GIANETTI, Eduardo. Auto-Engano

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  • Sobre a Obra: Este um livro sobre as mentiras que contamos a ns mesmos. Mentimos para

    ns o tempo todo: adiantamos o despertador para no perder a hora, acreditamos nas juras da pessoa amada, s levamos realmente a srio os argumentos que sustentam nossas crenas. Alm disso, temos a nosso prprio respeito uma opinio que quase nunca coincide com a extenso de nossos defeitos e qualidades. Sem o auto-engano, a vida seria excessivamente dolorosa e desprovida de encanto. Abandonados a ele, entretanto, perdemos a dimenso que nos rene s outras pessoas e possibilita a convivncia social.O problema que as mentiras que nos contamos no trazem seu nome verdadeiro estampado na fronte. preciso, por isso, analisar os caminhos que nos levam at elas: encontraremos a a origem de grandes conquistas e alegrias, mas tambm dos sofrimentos que muitas vezes causamos a ns mesmos e s pessoas que nos cercam.

    Sobre a Digitalizao desta Obra:

    Esta obra foi digitalizada para proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefcio de sua leitura queles que no podem compr-la ou queles que necessitam de meios eletrnicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-livro ou mesmo a sua troca por qualquer contraprestao totalmente condenvel em qualquer circunstncia. A generosidade a marca da distribuio, portanto:

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    Para Alice

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    EEdduuaarrddoo GGiiaannnneettttii

    OOBBRR

  • PREFCIO E AGRADECIMENTOS

    Quem somos? Por que acreditamos no que acreditamos? Como viver? Os problemas essenciais da existncia e da realizao humanas no respeitam fronteiras acadmicas e convenes catalogrficas. O saber especializado avana, o mistrio e a perplexidade se adensam. Eliminar falsas respostas mais fcil do que enfrentar as verdadeiras questes. O que afinal sabemos sobre ns mesmos? A racionalidade orienta mas no move; a cincia ilumina mas no sacia; o progresso tecnolgico acelera o tempo e abre o leque mas no delibera rumos nem escolhe os fins. O universo subjetivo no qual vivemos imersos to real quanto o mundo objetivo no qual trabalhamos e agimos. A relao mais ntima, traioeira e definidora de um ser humano a que ele trava consigo mesmo.

    Este livro aborda a questo do auto-engano a partir de quatro ngulos distintos e complementares. O primeiro a identificao do fenmeno: o que o auto-engano e no que ele difere da ao de enganar o outro? Outra vertente de anlise trata da explicao de sua existncia. Por que o auto-conhecimento um desafio to difcil para o ser humano e quais as motivaes bsicas alimentando a nossa propenso espontnea ao auto-engano? O terceiro ngulo de abordagem de natureza lgica: como possvel para uma mesma pessoa enganar-se a si prpria? Como nos desincumbimos de proezas

    como crer no que no cremos, mentir para ns mesmos e acreditar na mentira ou remar de costas rumo a um objetivo? Finalmente, a questo do auto-engano discutida a partir de um ponto de vista tico. Qual o lugar e o valor do auto-engano na vida prtica, tanto sob a tica dos projetos, desejos e aspiraes de cada indivduo em particular (tica pessoal) como na perspectiva mais ampla da nossa convivncia em sociedades complexas (tica cvica)?

    Esses quatro conjuntos de questes sobre o tema comum do auto-engano definem, com uma nica exceo apenas, a estrutura e a seqncia do livro. O captulo l dedicado anlise do repertrio do engano no mundo natural, caracterizao do auto-engano como fenmeno singularmente humano e descrio de suas principais modalidades de ocorrncia. O porqu e o como do auto-engano so tratados nos dois captulos seguintes. Enquanto o captulo 2 tem como foco principal a precariedade do auto-conhecimento e os fatores subjacentes nossa inclinao ao auto-engano, o captulo 3 aborda a lgica paradoxal do fenmeno e busca elucidar os meandros do prometer auto-enganado no amor e na poltica em particular. No captulo 4, que arremata o livro, discuto as implicaes do auto-engano para a interao humana em sociedade e o papel das regras impessoais da tica cvica na moderao e preveno dos seus piores efeitos.

    A grande exceo a questo que no se enquadra na seqncia temtica acima descrita a discusso do auto-engano na perspectiva da tica pessoal. A razo simples. O tema da relao entre auto-engano, formao de crenas, motivao e comportamento individual o nico que no aparece confinado a algum captulo especfico do livro porque ele precisamente o fio condutor o eixo temtico estrutural que une, costura e atravessa o argumento do incio ao fim do trabalho. Do elogio do auto-engano no primeiro captulo (sees 5 a 7) discusso da explorao intertemporal de uma pessoa por ela mesma no ltimo (seo 5), passando pela epistemologia do auto-conhecimento e a lgica do auto-engano nos dois captulos intermedirios, so as questes da tica pessoal que conferem unidade e definem a orientao bsica do livro como um todo.

    Cada indivduo um microcosmo: um todo complexo de foras contraditrias e apenas parcialmente ciente de si mesmo. Por motivos que busco examinar em detalhe no livro, as perguntas da tica pessoal quem sou? o que pretendo fazer de minha vida? como viver melhor individual e coletivamente? revelam-se especialmente escorregadias e vulnerveis ao do vasto repertrio das tergiversaes especiosas da mente humana. Se a propenso ao auto-engano com freqncia uma maldio, essa maldio parece ser tambm a fonte secreta e inigualvel das apostas no impondervel das quais dependem no s as maiores realizaes criativas da humanidade como a esperana selvagem e inexplicvel que nos alimenta,

  • impulsiona e sustenta em nossas vidas. Mapear, analisar, ilustrar e discutir as implicaes ticas do auto-engano na vida pblica e privada, tendo a formao de crenas, as pulses e a conduta individual como focos privilegiados da investigao, so os objetivos centrais deste livro.

    Um trabalho como este inevitavelmente exploratrio e incompleto. Do auto-engano pode-se dizer o que disseram Scrates do bem e da virtude e Agostinho do tempo: todos nos imaginamos familiarizados com ele, mas somos incapazes de entend-lo de forma clara e satisfatria. Pior que o simples desconhecimento, contudo, a ignorncia potenciada de uma falsa certeza o acreditar convicto de quem est seguro de que sabe o que desconhece. Abrir-se dvida radical possibilidade de que estejamos seriamente enganados sobre ns mesmos e sobre as crenas, paixes e valores que nos governam abrir-se oportunidade de rever e avanar. ousar saber quem se para poder repensar a vida e tornar-se quem se pode ser.

    A filosofia analtica do auto-engano de certo modo o avesso da teraputica exortatria da auto-ajuda. Nada mais longe do propsito deste livro do que a pretenso de "curar", converter ou convencer a mudar quem quer que seja. No acredito na eficcia de homlias e "curas" em cpsulas andinas de auto-ajuda, assim como sou ctico acerca da possibilidade de alguma forma de "regenerao" por meio de convencimento moral. Creio, porm, na fora do desejo de cada ser humano de fazer de sua vida o melhor de que capaz ; e creio no princpio socrtico de que o auto-conhecimento uma viso clara e crtica dos valores e crenas que regem a nossa existncia parte indispensvel da melhor vida ao nosso alcance. Espero que o esforo prospectivo, a inteno por vezes francamente provocadora e as inumerveis perplexidades deste livro possam de algum modo contribuir no para reduzir a freqncia dos nossos auto-enganos, mas para torn-los menos nocivos e mais profcuos.

    A leitura de um texto a ocasio de um encontro. Quando o teor do trabalho predominantemente tcnico ou factual, os termos da troca entre autor e leitor tendem a ser claros e bem definidos: o que um oferece e o outro busca na leitura so informaes relevantes e ferramentas para a obteno de novos resultados. O contato entre as mentes de superfcie e o grau de assimilao dos contedos mensurvel.

    Mas quando se trata de um texto literrio ou filosfico de contedo essencialmente reflexivo, como o caso aqui, a natureza da relao mediada pela palavra impressa outra. Mais que uma simples troca intelectual entre autor e leitor, a leitura o enredo de dois solilquios silenciosos e separados no tempo: o dilogo interno do autor com ele mesmo enquanto concebe e escreve o que lhe vai pela mente absorta; e o dilogo interno do leitor consigo prprio enquanto l, interpreta, assimila e recorda o que leu.

    Como algum que passa boa parte do seu tempo lendo e investigando o destino das idias alheias (sou pesquisador na rea de histria das idias), nunca me canso de perguntar a mim mesmo: onde estamos, o que procuramos e no que pensamos enquanto lemos? O depoimento do leitor Fernando Pessoa representa o ponto extremo de uma experincia que, em graus variveis de intensidade, provavelmente comum a todos. "Embora tenha sido um leitor voraz e ardente", relata o poeta, "no me recordo de nenhum livro que tenha lido, a tal ponto eram minhas leituras estados de minha prpria mente, sonhos meus, e mais ainda provocaes de sonhos."

    Ler recriar. A palavra final no dada por quem a escreve, mas por quem a l. O dilogo interno do autor a semente que frutifica (ou definha) no dilogo interno do leitor. A aposta recproca, o resultado imprevisvel. Entendimento absoluto no h. Um mal-entendido o folhear aleatrio e absorto de um texto que acidentalmente nos cai nas mos pode ser o incio de algo mais criativo e valioso do que uma leitura reta, porm burocrtica e maquinai.

    "Autores so atores, livros so teatros." A verdadeira trama a que transcorre na mente do leitor-interlocutor. A ocasio da leitura, no menos que a da criao literria, pode ser o momento para um encontro sereno, amistoso e concentrado algo cada vez mais raro e difcil, ao que parece, hoje em dia com a nossa prpria subjetividade.

    No dilogo interno do qual resultou este livro procurei acima de tudo ser fiel a mim

  • mesmo. Na prtica isso significou aceitar o desafio de pensar diretamente e por minha conta e risco o problema do auto-engano, em vez de esconder-me sob o manto protetor do que Mrio de Andrade batizou certa feita, referindo-se a um verdadeiro vcio ocupacional do intelectual brasileiro, de "exposio sedentria de doutrinas alheias". Da a opo de escrever um livro que no pressupe nenhum tipo de conhecimento prvio especializado e da o empenho em buscar evitar ao mximo a tentao de entremear o argumento desenvolvido no corpo principal do trabalho com citaes e digresses eruditas. Como a carne, porm, muitas vezes fraca, servi-me copiosamente das notas ao final do livro para dar vazo incontinncia do historiador de idias.

    O importante, entretanto, frisar que a leitura do texto principal prescinde inteiramente da consulta s notas e referncias que se encontram no final do volume. O uso das notas portanto facultativo e depende apenas do interesse especfico do leitor por algum ponto abordado no trabalho. Talvez o melhor a fazer durante a leitura, a fim de preservar a fluncia do texto e o fio do enredo, seja simplesmente ignorar e esquecer que as notas existem. As tradues so todas de minha autoria, exceto quando referem-se a obras cuja traduo para o portugus constam da bibliografia.

