaram os ombros e seguiram em direção ao Labirinto. Cabelinho só se virou uma vez:

— Eu era tão pequeno quando me perderam. Como minha mãe vai me reconhecer? — perguntou, e por um momento pareceu um menino menor que todos os outros ali.

— Ela vai reconhecer você, não se preocupe — disse Wendy. — Com certeza.

Deleve levou a clarineta aos lábios e começou a tocar. Cabelinho foi na frente. Seus amigos ansiosos desceram a colina todos juntos atrás deles para ver o que ia acontecer.

Mulheres atormentadas por anos de desgostos e angústias ergueram as cabeças ao ouvir a música. Piscaram, confusas, ao verem um jovem e um homem adulto, pois pensavam ser aquele um lugar só de crianças, e eram as crianças que ocupavam todos os seus

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pensamentos. Não caíram em cima de Cabelinho, porque ninguém poderia imaginar... ninguém estava esperando... uma pessoa assim. Ele distribuiu apertos de mão. As mulheres se ajeitaram e prenderam mechas soltas de cabelo, umas até ensaiaram uma mesura. Acalmadas pela música e apanhadas de surpresa, deixaram Cabelinho falar, e as crianças, de longe, viam-no explicando, descrevendo, apontando para a direção de onde viera.

A certa altura, ele deve ter mencionado seu nome, pois através da aglomeração cada vez maior de mães veio uma mulher, investindo como um cavalo nadando em águas profundas, esticando o pescoço ou abaixando a cabeça para ao menos entrevê-lo, abrindo caminho. Tranças que por trinta anos tinham se mantido meticulosamente enroladas soltaram-se e ela colidiu de frente com Cabelinho. A Liga de Pan fechou os olhos... e quando os reabriu, Cabelinho ajudava sua mãe a prender o cabelo.

Deleve levantou os olhos de uma mudança de tom especialmente difícil na clarineta e deu com uma mulher magra, com dedos magros e compridos e um rosto magro de artista olhando para ele.

— Você não levou isto, meu querido — disse ela —, quando se perdeu. — E mostrou-lhe um chocalho de bebê com sininhos nas duas pontas.

Nesse instante, as canções de Deleve — as que ele guardava na cabeça, as que havia na clarineta e as que existiam em seu coração — todas se afinaram em Dó Maior.

Foi aí que os Gêmeos se distanciaram um pouco dos outros, chegaram perto demais do Labirinto e escutaram alguém chamando:

— Marmaduque? Bínqui?Se vocês pensaram que os dois irmãos realmente se chamavam

Primeiro Gêmeo e Segundo Gêmeo desde que nasceram, é possível que tomem um susto. Mas não. Juro, eles foram perdidos quando eram tão pequenos que seus nomes não passavam de uma lembrança apagada. No entanto, quando sua mãe — as mãos ainda sujas de massa, o cabelo empoeirado de farinha — veio correndo e olhando e piscando e chorando e rindo e precipitando-se para eles — Marmaduque? Bínqui? — eles se lembraram muito bem. Marmaduque e Bínqui. Ah, bem. Todo mundo comete erros. Felizmente, os Gêmeos gostaram dos nomes como ninguém mais poderia gostar, e consideraram-se os meninos mais sortudos do mundo. Porque agora eles tinham duas mães! A senhora Darling sempre seria a mãe de verdade, porque ela os adotara quando eram Meninos Perdidos, e os criara, e os deixara lamber a tigela do bolo, e dar banho no cachorro com xampu, e ir dormir com pintura de guerra no rosto e viajar no andar de cima dos ônibus... Mas ali estava uma NOVA mãe de muito tempo atrás — a que lhes dera os dois melhores nomes do mundo. Wendy virou-se para Piuí.

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— Você também poderia ir para casa desse mesmo jeito, sabia, Princesa?

Piuí sacudiu a cabeça, determinada.— Não vou embora nunca! — declarou. — Vou ficar aqui para

sempre e brincar de casamento com Peter!Uma raposa dentro de um galinheiro não teria causado maior

tumulto. Wendy olhou para Peter, Peter olhou para Wendy, e havia pânico de verdade nos olhos dele.

— Piuí! Você sabe muito bem que tem uma família esperando por você em Grimswater — alertou João. Mas, lamentavelmente, Piuí esquecera-se por completo de Grimswater, do Clube dos Cavalheiros e que era um juiz da Suprema Corte.