    A composio de um livro a ocasio de novos encontros. Com a exceo do prefcio e das notas, este livro foi integralmente escrito durante quatro estadias de um ms cada na pousada Solar da Ponte, situada na cidade histrica mineira de Tiradentes. Quando para l parti pela primeira vez, no incio de 1996, buscando o recolhimento e a solido necessrios para concentrar-me na redao do livro, no sabia como reagiria e o que poderia encontrar do outro lado. A experincia, felizmente, superou as minhas melhores expectativas. Na atmosfera serena e acolhedora da pousada uma pequena obra de arte incrustrada no encantador cenrio tiradentino encontrei o ambiente ideal que buscava para a realizao do trabalho. A John e Anna Maria Parsons e a todo o pessoal do Solar Suzana, Mrcio, Ins, Pedro, Marlene, Bete, Maz e Silo desejo expressar a minha sincera gratido pela generosa e cordial hospitalidade com que me receberam. De minha parte, fica a saudade e a esperana de poder reviver no futuro dias de mstica alegria e calma plenitude como os que tive a sorte de poder usufruir em Tiradentes.

    Diversas pessoas leram e comentaram, verbalmente e/ou por escrito, algum dos diversos rascunhos preparatrios do livro. Ciente de que seria impossvel lembrar de todos que, direta ou indiretamente, contriburam para melhorar o argumento, fazer novas leituras, evitar obscuridades e persistir na execuo do trabalho, gostaria de agradecer a: Cleber Aquino, Prsio rida, Ana Maria Bianchi, Carlos Alberto Primo Braga, Antnio Cicero, Ren Decol, Angus Foster, Norman Gall, Carlos Alberto Inada, Clia de Andrade Lessa, Luiz Alberto Machado, Juan Moldau, Vernica de Oliveira, Nilson Vieira Oliveira, Antnio Delfim Netto, Samuel Pessoa, Celso Pinto, Horcio Piva, Rui Proena, Jos Maria Rodriguez Ramos, Bernardo Ricupero, Carlos Antnio Rocca, Jorge Sabbaga, Pedro Moreira Salles, Luiz Schwarcz, Marcelo Tsuji, Caetano Veloso e Andra Cury Waslander.

    Verses preliminares dos trs primeiros captulos foram apresentadas e debatidas em seminrios acadmicos no Instituto de Pesquisas Econmicas da Faculdade de Economia, Administrao e Contabilidade da Universidade de So Paulo. Agradeo aos alunos de ps-graduao e aos demais participantes desses seminrios pelo interesse e pelas perguntas e comentrios feitos, alguns dos quais foram depois incorporados no trabalho.

    Gostaria, ainda, de fazer um agradecimento especial a quatro grandes amigos Marcos Pompia, Maria Ceclia Gomes dos Reis (Quilha), Luiz Fernando Ramos (Nando) e Tal Goldfajn que participaram calorosa e ativamente de minhas incurses pelos caminhos e subterrneos do auto-engano. Mais do que ningum, eles foram os interlocutores com quem tive a oportunidade de dialogar de forma exaustiva, fecunda e quase ininterrupta sobre as idias, pistas, indagaes e perplexidades que vinha trabalhando no livro.

    Este livro dedicado a minha me Yone, poeta e psicanalista. Foi a forma que encontrei para tentar transmitir no apenas a ela, mas aos demais membros da famlia, a gratido que sinto

  • pelo privilgio de nossa convivncia durante todos esses anos.

  • 1. A NATUREZA E O VALOR DO AUTO-ENGANO

    1. A ARTE DO ENGANO NO MUNDO NATURAL PRINCPIOS

    A natureza submete tudo o que vive ao jugo de duas exigncias fatais: manter-se vivo e reproduzir a vida. Nada escapa. Do protozorio unicelular ao autodesignado Homo sapiens, a preservao do indivduo e a perpetuao da espcie constituem o mnimo denominador comum da subsistncia biolgica.' Por que assim, ningum sabe. O que parece claro que o risco de extino comum a todas as espcies e nem todos os seres vivos tm a mesma facilidade em satisfazer os imperativos de sobreviver e procriar. As condies ambientais mudam ao sabor de foras aleatrias e os poderes de um organismo nem sempre correspondem s demandas definidas por suas necessidades vitais. A natureza pode ser prdiga, mas no faz concesses.

    Falar em "guerra" seria exagero cataclismos espordicos parte, h pelo menos tanta criao e exuberncia quanto destruio e runa no fluxo natural da vida pelo planeta. O que se observa, contudo, que o processo evolutivo marcado pela existncia de forte competio e conflito na disputa por recursos escassos. Alguns ambientes, verdade, so mais exigentes que outros. Mas, se eles forem generosamente bem-dotados para a preservao e reproduo da vida, a prpria proliferao de seres vivos resultante desse fato auspicioso se encarregar de alterar o ambiente e apertar o cerco sobre cada um. Quando o ambiente se torna mais rigoroso, a peneira da seleo contrai: a nota de corte aumenta. O desafio de sobreviver e procriar com sucesso na natureza um jogo de astcia e agilidade, sorte e fora bruta um jogo no qual nem todos os chamados logram se fazer escolher.

    At onde pode chegar um ser vivo na busca de seus imperativos biolgicos? A pergunta soa pueril quando nos debruamos sobre o mundo natural. A natureza, ao que tudo indica, cega, perseverante e desprovida de escrpulos. Um organismo simplesmente far tudo o que estiver ao seu alcance para saciar suas necessidades prementes. Ele agir impelido pela intensidade de suas carncias, de um lado, e limitado pelo seu leque de comportamentos e pelas ameaas e obstculos com que se depara, de outro.

    Mas se os fins perseguidos por todos os seres vivos so essencialmente uniformes, os meios dos quais dispem para persegui-los so os mais diversificados. O repertrio fabuloso e inclui peas de espantosa sagacidade. A arte do engano o uso pelo organismo de traos morfolgicos e de padres de comportamento capazes de iludir e driblar os sistemas de ataque e defesa de outros seres vivos parte expressiva do arsenal de sobrevivncia e reproduo no mundo natural.

    H enganos para todos os gostos. Do mais simples ao mais complexo organismo natural, o ilusionismo defensivo e ofensivo permeia toda a cadeia do ser. A arte do engano, como veremos a seguir, no requer premeditao consciente ou intencionalidade por parte de quem a pratica. Ela aparece no s nas relaes entre os membros de diferentes espcies (entre-espcies) como tambm, em diversos casos, nas interaes dentro de uma mesma espcie (intra-espcie).

    Os primeiros indcios do que vem pela frente manifestam-se j na esfera da vida molecular. O funcionamento do sistema imunolgico dos animais baseia-se na operao automtica de mecanismos que protegem o organismo contra a invaso de substncias nocivas microrganismos patognicos como bactrias, vrus e protozorios. A misso do sistema imunolgico dupla: detectar a presena do invasor e despachar a artilharia adequada de anticorpos para elimin-lo.

    A identificao do invasor patognico feita pelo reconhecimento de diferenas relevantes na composio bioqumica das clulas que pertencem ao organismo (e que portanto devem ser preservadas), de um lado, e das substncias nocivas que no pertencem a ele (e por isso precisam ser destrudas), de outro. Nem sempre, contudo, a coisa funciona. Se a identificao falha, duas coisas podem acontecer: o invasor penetra vontade e faz a festa nas entranhas do anfitrio ou, como acontece nas doenas auto-imunes, uma parte das clulas boas

  • do organismo erroneamente destruda pela pontaria desastrada do batalho defensivo.

    A guerrilha intestina opondo invasores patognicos e o sistema imunolgico um campo repleto de prticas de camuflagem, despiste e desinformao. Diversas bactrias conseguem burlar o mecanismo de deteco imunolgica dos mamferos graas presena de uma camada qumica superficial que as reveste e que tem a propriedade de torn-las aparentemente idnticas s clulas normais do organismo. Alguns vrus, como o da plio, certos tipos de gripe e talvez o HIV, acionam as defesas do organismo, mas entregam somente molculas menores em sacrifcio, servindo-se de tticas de camuflagem qumica para evitar o fogo hostil dos anticorpos sobre os alvos moleculares cruciais.-

    O tripanossomo africano um protozorio parasita responsvel pela doena do sono vai mais longe. Ao penetrar no aparelho circulatrio humano, ele exibe uma protena-isca que dispara os alarmes do sistema imunolgico e ativa rpida e vigorosa reao. O problema que, quando a tropa de choque dos anticorpos est pronta para entrar em campo e massacrar o invasor, o tripanossomo j trocou de armadura e exibe outra variante daquela mesma protena, neutralizando assim a primeira linha de defesa e provocando a convocao de um novo batalho de anticorpos. No momento em que nova conflagrao iminente, entretanto, ela suspensa por outra alterao na superfcie qumica do invasor. Desse modo, protenas-isca e variaes proticas de superfcie vo se sucedendo o tripanossomo carrega genes para mais de mil manobras diversionistas anlogas , at que, finalmente, a infeco torna-se crnica e o organismo anfitrio sucumbe (no para menos!) a profunda letargia.

    Campo frtil para a propagao da flora do engano no obstante a sua aparncia inocente o reino vegetal. Algumas plantas, como por exemplo a erva-de-vnus (Dionaea muscipula), ostentam uma pseudoflor que funciona como emboscada para atrair, prender e tragar insetos. Apesar de perfeitamente ociosa do ponto de vista da reproduo da erva, a pseudoflor preciosa quando o que est em jogo a prxima refeio.

    Diversas plantas, por sua vez, mimetizam o aspecto e o odor de fezes secas para atrair moscas e besouros em busca de alimento e stio adequado para depositar seus ovos. Ao se darem conta do embuste, os insetos reiniciam a busca e inadvertidamente polinizam as impostoras vizinhas. A camuflagem defensiva um ardil tpico de vegetais que povoam o ambiente rigoroso das regies semi-ridas. Como sua nica chance de escapar com vida do olhar famlico dos herbvoros locais no dar na vista, muitas espcies de planta do agreste acabam adquirindo aspecto e colorao evasiva, ou seja, semelhante ao de substncias indigestas como arbustos secos, galhos mortos, grama seca e pedregulhos.

    delicada e numerosa famlia das orqudeas existem cerca de 15 mil espcies distintas classificadas est reservado um lugar de honra na flora do engano vegetal. As orqudeas reproduzem-se por meio de alogamia: o processo de fecundao requer que o plen de uma flor se misture ao estigma de outra. Como vencer a distncia? A soluo recorrer ao fascnio do sexo.

    Diferentes tipos de orqudea especializaram-se em atrair diferentes tipos de insetos, seduzindo-os com estmulos sexuais que evocam o aspecto, a colorao e o odor das respectivas fmeas. Acontece que incitar o inseto a to-somente acercar-se da flor, atrado pela promessa de sexo, no basta. Para que a polinizao seja bem-sucedida ele precisa se animar a montar na flor, senti-la de perto e partir para uma pseudocpula com ela. S assim os sacos de plen se fixaro em seu corpo e sero efetivamente carregados e misturados ao rgo sexual de outra orqudea.

    O que espantoso, contudo, o grau de requinte e sofisticao a que certas orqudeas chegaram na simulao dos apelos de determinadas fmeas de inseto. Para as abelhas do gnero Andrena, por exemplo, o charme e o encanto das flores da Ophrys litea superam os atrativos da fmea real. Diante da opo concreta entre uma e outra, a maioria dos machos revela que prefere embarcar no sexo ilusrio e radiante da pseudo-cpula.' A cpia excede o original. Propaganda enganosa?

  • 2. A ARTE DO ENGANO NO REINO ANIMAL: APLICAES

    Ao prosseguirmos na escala evolutiva, avanando rumo ao reino animal e aos primatas inteligentes, o repertrio do engano se amplia e prolifera. Ao contrrio de microrganismos e vegetais, os animais no se restringem a recursos morfolgicos ligados forma e propriedades externas do organismo na arte de iludir e engabelar o prximo. A novidade aqui que comeam a entrar em cena, passando a dominar de forma progressiva o espetculo do engano no mundo natural, variaes e estratgias comportamentais das mais insuspeitas procedncias. mscara que disfara junta-se o gesto que ludibria.

    O que esperar de um inseto? Se a morfologia atrapalha, a astcia resolve. O percevejo africano A canthaspispetax desenvolveu uma tcnica ardilosa de usar as formigas com o intuito de com-las. Primeiro ele caa algumas formigas avulsas e gruda as suas carcaas sobre o seu prprio corpo. Assim disfarado, ele se dirige ao formigueiro mais apetitoso das redondezas, penetra nele sem ser molestado e banqueteia-se l dentro com o divino manjar. Na falta de formigas avulsas para se ocultar, o percevejo repete a faanha recorrendo a fragmentos de solo e areia. Se a erva-de-vnus, com a sua pseudoflor, o equivalente botnico do canto das sereias homrico, esse percevejo africano a matriz biolgica do cavalo de Tria.

    O aumento da flexibilidade comportamental faz tambm vir baila a prtica do oportunismo intra-espcie baseado em engano. o que se verifica, por exemplo, no caso de algumas variedades de mosca-domstica nas quais o macho corteja a fmea oferecendo-lhe como prenda algum alimento. Enquanto a fmea se delicia e lambuza com a prenda, o macho aproveita para se acasalar com ela. At a tudo certo: nenhuma iluso ou ardil, apenas uma troca tristemente familiar de equivalentes. O logro s aparece no momento em que surge um macho heterodoxo da mesma espcie que faz a mmica de fmea interessada, consegue induzir um macho reto a fazer-lhe a oferenda e, na hora do coito, apanha o alimento e chispa para longe. De um pseudotravesti como esse, nem mesmo uma msera pseudocpula a mosca iludida e fraudada consegue arrancar...

    Outro exemplo de oportunismo intra-espcie baseado em engano o do peixe-roda de guelras azuis (Lepomis macrochirus). O macho normal dessa espcie do tipo que precisa fazer um razovel investimento paterno para ter a chance de procriar. Ele prepara o local da fertilizao construindo um grande nmero de ninhos onde a fmea, devidamente cortejada, possa vir depositar os ovos. Em seguida, o macho fertiliza os ovos e faz a guarda dos ninhos, protegendo-os contra predadores at o nascimento das crias.

    H, contudo, uma variante bem definida de peixe-roda macho que, por atingir precocemente a maturidade sexual aos dois anos em vez de aos sete anos de idade , no consegue competir com os outros na busca e preparao de stios adequados para a procriao. Nem por isso, claro, desanimam. O jeito infiltrar-se no momento oportuno em ninhos alheios e despejar os seus gametas sobre os ovos que l estiverem. Feita a incurso, os precoces no perdem tempo: zarpam para novos ninhos e deixam que os sentinelas ludibriados zelem pelos "seus" rebentos. A chave da infiltrao no reduto alheio a iluso do sexo. Enquanto so novos, os machos precoces tm o tamanho e o aspecto das fmeas; quando crescem e atingem a maturidade, eles passam a encobrir suas incurses furtivas adquirindo a colorao e os trejeitos delas.4

    Pelo mesmo atalho oportunista do peixe-roda precoce, ainda que se servindo dos prstimos escusos de outras espcies que no a sua, segue o pssaro cuco (Cuculos canorus). Alm de sua capacidade de imitar o timbre vocal de diversas aves, o cuco especializou-se na arte de depositar seus ovos em ninhos de outras espcies de pssaros. Se o ninho-alvo pequeno demais para que a fmea do cuco ponha o seu ovo diretamente nele aproveitando-se, claro, da ausncia oportuna da anfitri , ela bota o ovo no solo e transporta-o com o bico at ele. O segredo bsico do cuco botar ovos cujo aspecto externo semelhante ao dos ovos da anfitri. Outro cuidado importante no abusar da hospitalidade: um ovo apenas, de cada vez, em ninho alheio. A cautela, ao que parece, compensa. Apesar da agressividade do filhote de cuco ao

  • nascer ele tenta destruir os demais ovos e expulsar do ninho os perplexos "irmozinhos" , ovos de cuco j foram encontrados em ninhos de 180 espcies distintas de aves.

    A anlise da arte do engano no mundo natural revela que o repertrio ilusionista gravita ao redor de dois estratagemas bsicos. H o engano por ocultamente, que se baseia em ardis de camuflagem, mimetismo e dissimulao; e h o engano por desinformao ativa, baseado em prticas como o blefe, o logro e a manipulao da ateno.

    No primeiro caso, o engano deriva de uma iluso negativa: a discrepncia entre realidade e aparncia consiste em desaparecer, em no se fazer notar, em induzir o outro organismo a no perceber o que l est. o caso, por exemplo, do camaleo; dos sapos furtivos que interceptam fmeas atradas por outros machos; do urso polar e de todos os animais que praticam a dissimulao para evitar predadores e rivais ou melhor acercar-se de suas preias. No jogo do ocultamento, quanto mais imperceptvel melhor.

    No engano por desinformao ativa, a iluso positiva. A discrepncia entre realidade e aparncia consiste em induzir um organismo a ver coisas, a formar imagens deturpadas ou a distrair-se momentaneamente. A perceber algo, em suma, que no est l.

    A essa modalidade pertence uma fauna estonteante de ocorrncias. o caso, por exemplo, da cascavel, com seu chocalho hipntico que embruxa a vtima; das raposas que se fingem de mortas para dissuadir predadores e que emitem falsos gritos de alarme para assustar os demais membros da alcatia e ficar com a comida s para si; da cobra-coral-falsa, com a sua colorao berrante e idntica da temida coral venenosa; das fmeas de insetos que emitem sinais luminosos para emboscar os machos e devor-los; dos lagartos que ludibriam predadores desprendendo a cauda; dos rpteis que se intumescem e dos mamferos que eriam os plos para parecerem maiores do que so em situaes de perigo; dos elefantes que disparam rumo ao ataque mas no atacam, ou, ainda, para no alongar demais a lista, dos ces que latem e mostram agressivamente os dentes mas, na hora da briga, do no p. No engano por desinformao ativa, quanto mais verossmil melhor.

    O que se passa na mente de um animal que engana outro

    se que a noo de mental faz sentido aqui , ningum tem condies de saber. A existncia de vida subjetiva nos animais, embora intuitivamente plausvel em alguns casos, impossvel de ser provada. Se saber o que se passa em nossa prpria mente por vezes delicado (ainda que ningum parea capaz de negar que algo se passa nela), o que dizer da hipottica subjetividade de um peixe-roda, lagarto, cuco ou co domstico?'

    difcil, tambm, saber at que ponto um determinado tipo de engano animal resulta de gentica, presso do ambiente, aprendizado ou uma combinao de fatores. O que parece claro, entretanto, que quando chegamos aos parentes evolutivos mais prximos da espcie humana primatas antropides como os chimpanzs, gorilas e orangotangos novos continentes se descortinam para o exerccio da arte do engano. A flexibilidade comportamental ajuda; a linguagem a falta dela

    o limite.

    A inventividade dos primatas parece resultar de uma fuso de elementos cognitivos e comportamentais no s a capacidade de aprender e inferir como, tambm, a propenso a improvisar e experimentar na busca de solues. Os relatos detalhados feitos por etlogos que se especializaram na observao e estudo de diferentes agrupamentos e espcies de macacos, tanto na natureza como em cativeiro, mostram a versatilidade de suas aes e reaes diante de novas situaes e oportunidades. Em alguns casos especficos, envolvendo interaes intra e entre-espcies, a prtica do engano parece tangenciar a deliberao e premeditao conscientes.

    O repertrio do engano primata inclui ardis de ocultamente- e desinformao ativa. Um chimpanz jovem e subalterno, por exemplo, precisa evitar a agressividade dos machos dominantes. Mas nem por isso ele vai deixar de colocar as mangas de fora quando puder faz-lo. Uma sada usar as mos. Quando um chimpanz subalterno tem uma ereo do pnis, ele

  • capaz de usar a mo para esconder judiciosamente o fato da vista de um macho dominante que esteja prximo a ele, mas tomando o cuidado necessrio para que a fmea na qual est interessado no perca em nada a viso dessa prova contundente de sua virilidade. Mostrar e ocultar estrategicamente os genitais fazem parte da retrica do conflito e da seduo entre os antropides.

    Outro estratagema comum de certos primatas para evitar a agressividade fsica de um macho mal-encarado fingir-se machucado, digamos, mancando ostensivamente. Quando o potencial agressor est por perto, o macaco manca; quando ele desaparece de cena, o macaco volta a andar normalmente; mas, se o outro reaparece de repente, o macaco sofre uma sbita "recada". A consistncia do personagem "que ele continue at o fim tal como se apresentou no comeo e permanea de acordo consigo mesmo", como prope Horcio na Artepotica (linhas 126-7) uma das regras bsicas da boa fico narrativa.

    Episdios de manipulao da ateno alheia e de controle da expresso das prprias emoes so tambm freqentes. Uma das tcnicas favoritas empregadas pelos estudiosos do comportamento primata o chamado "problema do alimento escondido". Como lida um macaco qualquer com uma situao na qual s ele teve a chance de observar o local onde foi escondido um suculento cacho de bananas?

    As variaes em torno dessa mesma trama e as respostas obtidas em diferentes situaes, envolvendo no s relaes entre macacos, mas tambm entre eles e atores humanos, dariam para encher um tratado. Do mais solidrio ao mais rapace, tudo parece possvel. Uma resposta comumente observada a dissimulao prolongada, manipuladora e calculadamente egosta. Um macaco capaz de se fazer de desentendido durante horas, em plena rea do esconderijo, evitando assim que os demais membros do bando cheguem a saber do seu precioso segredo. Mais tarde, enquanto esto todos dormindo menos ele, a "amnsia" acaba. O macaco volta furtivamente ao local do esconderijo, apanha as bananas e adeus.

    Tudo isso, claro, na moita. E se os macacos falassem? O desafio de ensinar algum tipo de linguagem humana aos macacos vem provocando a pacincia e a engenhosidade de etlogos h vrias geraes. luz do empenho despendido, no entanto, os resultados at o momento so pfios. As primeiras tentativas, baseadas em comunicao oral, deram em nada. Embora dispostos a "macaquear" praticamente tudo que os homens fazem, os antropides so um completo fiasco no ramo da vocalizao. Melhores resultados vm sendo obtidos com o uso da comunicao por meio de sinais e gestos manuais (linguagem para surdos). Mas o mximo que se conseguiu at hoje foi ensinar um vocabulrio de cerca de 130 gestos-sinais, usado basicamente, com raras e dbias excees, para expressar desejos locais e tangveis como "comida", "brincar", "cocar" etc. Em sintaxe, gramtica e uso descontextualizado da linguagem, a maior nota obtida at agora por um smio ficou prxima de zero.6

    O curioso nisso tudo que, embora precria do ponto de vista lingstico, a competncia dos macacos no uso da linguagem suficiente para trair a sua forte propenso prtica do engano. A partir de um certo ponto ainda rudimentar no processo de aquisio de linguagem, os macacos parecem logo se dar conta das novas e formidveis possilidades de "levar vantagem" que se abrem.