— Vou ser Piuí Pan, e Peter vai colher flores para mim, e levantar os pés quando eu varrer o chão, e vou dizer aos pequenos: “Você vai ver só quando seu pai chegar em casa!”

Por alguma razão -— não sei qual — Wendy escolheu esse exato momento para irromper pelo Labirinto adentro gritando:

— Piuí! Tem uma Piuí aqui! Alguém perdeu uma Piuí?Um homem com o rosto da cor de couro marroquim, usando

uma peruca toda cacheada de advogado e trazendo um livro imenso debaixo do braço, saiu de trás de uma pedra. Sacudiu um dedo em riste para ela, severo:

— Não seja ridícula, mocinha! — disse, estudando Wendy de cima a baixo. — Está tentando se fazer passar por meu filho Piuí? Absurdo! Despautério! — Entretanto, quando ia abrindo o livro para ver qual a lei que Wendy infringira, avistou a Princesa Piuí, amarrando as fitas de cetim de suas sapatilhas de balé e praticando seu plié. — Arrá! Aí está você, filho — disse, rabugento, sem duvidar um segundo. — Já estava na hora! — E então, em um rompante de alegria incontrolável, tirou sua peruca de juiz, jogou-a para cima e dançou ali mesmo uns passinhos Saltitantes de uma giga.

— Pais, também — murmurou Barrica. — Quem diria!Sentada nos ombros do pai e usando a peruca dele, Piuí se foi

sem ao menos espiar para trás.Wendy olhou para Peter, Peter olhou para Wendy, e havia um

grande MUITO OBRIGADO escrito nos olhos dele.— Podemos ir também, Mana? — perguntou João, contagiado

por toda aquela felicidade. Uma estranha forma de contágio, que fazia seu pescoço doer embaixo do queixo, como se tivesse caxumba. Começou a olhar para um e outro lado, em busca de uma mãe que o escolhesse.

Wendy também sentia o coração apertado pela vontade de ir para casa ver sua filha Jane. Mas sabia que aquela não era a sua Saída de Emergência da Terra do Nunca.

— Não há ninguém aqui à nossa procura, João. Nunca fomos Perdidos, lembra? Voamos para a Terra do Nunca por nossa própria

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vontade, e voltamos para casa antes que nossa mãe atravessasse o mar para vir nos procurar.

Reparou, porém, que João continuava procurando com os olhos, ainda imaginando como seria a vida com outra mãe, uma mãe diferente, aquela com o cabelo louro, por exemplo, ou aquela de cabelos vermelhos.

— Vamos ficar aqui, João, até nossas sombras crescerem outra vez... e as fadas deixarem de ser idiotas e podermos pedir poeira de fadas a elas... e o Forte Pan ser construído.

— Ótimo — disse Peter, com ar decidido. — Não me importo que vocês fiquem. Vocês sabem brincar direito.

— Nada que os impeça de vir comigo! — disse Barrica, entrando na conversa e aproximando-se com suas pernas arqueadas de marinheiro. — Estou precisado de uma tripulação para a viagem de volta para casa! Acho que vou fazer uma visita ao nosso velho país, agora que tenho uma mãe a bordo para me dar sorte.

Baixinho como era, Barrica conseguira arranjar alguém ainda menor que ele para lhe dar o braço: uma senhora idosa minúscula, de cabelos brancos como neve e um sorriso angelical.

Wendy bateu palmas de alegria.— Ah, que maravilha! Essa é sua mãe, Barrica? Barrica falou

escondendo a boca com a mão.— Que nada. Surripiei ela também... Mas ela não enxerga

quase nada, por isso jamais vai notar. E está bem contente comigo... Então, quem mais vai, hein? Animem-se! Todos a bordo do Pato dos Mares, rumo ao Serpentine, com escala em Kirriemuir!

Todos os carrinhos de bebê que enlanguesciam de tristeza nas pedras do Recife do Remorso foram amarrados uns aos outros e formaram uma imensa balsa. Como ovos naquelas caixas de ovos dos mercados, todos os que iam para casa se espremeram dentro dos compartimentos ocos. Até o Cachorrinho. E todos couberam.

Encontrar lugar para tanta felicidade era o único problema.Wendy foi a última a ficar na praia.— Venha conosco, Peter! — exclamou ela de repente,

segurando-lhe a mão. — Ah, por favor, venha conosco! Conheço um lugar onde se pode encontrar fadas! E, quando sua sombra crescer de novo, você pode voar de volta para cá e...