    As artimanhas do macaco Chantek um orangotango macho submetido desde pequeno a um regime intensivo de aprendizado em comunicao por gestos manuais so ilustrativas.7 Em situaes normais, Chantek era capaz de transmitir aos seus educadores sinais manifestando algum desejo ou solicitando algum tipo de ateno. Nem sempre, claro, os seus pedidos eram atendidos. Mas o que ele comeou a perceber com o tempo, entretanto, que o uso de alguns termos especficos como o sinal "sujo" expressando a vontade de ir ao banheiro, por exemplo invariavelmente produzia o efeito desejado. Por que no aproveitar a estranha fora desse gesto para outros fins?

    Foi a que Chantek ensinou algo indito aos seus mestres. Ele passou a fazer o sinal "sujo", manifestando supostamente o desejo de sair do quarto para usar a latrina, mas quando era levado pelos treinadores at o banheiro ele "perdia a vontade" e passava a brincar

  • alegremente com o sabonete e a torneira. A generalizao da descoberta no tardou. Chantek logo se deu conta de que outros termos alm de "sujo" gestos sinalizando "abraar", "abaixar", "ateno" ou "oua", por exemplo tambm podiam se prestar a outros usos e fins, nos mais diversos contextos. A manipulao astuciosa da linguagem tornou-se, ironicamente, o seu melhor ardil para interromper e escapar de uma sesso de treinamento demasiado maante.

    Foi nesse contexto, por fim, que os treinadores conseguiram arrancar aquela que talvez a mais astuciosa expresso de linguagem at hoje feita por um macaco. Ao notar que estava prestes a ser admoestado por mais uma de suas traquinagens com o idioma, Chantek, acuado e contrito, teria gesticulado em defesa prpria: "Chantek bom". Auto-engano?

    3. O VIS ANTROPOMRFICO NO ESPELHO DA NATUREZA

    Nada tudo. Tempo, espao e condio impem, em alguma medida, perspectivas, ngulos e filtros. O passado e o futuro s podem ser concebidos a partir do presente; o prximo e o distante s se definem a partir de um ponto determinado; o alheio pressupe e reflete o familiar. Se os animais nos parecem desprovidos de escrpulos e sentido tico na busca de seus

    alvos, como ser que ns, seres humanos, pareceramos aos olhos deles na busca dos nossos? O antropomorfismo pode ser parcialmente mitigado, mas jamais ser erradicado por completo. Mesmo que um animal falasse com a desenvoltura de um homem, ns ainda teramos que interrog-lo, compreend-lo e interpret-lo. Por mais objetivo que seja, o conhecimento humano traz estampado na fronte a marca indelvel de nossa humanidade a forte seletividade cobrada pela teia das percepes, das categorias e dos interesses humanos.

    A natureza em sua totalidade, assim como a histria, um reservatrio inesgotvel um manancial de fatos, processos e acontecimentos com os quais se pode provar praticamente o que quer que seja ou o seu contrrio. A mesma natureza que levava um filsofo estico a retrat-la como providencial e harmnica, a ponto de erigi-la em padro moral e de procurar viver de acordo com ela (naturam sequ), levava o atomista antigo a conceb-la como fora cega e implacvel, no mais que a resultante autopropelida de leis fsicas alheias a qualquer princpio tico.

    Analogamente, a mesma natureza que o romntico exalta como a fonte suprema da sabedoria e da virtude "Os axiomas da fsica traduzem as leis da tica, todo processo natural a verso de uma sentena moral [...] a lei moral aloja-se no centro da natureza e irradia-se pela circunferncia" (Emerson) leva um pessimista csmico a encar-la como um covil de taras mrbidas: "o campo de batalha de seres atormentados e agonizantes que continuam a existir apenas devorando-se uns aos outros" (Schopenhauer). Ao contemplarmos a natureza, o que encontramos? Herclito chora, Demcrito ri. Se Rousseau a diviniza e ajoelha-se lacrimoso diante dela, Baudelaire demoniza-a, escarnece e sente-se enojado.8 A natureza tudo que for o caso.

    Nem tudo, evidentemente, o caso. A prtica do engano no mundo natural faz parte de um todo. Ela apenas uma das inmeras estratgias a cooperao e o conflito aberto, por exemplo, so outras por meio das quais os seres vivos enfrentam o desafio da sobrevivncia e da reproduo. Mas a sua aparente ubiqidade nas relaes intra e entre-espcies, permeando a vasta cadeia que vai da molcula ao primata, d o que pensar. At que ponto, cabe primeiro indagar, justifica-se falar em "engano" nas interaes entre animais no mundo natural? No se incorre aqui numa dose maior de antropomorfismo do que a busca da objetividade cientfica recomendaria?

    O risco de exorbitar na atribuio de traos humanos a seres no humanos real. Ele aparece de forma clara, por exemplo, na investigao do campo minado que a subjetividade e a vida emocional dos animais. No toa que muitos etlogos preferem banir de suas pesquisas o uso de termos como raiva e medo, substituindo-os por expresses como "manifestao de comportamento agressivo" e "impulso defensivo de fuga". O que pode, primeira vista, parecer um excesso de assepsia torna-se talvez mais compreensvel quando se examina o

  • antropomorfismo lrico a que podem chegar especulaes em torno do choro do elefante, da crueldade da hiena, da timidez dos papagaios, do tdio dos animais de pasto ou da alegria dos golfinhos. O mesmo se aplica imputao de relaes sociais humanas ao mundo animal como, por exemplo, na suposta prtica do estupro entre os orangotangos ou da escravido entre as formigas.9

    O engano no vai to longe. O primeiro cuidado dissociar a noo de engano no mundo animal de qualquer atribuio de configuraes subjetivas especficas aos participantes da relao ou de qualquer conotao de premeditao consciente ou intencionalidade na ao.

    claro que, nos exemplos apresentados acima, inmeros pecadilhos antropomrficos foram cometidos abelhas atradas pela "promessa" de sexo; moscas "iludidas"; peixes-rodas que no "desanimam", e assim por diante. Esse tipo de deslize, contudo, perfeitamente dispensvel. Sua presena no texto explica-se apenas pelo intuito retrico de animar a escrita e entreter o leitor. O fato que todos os exemplos dados, com a exceo talvez do macaco Chantek, poderiam ser devidamente reescritos de modo a eliminar do seu relato qualquer resduo de antropomorfismo explcito, ou seja, tudo aquilo que no teria lugar numa descrio pautada pelo padro de objetividade associado a explicaes formuladas com base na operao exclusiva do mecanismo de seleo natural. Isso no garantiria, claro, a validade emprica dos exemplos ou a verdade terica da explicao, mas pelo menos afastaria a suspeita^e antropomorfismo crasso.

    A verdadeira ameaa de vis antropomrfico vem de outra direo. O engano um tipo particular de relao entre dois seres vivos uma interao na qual a morfologia e/ou o comportamento de um deles cria uma discrepncia entre realidade e aparncia que deturpa as percepes e modifica a ao do outro. Sob um certo prisma, a noo de engano rigorosamente to humana quanto, digamos, a de gravidade, ou seja, aquela segundo a qual os corpos se atraem uns aos outros na pro-. poro exata do inverso do quadrado da distncia que os separa. O que temos, em ambos os casos, so conceitos gerais e abstratos construdos pelo homem com o intuito de organizar a experincia sensvel e elucidar um conjunto definido de fenmenos. Sob um outro prisma, contudo, a noo de engano parece de fato padecer de um grau maior de contgio antropomrfico do que se verifica no caso da gravidade ou de outros conceitos da cincia moderna.

    Suponha um mundo igual ao nosso, mas do qual a espcie humana tenha desaparecido. No difcil imaginar que num mundo assim constitudo a relao de atrao entre os corpos continuar obedecendo a lei da gravidade-, a ausncia do observador humano no altera esta realidade. Mas ser isso verdade no caso do engano? duvidoso. A orqudea e a abelha, certo, no precisam de ns para continuar o seu idlio. Mas far qualquer sentido atribuir a essa relao o carter de engano num universo em que a humanidade deixou de existir? Falar em engano ou, de resto, de cooperao ou conflito aberto imputar a essa relao um contedo que faz sentido do ponto de vista da experincia do homem, isto , que tem cabimento para ns, humanos, mas no, ao que tudo indica, para os que participam dela ou para os outros seres que habitam o planeta.

    Falar na ocorrncia de engano no mundo natural parece, portanto, pressupor a existncia de um observador externo capaz de discernir e de discriminar, nas relaes entre outros organismos, um tipo peculiar de interao. ele que d a elas o sentido de engano. Ao contrrio da gravidade, cuja realidade prescinde de qualquer atribuio externa de significado, o engano no possui uma existncia independente da perspectiva que a humanidade tem das coisas e dvida. Mudanas de temperatura ambiental, para dar outro exemplo, continuariam existindo no mundo mesmo que no existissem homens e termmetros para registr-las. Mas pode-se dizer o mesmo da ocorrncia de enganos na natureza? Creio que no. o homem que traz o engano ao mundo, ainda que depois ele o encontre por toda parte ao redor e dentro de si. Trata-se de um juzo humano, feito a partir da experincia humana.

    Ao refletir sobre a relao de engano no mundo natural preciso ainda levar em conta a possibilidade de que muitas outras coisas, alm daquelas que so at o momento conhecidas,

  • possam estar ocorrendo. Como alertava Herclito, "a natureza ama esconder-se" (fragmento 123). O que nos parece um engano puro e simples, com base naquilo que sabemos sobre aquela interao, pode deixar de s-lo se viermos a descobrir algo novo sobre ela como, por exemplo, a existncia de algum benefcio concreto derivado pelo animal enganado ao interagir com o enganador.

    Aquilo que captamos ao observar uma relao qualquer entre organismos no mundo natural baseia-se: a) no que os nossos sentidos e aparelhos cientficos apreendem; b) no que as nossas categorias mentais permitem pensar; e c) no que a nossa curiosidade, interessada ou distrada, procura. A realidade, contudo, seguramente bem maior que isso e pode obrigar-nos a rever de forma inesperada e radical boa parte daquilo que nos parecia lquido e certo. Nada, em suma, descarta de antemo o risco de que estejamos enganados no apenas em detalhes, mas no essencial, transformando a trama das relaes entre os seres vivos numa espcie de Dom Casmurro sem Capitu.

    Suponha, para efeito de raciocnio, que um supercientista extraterrestre esteja conduzindo do espao uma investigao sobre os hbitos sexuais dos seres humanos. A certa altura em suas pesquisas, ele se depara com um fato curioso: os machos adolescentes da espcie Homo sapiens ficam sexualmente excitados e muitos deles costumam se masturbar diante de revistas erticas. O que ele poderia deduzir a partir dessa observao? Estaria justificado em concluir qu os jovens humanos costumam ser enganados por imagens fotogrficas que imitam o aspecto visual das fmeas daquela espcie, embora no passem de uma fina camada de tinta impressa em papel? Para chegar a uma hiptese um pouco menos absurda que essa, o extraterrestre evidentemente precisaria saber alguma coisa sobre o que se passa na mente de um jovem excitado por imagens erticas e sobre a faculdade humana de embarcar em suas prprias , fantasias, mesmo sabendo que so fantasias. Algumas de nossas hipteses sobre o engano na natureza podem revelar-se to equivocadas quanto as do extraterrestre sobre ns.

    Nada tudo. A luz refletida ilumina a luz projetada. A natureza tambm um espelho. Ao refletir a selva intricada e luxuriante de enganos que nela encontramos, a natureza no est somente refletindo aquilo que ela, em larga medida, possivelmente ; ela est ao mesmo tempo refletindo de volta para o ;, homem aquilo que ns somos projetando sobre a humanidade o seu prprio reflexo no mundo. O conhecimento da prtica do engano no mundo natural uma via de mo dupla: conhecer tentativamente o outro, por mais distante e alheio que ele parea, conhecer tentativamente a si mesmo. A volta a continuao da ida. Pensar o homem a partir da natureza pressupe pensar a natureza a partir do homem.

    A arte humana-demasiado-humana do engano no uma aberrao isolada e inexplicvel de um ser que perdeu a inocncia ao ser expulso do paraso. Ela a expresso do nosso parentesco profundo com tudo o que nasce, vive e morre a continuao, por outros meios e com novos recursos, de um vasto repertrio de enganos por ocultamente e desinformao ativa no mundo natural. Natura nonfacitsaltum. "Quem compreender o macaco", refletiu o jovem Darwin em seus cadernos filosficos, "far mais pela metafsica do que Locke."'"Perfeito. O nico problema descobrir como eliminar a metafsica da compreenso humana do macaco.

    4. O BIG-BANG DA LINGUAGEM NO UNIVERSO DO ENGANO

    No princpio foi o engano. Difcil saber, quem enganou quem? Primeiro Ado, envergonhado de seu ato, tenta enganar a Deus: esconde-se com Eva entre as rvores do den. Descoberto, contudo, ele admite perante Deus a traio da promessa de no tocar o fruto proibido. O que Ado tenta, ento, eximir-se da culpa acusando Eva de t-lo oferecido sedutoramente a ele. Eva, por sua vez, responde interpelao divina apontando o dedo acusador para a serpente: foi ela quem a teria enganado e persuadido a provar o fruto. A serpente, porm, o que disse? Ela contou a Eva que a ameaa feita por Deus era enganosa

  • que eles no morreriam ao comer o fruto, mas que os seus olhos se abririam e eles se tornariam semelhantes a Deus no discernimento do bem e do mal.

    Foi precisamente o que aconteceu. Ado e Eva no s no morreram como, nas palavras do prprio Deus, temeroso agora de que eles provassem do fruto da imortalidade, "eis que o homem se tornou como um de ns, capaz de conhecer o bem e o mal" (Gnesis, 3:22). Os sentimentos da vergonha e da culpa, certo, contaminaram a mente do primeiro casal; mas o fruto trouxe um saber divino e no os matou.

    Conclui-se, ento, que Deus mentiu? Que tentou abafar a aspirao humana de conhecimento e transcendncia com uma falsa ameaa? No necessariamente. No sentido literal da verdade, por estranho que parea, a serpente foi mais honesta que Deus. O que transparece, contudo, que a morte a que Deus se referia em sua ameaa no era a morte sbita e literal do organismo, mas a conscincia antecipada da morte a experincia aguda da amarga condio de finitude que nos junta e separa, liga e arranca da unio com tudo o que vive." O engano original da queda, portanto, teria partido de um engano de entendimento acerca da palavra divina. A serpente no mentiu. O que ela fez foi explorar a porta aberta por um mal-entendido espontneo, ou seja, pela atribuio ingnua e indevida de literalidade a uma ameaa igualmente real. Foi por essa pequena brecha a suposta mentira divina que a astcia da serpente logrou penetrar e impregnar a inocncia de Eva.

    Sobrou, claro, para a prole do primeiro casal. Diante de um engano aparentemente simples e sem malcia como foi o de Ado e Eva no den, uma divindidade mais humana e menos vingativa poderia talvez ter feito suas as palavras do Cristo crucificado "Perdoai-os, eles no sabem o que fazem" (Lucas, 23:34) e oferecido a eles outra chance. No foi o caso. A partir da queda, e por culpa exclusiva da transgresso humana do limite de sua existncia, a prpria natureza foi amaldioada e corrompida. Se Prometeu pagou pelo fogo que surrupiou dos deuses com o tormento das vsceras devoradas por abutres, o preo do saber furtado pelo casal bblico recaiu no s sobre eles mas sobre toda a humanidade e o mundo natural. somente a partir desse momento que, segundo o mito do Gnesis (3:16-9), dois tormentos universais passam a imperar na existncia humana e a separar o p do p nessa agitao feroz e fugaz que o intervalo entre bero e tmulo demarca: o sobreviver precrio, custa do trabalho duro e do suor sem trgua, e o procriar aflito, assolado pelas dores lancinantes do parto.

    Acreditar que um texto dotado de infinita sugestividade como as Escrituras possua uma nica interpretao correta um engano que consumiu inumerveis vidas no passado, mas no qual no precisamos incorrer. Como observa Montaigne, "para um ateu todos os escritos sustentam o atesmo". "Os volumes de intrpretes e comentadores do Antigo e do Novo Testamento", pondera Locke, "so provas manifestas de que, mesmo que tudo o que esteja dito no texto seja infalivelmente verdadeiro, no obstante o leitor pode ser, ou melhor, no pode deixar de ser seno deveras falvel no entendimento dele."12

    O texto tenta o leitor a l-lo e a interpret-lo. A iluso do entendimento final um fruto sedutor ao alcance da mente falvel: crer morder. Que do encontro entre a verdade da serpente e a literalidade ingnua de Eva tenha nascido o engano original da queda apenas uma leitura possvel entre uma infinidade (literal) de outras. Mas o que a cadeia de enganos e inculpaes na narrativa bblica da criao revela de forma expressiva que, com a entrada do animal humano em cena, o espetculo do engano na criao adquire nova cor e dramaticidade.

    A conquista do dom da linguagem, evidente, representou um verdadeiro big-bang na expanso do universo do engano. Nas relaes entre o homem e as demais espcies biolgicas, como veremos, o papel da linguagem na arte do engano necessariamente limitado e indireto. INts quando nos voltamos para as relaes intra-espcie do animal humano, incluindo claro as reflexes e confabulaes do indivduo a ss consigo mesmo, seria difcil superestimar a vastido do campo de possibilidades de engano e auto-engano propiciado pelo uso da linguagem. no cosmos paralelo da intersubjetividade humana mediada pela linguagem que a arte do engano encontra o seu elemento e alcana a plenitude.

    O universo fsico e os organismos biolgicos que o povoam no se deixam enganar pela

  • competncia e astcia lingstica dos homens. mais fcil imaginar que ouvimos estrelas do que presumir que elas nos ouam. No h lbia no mundo, por exemplo, que convena um peixe a no fugir dos predadores ou o vrus da plio a mudar de freguesia.

    O que a linguagem permite, contudo, uma troca de informaes e uma coordenao de aes que nos habilitam a manipular o mundo natural em nosso benefcio. O pescador aprende o seu ofcio e lana mo da isca para apanhar o peixe. A medicina preventiva aciona o ardil da vacina contra o ardil da plio: quando o vrus penetra o organismo ele encontra um exrcito de anticorpos j devidamente treinado (contra um falso inimigo, claro) para identific-lo e esmag-lo. No toa que o primeiro ato por meio do qual Ado afirmou o seu domnio sobre todos os animais preparando assim o terreno para a prtica do engano em massa foi o de nome-los.

    O poder do engano via interferncia fsica no organismo consegue fazer com que um ser vivo deixe de lado as suas mais profundas regularidades e necessidades biolgicas. Uma planta com os genes modificados no se fecha, desnuda e recolhe s porque est um pouco frio ou o sol ficou mais fraco nos climas temperados; ela passa reto pelas estaes do ano, como se estivesse de fato nos trpicos ardentes, e continua a produzir suas folhas e frutos em pleno outono e inverno europeus.

    Uma experincia com ratos corta o elo entre prazer e satisfao de premncias biolgicas. Um rato com eletrodos implantados no crebro induzido a pressionar uma alavanca que estimula com uma pequena corrente eltrica o seu hipotlamo lateral. A atividade supostamente to prazerosa e gratificante

    para o rato que ele a repetir de modo compulsivo por horas e horas a fio, a ponto de perder o interesse at em comer e beber (sexo ento, nem falar). Resultado: morte por inanio.13

    O mesmo princpio bsico da desinformao orgnica, vale notar, aparece em diversas conquistas tecnolgicas que nos ajudam a driblar pelo menos alguns dos tormentos e flagelos debitados queda de Ado. O anestsico, por exemplo, suprime a sensao de dor da dor, levando-nos a no mais sentir o que sentimos. O soporfero adormece a viglia do insone, infiltrando a sonolncia no reduto da insnia. Do mesmo modo, ainda que noutro canal, a plula anticoncepcional trapaceia o organismo da mulher fazendo com ele funcione parcialmente como se ela j estivesse grvida, quando na verdade no est.

    Ao solicitarmos a aplicao do anestsico ou ingerirmos certos tipos de substncia ns estamos interferindo quimicamente e de uma forma muito peculiar no funcionamento do nosso organismo. Ns estamos disseminando informaes qumicas no metabolismo com a misso de anular ou alterar os processos naturais por meio dos quais o organismo reage aos estmulos que recebe. Estamos, em suma, praticando o auto-engano no sentido mais palpvel e literal do termo.

    Tudo isso, claro, pertence ao repertrio no lingstico do engano. A manipulao de ordem fsica e transcorre no silncio da natureza. O fenmeno da interferncia, ainda que no o engano em si, pode ser observado e medido de fora e satisfaz o mais excludente critrio de objetividade cientfica. Vale aqui a mxima atribuda ao atomista Demcrito: "A fala a sombra da ao" (fragmento 145). No faria nenhuma diferena, pelo menos at este ponto, se toda a experincia subjetiva humana fosse como a msica das esferas de que falavam os msticos pitagricos no mais que um espectro incuo e encantador rondando o mecanismo objetivo das coisas.

    Mas quando nos voltamos das relaes entre o homem e os objetos naturais (inclusive o corpo e o crebro humanos) para as relaes dos homens entre si (inclusive a de uma pessoa com a sua prpria vida subjetiva), o quadro se altera radicalmente. O biolgico e o material, certo, a fora subterrnea e insuspeita dos imperativos comuns a tudo o que vive, no deixam de continuar atuando. Mas a subjetividade avassaladora da experincia humana do mundo e da vida invade e rouba inteiramente a cena. O psicolgico e o simblico transfiguram o enredo e passam

  • a dominar o espetculo. No palco das relaes humanas assim como na prpria fico dramatrgica religiosa e profana as aes que se tornam, em larga medida, sombras da fala.