Com um gesto brusco, Peter soltou a mão.— Não ando por aí com gente grande — resmungou, dando as

costas ao bom navio Pato dos Mares.Wendy pegou a outra mão dele e puxou-o para um lado.— Tenho um cochicho para você — disse ela.— Isso é igual a um dedal?De certa forma, era. Fez o cabelo de Peter se arrepiar e ele

sentir cócegas no pescoço, e ele queria— e não queria — afastar a cabeça enquanto Wendy cochichava

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em seu ouvido.— Andei pensando... — cochichou ela.— Você não quer brincar de Casamento, quer?— esganiçou-se Peter, num pânico escancarado.Wendy fez uma cara desolada.— Peter, vamos supor que a sua mãe...O rosto de Peter fechou-se como as cortinas de uma janela.— Não.— Mas, Peter! Suponha que ela seja igual a todas essas aí: que

ainda espera ver você um dia! Talvez ela até...Mas a boca delicada de Peter endureceu em uma linha reta e

ele pôs os dedos nos ouvidos. Uma vez, voara para casa e encontrara a janela de seu quarto fechada e trancada. E um outro menino dormindo em sua cama. Recusava-se a escutar qualquer coisa boa a respeito de mães.

Os carrinhos de bebê, livres das rochas, sentiram o puxão muito distante do Rochedo MagNeto, e o Pato dos Mares começou a mover-se para o mar. João e Cabelinho e Deleve e Barrica, todos gritaram para Wendy:

— Venha, venha para bordo depressa! Não fique para trás!Por um instante, ela achou que não poderia deixá-lo — seu

amiguinho Peter, tão selvagem e frágil e lindo como uma folha de outono soprada pelo vento. Achou que não agüentaria perder todas as brincadeiras que os esperavam, todas as aventuras que se estavam empilhando. Deu-se conta de que nem sabia onde iria ser construído o Forte Pan — no alto das árvores, projetando-se dos penhascos íngremes ou sobre estacas dentro da água da Lagoa.

No fundo de seu coração, porém, a menina Wendy era uma pessoa adulta (da mesma forma que todos os adultos, no fundo, são crianças). O amor por sua família a estava puxando para casa, tal e qual fazia o distante Rochedo MagNeto. Quando parecia que o espaço entre a balsa e as pedras ficara grande demais até para o salto de um acrobata de circo, Wendy Darling pulou do Recife do Remorso e caiu ao lado de seu irmão, a bordo do bom navio Pato dos Mares.

Sob o comando de Barrica, todas as capotas dos carrinhos foram levantadas para pegar o vento, e a balsa atravessou as ondas rumo à barra. Ocorreu-lhe subitamente mais uma idéia, e Wendy levantou-se com um movimento abrupto, fazendo a balsa balançar e os passageiros se assustarem. Wendy gritou para o menino na praia:

— Acho que sua mãe só fechou a janela para não deixar entrar o NEVOEIRO!

Ela viu Peter levantar as mãos para cobrir as orelhas, mas não deu tempo. Seus dedos curvaram-se, as mãos fecharam-se com força, como se ele tivesse apanhado no ar as palavras dela — apanhado e escutado, gostando ou não. Wendy acenou e continuou

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acenando até os reflexos ofuscantes da água turvarem sua vista.Peter acompanhou com o olhar a balsa navegar para a barra —

acompanhou-a até ela desaparecer em meio aos reflexos ofuscantes da água. Quando se virou, com um saltito e um pulo, para iniciar sua longa caminhada de volta à Floresta do Nunca, surpreendeu-se ao dar com um pedacinho de sombra recém-crescida abrindo-se como um babado em torno de seus pés. Não havia tempo para se perguntar que tristezas teriam-na feito crescer outra vez. As brincadeiras o esperavam. E pilhas cada vez maiores de aventuras.

Enquanto isso, não muito longe dali, um velho inimigo seu estava deitado no chão. E tão imóvel que qualquer um acharia que tinha morrido.

Apesar de seus ferimentos, porém, Novello não morrera. Pela primeira vez em vinte anos, com seu segundo melhor casaco servindo-lhe de cobertor e o beijo de Wendy no rosto, Novello dormiu — um sono mais profundo que a Lagoa. O sono cura tudo, é o que as pessoas vivem dizendo.