    Apesar de enormemente potencializada pelo dom da linguagem, a propenso humana ao engano tem razes pr-lingsticas. O beb humano aprende a enganar antes mesmo de falar. Um breve episdio da minha experincia pessoal de pai ajuda a ilustrar o ponto. Quando meu primeiro filho tinha pouco menos de um ano de idade, eu o peguei no colo um dia de manh e resolvi mostrar a ele que era possvel brincar com o prprio choro. Eu simulava to bem quanto podia o som e a expresso facial do choro dele, aproximava meu rosto do seu ombro e, logo em seguida, olhava para ele rindo e zombando do que tinha feito. A idia era repetir algumas vezes aquilo para ver como ele reagiria.

    No incio, claro, ele me encarou com um ar de espanto e parecia intrigado. Em questo de minutos, porm, medida que eu repetia aquela mesma seqncia e convidava-o a rir comigo do meu choro, ele comeou a gostar da brincadeira e a rir tambm. O momento culminante foi quando ele imitou o que eu estava fazendo: simulou um breve choro e riu em seguida. Fiquei eufrico. Imaginei sem me dar conta, bvio, do que estava fazendo que tinha ensinado ao meu filho a possibilidade de rir do prprio choro e, portanto, de se ver de fora, ou seja, de suportar um pouco melhor os momentos em que alguma carncia ou mal-estar o levassem a chorar.

    Doce engano paterno. Na prtica o que aconteceu foi que ele se deu conta, ainda mais cedo do que ocorreria espontaneamente com qualquer beb, que tinha uma nova e poderosa arma nas mos. Logo ele comeou a simular o prprio choro, no com o intuito de brincar, mas para afirmar sua vontade ou atrair a ateno dos pais. No seria exagero supor que a iniciao lingstica do beb humano esteja talvez diretamente associada percepo, que desde muito cedo ele adquire, de que capaz de manipular as reaes e a ateno dos adultos por meio de sons.

    Sob essa tica, o processo de aprendizado lingstico da criana no se reduz simples aquisio de uma tcnica de comunicao baseada em vocbulos, sintaxe e regras gramaticais. O que est essencialmente em jogo a gradual descoberta pela criana, por meio de tentativa e erro, do que possvel fazer, ou seja, at onde se pode chegar com o uso da linguagem na satisfao dos prprios desejos. A experimentao na arte do engano um componente central desse aprendizado. Como observa Jean Piaget, em seu trabalho clssico sobre a psicologia evolutiva e o desenvolvimento moral da criana, "a tendncia mentira uma tendncia natural, cuja espontaneidade e generalidade mostram quanto ela faz parte do pensamento egocntrico da criana [...] ainda aos seis anos ela no sente realmente nenhum obstculo interior prtica da mentira [...] mente mais ou menos como inventa ou brinca"."

    Nada, evidente, sai do nada. A inocncia do animal humano em formao est acima de qualquer suspeita. Se a criana como , ela tem a quem puxar. Pelo menos nesse ponto, ao que parece, cincia e religio esto de pleno acordo. Se o macaco darwiniano faz o diabo com o primeiro fiapo de linguagem que lhe sai das mos, a prole de Ado no fica atrs. Interpelado por Deus sobre o paradeiro de Abel, Caim respondeu: "No sei. Acaso sou o guarda de meu irmo?" (Gnesis,4:9). A idia sublime de que se pode fazer um ser divino de bobo no nasceu ontem. Auto-engano?

    Com o advento da linguagem, portanto, a arte do engano vai ao paraso. Ao repertrio bsico do mundo natural restrito operao de fatores morfolgicos e comportamentais na prtica do engano por ocultamente e desinformao ativa junta-se agora esse extraordinrio instrumento gerador de discrepncias entre realidade e aparncia que o fator lingstico.15 A mentira crassa, como a que a serpente atribuiu a Deus para persuadir Eva, apenas o ponto extremo de um amplo espectro ao qual pertencem o exagero, a meia-verdade, a omisso sutil, a distoro e a manobra diversionista. No outro extremo desse mesmo espectro est o engano interpessoal involuntrio, porm interessado, flagrado na expresso imortal de Machado de Assis: "Quantas intenes viciosas h assim que embarcam, a meio caminho, numa frase

  • inocente e pura! Chega a fazer suspeitar que a mentira muita vez to involuntria como a transpirao".16 por essa ponta inocente do engano interpessoal que nos aproximamos da passagem que leva ao auto-engano.

    5. O ESPECTRO INOCENTE DO AUTO-ENGANO

    O auto-engano intra-orgnico, como vimos, um jogo baixo porm aberto. qumica versus qumica: a informao qumica aliengena introduzida no metabolismo e subjuga temporariamente o efeito da informao qumica nativa. Se voc sente-se letrgico e melanclico, por exemplo, um antidepressivo base de serotonina pode trazer o alvio que nenhuma fora de vontade, recordao ou conversa talvez trouxesse. E mais: se voc por acaso lembrar que est mais animado s porque tornou o remdio, isso pode trazer alguma preocupao, mas no vai acabar com a animao.

    Um pouco mais delicada a situao em que o auto-engano resulta de uma tentativa deliberada de manipular o ambiente de modo a alterar furtivamente certos hbitos e propenses. Suponha que eu tenha um problema com horrios e que, apesar de todos os esforos para me tornar mais pontual, continue chegando sistematicamente atrasado aos meus compromissos de aula e palestra. Uma sada vivel nesse caso seria eu adiantar, digamos, em meia hora meu despertador e meu relgio de pulso, de forma a compensar o meu natural atraso. O segredo da ttica no lembrar. Enquanto "conseguir esquecer" que a informao que estou recebendo falsa, a coisa funciona; mas, se comeo a lembrar da verdade a cada vez que consultar o relgio, passo a dar o devido "desconto" e volto estaca zero. O problema, claro, que no posso lembrar de esquecer: o esquecimento tem de ser inocente como o atraso.

    Esse tipo de auto-engano, contudo, baseado na manipulao de contra-informaes de fora para dentro do indivduo, uma ramificao menor e secundria no repertrio do auto-engano. O tronco principal constitudo pelo auto-engano intrapsquico, ou seja, aquele em que a mente da pessoa consegue de alguma forma manipular-se e iludir-se a si prpria. O jogo aqui elevado afinal trata-se de um clssico mental versus mental , mas ele tudo, menos franco e aberto. A boa f subterrnea, por mais absurda e injustificada que eventualmente parea aos olhos dos outros, fundamental.

    O ponto mais extremo no espectro do auto-engano intrapsquico a alucinao ou sndrome de Charles Bonnet.'" A alucinao em sentido tcnico no se confunde com a iluso sensorial e o devaneio. Ela se distingue da primeira porque no depende de percepes externas que a suscitem: se voc ouve um trecho de melodia no rdio e pensa por alguns instantes que era uma outra cano, voc simplesmente iludiu-se; mas se voc ouve um trecho de uma melodia qualquer, sem que haja no entanto nenhum estmulo sonoro externo sua prpria mente, voc pode estar tendo uma alucinao.

    A diferena em relao ao devaneio fecha o cerco sobre o fenmeno. Se voc cantar em silncio para voc mesmo uma cano favorita enquanto caminha pela ma e se divertir com isso, voc est devaneando. Mas, se voc ouvir nitidamente Joo Gilberto cantando "Saudade da Bahia", a ponto de procurar o rdio para abaixar o volume, mas constatar que no h rdio ou qualquer equipamento de som tocando aquela msica, voc est tendo uma alucinao. A experincia auditiva nesse caso, ao contrrio do devaneio, tem uma agudez alucinatria.

    A variedade mais pesquisada pelos especialistas em alucinao a experincia com o chamado "membro fantasma". As pessoas que perdem algum membro do corpo como, por exemplo, o brao ou a mo, em acidente, guerra ou cirurgia, costumam com freqncia continuar sentindo nitidamente o membro inexistente como se nada tivesse acontecido. Sua vivncia interna subjetiva nega e desmente a nova realidade corporal. Elas continuam sentindo e experimentando com vividez as sensaes tcteis de dor, ccegas ou simples contato que estariam tendo caso o brao ou a mo ainda estivesse l.

    Um dos desdobramentos mais pitorescos desse tipo de ocorrncia o "seqestro cerebral". H casos em que uma outra parte do corpo, como por exemplo um dos lados do rosto,

  • passa a receber as impresses sensoriais tcteis correspondentes ao membro perdido, digamos, a mo. Ao ter o seu rosto tocado pelo dedo de algum, a pessoa tem a sensao exata de que sua "mo" foi tocada. O que ocorre nesses casos, ao que parece, que a parte do crebro que costumava receber e processar as informaes sensoriais da mo amputada foi de algum modo seqestrada pela parte do crebro que cumpre uma funo anloga para aquele lado do rosto.1K (As possibilidades erticas abertas por seqestres desse tipo so incalculveis...)

    A alucinao o auto-engano intrapsquico em estado puro: claro e cristalino, porm longe da vida prtica e comum. Bem mais familiares que a alucinao, e, felizmente, fora dos anais da patologia mdica, so alguns de seus populares vizinhos no repertrio do auto-engano: o sonho propriamente dito e o sonhar acordado. Se os animais sonham como sonhamos uma questo discutvel; mas a universalidade do sonho entre os homens, no importando poca, etnia ou cultura, dificilmente poderia ser contestada.

    Nossa experincia subjetiva da vida bifurcada. Ao dormir cada homem se retira do mundo em que vive e circula, e se recolhe a um universo todo seu. Ao acordar, porm, ele s vezes se d conta de que sonhou ele se recorda com maior ou menor vividez de experincias perceptivas, emocionais, reflexivas e narrativas que teria vivenciado no recesso da mente enquanto dormia. Tempo, espao e lgica comum adormecem: os mortos visitam os vivos; um crucifixo arde no inferno; o imperador Marco Aurlio l uma prescrio mdica; um mssil nuclear ejacula; Pele menino sorri; amantes se chupam como razes; Descartes vislumbra geometrias. Enquanto est sendo sonhado, o grau de realidade subjetiva de um sonho absoluto. O sonhar que se est apenas sonhando um sonho to real quanto o sonhar que realidade, no sonho. "Quando sonhamos que sonhamos", observa o poeta e pensador alemo Novalis, "estamos prximos do despertar."19

    Se o teor dos sonhos de cada um obedece ou no a algum princpio geral explicativo, no importa aqui. O que relevante acerca do sonho sob a tica do auto-engano que se trata de algo vivido intensamente como real e genuno enquanto sonhamos, mas que depois se revela apenas sonho quando despertamos. A mente de quem sonha embarca e mergulha inteiramente na verdade subjetiva da fico que ela mesma fbula.

    Um sonho no algo que possa ser feito ou fabricado pelo indivduo para consumo interno; ele um fluxo imaginrio que "passa" por sua mente, ou seja, algo que ele "recebe" e vivncia como ocorrncia involuntria, embora seja no fundo o fruto selvagem do trabalho subterrneo de sua prpria mente adormecida. Ao mergulhar no sono, em suma, ns jamais podemos escolher se vamos ou no sonhar daquela vez; qual ser o contedo particular do sonho e qual o grau de intensidade emocional com que ele ser vivido. Esse pequeno mundo que seria todo nosso revela-se, dessa forma, um universo estranhamente alheio um mundo subjetivo que pode ser delicioso, indiferente, terrvel ou todas essas coisas, mas que inteiramente fechado nossa vontade e escolha conscientes.

    O sonhar acordado pertence ao lado desperto da vida. Como o sonhar propriamente dito, ele consiste na criao de uma realidade subjetiva; na atribuio de uma veracidade mais ou menos fungvel s maquinaes e confabulaes de nossa prpria imaginao. A capacidade da mente humana de processar simultaneamente diversas experincias e de manter vrias bolas no ar ao mesmo tempo parece ser fundamental aqui.

    A viso do impossvel no precisa mais que de um trecho de melodia ou de um momento solto nas dobras do tempo: algum revive um fragmento de sonho ao descer sozinho pelo elevador bem cedo; outro conversa com o dolo ao dirigir o carro ouvindo rdio; a aluna toma sol na praia com o ex-namorado enquanto anota uma aula de clculo; um negociante fecha contratos na igreja; o mendigo ganha na loteria e recebido pelo papa; sob o sol do meio-dia absorto a dvida assalta o pedestre ("E se tudo um sonho que algum de outro mundo est sonhando?"). "Os sonhos do acordado", relata o narrador de Dom Casmurro, "so como os outros sonhos, tecem-se pelo desenho das nossas inclinaes e das nossas recordaes [...] a imaginao foi a companheira de toda a minha existncia, viva, rpida, inquieta, alguma vez tmida e amiga de empacar, as mais delas capaz de engolir campanhas e campanhas,

  • correndo."20 Experincias desse tipo no tm a agudez alucinatria da

    sndrome de Bonnet ou a convico absoluta do sonho noturno ao ser sonhado, mas a sua realidade e presena em nossa vida mental cotidiana inquestionvel.

    A freqncia, o teor e o vigor do sonhar acordado variam, ao que tudo indica, de pessoa para pessoa e ao longo da vida de cada um. No seria talvez descabido, contudo, supor que as variaes no impulso e na aptido para embarcar nesse tipo de auto-engano intrapsquico permitem algumas generalizaes. A faculdade de sonhar acordado parece ficar mais propcia na fronteira difusa entre o sono e a viglia logo aps despertar ou logo antes de dormir do que em outras partes do dia. Ela parece, tambm, manifestar-se de forma bem mais freqente, livre e intensa na infncia (brincar e jogar), na juventude (entrega apaixonada) e na velhice senil (terrores imaginrios e fervor religioso) do que na idade adulta. difcil determinar at que ponto o vis ocupacional reflete, cria ou refora nossas inclinaes pessoais; mas h pouca margem para dvida quanto ao fato de que poetas e artistas em geral tendem a ser mais assduos e habilidosos no exerccio do sonhar acordado do que, digamos, neurocirurgies, engenheiros e economistas.21

    O domnio do sonhar acordado na subjetividade humana beneficia-se enormemente de estmulos e catalisadores externos. Excees, claro, existem. O poeta latino Horcio descreve, numa de suas epstolas, o caso excepcional de um indivduo superdotado na arte do sonho acordado:

    Um cidado bem conhecido da cidade de Argos costumava imaginar que assistia s mais espetaculares representaes dramticas enquanto permanecia sentado, a ss, no teatro vazio, rindo, aplaudindo e divertindo-se animadamente. No mais, ele cuidava perfeitamente bem de seus afazeres era bom vizinho, anfitrio generoso, amvel com a esposa, indulgente com os serviais, uma pessoa que no se enfurecia se quebrassem uma garrafa e que sabia evitar um precipcio ou um poo destampado. Graas aos cuidados dos parentes e ao uso de medicamentos, ele foi finalmente curado. Mas quando o remdio poderoso

    j tinha feito a sua parte, expelindo os fluidos nocivos, e ele estava recuperado, ele protestou: "Por Plux! Vocs me arruinaram, meus amigos! De modo algum me salvaram, arrancando-me a alegria e forando-me a renunciar encantadora iluso de meu esprito".

    O que se passava na mente do espectador horaciano, antes que os "amigos" a medicassem, jamais saberemos. A diferena entre ele e ns, ao que parece, que ele era capaz de ao mesmo tempo criar, dirigir, encenar e usufruir, em sua experincia subjetiva, algo que, em circunstncias normais, no apenas produzido e consumido separadamente, como envolve o trabalho, o talento e a boa vontade de muita gente. Como uma espcie de santo visionrio medieval superdotado, ele reunia no palco e platia de sua prpria mente individual tudo aquilo que, com maior ou menor poder de transporte e encantamento, a fico narrativa oferece ao espectador comum.

    Em condies normais, claro, e na guerra no menos do que na paz, o espetculo no pode parar. Onde a demanda existe, a oferta se faz. No consumo e fruio da arte e da fico narrativa em particular , ingressamos no que pode ser visto como uma espcie de espao sagrado e horrio nobre do sonhar acordado. "Um romance", reflete Stendhal, " como um arco, e a alma do leitor como o corpo do violino que emite o som." A boa obra de fico narrativa aquela que sonha um sonho por ns. Ao embarcar no transporte ficcional da arte como se estivssemos tirando frias de nossa subjetividade no que ela tem de concreta e pessoal. como se estivssemos ganhando um descanso de ns mesmos para sonhar acordados outras vidas, crenas e emoes. Ao viajar pela subjetividade imaginada dos personagens e atores que representam a trama, ns suspendemos temporariamente o jugo do nosso mundo mental "crcere do pensar, no h libertao de ti?" para ingressar no enredo aberto, envolvente e desconhecido que se oferece.

    O que busca o consumidor comum de fico dramtica? O genial Diderot responde:

    sobretudo quando tudo falso que se ama o verdadeiro, sobretudo quando tudo est

  • corrompido que o espetculo mais depurado. O cidado que se apresenta entrada da Comdie deixa a todos os seus vcios, a fim de retom-los apenas sada. L dentro ele justo, imparcial, bom pai, bom amigo, amigo da virtude; vi muitas vezes a meu lado malvados profundamente indignados contra aes que no deixariam de cometer se se encontrassem nas mesmas circunstncias em que o poeta situava o personagem que abominavam.21

    A empatia um dom bem distribudo entre os homens. O animal humano dotado de excepcional fluncia na imitao subjetiva, em sua prpria mente, dos estados mentais e sentimentos alheios. O poeta acena, o leitor embarca; o emissor convida, o receptor mergulha.

    Entre o apagar e o acender das luzes do espetculo, o espectador sonha acordado que outro, como se estivesse sendo sonhado por ele. No so s a virtude e o bem, aos quais alude com maestria Diderot, que nos movem. O repertrio humano transita, quase que num piscar de olhos, do medo alegria, do amor indizvel traio inominvel. De Otelo a Don Juan, de Bovary a Media, de Carlitos a Woody Allen, de Macunama a Superman nada que humano ou sobre-humano parece estranho ao espectador mundano. "A crena derradeira", observa Wallace Stevens, " se acreditar numa fico, que voc sabe ser fico, nada mais existindo; a estonteante verdade saber que se trata de uma fico e que se acredita nela por vontade prpria."24 apenas na lgica, no na vida, que contradies no podem existir.

    O espectador diderotiano o simtrico invertido do virtuo-se horaciano. Ele compra a fico alheia, usufrui a glicose que consegue, cospe fora o bagao na sarjeta defronte ao teatro e, findo o espetculo, retoma tranqilamente o fio de sua vida normal de vcios e enganos medocres. Recuperado do transe passageiro do sonho desperto, o cidado que sai pela porta do teatro exatamente o mesmo que l entrou. Mas ser ele simplesmente um hipcrita? Qual a relao, se que existe alguma, entre o espectador sublime, capaz de insuspeita grandeza e virtude na escurido da platia, e o cidado rasteiro, capaz de tanta perfdia, esperteza e mesquinharia sob a luz do dia?

    Na escurido da platia, enquanto o palco se agita, no h lugar para hipocrisia. O espectador est imvel, calado, a ss em sua subjetividade absorta, sob o efeito de aes, palavras, sons e imagens que o transportam para fora de si. Se ele deixa de ser quem , transformando-se momentaneamente, digamos, num mrtir da ecologia ou numa femme fatale, no h nenhuma inteno de enganar quem quer que seja nessa breve e inocente transferncia. O sonhar acordado uma variante do auto-engano intrapsquico. Se o espectador engana algum ao embarcar de peito aberto num carter distinto do seu, a lgica da situao implica que ele s pode estar enganando a si prprio.

    De volta ao mundo da rua, contudo, o quadro se altera. Ao retomar os afazeres da vida prtica, o cidado diderotiano chacoalha a embriaguez momentnea de suas frias subjetivas e volta a ser quem . Os olhos se abrem, mas uma certa inocncia se vai. A possibilidade da hipocrisia e do engano interpessoal esto de novo em cena.

    O animal humano, como vimos, desperta desde muito cedo no tempo bblico e biolgico para a manipulao do outro por meio do uso astucioso da linguagem. Se os espectadores identificam-se de forma plena e sincera, na platia, com os personagens ticos justos, imparciais, bons pais, bons amigos e amigos da virtude , mas negam isso em suas vidas prticas, representando papis que os deixariam profundamente indignados se fossem levados ao palco, como entender essa estranha metamorfose? Seriam eles hipcritas enganadores, agindo de m-f e calculando seus atos? duvidoso. H bons motivos, como argumentarei a seguir, para supor que mesmo aqui um veredicto sumrio de falsidade hipcrita revelaria mais um juzo apressado do que conhecimento de causa.

    O primeiro motivo um argumento de psicologia moral. A feira e o fedor extremos so insuportveis de perto. Por pior que algum seja aos olhos de um Diderot ou qualquer outro observador externo, ningum suporta conviver com uma imagem eticamente repulsiva de si mesmo por muito tempo.

    Repare: se os espectadores ficam sinceramente indignados ao verem sua prpria

  • maldade representada no palco, ento porque eles no se vem assim. O que ofende e agride nos outros, visto de fora, torna-se inodoro e razovel quando visto e vivido de dentro. A fumaa do automvel ou do nibus em que estamos no nos irrita. Os olhos da cobra verde no podem se ver nem aterrar a si prprios. A considerao espontaneamente parcial e carinhosa que cada um tem por si mesmo funciona como um pio capaz de nos fazer continuar sonhando acordados mesmo quando as luzes do teatro se acendem e o transporte ficcional termina. Ao retomar o fio do seu prprio enredo, o auto-engano troca inocentemente de roupa e papel: o bom sonho acordado do espectador calado d lugar ao mau sonho desperto do cidado esperto.

    O segundo motivo para duvidar da tese da simples hipocrisia um argumento de psicologia evolucionria. Sob uma tica naturalista darwiniana, mentir e enganar o prximo so propenses universais e inatas do animal humano mecanismos de sobrevivncia e reproduo to naturais quanto, digamos, transpirar e cortejar. O repertrio do engano no mundo natural no humano apenas o prembulo do pico farsesco que est por vir.