Sonhou com rochas em camadas listradas com cristas em ângulos agudos como se fossem cotovelos, escavadas em forma de calhas por um milhão de lágrimas e, no alto de uma dessas cristas, havia uma mulher, com uma saia de listras em farrapos drapeada atrás e um longo e elegante pescoço de cisne. Tendo sido bela um dia, agora parecia uma estátua de praça pública desgastada pelo vento e pelo mau tempo. E tinha um rosto triste, muito triste, e os olhos vagavam de um lado para outro, à procura de algo ou de alguém. Com uma voz de cristal, ela chamava sem parar:

— Jaime! Jaime? Onde está você, Jaime?Novello dormia. O sono cura tudo; as pessoas não estão

mentindo quando o dizem. Novello dormia. E sua pelagem gordurenta, esfrangalhada por cão, doutor e espinhos de árvores... se refez. A lã desfiada, esfiapada e sem cor recompôs-se em carne e pano e cabelo. Os cachos brilhantes voltaram. As cicatrizes alisaram-se. Até a cor dos olhos dele percorreu o espectro das cores e passou do castanho-escuro para um azul muito vivo.

O que, ao contrário, se desfez foi o nome macio que ele havia escolhido: Novello — expondo a dureza aguçada do nome antigo: Gancho.

Vinte dias depois, quando o homem acordou, foi Jaime Gancho quem se sentou e amaldiçoou a dureza do chão; foi Jaime Gancho quem apertou ao peito a Taça da Escola num fervoroso êxtase; foi Jaime Gancho quem se norteou pela bússola de metal que era o seu próprio coração; foi Jaime Gancho quem enfiou os braços nas mangas da sobrecasaca escarlate.

A roupa ficou bem nele.E ele ficou sendo a roupa.Roupas costumam ter esse poder.

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Mas quando Gancho viu de relance suas botas sem brilho feitas de pele de crocodilo, o Passado voltou: um pesadelo relembrado.

— Prepare-se, cocoricó! — As palavras saíram-lhe com o calor de uma fornalha acesa. — Será doce a vingança, e fria, quando nos reencontrarmos um dia. Prepare-se, Peter Pan!

Epílogo

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Vocês acertaram em cheio. Houve muito o que explicar na volta para casa. Imaginem a surpresa da mãe dos Gêmeos quando ambos lhe deram a mão, cada um de um lado, e levaram-na para casa em Chertsey. Imaginem o espanto dela quando eles pegaram a chave da porta da frente e entraram, dizendo:

— Olá, Papai chegou!Imaginem o que ela disse quando os viu trocarem de roupa com

os filhos pequenos e crescerem — Valha-me, Deus! —, voltando a ser homens adultos.

Os filhos deles também tinham algo a dizer sobre o assunto:— Você levou meu uniforme da escola! Deu a maior confusão!— Devia ter levado meu pijaminha verde em vez do vermelo! O

vermelo é o meu perdileto!— Minhas sapatilhas de balé estão sujas de lama?! — (Isso foi

na casa de Piuí.)— Esta é a minha melhor camisa de rugby! — (Na casa de

Cabelinho.) — E:— Ah, Papai! Você fez o Cachorrinho crescer! Na casa de

Bicudo, ele pôs os filhos no colo e disse para os visitantes:— Contem para nós, contem tudo o que aconteceu lá.Vocês podem pensar que as mães do Labirinto se sentiram

lesadas ao verem seus Meninos Perdidos crescerem de repente e surgirem como homens formados, mas não, isso não aconteceu. É muito melhor reencontrar um Filho Perdido, seja de que idade for, do que jamais reencontrá-lo.

Deleve, que não tinha mulher nem filhos para quem voltar, permaneceu como estava: com dezoito anos. Nem ao menos contou à sua mãe da Terra do Nunca que era um baronete, para não se arriscar a vê-la comprar um livro de etiqueta e obrigá-lo a se comportar de acordo. Apenas uma vez, deu uma fugidinha àquele clube de jazz para tocar clarineta. Quando as luzes se apagaram, porém, e o holofote brilhou em cima dele, descobriu que não podia mais tocar blues porque estava feliz demais. E foi tocar clarineta em uma orquestra de dança.

Quanto a Wendy e João, eles juntaram todos os refugos daqueles sonhos perturbadores — os chapéus e flechas e sabres e pistolas e ganchos — e deram tudo para o Barrica, que abriu uma loja em Kensington para vender suvenires da Terra do Nunca. Claro que ninguém acreditava que o lugar existisse — exceto as crianças que compravam os suvenires.