    O grande problema do enganador que ele no est sozinho no mundo. Como toda criana logo comea a se dar conta medida que vai ensaiando e testando contra os pais suas primeiras mentiras, ningum gosta de ser enganado contra a vontade. O risco de ser pego existe e a punio pode ser severa. Para lograr sucesso, o enganador precisa que os outros lhe dem crdito, ou seja, fundamental que eles acreditem em sua palavra e nas intenes que professa. O seu verniz de credibilidade e honestidade no pode apresentar falhas ou rachaduras suspeitas visto que, como dizia Protgoras reportando-se presso exercida pela comunidade sobre o cidado da polis, "qualquer um que no professe ser justo s pode estar louco".2^ Mentir uma arte.

    A hiptese da psicologia evolucionria a de que existe uma "corrida armamentista" em curso.21' Ataque e defesa: assim como o enganador deseja enganar, a vtima potencial do engano deseja prevenir-se dele. A principal arma defensiva nesse embate consiste em antecipar-se manipulao tramada pelo enganador, pilhando-o no ato enquanto tempo. A arte da defesa procurar, detectar e decodificar todos os sinais suspeitos que possam indicar a desonestidade e hipocrisia daqueles com quem interagimos. O que est em jogo no , evidentemente, uma competio maniquesta entre uma classe s de hipcritas e outra apenas de vtimas potenciais da hipocrisia alheia. Todos os animais humanos so, em algum momento, enganadores ativos e vtimas de engano; todos estamos intermitentemente enfrentando ambas as situaes.

    A verdadeira competio evolucionria aquela entre duas estratgias que se enfrentam no palco da vida prtica: o enganar ativo versus a ao preventiva do engano. precisamente a que o auto-engano, agora na fronteira do engano interpessoal, volta a entrar em cena. O beb humano, como vimos, aprende a enganar antes de falar; o auto-engano a ps-graduao. A criana logo se d conta de que o choro sentido, qualquer que seja a sua causa, muito mais eficaz em seus efeitos do que o choro superficialmente fingido. Mas h um momento no choro fingido, isto , na mmica do sentimento no vivido, a partir do qual as emoes correspondentes ao choro sentido afloram e tomam conta de fato da mente da criana. Nasceu o auto-engano.

    O enganador auto-enganado, convencido sinceramente do seu prprio engano, uma mquina de enganar mais habilidosa e competente em sua arte do que o enganador frio e calculista. Qualquer deslize pode ser fatal. Para que sua mente no seja lida e decifrada pelos demais para que ela no escorregue em lapsos ou se entregue nas entrelinhas, com todas as conseqncias danosas que isso acarretaria , o enganador embarca em suas prprias mentiras, deixa-se levar de modo gradual e crescente por elas e, enfim, passa a acreditar nelas com toda a inocncia e boa-f deste mundo. Ele no desperta dvidas porque no as tem; duvidar agora, quem h de? O espectador horaciano que se cuide. O espectador diderotiano faz na vida o que o ator diderotiano no faz no palco: ele no s cria enquanto atua, mas vive genuinamente o seu papel.

    6. A MISRIA EA GLRIA DO AUTO-ENGANO

  • A hiprbole inimiga da preciso. Mas difcil resistir a uma sensao de assombro e impotncia verbal diante do dano e do sofrimento que a propenso natural do homem ao engano e ao auto-engano pode causar. O conhecimento do bem e do mal, por um lado, trouxe os sentimentos da vergonha e da culpa diante de ns mesmos e tirou a humanidade do paraso ednico; o advento da linguagem e da tcnica, por outro, alterou de forma dramtica a nossa relao de foras com o mundo natural. Tanto individual como coletivamente, o animal humano transformou-se em milagre e enigma aos seus prprios olhos. Conquistou o privilgio divino de suas potencialidades e a prerrogativa trgica de ser o pior inimigo de si mesmo.

    Considere, por exemplo, o labirinto de enganos daquela que foi talvez a mais tenebrosa experincia coletiva at hoje vivida por uma comunidade humana o nazismo alemo. Enquanto Hitler confidenciava a um colaborador ntimo o seu "especial prazer secreto de ver como as pessoas ao nosso redor no conseguem perceber o que est realmente acontecendo a elas", o mefistoflico Goebbels, ministro da Cultura do Reich, jactava-se de dedilhar na psique do povo alemo "como num piano".

    Outros, mais instrudos, ouviam as notas dos seus prprios enganos. Enquanto o filsofo existencialista Heidegger cooperava ativamente com as autoridades nazistas na luta contra o aviltamento burgus da dignidade do Dasein, o maestro Furtwngler, estrela-mor da msica erudita alem na poca, tinha outros planos: ele imaginava sinceramente (ao que tudo indica) que seria capaz de suavizar a truculncia do regime bombardeando a cpula nazista com execues primorosas das obras imortais de Bach, Beethoven e Wagner.27 Eu me pergunto: o que teria dito Diderot diante da cena pattica de uma platia de dirigentes da ss sendo transportada pela batuta de Furtwngler para o universo ldico e buclico da "Pastoral"?

    O todo pode ser igual, maior ou menor que a soma das partes; mas ele inconcebvel sem elas. O coletivo no existe por si: ele a resultante agregada muitas vezes com propriedades novas da interao entre um grande nmero de grupos menores e indivduos. O auto-engano coletivo de grandes propores, como a Inquisio ibrica, o nazismo e o comunismo sovitico, a sntese de uma mirade de auto-enganos individuais sincronizados entre si. O delrio do todo o resultado da confluncia dos delrios das partes. no microcosmo do indivduo que encontramos o bero e o locus do repertrio do auto-engano em sua espantosa diversidade.

    Ao mesmo tempo, a misria do auto-engano no se reduz ao dano que ele isolado no indivduo ou composto em sociedade pode causar aos outros. Se o risco do enganador calculista sua deteco, seguida de punio e oprbrio, no caso do auto-engano a principal vtima com freqncia o prprio ator. Imagine um homem de certa idade, poeta, que olha para trs, contempla a sua vida como um todo, e no se reconhece no que fez e no que foi:

    Vivi, estudei, amei, e at cri,

    E hoje no h mendigo que eu no inveje s por no ser eu...

    Fiz de mim o que no soube,

    E o que podia fazer de mim no o fiz.

    O domin que vesti era errado.

    Conheceram-me logo por quem no era e no desmenti, e perdi-me.

    Quando quis tirara mscara,

    Estava pegada cara.

    Quando a tirei e me vi no espelho,

    J tinha envelhecido.

    Estava bbado, j no sabia vestir o domin que no tinha tirado.

    Deitei fora a mscara e dormi no vestirio

  • Como um co tolerado pela gerncia

    Por ser inofensivo.

    E vou escrever esta histria para provar que sou sublime.1*

    A experincia do poeta dramatiza e leva ao extremo uma possibilidade que comum a todos: ser minha esta vida? No se trata aqui de um auto-engano local, restrito a um ponto cego particular da pessoa, como , por exemplo, o caso da me que idealiza o filho apesar de todas as evidncias em contrrio a que ela tem acesso evidncias que ela no teria nenhuma dificuldade em assimilar caso dissessem respeito ao filho da vizinha.

    Trata-se de um auto-engano global: a experincia de despertar do prprio passado como de um mau sonho, de perder radicalmente a familiaridade e a complacncia consigo mesmo, de estar vivendo uma mentira da qual no se pode escapar. Ao contemplar sua vida do ponto de vista que o momento e o sentimento presentes definem, o poeta algum que no mais se encontra ao se perder de si mesmo. O caminho at aqui nada e deu em nada. J no sou quem nunca fui, mas no sei ser mais nada.

    O poeta, claro, pode estar enganado fingindo apenas que dor a dor que deveras sente. O passado amanh outro dia, dissipa-se na aurora a abissal melancolia, e da fonte caudalosa de outro engano pode jorrar uma nova elegia. Isso no elimina, porm, a realidade do auto-engano global na existncia humana. Se o poeta viveu de fato o que retrata, pouco importa; o importante que o nervo tocado, este sim, inevitavelmente nos toca. Como profissional do sonhar acordado, a misso do poeta no acreditar no que sente, mas fazer-nos acreditar que sentimos o que no sentimos. Ou sentimos?

    Ningum determina de antemo e do princpio ao fim o caminho que seguir na vida. O mximo que fazemos optar por trechos, com maior ou menor ousadia, medida que prosseguimos em frente. Ocorre que, a cada novo trecho do caminho, ns nos deparamos com novas realidades e com possibilidades desconhecidas que alteram no s as nossas expectativas sobre o futuro, mas que podem colocar o percurso j transcorrido sob uma nova luz e perspectiva. O conhecer modifica o conhecido.

    por isso que tudo o que vivemos, ou seja, toda a nossa experincia passada e a imagem que temos de ns mesmos so na melhor das hipteses construes provisrias, sujeitas a revises mais ou menos drsticas de acordo com o carter do que vamos descobrindo e vivenciando ao longo de nossa trajetria pessoal. A literatura mostra e a vida comum confirma que experincias crticas em nossos percursos uma doena grave, uma perda sentida, uma converso espiritual, uma crise afetiva, um acidente, um grande desafio profissional, uma terapia profunda podem nos levar a rever profundamente o valor e o sentido do nosso passado e as crenas que alimentamos sobre ns mesmos. Nenhum ser humano pode descartar o risco de, na manh cansada de um dia anmico, descobrir-se repetindo em silncio para si mesmo (sem fingir) o lamento do poeta: "Fiz de mim o que no soube, e o que podia fazer de mim no o fiz".

    O valor negativo do auto-engano real. Como procurarei mostrar em detalhe nos prximos captulos, com exemplos oriundos das mais diversas procedncias e tradies histricas e culturais, a propenso humana ao auto-engano fonte de inumerveis danos e malefcios na vida pblica e privada. Antes de embarcar, contudo, na anlise da misria do auto-engano, vale a pena indagar: ser s isso? No haver tambm um elemento frtil, aliado da vida e da criao, no dom de enganar a si mesmo?

    Vire o mal do avesso. O que aconteceria se o auto-engano fosse inteiramente banido da existncia e da convivncia humanas? Como seria viver num mundo em que a verdade objetiva prevalecesse sempre? Um mundo em que ningum jamais se enganasse a si mesmo (local) ou sobre si mesmo (global)? Deixemos o universo do sono e do transporte ficcional da arte de lado quem poderia negar o benefcio da capacidade de mergulhar periodicamente nas fices do sonho e da arte? , e concentremo-nos no valor positivo do auto-engano na vida prtica.

  • Imagine um homem j de certa idade que ganha a vida como funcionrio subalterno num pequeno escritrio contbil. Observado de fora, na rotina medocre do seu dia, ele igual a todos e a ningum: p a caminho do p, um animal de rebanho resignado a cumprir sem brilho o mnimo denominador comum da subsistncia biolgica. Mas sob a membrana plcida de uma existncia montona e cinzenta esconde-se, porm, um homem subterrneo o viver secreto de algum que desde pequeno, e sem nenhuma razo aparente, alimenta com espantosa assiduidade fantasias selvagens de grandeza e criao literria.

    O brilho dessa paixo consome a sua alma; o desejo de consum-la torna-o cego para tudo o mais. Fiel a si mesmo e ao chamado avassalador que o impele rumo ao infinito da criao potica, ele se descuida do seu futuro prosaico. No completa os estudos, no aprende um ofcio, no faz carreira. Os anos passam, alguns versos se imprimem,