E, ao longo do tempo, Wendy contou tudo a Jane, naturalmente. Uma lembrança aqui, uma aventura ali. Jane pensava que estava escutando histórias que as mães contam para os filhos na hora de dormir; quando as recontava para Wendy, a menina mudava pedaços de que não gostava e acrescentava coisas que não tinham

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acontecido; Wendy nada dizia. Achava lindo escutar aquelas palavras reboando pelo quarto outra vez: “Terra do Nunca”, “Peter” e “Cocó-ró-cocó-róó!” (que era o melhor cocoricó que Jane sabia dar).

Talvez o que aconteceu à Terra do Nunca não tenha sido por culpa de Gancho, afinal. Ah, ele iria adorar que vocês pensassem que foi. Mas talvez não tenha sido o vidrinho do Mal guardado no bolso da camisa dele que vazou e envenenou a Terra do Nunca. Quem sabe, fragmentos que voaram da Grande Guerra — de granadas, de bombas e coisas assim — tenham aberto furos no tecido que separa a Terra do Nunca deste mundo. Os sonhos vazaram para fora pelos buracos; as sujeiras de gente grande vazaram para dentro. E foi quando as Terras do Verão se deterioraram. Durante alguns tique-taques, o Tempo andou para frente no lugar onde o Tempo nunca anda, e o verão transformou-se em outono, e as correntes de ar insinuaram-se, malignas, e as amizades esfriaram.

Qualquer que lenha sido a causa, isso não durou.Sabem o jeito como as manchas roxas desaparecem? Primeiro

ficam negras, depois arroxeadas, depois azul-esverdeadas e por fim amarelas? Bem, a Terra do Nunca também se curou assim aos poucos. A neve derreteu e irrigou o Deserto da Bocasseca. As fontes transbordaram e encheram novamente os rios. A Floresta do Nunca queimada rebrotou. Finalmente, o sol amarelo saiu e se demorou no céu — às vezes, por dias a fio, porque estava se divertindo demais para ir dormir. A Lagoa faiscava, cheia de peixes, sol e sereias. Os vilões voltaram a ancorar ali os seus navios. Meninas e Meninos Perdidos seguiam para o Forte Pan.

As mães vinham procurá-los (é claro).As Tribos organizavam festas potlatch e davam de presente

tudo o que lhes pertencia — e até uma porção de coisas que não lhes pertenciam — só por prazer. As fadas fizeram uma trégua, embora bandos de dândis22 saqueadores, ainda durante muito tempo, tenham saído rasgando os arco-íris das cachoeiras para confeccionar túnicas. Mas não importa: as cachoeiras também cicatrizaram.

De mãos dadas e com muita briga, Sininho e Pirilampo impuseram suas vontades aqui, ali e acolá na Terra do Nunca, inventando novas cores, jogando xadrez chinês com as estrelas e comendo os joelhos das palavras que tivessem muitas letras para ficar mais fácil escrevê-las. Abriram juntos um negócio, vendendo sonhos para os Desengunços e os piratas em troca de fivelas de cintos e botões. Era um setor de trabalho meio perigoso — sobretudo a captura dos sonhos, com um fio esticado no chão para fazê-los tropeçar e uma rede —, mas a fada e o elfo estavam tão felizes que decidiram não serem mortos durante pelo menos uns 22 Do inglês “dandy”, pessoa que se preocupa demais com sua aparência. (Nota da Editora.)

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cem anos.Quanto a Peter Pan, sua sombra levou um tempo enorme para

crescer inteira outra vez porque ele raramente ficava triste. Só quando pensava em Wendy e nos outros é que mais um pedacinho de sombra escura aparecia atrás dele — uma perna, uma cintura fina, o braço de segurar a espada... Por isso, ele ficou confinado à Terra do Nunca, sem poder voar, e os Darlings não o viram de um verão ao outro.

Não se preocupem, porém. A sombra dele está completa hoje em dia. Ele pode voar para tão longe e tão alto quanto quiser — mais depressa que um lampejo de sonho na sua cabeça — mais longe até que lugares afastados como Fotheringdene e Grimswater.

Nunca perdeu aquela feia mania de escutar às escondidas. Portanto, talvez não tenha sido o barulho farfalhante das páginas sendo viradas o que você ouviu enquanto esta história durou, mas o próprio Peter Pan, escutando. Em troca de uma história contada por você, ele pode lhe mostrar seu bem mais valioso: o mapa da Terra do Nunca que pertenceu a Jaime Gancho.

Em troca de um sorriso, pode lhe mostrar a própria Terra do Nunca.

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Digitalização/Revisão: Yuna

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